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A eticidade e o justo
A compreensão do que é a ética, já vimos nos posts anteriores, é fundamental para compreender o que é justo, porém a ética grande se desenvolveu para o idealismo contemporâneo, e enquanto o neocontratualismo é só uma verdade, o conceito de eticidade é essencial para entender os valores idealistas.
O sistema hegeliano pode ser visto em três partes (apenas didáticas): a ideia, a natureza e o espírito, a ideia é o plano geral da filosofia moderna (a esquerda os novos hegelianos e a direita os velhos hegelianos), a natureza é parte essencial para discutir o contratualismo e suas vertentes, o espírito se divide em: objetivo, subjetivo e absoluto.
Enquanto o absoluto remete a ideia do “puro”, o dualismo objetivo e subjetivo são parte do dualismo contemporâneo, quanto a justiça o objetivo pode ser dividido em: o direito abstrato, a moralidade e a eticidade.
É um tema demasiado longo e profundo, como é próprio do pensamento hegeliano, mas como consciente ou inconscientemente ele domina boa parte do pensamento (pelo menos aquele que é elaborado, é comum agora não se elaborar e apenas dizer, tipo “simples assim”), a eticidade é essencial para lê-lo.
Em Princípios da Filosofia do Direito, no parágrafo 142 ele escreve: “que minha vontade seja posta como adequada ao conceito e com isto e com isto superada e guardada sua subjetividade”, como é próprio do pensamento idealismo, a objetividade se sobrepõe a subjetividade (que é própria do sujeito) e grosso modo pode-se dizer que aqui reside a diferença fundamental com Paul Ricoeur, pois este se debruça sobre o que é Justo (subjetivo) e não justiça.
A passagem suposta de uma subjetividade abstrata para um substancial e de um universal para um concreto é realizada assim a eticidade é a própria definição do que é o bem e o que é da vontade subjetiva, no método hermenêutico, há uma intencionalidade e não uma subjetividade.
Assim a moralidade se reduz a moralidade social, ou a moralidade objetiva, enquanto indivíduo ele só pode se realizar em comunidade e nega a interioridade ou subjetividade.
No entanto, não há justiça sem homens justos, e em muitos momentos da história os homens tiveram que romper com tiranos, com falsos valores que se escondiam em torno de propostas sociais aparentemente altruístas, mas cujo projeto era de dominação, já diferenciamos poder de dominação.
Na perspectiva hermenêutica tanto o inconsciente como o imaginário são relevantes para a compreensão de um contexto, e eles estão quase sempre fundamentados em pré-conceitos, e o indivíduo se pergunta como se inserir numa história, também se pergunta qual ação objetiva deve realizar.
Sobre a universalidade, a fenomenologia rejeita a ideia do abstrato “puro”, Ricoeur vê um conflito entre o particularismo solidário e que somente um aprofundamento sobre aspectos interculturais podem concluir quais pretensos universais serão universais reconhecidos em diversas culturas.
Ao tratar da questão da justiça sobre a perspectiva social dos bens, Ricoeur trata do problema analisando a concepção puramente procedimental feita em Rawls, para ele o problema desta concepção está no fato que ela não se dá conta da heterogeneidade dos bens que estão implicados quanto a sua distribuição e para quais instituições foram definidas, o uso político, o proselitismo e o condicionamento de deveres definem muitas instituições.
Ricoeur também analisa o conflito de deveres em no âmbito da solicitude, e usa o caso da Medicina no âmbito da Anistia Internacional, fosse escrito agora na pandemia ele teria um belo exemplo para questionar esta questão da distribuição dos bens, como foram os casos das vacinas.
O justo e o legal
A legalidade evidentemente baseia-se nas leis, mesmo que estranhas ou questionáveis, ela é uma espécie de “contrato social” para se viver em sociedade, por isto o tema do post anterior é relevante, ainda mais se for considerado que o ponto mais alto do que é legal hoje é o neocontratualismo.
