
Serenidade: escolher o que é bom
Não há serenidade sem escolhas razoáveis sobre a vida pessoal, social e espiritual, pior ainda quem tenta eliminar uma das três, sem vida pessoal não há o ser-ai (o Dasein heideggeriano), sem a vida social vivemos uma bolha, e sem a espiritual não desenvolvemos nossa essência.
Entre as escolhas tem temos que fazer na vida, elas não podem envolver somente um dos três aspectos: a pessoal apenas nos torna egoísticas e narcisistas, sem a social nos tornamos alienados e com dificuldades de compreensão da realidade e sem o espiritual não temos uma verdadeira ascese que nos eleve como seres humanos.
Por ocasião do centenário de seu conterrâneo o grande música Conradin Kreutzer, em uma conferência de 1949 em sua cidade natal Meßkirch, na Alemanha, e escreveu o texto sobre Serenidade.
Heidegger questiona a dificuldade do pensar já naquela tempo, e pergunta se não é através da música e do canto: “não se distingue a música pelo facto de ´falar‘ através do mero ressoar das suas notas e de não necessitar da linguagem corrente, da linguagem das palavras?” e : ”já uma comemoração, que envolve o acto de pensar?” (Heidegger, 2008, p. 10).
Ao recordar a sua cidade natal, lembra que [em função da guerra]: “tiveram de abandonar as suas aldeias e cidades foam expulsos do solo natal … tornaram-se estranhos … e os que nela ficaram ? Muitas vezes estão ainda mais desenraizados (heimatloser) do que aqueles que foram expulsos. A cada hora e a cada dia estão presos à rádio e à televisão … o cinema transporta-os semanalmente para os domínios invulgares, da representação que simula um mundo que não o é.” (Heidegger, 2008, p. 16), mostrando a relação com a tecnologia.
Se vivesse em nossos dias veria o quanto é realmente visível a relação que se mantém, agora não transportando a realidades outras, mas a irrealidades que transportam as mentes ao vulgar.
Assim as escolhas que se deve fazer torna-se mais radical, mais do que nunca é preciso não só escolher o que é bom e saudável, mas lutar para que esta consciência não se perca em ilusões.
Heidegger, M. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2008.
Além da dor: optar pela vida
Não a guerra, ao ódio e a indiferença significa ir além da dor, muitas vezes é difícil passar por diferenças de opinião, conflitos de cultura e até de ideologias, porém isto é exatamente o que supõe a dor como uma contingência normal da vida.
Byung-Chul Han ao analisar os analgésicos, a anestesia permanente como aquela que limita não só os sentimentos: “A dor é detida antes que ela possa colocar uma narrativa em movimento” (p. 72), e ainda: “O inferno é igual uma zona de bem-estar paliativa” (p. 73).
“Hoje, não estamos dispostos a nos expor à dor. A dor, entretanto, é uma parteira do novo, uma parteira do inteiramente outro” (p. 73), assim leva ao encontro e à vida, “ela permite apenas a prosa do bem-estar, a saber, a escrita à luz do sol” (idem).
Na incapacidade de compreender a dor como um processo de mudança, muitas vezes ela é substituída pela resiliência, que pode fazer sentido com grandes obstáculos ou um grande esforço para superar determinada circunstância de dor, porém em muitos casos é apenas uma teimosia com situações que levam a verdadeira felicidade, aquilo que Sloterdijk chama de uma “sociedade de exercícios”, esforços que não levam a uma superação.
Os gregos tinham o mito de Sísifo (já postamos sobre isto, veja a imagem), um rei astuto que desafiou enfrentar a Morte e Hades, resultando em sua condenação de empurrar eternamente uma pedra até o topo da colina, Albert Camus tem um livro que fala disto e atualiza o tema.
A verdadeira resiliência entende que existe um caminho novo, uma dor “parteira do novo”.
Quando o povo reclamava na passagem do Egito para a terra prometida, dizendo que tinha saudades das cebolas e dos restos que comiam como escravos do faraó, Moisés os repreende e diz (Deuteronômio 30, 19): “Tomo hoje o céu e a terra como testemunhas contra vós de que vos propus a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e teus descendentes, …”, indicando o caminho da liberdade e da construção de sua nação.
O enfrentamento de dificuldades, dores e até mesmo aflições em tempos difíceis, é certo exige resiliência, mas ela não pode ser confundida com o erro, a pura teimosia ou “exercícios” que a nada levam e não favorecem o encontro da felicidade.
