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O infinito escatológico
A transcendência como ideia do Infinito (não é a idealista) pode ser compreendida na filosofia de Lévinas como “A presença de um ser que não entra na esfera do Mesmo, presença que a excede, fixa seu ‘estatuto’de infinito, é assim que surgirá em Lévinas a ideia de Estrangeiro e ali ele numa escatologia própria.
O termo Estrangeiro é próprio da tradição bíblica da qual se alimenta Emmanuel Lévinas, tal como muitos se alimentam da mitologia grega, ela é presente na quatríade do profeta Isaías, profeta como no modo dos celebrados poetas gregos Homero e Hesíodo, é curioso porque pode-se a parte de Lévinas ver uma convergência entre a cultura helênica e semita, ao contrário de toda fúria contra a cultura judaico-cristã.
A quatríade é a seguinte: o pobre (que não tem recursos econômicos), a viúva (que não tem marido que a sustente), o órfão (que não tem abrigo que o recolha), o estrangeiro (que não tem pátria onde pisar). eles são a síntese do que hoje chamamos e excluídos no tempo bíblico, e podemos ver numa nova escatologia “filosófica” de Lévinas a ideia de um “fim” escatológico não como final dos tempos, mas o fim da pobreza, do desamparo feminino (hoje é mais grave o feminicídio), os órgãos das guerras e os estrangeiros que andam pelo mundo e que Bauman chega a ironizar (pasmem) e então um apocalipse novo.
É assim que o infinito e o ser-para-a-morte podem também ter uma interpretação escatológica, sem qualquer preconceito ou presunção ao sentido religioso que poderá sim em algum momento ocorrer, e do qual o planeta não está isento, afinal um fim escatológico presente em muitas religiões não cristãs é o que a própria terra (a mãe-terra) se rebela, novamente uma convergência com as profecias bíblicas.
A grande razão pela qual esta ideia foi quase abolida na modernidade, já Leibniz a reclamava está dita por Lévinas: “Minha vida e a história não formam totalidade. O comum que permite falar de sociedade objetivada, e pelo qual o homem se assemelha a coisa e se individualiza como coisa, não é primeiro” (em Ética e Infinito), e Lévinas vai definir este processo como “infinição” (talvez melhor tradução seria infinitação, mas não traduziram assim), uma inversão da subjetividade moderna, porque o sujeito subjetiva-se se sujeitando a Outrem, e assim vive sua escatologia “em processo” pessoal, sujeita ao Infinito.
Na escala social é o estrangeiro, o pobre e o que sofre algum tipo de preconceito (o racista, por exemplo, mas há outros inclusive os religiosos) e com isto é que caminhamos para uma autentico fim escatológico, um apocalipse do mundo atual já sem freio e sem uma direção segura para toda a humanidade.
O infinito como complemento escatológico
Toda escatologia deve princípio e fim (ou é finitista), é um engano imaginá-la apenas com o que vai acontecer no final dos tempos, o apocalipse cristão ou al-dain dos islâmicos, que não está no alcorão, mas nos ditados atribuídos ao profeta Maomé, ela deve ser pensada em processo.
Na filosofia a ideia do infinito permeia a escatologia que chamo de completa pelo fato que admite um fim como aquilo que Lévinas escreveu em Totalidade e Infinito como o desejo metafísico de tender para a coisa totalmente outra, o absolutamente outro, note-se que não é Deus, pois não é teologia, porém a mudança que é possível para um outro estado metafísico, afinal o subtítulo do livro é “Essai sur l´extériorité”, e a exterioridade tem aí algo essencial.
Para Lévinas a ideia do infinito é aquela que remete ao diferente e o distinto, diz Enrique Dussel que Lévinas ao dizer de diferente e distinto, afirma que o diferente se dá na Totalidade e o distinto se dá na Proximidade, fora disto permanecemos no idealismo puro da transcendência do Sujeito para o Objeto.
Nas palavras de Lévinas: “O desejo metafísico tende para coisa totalmente outra, para o absolutamente outro… Na base do desejo comumente interpretado encontrar-se-ia a necessidade (bésoin): o desejo marcaria um ser indigente e incompleto ou decaído de sua grandeza passada. Coincidiria com a consciência do que foi perdido.”, seu fim escatológico é este então, o ser decaído de sua grandeza passada e com consciência do que foi perdido.
