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A metáfora e a harmonia
Ignorar a linguagem poética não é apenas ignorar a metáfora, as analogias de fato têm uma limitação metafísica, porém a metáfora vai além da analogia e há nela os pressupostos que ainda devem ser verificados pela ciência enquanto verdade.
Esclarece Paul Ricoeur: “o que permanece notável, para nós que viemos depois da crítica kantiana desse tipo de ontologia, é a maneira pela qual o pensador se comporta em relação às dificuldades internas à sua própria solução …. do problema categorial é retomada em suas grandes linhas” (Ricoeur, 2005, p. 419).
Isto não está preso apenas a ideia da analogia que foi reelaborada pelo tomismo, mas a principal fonte de todas as dificuldades “deve-se à necessidade de sustentar a predicação analógica por uma ontologia da participação” (p. 420), esta analogia está no nível dos nomes e dos predicados, assim “é da ordem conceptual” (p. 421).
O ataque à metáfora e a metafísica chegou até a modernidade, ele afirmou “O pensamento olha escutando e escuta olhando” (Heidegger apud Ricoeur, 2005, p. 436), e Jean Greisch diz que este “salto” situa a linguagem “o ´há´ e o es gibt [tem], não há transição possível” e este seria o desvio.
O próprio Ricoeur responde que o que faz esta enunciação como uma metáfora é a harmonia (einklang) entre ist e Grund no “nada é sem razão”, é preciso compreender a metáfora-enunciado.
Lembra a passagem bíblica sobre o farisaísmo incapaz de compreender a transcendência divina (Jo 6,42), “Não é este Jesus o filho de José ? Não conhecemos seu pai e sua mãe? Como pode então dizer que desceu do céu?”, e por isto também não podem compreender o pão do céu, o alimento divino, pois estão presos na alimentação apenas material.
Há sim uma metáfora-enunciado que liga o alimento material ao alimento divino, mas a harmonia é não se prender a uma submetendo-a a outra, conforme explicado no post anterior, este foi o grande argumento tomista para superar a analogia aristotélica: a ciência divina é para Deus, o que a ciência humana é para o criado” (Ricoeur, 2005, p. 423), citando o De Veritate de Aquino.
Claro que o problema da metáfora e da poética não se limita ao saber divino, mas não o impede.
Ricoeur, P. Metáfora viva. trad. Dion David Macedo. BR, São Paulo: Edições Loyola, 2005.
A metáfora e a metafísica
O auge e a decadência da metafísica de Aristóteles, na análise de Paul Ricoeur está “nas características não-cientificas da analogia, tomada sem seu sentido terminal, reagrupam-se a seus olhos em argumentação contra a analogia” (Ricoeur, 2005, p. 414), e como a analogia era ligada a questão do ser, com ela fica submersa as questões ontológicas.
Entretanto, esclarece Ricoeur, “é porque a ´investigação´ de uma ligação não-genérica do ser permanece uma tarefa para o pensamento, mesmo após o fracasso de Aristóteles, que o problema do ´fio condutor´continuará a ser apresentado até na filosofia moderna” (RICOEUR, 2005, p. 415).
Para o autor, enquanto “o gesto primeiro continua a ser a conquista de uma diferença entre a analogia transcendental e a semelhança poética” (Ricoeur, 2005, p. 416), que ele explicita e aqui não será alongado, o segundo “contra-exemplo” da “descontinuidade do discurso especulativo e o discurso poético” é muito mais grave, e nele vai desde o discurso de Kant a Heidegger.
Explica que isto foi feito num discurso misto que a doutrina da analogia entis alcançou em seu pleno desenvolvimento e que ficou chamada de ontoteologia, pela pretensão de ligar ao Ser a transcendência divina, mas ignorando o discurso tomista, que é “um testemunho inestimável”.
O que o Aquinate faz é “estabelecer o discurso teológico no nível de uma ciência e assim substraí- lo inteiramente às formas poéticas do discurso religioso, mesmo ao preço de uma ruptura entre a ciência de Deus e a hermenêutica bíblica” (p. 417).
Contudo o problema é mais complexo “que o da diversidade regulada das categorias do ser de Aristóteles”, “falar racionalmente do Deus criador da tradição judeu-cristã. A aposta é poder estender à questão dos nomes divinos a problemática da analogia suscitada pela equivocidade da noção de ser” (p. 417), lembre-se aqui a batalha entre nominalista e realistas medievais.
Explicando que a doutrina da analogia do ser nasceu “dessa ambição de envolver em uma única doutrina a relação horizontal das categorias à substância e a relação vertical das coisas criadas ao criador” (p. 419), ora este foi exatamente o projeto de uma ontoteologia.