HAN, B.-C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021.
A dor e as cinzas
O período da quaresma são os 40 dias após o carnaval até a Páscoa, como já era parte da igreja primitiva, vinda da Páscoa dos judeus, é anterior ao carnaval, lembra a Páscoa judaica (Pessach), que tem o significado de passagem ou libertação, lembrando o período que eram escravos no Egito.
A Páscoa cristã é uma renovação, lembra a morte e ressurreição de Jesus, estamos lendo e lembrando o livro de Byung-Chul Han (que não é cristão) onde fala sobre o sentido ontológico da dor e seu apagamento atual, esclarecendo: “vivemos numa sociedade com crescente solidão e isolamento” (Han, 2021, p. 59).
O autor cita Viktor von Weizsäcker em seu ensaio “As dores”, onde caracteriza a dor com uma “verdade que se tornou carne”, como um “tornar-se carne da verdade” (pg. 61), e ainda “Tudo que é verdade é doloroso” (idem).
A sociedade sem verdades, afirma o autor na passagem seguinte, é “um inferno sem igual”, e a “dor só pode surgir lá onde um verdadeiro pertencimento é ameaçado. Sem dor somos, então cegos, incapazes da verdade e do conhecimento” (p. 62).
Assim no cristianismo e no judaísmo, as cinzas e a Páscoa como um caminho de 40 dias, surgem para lembrar o pó que somos e o caminho de salvação e pertencimento que devemos trilhar: “dor é distinção [Unterschied]. Ela articula a vida” (pg. 63), “ela marca limites”.
“Dor é realidade. Ela tem um efeito de realidade. Percebemos primeiramente a realidade na resistência que dói. A anestesia permanente da sociedade paliativa desrrealiza [entwirklicht] o mundo” (p. 64) e “a realidade retorna na forma de um contra-corpo viral” (p. 65) escreveu o autor por tratar-se do período da pandemia.
Assim as cinzas e o período da quaresma para os cristãos é renovar o período da paixão de Jesus como seu ápice na semana santa, onde há o ápice da dor da cruxificação e o ápice da renovação que é sua ressurreição, cristãos ou não, esta é a lógica verdadeira e real da vida.
Sem entendermos isto, paralisamos na dor do ódio, das guerras, da indiferença, dos vários tipos de injustiça, da exclusão do Outro enfim, da não vida que toda esta ausência de sentido da dor provoca e assim é necessário lembrar do pó das cinzas, de tudo que passa e que só faz sentido se entendemos a dor não como um fim, mas como uma passagem para a vida.
HAN, B.-C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021.
A dor e seu sentido
Em seu livro “Sociedade paliativa: a dor hoje”, Byung-Chul Han caracteriza o ser que “coisificou a dor” como aquele que vive em uma “aflição puramente corporal” pois, o ser “dotado de sentido [Sinnhaftigkeit] a dor pressupõe uma narrativa que insere a vida em um horizonte de sentido”, assim sem uma vida corporal ligada a um sentido maior é “uma vida nua esvaziada de sentido, que não narra mais” (Han, 2021, p. 46).
Cita Walter Benjamin, em Imagens do pensamento, onde mostra a força curativa da narração: “A criança está doente. A mãe a traz para a cama e se senta ao seu lado. E então começa a contar histórias” (p. 47), ao menos era o que se fazia antigamente, antes mesmo de levar ao médico.
Conforme citamos nas frases do blog do mês passado: “vivemos, hoje, em um tempo pós-narrativa” (p. 48), “o ser humano hipersensível da modernidade tardia, que sofre dores sem sentido … aquela onda de dor na qual o espírito reconhece sua impotência afunda rapidamente hoje” (p. 49).
Cita também a obra de E. Jünger “Sobre a dor”, “o ser humano delira estar em segurança, enquanto é só uma questão de tempo até que ele seja arrastado pelos elementos para o abismo” (p. 55).
Jünger explica que a dor não pode ser levada ao desaparecimento, fala de uma “economia da dor, se colocada em segundo plano desse modo, ela se assoma ocultamente em um ´capital invisível´, que ´se aumenta com juros e juros sobre juros’. Parafraseando a “astúcia da razão” de Hegel, Jünger postula a ´astúcia da dor´” (p. 55), assim não é um poder autocrático e sim a dor que não foi coisificada em alguma forma de dominação.