Nisto reside também sua ética, afinal para Lévinas ela tem o nome de metafísica porque se refere à transcendência de outrem, que não é meramente física e o indicativo dessa transcendência é a ideia do infinito, aquele que se dá no face a face, que é portanto o distinto encontrado na Proximidade.
É esta proximidade do “face a face” que é primordial em Lévinas, é ela a experiência originária do inter-humano, aqui relaciono-a com o originário cultural onde há identidade do inter-humano, ou seja de um humano a posteriori em função de um a priori, é neste sentido que considero culturas originárias.
A experiência originária é aquela da proximidade ética de alguém, de uma relação sem máscara, e assim antropologia e ontologia se encontram, no dizer de Lévinas (sei que o ponto de vista é diferente) “a moral não é um ramo da filosofia, mas a filosofia primeira”, assim seria uma civilização equilibrada.
A relação com o ser-para-a-morte que vejo com este infinito, é que não se pensa a partir do finito, assim como a morte não pela negação da vida, isto era para Kant para quem a noção de infinito se opõe como um ideal da razão, Hegel modificou porém colocou a positividade do infinito, exclui a diversidade.
O infinito é diverso porque parte do Outrem, da outra coisa, e também o totalmente outro, por isso sua escatologia é completa, o ser-para-a-morte e o infinito se fundem (claro nem Heidegger nem Lévinas o dizem) porque estão no além si-mesmo e no além vida contendo-a inteiramente.
De que nossa consciência será um dia cobrada.
Não é preciso ser religioso para perceber que um dia, mesmo que seja diante da morte, pensaremos o que foi a nossa vida, como tratamos aos pobres, a todas as pessoas que nos foram próximas, a natureza e ao respeito a privacidade alheia, enfim a tudo que preserva a vida, e a água é a origem da vida, e ão há vida se não houver o Outro que não são aqueles próximos tão próximos, mas também aos que estão distantes ou não são do nosso círculo.
Certamente teremos em mente algum dia sobre o que foi que fizemos e o que deixamos de herança para as pessoas que nos queiram bem ou mal, não importa, cada um estará diante da própria consciência, e como diz a fenomenologia consciência é consciência de algo, o que é este algo diante da vida.
Quais são este algo essenciais a vida: a fome, a sede, a falta de habitação e o ultrage a cada pessoa, pode-se dizer que é a invasão de privacidade, o excesso de explosão pública, que Byung Chul Han chama de narcisismo, além dos diversos tipos de abusos, são todos uma espécie de nudez.
A falta de água potável para em torno de 500 milhões de pessoas, mas também a falta de políticas públicas de saneamento básico que atinge outro meio bilhão de pessoas, torna o problema da água um problema vital para muitas pessoas no planeta.
Aos que creem o exame final no qual diante de Deus todos serão cobrados está descrito pelo evangelista Mateus como aqueles que serão chamados a participar do Reino de Deus (Mt 25: 35-39): “Porque tive fome, e me destes de comer: porque tive sede e me destes de beber: era forasteiro, e me hospedastes: estava nu, e me vestistes, enfermo, e me visitastes: preso, e fostes ver-me. Então perguntarão aos justos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e demos de comer? Ou com sede e te demos de beber? E quando te vimos forasteiro e te hospedamos? Ou nu e te vestimos?”, e a resposta será tudo o que fizemos aos mais pequeninos foi a mim que me fizestes.
A crueldade que mesmo em tempos de pandemia permanecem, quando até não crescem, torna o ambiente civilizatório perigoso e preocupante.
O erotismo em tempos de crise
O assunto é difícil quando não se desvia para o liberalismo geral, defesa do erótico a qualquer preço ou da “liberdade do corpo”, porém o que acontece é que entre as diversas crises civilizatórias também o amor humano se encontra em crise.
Encontro pouca literatura existe a respeito que não vá para o liberô geral ou para o moralismo doentio, o que acontece é que, reconhece o filósofo Byung Chul Han, vivemos A agonia do eros, a incapacidade de amar, e no diagnóstico do filósofo coreano-alemão, estamos destruindo as relações a partir da erosão do Outro, que atinge todos os âmbitos da vida e caminha de mãos dadas com um “narcisismo doentio” que invade nossas vidas.
Escreve seu diagnóstico mais profundo: “O fato de o outro desaparecer é um processo dramático, mas, fatalmente avança, de modo sorrateiro e pouco perceptível”, um indício é o número de selfies onde as pessoas procuram mostrar suas diversas faces, sem escolher situação e em qualquer lugar.