Assim, o discurso tomista “reencontra uma alternativa semelhante: invocar um discurso comum a Deus e às criaturas seria arruinar a transcendência divina, assumir uma incomunicabilidade total das significações de um plano ao outro seria, em compensação, condenar-se ao agnosticismo mais completo” (p. 418), ele retoma o problema categorial “em suas grandes linhas” e “é o próprio conceito de analogia que deve ser incessantemente reelaborado” (p. 420).
Fica uma questão a responder, não estaria aqui um “retorno da metafísica à poesia, por um recurso desonroso à metáfora, conforme o argumento que Aristóteles opunha ao platonismos?” (p. 421).
Não só de pão o homem viverá
Escrevemos no post da semana passada, somo a “multiplicação dos pães”, que sem dúvida tem o aspecto da partilha, mas que o aspecto sobrenatural era esquecido por muitos, reduzindo algo “inefável” a uma situação de solidariedade, e isto é o que estamos desenvolvendo em torno da falta de espiritualidade, e ou a ascese desespituralizada, o termo é de Peter Sloterdijk, claro.
A definição de Sloterdijk é clara: “Como exercício defino qualquer operação que conserva ou melhora a qualificação do ator para realizar a mesma operação da próxima vez, seja ela declarada como exercício ou não” (Sloterdijk, 2009, p. 14), e se aplica a nossa interpretação porque ele fala e personal trainers, mas eles podem ser também eloquentes pregadores, filósofos midiáticos ou qualquer outro tipo que faça “exercícios” para motivar e tirar as pessoas da mesmice, mas é só momentâneo.
Ele anuncia em seu livro uma virada antropotécnica, e o que sejamos aqui é demonstrar uma clareira ontoantropotécnica, ou seja, que ela não é incompatível com a ontologia do Ser, aqui no sentido da ascese e da espiritualidade, explica-se aqui por uma passagem bíblica
Retornemos a hermenêutica bíblica, depois da bíblica que está nos evangelhos sinópticos (Mt 14:13-21, Mac 6:31-44, Lcs 9:10-17 e Jo 6:5-15), Jesus deseja afastar-se da multidão porque queriam torná-lo um “rei” humano (está nas passagens), a multidão volta e vai atrás dele, e o Mestre indaga (Jo, 26-27):
“Em verdade, em verdade, eu vos digo: estais me procurando não porque vistes sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfeitos. Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará. Pois este é quem o Pai marcou com seu selo”.
Não há condenação porque eles queriam se alimentar, mas Jesus pede uma “ascese”, esforço para o alimento que não se perde, e este é “quem o Pai marcou o selo”, a ascese encontra a espiritualidade ela exige um alimento a mais: “o pão do céu”, aquele que alimenta a alma.
Se era possível uma interpretação apenas humana e terrena na passagem da multiplicação dos pães, agora a pedagogia de Jesus realiza a hermenêutica necessária para entendê-la.
SLOTERDIJK, Peter. Du musst Dein Leben ändern. Über Antropotechnik.Frankfurt, Suhrkamp, 2009.
Espiritualidade e ascese
Não há uma espiritualidade profunda sem uma ascese e a verdade elevação espiritual demanda tempo e treino, o mestre budista Dalai Lama vê assim: “Desenvolver força, coragem e paz interior demanda tempo. Não espere resultados rápidos e imediatos, sob o pretexto de que decidiu mudar. Cada ação que você executa permite que essa decisão se torne efetiva dentro de seu coração.”
É preciso assim desenvolver um círculo virtuoso onde alguns sacrifícios e abstinências são necessárias, não significa que abandono das questões materiais, mas o uso equilibrado e consciente daquilo que está sendo almejado, seja uma simples paz interior ou um alto grau de religiosidade, o desapego de afecções deve ser feito em passos e com equilíbrio.
A comunicação com o Ser transcendente é também uma boa relação com os seres humanos que passam por nossas vidas, desde o mais complicado até o mais generoso, todos são nossos próximos.
A meditação, o equilíbrio físico e mental, a harmonia do ambiente que vivemos, pode e deve ser simples, a comunicação sensata e cotidiana do que desejamos doar como nosso pensar, o estudo e a pesquisa de grandes mestres do pensamento e da espiritualidade e finalmente aquilo que é o mais alto desejo de uma espiritualidade: a ascese ao divino, ao sobrenatural e ao Todo.