Escreve citando Jünger: “Nenhuma reivindicação é mais certa do que aquela que a dor tem sobre vida. Onde se poupa a dor, se restaura o equilíbrio segundo as leis de uma economia inteiramente determinada” (pgs. 55-56).
Assim é possível falar, segundo o autor, “tomando de empréstimo uma expressão conhecida, de um ´astúcia da dor´, que alcança o seu objetivo por todos os caminhos” (p. 56), “… a luz dispersa com que a dor, em troca, começa a preencher o espaço” (idem), somente se esta luz está fora de nossa “segurança” coisificada (aquela ligada a bens e confortos materiais) é que podemos encontrar outro tipo mais duradouro de ´conquistas´, que não são coisificáveis.
O autor explica ainda que “numa Sociedade paliativa hostil à dor, multiplicam-se dores silenciosas, apinhadas nas margens, que persistem em uma ausência de sentido, fala e imagem” (p. 57).
Longe do narcisismo e do egoísmo encontramos um sentido a dor, encontramos mais que um sentido, uma recompensa que vem de nossa solidariedade, do encontro com o Outro e com a verdadeira felicidade da vida em família, em comunidade e em verdadeira segurança.
HAN, B.-C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021.
Pax romana e conflitos
O encontro de sexta-feira (28/2) do presidente Zelensky com Trump e seu vice no “salão oval” da Casa Branca foi uma reafirmação de Trump de sua política de Pax Romana, onde os mais fracos devem ceder aos mais fortes, e ainda pediu gratidão de Zelensky aos EUA, não é diferente a política para o Oriente Médio, o controle dos palestinos por Israel e EUA.
Zelensky reagiu participando da cúpula em Londres, neste domingo (02/03) reafirmou a posição da Europa de apoio a Zelensky, o primeiro ministro Keir Starmer da Grã-Bretanha, afirmando que era “um momento único em uma geração para a segurança da Europa” que teme novos avanços de Putin sobre o continente, todos países estão se militarizando.
A Pax romana era a mera rendição de seus adversários pela força, isto constitui a tática tanto do imperialismo como das colonizações, que ainda acontecem no mundo contemporâneo, após o encontro Zelensky ainda se reuniu com Giorgia Meloni, premiê da Itália, que afirmou desejar fazer uma ponte entre Itália e EUA e uma futura conferência com os EUA.
A ideia de novo acordo de cessar-fogo no Oriente Médio (acabou dia 1º.) agora passa pela proposta americana de controle da faixa de Gaza e Israel suspendeu a ajuda humanitária para pressionar o Hamas.
No início da semana passada surpreendeu a posição da Turquia de apoio a Ucrânia, o presidente Recep Erdogan afirmando que a Ucrânia deve participar das negociações e a Turquia controla a passagem de navios pelo estreito de Bósforo (foto) por onde passam os navios da Rússia no caminho pelo Mar Negro, e a Turquia é importante também na paz para o Oriente Médio, onde pode ocupar um fiel da balança, e o país é membro da OTAN.
O autocrata turco disse ainda que é a favor da devolução total do território ucraniano: “O regresso da Crimeia à Ucrânia é uma exigência do direito internacional”, ponto dificílimo.
A situação é de fragilidade da Ucrânia, mas a Rússia precisa demonstrar um interesse real de desejo de paz, do mesmo modo que ela desconfia da OTAN, os países europeus temem um futuro avanço sobre a Europa, já há áreas de conflitos como a Transnístria na Moldávia, a Geórgia e Eslováquia.
Toda guerra envolve algum tipo de pilhagem, e o interesse são as terras raras da Ucrânia.
Também Trump manifestou interesses imperialistas sobre a Groenlândia e até mesmo territórios do México e do Canadá, lembre-se que boa parte do Novo México e estados próximos já pertenceram ao México (Texas, Califórnia e pedaços de estados vizinhos), o acordo de Guadalupe-Hidalgo de 1848 estabeleceu a nova fronteira americana, após várias guerras posterior a anexação do Texas no ano de 1821.
É preciso estabelecer o direito dos povos e muitos tratados internacionais já falam de respeito a fronteiras e respeito as leis nacionais, interferências são sempre conflituosas, é preciso lembrar também dos povos apátridas (os curdos e os palestinos, mas há outros).
Um novo mundo solidário exige uma nova visão de fronteiras, onde a emigração não seja um crime e cada povo possa viver em seu território e explorá-lo comercialmente sem guerras.