Se não reconhecemos a outra pessoa como um “outro”, nos tornamos incapazes de amar, e assim de chegar a uma viva e libertadora experiência do amor, é libertadora inclusive de nós mesos, de nossas frustrações e incoerências, sintetiza Han é o outro que nos salva de nós mesmos.
Em tempos de crise o amor, o carinho e o verdadeiro interesse pelo Outro é o que pode tornar a crise menos grave, se estamos vivendo o oposto, mais egoísmo, mais narcisismo e mais competição (Han argumenta como a sociedade da eficiência e do apelo ao sucesso) significa mais crise e menos erotismo.
Não há como desenvolver o amor e a alegria em torno destas situações, mesmo aqueles que tem uma relação de amor sofrem as consequências do ambiente violento e de apelos a atitudes contrárias ao amor e a afetividade, mesmo relações de amizade que requerem empatia estão em jogo.
Faço ainda uma reflexão além de Han, porque justamente a sociedade que mais exalta o erotismo sofre com a agonia dele, talvez aquilo que vemos como erótico ultrapasse os limites da privacidade, de algum recato e de respeito aos limites do Outro e do próprio corpo.
O discurso do respeito não está ultrapassado, afinal o que são os números assustadores de violência doméstica de todo tipo, senão a ausência do respeito, a imagem “Dentro e fora” (1929) de André Groz dá contornos interessantes sobre o aspecto da ligação do erotismo com a falta de sensibilidade.
Culturas saudáveis e talentos
Uma sociedade do cansaço, do medo e de pressões autoritárias podem sufocar talentos, esconder dons naturais que todas as pessoas tem, e que desenvolvê-los dependem de cuidados especiaiscomo dar tempo, espaço e ter sensibilidade para que eles se desenvolvam.
Outro problema grave é a exigência social de eficiência e a pressão por resultados, eles virão naturalmente se houver espaço para aprendizagem, crescimento e respeitos as diferenças culturais e sociais, desde o cultivo na família, passando pela escolaridade e pela estrutura social, somente os dons serão desenvolvidos quando estas estruturas estiverem preparadas para apoiar o talento individual.
Do ponto de vista pessoal é preciso superar muitas vezes sentimento de inferioridade, conversar e procurar apoio em especialistas e setores sociais que possam desenvolver a aptidão que tem, que muitas vezes precisa de aprofundamento vocacional e cultivar os dons que possui até que ele se expresse como um talento.
Todo o trabalho sociológico de Marcel Mauss, em sua Teoria do Dom é para demonstrar que nem sempre é a utilidade, a simples troca por vantagens financeiras que em muitas sociedades transformam os dons culturais e sociais em estruturas sociais saudáveis, onde se desenvolvem naturalmente aqueles talentos que cada pessoa possui, a questão da troca e da reciprocidade são estudadas em algumas culturas antigas.
Ao estudar culturas não europeias, o dom no ciclo virtuoso dar-receber-retornar, Mauss ajudou a desconstruir o universalismo europeu, e pode ser considerado uma das fontes de estudos da decolonização.
Em seu ensaio o antropólogo e sociólogo Maus, percebeu muito cedo este desafio de aproximar uma discussão sobre a relação entre a crítica decolonial e a crítica antiutilitarista como a sua visão do “dom” que pode e deve se desenvolver em harmonia social.
Ao estudar culturas não-ocidentais, Mauss procura demonstrar o valor saudável e “universal” do sistema do dom, sob a forma do ciclo de dar-receber-retornar, existia antes do surgimento do mercado e do Estado e continua a existir, apesar da ideologia utilitarista dominante que buscar enfatizar o egoísmo e o mercantilismo dos talentos.
A parábola bíblica dos talentos, onde um homem ao viajar ao estrangeiro entrega seus bens aos seus empregados, dando “talentos”, embora isto signifique um valor financeiro a analogia com os talentos individuais fica clara no texto, diz a leitura Lc 25,14-15 : “Um homem ia viajar para o estrangeiro. Chamou seus empregados e lhes entregou seus bens. A um deu cinco talentos, a outro deu dois e ao terceiro, um; a cada qual de acordo com a sua capacidade. Em seguida viajou”, e a parábola afirma que o que recebeu cinco dobrou o seu talento, enquanto o que recebeu um o enterrou para devolver quando o patrão voltasse.