Paul Ricoeur escreveu em dois volumes sobre o assunto, feito na forma de ensaios, no terceiro ensaio ele trata da Teoria da Justiça de John Rawls, não só atesta sua atualidade como também ele reivindica aquilo que quase todos nós dissemos em um momento da nossa infância: “isto é injusto” e então isto precede ao sentido do Justo como também dizem respeito não só ao direito, mas a todas as pessoas.
Ricoeur no prefácio de Justo 1 já atenta para o detalhe que o tema está conectado a ideia do que é ético, na filosofia clássica, é “o desejo de uma ´vida boa´ com e para os outros em instituições justas”, e aqui situa-se boa parte da crise civilizatória: a desconfiança que há nas instituições democráticas.
A expressão “vida boa” retomada de Aristóteles é um qualificativo de bom num sentido estrito do ético, assim o bem é inseparável do bem do outro, sob a pena de nada mais ser do que um egoísmo repreensível, que rebaixa o sujeito no sentido do plano moral.
Dito de forma mais clara a relação com o outro é constitutiva da consciência de si, e ela é em certa medida um ético além do legal e do meramente moral.
Onde apenas é determinante a obediência, mesmo com uma conformidade interior à Lei moral, podendo ela ser incontornável de toda vida ética, essa tem algo para além da Lei, nela o homem deseja o Bem, aspira o Bem para si e para os outros, num sentido que torna-se também consciência para o outro.
É obvio que isto encontra uma barreira em nossas falhas, os maus sentimentos, as más ações, a violência que marcam a sociedade desde os tempos mais primitivos, neste sentido é preciso despertar a consciência da culpabilidade, que encerra nela a própria concepção de julgamento, isto significa limitar-se.
Por isto o tema da liberdade é relevante, deseja-se tolher qual liberdade e a pretexto de qual concepção de justiça, assim é preciso “instituições justas”.
Assim esta é a formula de Ricoeur: “: « o desejo de uma vida boa com e para os outros em instituições justas », sem elas o legal torna-se revoltante.
Porém é preciso dizer que as “instituições” não se limitam ao aspecto jurídico, do mesmo modo que o justo não se reduz ao legal, é preciso analisar a fundo.
Para explicar isto Ricoeur diz o que é consciência da Lei: “Aplicar uma norma a um caso particular é uma operação extremamente complexa, que implica um estilo de interpretação irredutível à mecânica do silogismo prático”, ou seja, simples regras lógicas, há não uma subjetividade, mas uma transcendência.
Ao fazer uma palestra a Associação L´Arche (fundada por Jean Vanier) que cuida de excepcionais, ele abordou o tema e falou de respeito ao tratar da diferença entre o normal e o patológico, apoiando-se nas obras de Georges Canguilhem, que discute a epistemologia da biologia.
RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. Trad. Vasco Casimiro. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
O que é justo, como se desenvolveu este conceito
Toda tensão contemporânea envolve algo além da política e da economia, a tensão é sobre a concepção de contrato social e poder.
O conceito de justiça está ligado a modernidade pelo de Contratualismo, através da construção desde pensamento de Thomas Hobbes passando por John Locke e Jean-Jacques Rousseau, tiram o homem de seu estado natural e o colocam para viver em sociedade, vão diferir assim sobre o conceito de quem é o homem: mau por natureza e deve viver sobre tutela, é influenciado pela sociedade e nela se desenvolve ou é um “bom selvagem” que a sociedade corrompe.
O conjunto dos direitos naturais e a teoria do estado da natureza é aquilo que se chama de jusnaturalismo, cujo problema é que o estado de igualdade de direitos gera conflitos e o estado é que deve arbitrar, porém na sociedade moderna isto vem junto ao pensamento liberal utilitarista.
Assim todas elas estão vinculadas a um contrato social estabelecido pelo estado, e a primeira grande crítica é feita por Hegel, o que ele vai entender por vontade geral é um conceito puro, idealista, mantido numa instancia racional, acima de qualquer acordo ou contrato.