Uma marca expressiva deste blog
tingimos no mês de fevereiro uma marca de quase dois mil acessos diários aos nossos conteúdos, 55980 no total onde bastariam mais 20 acessos e chegaríamos aos exatos 56 mil que divididos pelos 28 dias de fevereiro dariam 2 mil diários.
A preocupação principal deste blog é manter uma cultura saudável de diálogo, respeitando as diversas posições, procurando desviar a atual polarização sem omitir os excessos e arroubos de ódio e valentia que caracterizam o mundo contemporâneo e sem esquecer a boa cultura.
Não omitimos a nossa visão cristã, que ao nosso ver deve ser de diálogo e respeito com todas as outras culturas, de ecumenismo com as outras religiões e de defesa da vida, de maior justiça social e de reafirmação da cultura científica, sem esquecer que ela depende de método e de não optar pela atual polarização que distorce o verdadeiro saber científico, ignora as culturas originárias e outros povos que tem no seu desenvolvimento uma cultura própria.
Esclareço também que nossa visão do cristianismo envolve uma verdadeira espiritualidade e reconhece uma cultura confusa sobre as suas verdadeiras raízes: solidárias, humanitárias e de empatia entre os povos, o fundamentalismo nada tem a ver com a ortodoxia a qual reconhece como valores teológicos: a caridade (infusa), a verdadeira esperança (Salmos 146:5, Jeremias 17:7,8, Efésios: 1, 18) e a verdadeira fé que acredita na verdade histórica e divina de Jesus.
Jamais negaremos a ciência e a boa cultura, lembrando que elas precisam de método e de boa narração tema quase sempre presente em nossas análises da sociedade e da cultura atual.
Porém nossa preocupação central no mundo contemporâneo é a paz, a empatia e a justiça.
Obrigado aos meus leitores, em especial aqueles que discordando, mantém o diálogo !!!
A amizade e o Outro
Em um mundo individualista, onde as pessoas buscam bolhas onde todos “tem o mesmo pensamento”, a amizade parece ser o caminho do mesmo e não do Outro, pior quando isto é visto como religião, afaste as más amizade, quando na verdade o Outro será sempre diferente, não há “alma gêmea”, “metade da laranja” ou qualquer outro conceito idealista, o próximo no sentido religioso será sempre Outro diferente do meu espelho.
Aristóteles vai de encontro ao sentido bíblico do próximo para definir amizade: “a amizade perfeita é aquela que existe entre homens que são bons (ver post anterior) e semelhantes na virtude, pois tais pessoas desejam o bem um ao outro de modo idêntico, e são bons em si mesmos” (EN VIII, 1155/2021, p. 167).
Assim evitar “falsas” amizades é evitar um mundo sem virtudes e sem nenhum desejo de entendimento, assim oposto as definições idealistas de amizades, onde é há “afeto” entre narcisistas e egocêntricos.
Sobre amizades falsas Aristóteles alerta que não se revelam, nós é que tínhamos um conceito falso por interesse ou pouco conhecido, ele divide assim as amizades em três tipos: virtuoso (a principal de cima), a útil onde há interesses em comum e a agradável onde há um amo mútuo relacional, que torna capaz de suportar diferenças, mas quase sempre há conflitos.
Sobre a útil escreveu Paul Ricoeur em “Le socius et le prochain” (O sócio e o próximo), onde o próximo é um mundo onde o centro de relações pode ser de longa duração, mas mediado por circuitos coletivos complexos e anônimos, onde há interesses em comum, quando eles acabam a “sociedade” se desfaz.
A sabedoria bíblica sobre amizade pode ser encontrada no Eclesiástico 6,5-7: “Uma palavra amena multiplica os amigos e acalma os inimigos; uma língua afável multiplica as saudações. Sejam numerosos os que te saúdam, mas teus conselheiros, um entre mil. Se queres adquirir um amigo, adquire-o na provação; e não te apresses em confiar nele”.
Assim ressalta o conceito de empatia através de palavras amenas e reforça aquele conceito de Aristóteles que não “perdemos” amizade, não tínhamos um conceito correto sobre ele, no sentido bíblico “não te apresses em confiar nele”, e teus conselheiros “um entre mil” vemos a influência perversa de narrativas modernas de “coaching”, “influencers” e “ídolos”.
Encontrar a amizade exige sabedoria, num mundo de uma cultura rasa e de elaborações pouco profundas não é raro buscar segurança em “bolhas” artificiais e grupos que não entendem nem mesmo quais são os próprios fundamentos.