A ascese assim é um caminho, não sem quedas e jamais sem dificuldades, se for sem dificuldades ensinam os grandes mestres de espiritualidade, talvez não seja uma verdadeira ascese (Na foto Quadro de Rembrant).
Por último pode haver ascese sem espiritualidade, elas podem melhorar a saúde, enriquecer e embelezar o ambiente a nossa volta, mas não significam de fato uma elevação da alma.
Orar, meditar e dialogar com todos e tudo a nossa volta, não é loucura dialogar com a natureza, com os animais e com o universo, tudo é criação divina e tudo “fala” do divino.
Entre o espírito e a espiritualidade
Henri Bergson procurava uma nova filosofia da vida, aquela que vai além do que a inteligência pode atender, a dimensão psicológica e criadora da evolução, complemento esta filosofia com a ideia da noosfera de Teilhard Chardin, não se trata de simples colagem, mas convergência entre a filosofia, a religião e uma espiritualidade que propicie um diálogo com as cosmovisões culturais.
As diferentes teorias da vida pretendem atingir o conhecimento através de categorias desenvolvidas pela inteligência, a sabedoria e a intuição podem ir além, o que diz Bergson a própria inteligência é um produto da evolução, sabemos mais do que sabia o homem primitivo.
A inteligência criada pelas necessidades da vida para agir sobre os objetos, a natureza , o próprio agir e a sabedoria necessária para isto, fundamentou-se inicialmente na matéria, porém ao substituir o todo pela parte, tornou-a ilegítima, para compreender a vida e o sentido da evolução, é preciso um novo método de pensamento que entenda o sentido natural de inteligência, com ajuda da intuição, não é contraditório com a sabedoria presente em várias cosmovisões.
Para Bergson o que caracteriza a inteligência é aquilo que chama de “duração”, partindo da própria existência como seres vivos, para aprender o que é a vida como uma variação perpétua e contínua de nosso espírito, depois levanta a duração do universo que se forma incessantemente, e em cada forma mínima que ele revela seu impulso criador, este estado de mudança extrapola a matemática e a física que só pode modelar cada mudança em uma curta “duração”.
Teilhard de Chardin ao caracterizar o “fenômeno humano” o vê como uma complexificação da matéria, aí diferente de Bergson não vai separar aquilo que ele chama de “matéria” inerte, e para Teilhard de Chardin é um corpo “vivo” de tudo que existe, pelo qual foi acusado de panteísmo, e vê na existência do Universo como Bergson algo que não pode ser separado de uma evolução criadora, que vai modificando formas e mecanismos de interação, também evolui a “sabedoria”.
Também o problema da duração aqui Bergson se distância da ciência, ao menos da atual que vê o tempo não como “duração” mas como uma “dobra”, Chardin está mais próximo da Ciência ao ver na evolução a aproximação da criação e a complexificação do universo, da natureza e do homem a aproximação do Criador e da eternidade.
A evolução de Bergson então caminha para a evolução da vida da consciência, volta assim ao subjetivismo e a consciência abstrata dos idealistas, para Chardin ao chamar o homem de “fenômeno humano” (não é contraditório com feito a “semelhança” de Deus pois caminha para a eternidade), diz que tipo de consciência é a humana, a consciência de sua existência física que não se separa da espiritual.
BERGSON, Henri; A Evolução Criadora, Silo Paulo: Martins Fontes, 2005.
CHARDIN, Teilhard. O fenômeno humano. Trad. Armando Pereira da Silva. SP: Cultrix, 2001.
O inefável e a interpretação
Antes de fazer o post de hoje, não podemos deixar de registrar as Olimpíadas de Tóquio, cujo abertura acontece hoje e alguns protestos: cinco seleções: Estados Unidos, Suécia, Chile, Nova Zelândia e para surpresa o Reino Unido, se ajoelharam antes de suas partidas de futebol em protesto antirracista, já as jogadoras do feminino da Austrália se abraçaram lembrando a nação aborígene que vive lá e significando a união nacional.
Mas talvez a mais importante manifestação ficou relegada a segundo plano, os manifestantes são chamados de “ultranacionalistas”, o que não é verdade, pois 43% da população era favorável ao adiamento da olímpiada, 40% era contra a realização e apenas 14% são favoráveis.
Era inefável a Pandemia e ela está aí ainda dando sinais de resistência apesar da luta da ciência para vacinas e sua superação, exatamente o povo mais resiliente não renunciou a um evento, e isto também é claro é um problema de interpretação do que de fato ocorre neste momento.