Max Weber vai fazer uma reforma mais profunda ao diferenciar dominação de poder, visto que a dominação é a aceitação do poder que pode-se dar de três formas: a legal, a tradicional e a carismática. No entanto em nenhuma delas o uso da força é dispensado e nem sempre a questão social é lembrada.
John Rawls desenvolve e reelabora uma Teoria da Justiça a partir do contratualismo clássico, determinando os direitos e deveres que devem ter para se realizar a chamada “cooperação dos povos” e oferece contribuições a questão social que é fonte de conflitos.
No entanto, teóricos atuais como Emmanuel Levinas e Martha Nussbaum, questionam cada um a seu modo, se o contrato social não tem limitações graves, Nussbaum aponta, exemplo, o problema das pessoas com deficiência mentais ou físicas, o problema sobre a questão dos animais e das florestas.
Levinas parte da exigência ética que existe no trabalho de Rawls para elaborar a ideia que devemos recusar a tentação de impor nossa vontade e nos esforcemos para estabelecer compromissos pacíficos, e assim rejeita a ideia do estado como tendo monopólio da violência e do poder, em certo sentido, também reelabora a questão de dominação e poder, central em Max Weber.
LÉVINAS. Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993.
Novas tensões e pandemia
Além da guerra entre Rússia e Ucrânia, onde crescem as tensões, a tensão entre Estados Unidos e China aumentaram em função de um suposto balão espião que entrou no céu americano e uma nova tensão entre Azerbaijão e Armênia onde há 130 mil armênios isolados em condições sub-humanas na região de Nagorno-Kabarakh, reivindicada pelos dois países (mapa) e com histórico de conflitos.
Na guerra após a entrega dos tanques alemães para a Ucrânia e a ajuda americana, a Rússia reagiu com fúria prometendo uma ofensiva arrasadora, dia 24 de fevereiro completará um ano de guerra e espera-se até lá uma forte ofensiva russa, além disto há ameaças ao Ocidente e uma ofensiva na Moldávia, que faz fronteira sul com a Ucrânia e assim criar nova frente de combate.
O balão que invadiu território americano, vindo do Canadá e segundo a China se perdeu, uma vez que será tomado pelos americanos (a derrubada poderia ser perigosa), entrou pela região de Montana, norte dos EUA e com possíveis armamentos nucleares o que levou a suspeita, porém a China alega que a medida americana foi precipitada e que se trata apenas de um balão atmosférico, porém a tensão se elevou.
Os líderes de Pequim declararam que “não aceitariam nenhuma conjectura ou exagero infundado” e acusam “alguns políticos e a mídia dos Estados Unidos” de usar o incidente “como pretexto para atacar e difamar a China”, apesar da tensão o clima não é de uma guerra e a questão de Taiwan é um pano de fundo.
A covid-19 segue um roteiro de indefinições, agora há indicações que o Japão enfrenta um crescimento da pandemia, isolado durante as etapas anteriores, o país se abriu para o turismo e isto parece ser um dos indicativos deste inesperado crescimento, o uso de mascaras lá por exemplo, é anterior à Pandemia.
Segundo o site da BBC, o país atingiu um recorde histórico no dia 20 de janeiro com 425 mortes em um único dia, proporcionalmente maior que a América Latina, Estados Unidos e Coreia do Sul, entre outros, os dados são do Our World in Data, que é compilado pela Universidade de Oxford.
Seguem também temores sobre efeitos colaterais da vacina bivalente da Pfizer (imuniza a variante inicial e as novas cepas), segundo o órgão de controle americano de saúde, o FDA, a análise feita em milhões de idosos não identificou risco de AVC, mas especialistas pedem estudo mais aprofundado.