Um verdadeiro humanismo, uma verdadeira espiritualidade ou apenas “um caminho” precisa de um método, uma elaboração profunda e um exame detalhado das consequências.
ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2012
O mal e seu sentido ontológico
Toda análise que se faz no mundo contemporâneo é permeada (quando não é o próprio) por um sentido maniqueísta: a luta do bem contra o mal, e isto depende da narrativa particular.
O maniqueísmo apresenta que o bem e o mal como uma questão básica para compreensão do universo, assim são forças contrárias como ação e reação, ou atração e repulsão, dá para enumerar um grande número de livros contemporâneos que descrevem a realidade assim.
Aqui nos interessa dois pontos essenciais: o sentido religioso e o sentido político, no mundo religioso cresce o discurso de que “somos do bem contra o mal”, porém uma boa leitura da patrística (os religiosos do início da era cristã) ajuda a compreender que não é bem assim.
Agostinho de Hipona (354-430), que por nove anos foi maniqueísta, via no maniqueísmo a luta entre a alma e o corpo e assim justificava a luta entre o bem e o mal, mas revê esta posição sob uma forte influência de Ambrósio de Milão (340-397) que vai exercer forte influência em Agostinho, uma de suas frases era: “As lágrimas não pedem perdão, mas o alcançam” e alcança o Bom.
Assim Agostinho começa a dar ao mal um sentido ontológico, entendendo que corpo e alma se relacionam, digo assim: “Não tinha, no entanto, ideia clara e nítida da causa do mal. No entanto, qualquer que ela fosse, o procurá-la não poderia obrigar-me a ter por mutável um Deus imutável, se não quisesse tornar-me eu mesmo aquilo que eu procurava. Por isso, na minha busca tranquila, eu estava certo quanto à falsidade da doutrina daqueles de quem me havia afastado por convicção. Via, realmente, que estudavam o problema da origem do mal, estando eles próprios imersos na malícia, a ponto de preferirem imaginar tua substância sujeita ao mal, a se reconhecerem capazes de cometê-lo” (Agostinho, 2014, p. 172) em resumo, mal é ausência do Bem e do Bom.
Também é necessário, para uma análise aprofundada ler: “A natureza do bem”, “O Livre-arbítrio” para entender o problema da liberdade humana que pode negar-se a fazer o bem e o livre-arbítrio que é esta liberdade de escolha, porém Confissões é sua principal obra.
Agostinho desejava romper o dualismo e vai desenvolver em Confissões (pags. 174-175) a ideia que o mal não é uma substância, porque, se fosse uma substância, seria um bem. E, na verdade seria uma substância incorruptível e, por isso, sem dúvida um grande bem, e assim o que era corruptível estando sujeito a deterioração não tem existência eterna, assim que troca o seu maniqueísmo pelo cristianismo.
Visto sob a ótica das narrativas modernas que procuram negar a existência do incorruptível e assim, admitir a existência de Deus ou ao menos algo incorruptível que dá substância ao cosmos, dito por Byung-Chul Han assim para a narrativa moderna: “Vivemos hoje num tempo pós-narrativo. Não a narração [Erzählung], mas a contagem [Zählung] determina a nossa vida. A narrativa é a capacidade do espírito de superar a contingência do corpo” (Sociedade Paliativa: a dor hoje, 2021, Vozes).
Para justificar todo desamor precisamos de uma narrativa, se escapamos dela fazemos o bem.
Agostinho. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 2014.
O mal-estar civilizatório
A Sociedade do Cansaço é também uma sociedade que levou adultos, jovens e adolescentes aos psiquiatras ou a métodos alternativos, àqueles que tem pouco recursos levou a grupos fechados e de consciência social as vezes duvidosa.
O numero de doenças mentais em crianças e adolescentes devia atentar para esta situação.
Não por acaso Freud escreveu no início do século passado sobre este “Mal estar da civilização” (Freud, 1930) o autor não vai discutir a questão psíquica em si, mas a distante entre os impulsos pulsionais e a civilização, ou seja a cultura contemporânea que leva o homem ao seu oposto tanto quanto a natureza quanto ao seu bem estar.
A intolerância aos erros, equivoco até mesmo científico, a exigência de eficácia em todos os campos, a falta de empatia e amor na vida cotidiana e em especial, de valores que são naturais e levam a uma verdadeira ascese humana, leva aos conflitos emocionais e sociais a limites perigosos.