Algo inefável que não esteja sujeito a interpretação e mesmo metáforas seriam pouco para tentar explicá-las são as grandes questões da humanidade: o que somos no universo, para onde vamos e agora mais do que nunca: para onde iremos.
Muitas são as cosmogonias que tentam dar uma interpretação escatológica para estas questões, o certo é que existimos e não porque pensamos (penso, logo existo), mas existimos e isto nos permite o pensamento e a linguagem (sou, logo penso) e com ela é possível a interpretação.
A cosmogonia cristã, há muitas outras em diferentes culturas, é aquela cuja metáfora do grão de semente transforma em vida: a semente que cai entre espinhos, que cai em solo raso e que cai a beira do caminho, o terreno bom a fará germinar e dar frutos, é uma interpretação do inefável.
O texto bíblico da multiplicação dos pães, cuja interpretação terrena vê apenas a distribuição dos bens (Mc 6,1-15), não observa a interpretação inefável pois é Jesus que pergunta a Felipe (Mc 6,5): “Jesus disse a Filipe: “Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?”, e depois de multiplicar os 5 pães de cevada e dois peixes, o inefável divino, os homens queria dar-lhe um poder terreno e diz a leitura (Mc 6,15): “Mas, quando notou que estavam querendo levá-lo para proclamá-lo rei, Jesus retirou-se de novo, sozinho, para o monte.”, é uma divina interpretação feita pelo próprio mestre.
O inefável e a metáfora
A viragem linguística é uma das hipóteses de interpretação da pós-modernidade, não a única, porém algo além da modernidade idealista já despontava na crise do início do século passado: a crise do pensamento, da sociedade (duas guerras mundiais), a guerra fria e agora a polarização.
Já postamos sobre a ligação da metáfora e o inefável em Paul Ricoeur e para ele a metáfora é um reagente (réactif) que revela o simbólico na linguagem, que nos leva a pensar por seu excesso de significação e assim é um modo de compreensão disponível ao hermeneuta.
Porém há algo além que é a possibilidade de uma hipótese, quantas questões científicas precisam recorrer a metáfora antes de uma explicação final, no trabalho de John Searle, em Expressão e Significado faz uma pergunta importante sobre o significa quando dizemos S é P e queremos dizer S é R? E que na verdade o ouvinte entre S é P.
Sua questão é no fundo saber “como funcionam as emissões metafóricas, isto é, como é possível para os falantes comunicarem algo ouvintes falando metaforicamente, uma vez que não dizem o que querem significar? E por que algumas metáforas funcionam e outras não? (SEARLE, 2002, p.112).
Segundo o autor ao pensar não devemos dispensar modos diferentes de compreensão (mito, alegoria, metáfora, analogia) e menos ainda métodos diferentes para interpretá-las: exegese, história, psicanálise, antropologia, linguística e outras, a meu ver, parece um princípio mais o universal por não fica confinado em algum campo metodológico e sujeito aos seus “vícios”.
Porém o inefável é parte inerente ao progresso do conhecimento humano, e significa estar além do lógico e do físico, estando naquele campo cujo nome mais apropriado é o inefável.
O modo como se pode chegar a esta compreensão é o chamado de “via curta”, e foi fundamentado na hermenêutica proposto por Martin Heidegger, ele consiste No modo como pretende fundamentar sua hermenêutica pelo desvio do que chama de “via curta”, proposta por Martin Heidegger ele consiste em não buscar os métodos ou as condições da compreensão, mas a partir do ser do homem, o seu Dasein, cuja existência consiste em compreender.
Respondendo a questão de Searle, não importa se o ouvinte entendeu exatamente S é P ou S é R, pois se S é P e isto foi aquilo que disse uma fonte, o destinatário entendeu exato ou não deve-se a sua existência enquanto ser que compreende, a sua cosmovisão, que pode ser limitada.
Admitir o inefável, que em certo momento só pode ser dito de modo metafórico, análogo ou mesmo exegético é admitir a convivência de visões de mundo diferentes, e pode ser isto é mais palpável que a compreensão daquele fenômeno em certo momento só é possível pela metáfora.
SEARLE, John R. Expressão e significado: estudos da teoria dos atos da fala. Martins Fontes, SP: 2002.
Interioridade e a relação social
Se a sociedade atual “isola” o indivíduo, e a pandemia o fez com maior profundidade, isto não significa que não seja necessário em uma vida urbana cada vez mais agitada, algum isolamento.