As luzes do iluminismo
Ainda vivemos sob a égide do iluminismo, o forte movimento da Europa do século XVIII, seus princípios pareciam conduzir a uma sociedade perfeita falando de liberdade e igualdade entre os seres humanos, desejando abolir tanto os poderes da realiza quanto a influência da religiosidade cristã, Voltaire e Diderot foram os pensadores mais radicais, mas não pode deixar de sentir as influências de Immanuel Kant, Adam Smith, David Hume e Montesquieu.
Ernest Cassirer faz um dos importantes tratados sobre o Iluminismo, cita Diderot: “O Autor da natureza, que não me recompensará por ter sido um homem de espírito, tampouco me condenará às penas eternas por ter sido um néscio” (apud Cassirer, p. 224), porém o autor corrige tanto o aspecto da tolerância, é preciso lembrar das guerras entre luteranos e católicos envolvendo diversos reinados e a paz da Vestfália, quanto o aspecto agora de uma religiosidade livre que “deixou de ser dádiva de uma potência sobrenatural, da graça divina; ela deve brotar da própria ação e receber da ação suas determinações essenciais” (Cassirer, p. 225).
A ideia também desenvolvida por Cassirer de um intelectualismo “puro”, por um lado coloca um primado do pensamento sobre a pura especulação teórica e por outro procura fundar um a religião “nos limites puros da simples razão”, claro sem a fé, sem o mistério (que é parte da natureza) não é mais religião.
A insuficiência e o reducionismo cartesiano, um argumento forte de Cassirer ao iluminismo, fizeram vários filósofos buscarem raízes na filosofia oriental, Cassirer lembra Leibniz que já “citara a civilização chinesa” e nas Cartas persas, Montesquieu faz uma comparação entre Oriente e Ocidente, mas serão Schopenhauer (Upanishad) e Nietzsche (Zaratrusta) que sob estas influências orientais romperão com a filosofia iluminista.
Leibniz não é contestado diretamente, mas seu discípulo Wilhelm Wolff que “celebra Confúcio como um profeta de grande pureza moral e coloca-o a par de Cristo” (Cassirer, p.226), será alvo da ironia de Voltaire em seu célebre “Candido, ou o otimismo” (1759), critica a ideia do “melhor dos mundos possíveis”.
No aspecto econômico foi importante para superar a filosofia do mercantilismo e desenvolver a teoria liberal (em especial Ada, m Smith) sobre o conceito da economia das nações, porém o liberalismo se desenvolverá de modo mais amplo com a ideia de capital financeiro de David Ricardo (1772-1823).
A crise civilizatória que apontamos nos posts da semana passada (e anteriores, é claro), tem suas raízes no iluminismo e suas ideias de estado, religião e liberdade, porém como aponta Cassirer importa “rejeitar o sentido literal da Bíblia toda vez que aí se encontra expressa a obrigação de um ato que contradiz os princípios elementares da moral” (pg. 228), porém em seu Tratado sobre a Tolerância (1763), é traçada uma lei do mundo intelectual “que a razão só existe e subsiste se for recriada dia após dia” (pg. 229).
O desenvolvimento de Cassirer entretanto é que “não se pode decidir sobre o seu valor ponto de parte a sua eficácia moral. É esse o significado em Lessing do apólogo do anel: a verdade última e profunda da religião só se prova desde o interior” (pg. 230).
Para estes filósofos somente a objetividade (a relação com o objeto exterior) é conhecimento, e este é alcançado numa “transcendência” do sujeito em relação ao objeto, assim não há sentido nem valor em uma ascese moral, assim para eles religião é a religião natural, embora não tenham boa relação com a natureza.
CASSIRER, Ernest. A filosofia do iluminismo. Trad. Álvaro Cabral. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1992.
Consciência humana e senciência maquínica
Consciência envolve aspectos espirituais humanos (na filosofia idealista chamada de subjetividade) e aquela que faz o homem ter uma verdadeira ascese que eleva seu caráter, suas atitudes e sua moral numa escala progressiva de aprendizagem, onde é admitido o erro, mas corrigido de forma humana.