Ao detectar este mal, o próprio Freud fundador da psiquiatria não levou a humanidade ao divã, e sinto apontou que há males culturais e estes sim devem ser sanados primeiro, não é o que foi feito, neste sentido Sloterdijk tem razão foi possível a “domesticação” humana (Regras para o parque humano), que causou grande discussão na Alemanha nos meses de setembro e outubro de 1999.
Ainda que as próprias religiões vivam sobre este mal civilizatório, a verdadeira ascese que é subir a montanha da sabedoria tendo sobre os pés valores que sustentam esta ascese é necessário para alcançar um verdadeiro estágio civilizatório, é preciso “amar na ausência” é preciso pretender os verdadeiros valores que levam a plenitude e ao verdadeiro e único conforto, empatia e amor.
Quando retiramos isto da sociedade, ela começa a caminhar para o isolamento, o ódio e os conflitos e o “mal-estar” são apenas as consequências da ausência deste estado “natural”, porém uma planta só evolui se cuidada em suas condições naturais: adubo, água e sol adequados.
A sabedoria, a serenidade e o equilíbrio são remédios possíveis para o espírito bélico atual.
FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930 [1929]). In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Direção geral da tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 73-171. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21)
A demora e o sentido da vida
Assim como qualquer apreciação de arte, qual narração que não seja uma narrativa fragmentada, exige um sentido de apreciação, sensibilidade e empatia e isto significa uma demora no tempo de vista, Byung-Chul Han escreveu: “o mundo está carregado de sentido. Os deuses não são mais do que portadores de sentido” (Han, 2016, p. 25), não estou aqui olhando a vida como um panteísta, mas dialogando com qualquer possibilidade de contemplação.
Os mestres da contemplativa foram mestres na demora e na “apreciação” da vida (leia Vita Contemplativa de Byung-Chul Han), para esta apreciação devemos ir na contracorrente do mundo atual onde “a narrativa ria o mundo do nada” (p. 25).
Han desvela a relação que temos com os sentidos na atualidade: “aqui [e agora] tudo tem sentido é a eterna repetição do mesmo, a reprodução do já sido, da verdade impercível. É assim que o homem pré-histórico vive com um presente que perdura” (Han, 2016, p. 26), um presente que não é uma atualização e sim uma repetição, e por isto há a confusão com o virtual, que no sentido etimológico da palavra é aquilo que já é em potencial, e não o mesmo.
O seu sentido mais profundo desvela também a pós-verdade “o tempo será desfactizado (defaktiziert*) e, ao mesmo tempo, desnaturalizado (entnaturalisier) (Han, 2016, p. 28) e a revolução hoje refere-se a um tempo desfactizado, ou seja, a volta a modelos anteriores que não correspondem aos problemas e realidades atuais, por isso é preciso falsifica-la.
Byung-Chul separa o tempo da oralidade do histórico ao compreender “o mítico que funciona como uma imagem”, e vê a história da galáxia de Gutenberg como aquela que “cede lugar ás informações” (Han, 2016, p. 30), para dar a estas uma definição inédita: “na realidade, a informação apresenta um outro paradigma. No seu interior, habita outra temporalidade muito diferente. É uma manifestação do tempo atomizado, de um tempo de pontos (Punkt-zeit)” (Han, 2016, p. 31), sem que ele tenha lido o “paradoxo da informação” de Stephen Hawking como uma previsão de “energias” que escapam do buraco negro.
É preciso separar esta realidade cosmológica desta informação, o megatelescópio James Webb detectou estas “energias” da realidade da informação atomizada e fragmentada, não há contextualização do pensamento, de sua etimologia e de seu significado contextual, um mundo de “informações” desnaturalizadas como aponta Han.
Tudo isto não é filosofia, é o consumo de informação diária de haters, avesso da cultura dos povos e das nações, por sua fragmentação e de uma narração com sentido, a falta de sentido.
Por isto a ansiedade, o consumo de informação de baixo nível, não é só desinformação, porque os que as proclamam não buscam as raízes etimológicas, sociais dos pensamentos que construíram e que podem dar sentido a elas.
*defatikiziert: poderia ser traduzido por de-fato, porém o tradutor teve o cuidado de mudar.
HAN, Byung-Chul. O Aroma do Tempo: um ensaio Filosófico sobre a Arte da Demora, Lisboa: Relógio d´Água, 2016.