O drama cultural de nosso tempo é quando se “pressupõe exatamente a não satisfação (pela opressão, repressão ou algum outro meio) de instintos poderosos”, explicou Freud (ver o post sobre o Mal estar da civilização), ele expõe isto como uma “frustração cultural” que domina o campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos, mas Byung Chul Hang vai mais a fundo ao analisar o que é a dor.
O novo livro de Byung-Chul Han “A sociedade paliativa” vai descrever diante da dor a sociedade medieval como a sociedade do martírio, e a atual como Sociedade da Sobrevivência, e por causa da tentativa de viver na ausência da dor uma Sociedade Paliativa, tantos remédios antidepressivos, ansiolíticos e “analgésicos, prescritos em massa, ocultam relações que levam a dor” (Han, 2021, p.29).
Em uma análise curiosa para um budista, mas talvez pela consciência de que a Páscoa significa uma “passagem” pela dor para a vida eterna, o autor descreve: “em vista da pandemia, a sociedade da sobrevivência proíbe mesmo a missa de Páscoa. Também sacerdotes praticam o “social distancing” e usam máscaras de proteção. Eles sacrificam a fé inteiramente à sobrevivência … A virologia desposa a teologia.” (Han, 2021, p. 35).
Todos escutam os virologistas, diz o autor, a bela narrativa da ressurreição “dá lugar inteiramente à ideologia da saúde e da sobrevivência” (Han, 2021, p. 35), não se trata da vida e sim: “A morte esvazia a vida em sobrevivência”.
Utilizando Hegel o autor explica o verdadeiro sentido da dor: “A dor é o motor da formação dialética do espírito” (pg. 75), o percurso formativo é “uma via dolorosa: O outro, o negativo, a contradição, a cisão pertencem, portanto, à Natureza do espírito” (pg. 76) e assim a interioridade.
Explica o autor: “nisso ela distingue da vivência [Erlebnis], que não leva a nenhuma mudança de estado. Apenas a dor surte uma transformação [Veränderung] radical. Na sociedade paliativa, o igual se perpetua.” (pg. 77).
Jesus sempre após algum momento intenso de pregação ou de participação em algum evento social, retirava-se com os discípulos, era o momento da interioridade, porém muitas vezes as situações obrigavam a deixar o descanso de lado e voltar a ver o povo (Mc 6, 31-34):
“Ele lhes disse: “Vinde sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco” … Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” e Jesus voltou e foi ensinar outras coisas a eles.
Ele também teve momentos de dor anteriores a Páscoa, ao qual bebeu o cálice, e pouco descanso como na passagem acima.
HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: a dor hoje. trad. Lucas Machado, Petrópolis: RJ: Ed.Vozes, 2021.
Mal-estar da civilização e do ser
A frase bastante usada na literatura, as vezes no domínio público é de uma obra de Freud: O Mal estar da civilização, no entanto, não é apenas no campo da psicologia que ela se confina, diz o autor ser: “impossível desprezar até que ponto a civilização é construída sobre a renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?) de instintos poderosos. Essa “frustração cultural” domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos. … Não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Isso não se faz impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso”. (Freud, 1930/1997, p. 118).
Vejam que “opressão, repressão ou algum outro meio” é do autor, que mal imaginaria um mundo digital capaz disto, e frustração cultural colocada em aspas pelo autor domina os relacionamentos, e que afirma ainda mais curiosamente, que a busca da “compensação econômica” é um refúgio.
Mas isto foi registrado também em outras áreas, escreveu Edmund Husserl sobre a crise das ciências: “Na urgência de nossa vida – ouvimos dizer – esta ciência nada nos tem a dizer. Ela exclui de um modo inicial justamente as questões que, para os homens dos nossos desafortunados tempos, abandonados às mais fatídicas revoluções, são as questões prementes: as questões acerca do sentido ou ausência de sentido de toda existência humana” (A crise das ciências europeias), também pode-se falar da crise ou noite de Deus, da identidade e o esquecimento do Ser.
Assim na Pós-modernidade, se dispensamos os recursos superegoico no sentido freudiano, o que nos assegura uma máscara cultural é a disputa entre nações e uma nova forma de defesa da honra, por exemplo que são disfarces para os diversos tipos de violência urbana, a drogadição, a nova presença agora da psicopolítica que nos impulsiona ao consumo e a polarização e nos encoleriza.
Esta onipresença da violência camuflada nas diversas relações sociais, é o que caracteriza o fim do respeito que caracteriza uma distância saudável entre Eu e o Outro, ou incluímos o igual que é o meu espelho, ou repelimos violentamente como um Outro.
FREUD, S. (1997). O mal-estar na civilização. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira (Vol. 21, pp. 75-174). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1930).