Senciência é o fato que temos percepção consciente de nossos sentimentos, é a capacidade dos seres (humanos, pois não acreditamos que uma máquina mesmo sofisticada possa ter esta ascese), e nos seres ela passa a sentir as sensações e sentimentos de forma consciente.
Na figura uma representação do século XVII, um dos primeiros estudos foi o matemático inglês Robert Fludd (1574–1637).
Quanto menos conseguimos ter consciência de nossos sentimentos, menos temos senciência e menos capacidade de entender nossos sentimentos, a tentativa de traduzir as sensações (os tipos de risos, alegrias, tristezas, etc. para a máquina), sempre estarão subjeitas a algoritmos, mesmo que muito sofisticados, e por isso chamo de senciência maquínica, já que a consciência maquínica está descrita de diversas formas, por diversos autores.
A verdadeira consciência humana é assim aquela que nos permite alcançar níveis de ascese de diversas formas: altruísmo, colocar-se no lugar do outro, viver uma vida justa e apreciar a justiça, enfim uma verdadeira espiritualidade que nos eleve como humanos, e também é aquela que está ao alcance dos que sofrem com injustiças e barbáries humanas.
Para os cristãos aquilo que nos faz alcançar uma verdadeira ascese está descrito nas chamadas bem-aventuranças (Mt 5,1-12) que fala dos pobres, dos aflitos, dos mansos, dos que tem forme e sede de justiça, dos que tem capacidade de perdoar e falaz com clareza do desejo da paz: “bem aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados de filhos de Deus”, assim em todos circunstâncias que se vive em dias sombrios é preciso promover a paz.
Os contornos de intolerância e violência, não só na guerra da Ucrânia, mas em quase todo o planeta deve preocupar os que defendem a paz.
Reflexões para 2023
Sempre faço um propósito de algumas leituras no final do ano, as vezes abandono alguma e sempre anexo outras, por dever do ofício de professor e pelo surgimento de fatos novos, como foram o caso da pandemia em 2020 e da guerra da Ucrânia no último ano.
Entre outros, quatro livros já encomendados, que pretendo ler no ano de 2023 estão: “A nova síndrome de Vicky: porque os intelectuais europeus se rendem ao barbarismo” de Theodore Dalrymple (pseudônimo do médico, psiquiatra e ensaísta britânico Anthony Daniels, de 72 anos), embora de 2016 teve vários acertos da conjuntura, o segundo livro é de Slavov Zizek: “O ano que sonhamos perigosamente” (2012), o terceiro é sobre tecnologia, muitas coisas bizarras são escritas sobre a tecnologia e seus avanços, já citamos Jean Michel Ganascia: “O Mito da singularidade”, agora queremos reler a Inteligência Artificial a partir da autora da área porém sobre coisas básicas e sobre os dilemas da IA: “Inteligência artificial: uma brevíssima introdução”, básica mas conhecedora do tema, uma leitura mais profunda exige estudo e especialização na área.
Não poderia faltar na lista um livro de cunho espiritual, o livro de Anselm Grum, que é um monge beneditino alemão com 77 anos, e que muitos de seus livros impactaram as diferentes conjunturas, e agora quer dar uma resposta a ansiedade, depressão e desesperança que atinge boa parte da humanidade pandêmica.
De Dalrymple já postamos sobre o livro “Nossa cultura ou o que fizemos dela” onde a análise cultural precede a econômica e converge com a social, sobre Slavov Zikek tivemos algumas citações e já temos algumas reflexões sobre sua visão atualizada do socialismo, mas cujo aspecto de violência não é descartado.
Na visão de Zizek a superação do estado social ou do welfare state o estado hoje é a administração de uma crise social permanente, e neste livro ainda por ler, as releases e leituras permitidas online que pude ler ele desvenda o apreço dos intelectuais (diria especialmente dos grupos editoriais vigentes e suas narrativas) pela catástrofe, e diria em desacordo com Zizek que ele também está neste processo só que pelo aspecto do uso da violência expresso em diversos livros seus, o indicado porém mostra o aspecto renovador e de verdadeira mudança que os movimentos de 2011 eram marcados, mas foram consumidos pela cultura atual.
Embora tenha esta discordância de fundo ideológico com Zizek, sua análise de 2011 deve ser bastante interessante lembremos da Primavera Árabe, dos movimentos de ocupação como “Occupy Wall Street”, na praça Tahir, em Londres e em Atenas houveram movimentos fortes, houve sonhos obscuros, e certamente um evento que Zizek não lembra, mas é importante: a catástrofe de Fukushima, o problema nuclear, foi em 11 de março de 2011.
Muita literatura com pouco fundamento se aventura na área, onde o problema maior não é nem a mistificação nem os problemas éticos, mas o conhecimento dos elementos básicos e futuras possibilidades da área, a especialista Margaret A. Boden que pesquisa na área e compreende as dúvidas sobre o tema, faz uma brevíssima introdução capaz de elucidar os leigos já confusos pela literatura obscura e crítica da questão.
Talvez falte uma literatura nacional, latina ou africana, um livro que vi e não tenho opinião formada, é: “Guimarães Rosa: Dimensões da narrativa” me chama atenção, não tenho conhecimento das autoras Maria Célia Leonel e Edna Maria F. dos santos, vou pesquisar, a sinopse parece interessante ao abordar autores como Gérard Genette e Ernest Cassirer, entre outros.
Entre o que se diz e o que se fala
Em tempo forte de narrativas, o que se falanada ou pouco tem a ver com as atitudes de fato dos homens, vale para a política, para a cultura e para a religião, assim nem todos os que apontam desejar fazer socorro aos mais humildes de fato fazem, nem todos que se dizem religiosos estão de fato ligados aos valores e à mensagem divina, seja de qualquer religião ou denominação cristã.
Há coisas bem simples para serem identificadas: boa árvore dá bons frutos, palavras corretas devem indicar uma vida reta, porém o discurso filosófico ou teológico muitas vezes se confunde e neste caso é preciso se orientar por atitudes também simples de serem observadas e que dizem muito: não haver a soberba do poder temporal de qualquer tipo que ele seja, desde um chefe de departamento aos governos e autoridades constituídas, a história passada e recente está cheia destes exemplos.
A razão pela qual vivemos num tempo que as verdades não são bem vindas, é mais que a construção de narrativas e elas não faltam a criatividade humana, é principalmente pelo fato que é difícil dizer que as coisas vão mal, apesar de todos sentirem um mal estar, não faltam falsos profetas a fazer promessas irrealizáveis, consolos de autoajudas e até aqueles que receitam a felicidade como uma bula de remédio.
O mal estar civilizatório detectado por Freud (livro da década de 30) mais do que apenas aspectos psicológicos falava de impulsos pulsionais (fizemos alguns post sobre isto) e a vazão inadequada para eles.
Claro que isto vai para a política, e da política para aspectos sociais: economia, saúde, educação e o cada vez mais grave problema ambiental, porém a profundidade desta crise requer outra análise: a guerra.
Como dizemos um pouco atrás a soberba das autoridades constituídas e a adesão coletiva raivosa, não estou falando de nenhuma corrente específica e sim de quase todas, estimula o ódio e a violência, e o caminho e desaguadouro desta corrente não há outro senão o mar da violência humana: a guerra.
A mensagem positiva neste aspecto é fazer o que se problema, e muitas nem vezes nem proclamar, mas dar o exemplo daquilo que é justo e sensato, diz a sabedoria popular: o exemplo arrasta.
Guerra da Ucrânia e a pandemia
A guerra na Ucrânia continua em situações cada vez mais dramátias em função do frio e da estratégia russa de minar as fontes de energia do país, que é um crime de guerra uma vez que atinge em cheio toda a população civil e não apenas o meio militar, enquanto a Ucrânia procura atacar as bases militares agora em solo russo através de drones suicidas.
As bases atacadas foram em Engels, na província de Saratov e de Diaguilevo, perto de Ryazan, distantes apenas 240 km de Moscou, mostrando que tem armas para atingir alvos em solo russo.
A Rússia teme um ataque na Criméia, enquanto intensifica a defesa na região estratégica de Dombass, território reivindicado pelo governo tusso, as bases para negociação praticamente não existem, uma vez que esta região é disputada pelos dois países e não há acordo possível neste quesito.
A Rússia reitera que não será a primeira a usar armas nucleares, e que sabe o risco deste uso, uma guerra de proporções humanitárias inimagináveis, porém os dois lados tem armas para isto, e as próprias bases que são atacadas pela Ucrânia tem como objetivo destruir possíveis bases destas armas.
Em pleno inverno o martírio do povo ucraniano prossegue e os apelos para a paz não são ouvidos.
A Covid 19 ainda que mais branca segue com índices preocupantes, uma vez que não dá sinais de trégua, no Brasil o número de mortes e a média móvel de casos conhecidos segue em lento crescimento.
No país parece haver uma paralisia de estratégia, recomendações de medidas preventivas e incentivo a vacinação, mas sem respostas da sociedade como um todo, ou de políticas de controle efetivo.
O que fizeram com a cultura
Theodore Dalrymple, é o pseudônimo do psicanalista inglês Anthony Daniels, que trabalhou em prisões inglesas com criminosos de alta periculosidade, e viu neles não apenas aspectos de pobreza e exclusão, mas também o desenvolvimento de uma cultura de tolerância a atos de arrogância, furtos e imoralidades.
Em um livro composto de 26 ensaios ele descreve a nossa cultura atual o que restou dela (foto).
Escreveu em uma de suas obras: “Para o sentimentalista, não existe criminoso, mas apenas um ambiente que não lhe deu o que devia”, e assim aqueles que diziam em voz alta que sofriam muito em situações triviais da vida, que muitas pessoas passam e nem por isto caem na delinquência, é claro isto não quer dizer que não seja necessário reeducação, mas a educação preventiva é melhor que o remédio.
Não se trata de um setor exclusivo da sociedade, ou apenas uma questão ideológica como muitos autores apontam, e sim uma questão de influência cultural, em especial de rádio, televisão e cinema, quando todos passam a justificar a violência, o ódio e a crueldade, lembro de frases do filme Coringa que foram repetidas em tom cult, por exemplo, “frio, sarcástico e sem coração. Foi no que me transformei e agradeço à sociedade”, a pergunta é qual sociedade ele escolhe: a da eficiência ou a da solidariedade.
Não quero dar popularidade e nem fazer o papel da indústria cultural que condeno, e ela sim é a verdadeira produtora de valores estranhos e sem perspectiva humanística, como aponta o psicanalista em seus livros, os valores penetram na sociedade pela cultura editorial seletiva que é altamente permissiva em valores e costumes.
A verdadeira solidariedade não condena apenas, há casos que a condenação é necessária para reprimir a violência e o ódio, mas educação, dá dignidade e reergue as pessoas que sucumbiram a uma sociedade da eficiência e da arrogância, lembro aqui outro livro de sucesso, que li até a décima página: “A Sutil arte de ligar o f**” (em inglês a palavra também começa com f), sim é verdade que há no livro um grito contra o perfeccionismo e a cultura do eficientíssimo em fotos e textos nas “mídias” de redes sociais, mas é importante lembrar que o autor é americano e lá isto é uma cultura geral e não apenas nas mídias.
Se na semana passada postamos sobre os “caminhos” e as “veredas”, queremos agora salientar a micro-cultura, o dia a dia com mais empatia, mais respeito e menos ódio, e se possível mais polido.
Não há como encontrar caminhos solidários e de paz na sociedade se a grande maioria optou por combater com armas iguais àquelas que os odiosos combatem.
DARLRYMPLE, Theodore. Nossa Cultura ou o que restou dela. E Realizações. São Paulo. 2015.