Assim não se trata de igualitarismo, mas de uma livre distribuição de dons e como cada um trabalha seu talento, num contexto saudável no caso da parábola o homem “vai para o estrangeiro”, isto é, cada um pode trabalhar seu talento conforme recebeu, e ao voltar ele dá uma recompensa maior ao que mais trabalhou os talentos que recebeu, porém todos recebem algum “valor” em talentos e tem a oportunidade de desenvolver, também é claro que neste contexto é a capacidade de cada um em receber e retornar os talentos, como Mauss completa o ato do “dar”, criando um ciclo virtuoso.
Aflição e angústia
Os que leram atentos O Ser e o tempo, sabem que uma das respostas importantes de Heidegger é o aquilo que deve ser lido em Kierkgaard e que está ligado a raiz filosófica de seu pensamento, e isto está ligado a angústia e discorremos aqui o que a diferencia da aflição que é a angústia pessoal e ligada ao problema do mal.
É, pois, o próprio Heidegger quem Kierkegaard separando-o em ensinamentos ditos “edificantes” que seriam mais importantes do que os “teóricos”, exceto em um caso que é o da angústia, em seu tratado O conceito de angústia, e que o filósofo da floresta faz questão de dizer que “do ponto de vista ontológico” permanece ainda “inteiramente tributário de Hegel e da filosofia antiga vista através deste”. (HEIDEGGER, 2012, p. 651, n. 6).
O que Heidegger viu neste livro de 1844, cuja autoria é atribuída a Vigilius Haufniensis, pseudônimo kierkegaardiano que se traduz como “Vigia de Copenhague”, já que Kierkegaard era dinamarquês e sua primeira intenção é retornar a sabedoria socrática, que para ele se conjugava entre o saber contemplativo (theoría) com o saber prático (phrónesis), a maneira da antiguidade grega.
Apesar dele ter chamado Sócrates de “filósofo prático, justamente queria centrar o penso da “angústia” na vivência do que era refletido pela alma e isto significou uma aproximação da psicologia, era “a doutrina do espírito subjetivo” (Kierkegaard, 2010, p. 25), era um dos ramos da Filosofia, e de uma filosofia realmente dialética no sentido grego-socrático já que a filosofia moderna se fixou no dualismo kantiano tese x antítese com uma improvável síntese
O filósofo usa a expressão “pecado hereditário”, usada pelo autor ao longo da obra, mas como aquela que correspondo o que os teólogos, por ele chamados de “dogmáticos”, denominam como de pecado original, nomenclatura a parte, é o aspecto que aproxima o seu tema da angústia daquela aflição “de alma”, que pode ter o contorno filosófico e psicológico, mas que é no fundo aquela aflição de quem se sente fora de um centro, de uma perspectiva clara de superação da angústia.
Nela não há o sentido portanto de pecado original, nem da noção de pecado, mas se confunde como tal como a sua possibilidade enquanto ideia, ou seja, uma categoria conceitual capaz de nos ajudar a pensar sobre algum mal praticado, e o que levaria a este “mal” é o conceito de liberdade para muitos pensadores.
O que conduz o existir a um modo singular, a um modo de agir de tal forma ? É aí que as noções de liberdade e de angústia emergem enquanto “conceitos” convergem para esta “angústia”, mas sem ter um locus, nem na Estética, nem na Metafísica e sequer na Psicologia, assim o autor não o diz, mas há algo de aflito e de trágico neste caminhar nesta “angústia”.
Paul Ricoeur refletindo sobre estas expressões de Kierkegaard, estabelece que o mal é “o que há de mais oposto ao sistema”, justamente porque é absurdo e escandaloso, irracional e incompreensível, situado à margem da moral e da razão, lembra Ricoeur (1996, p. 16), referindo-se às reflexões kierkegaardianas, o mal é “o que há de mais oposto ao sistema”, justamente porque é absurdo e escandaloso, irracional e incompreensível, situado à margem da moral e da razão.
Ricoeur diferencia assim o mal estrutural (já fizemos um post), ligado a angústia e o pecado e o livre-arbítrio ligado a decisões pessoais perante a angústia.
O ponto que considero essencial no pensamento de Kierkegaard sobre este aspecto existencial é que “só o que atravessou a angústia da possibilidade, só este está plenamente formado para não se angustiar, não porque se esquive dos horrores da vida, mas porque esses sempre ficam fracos em comparação com os da possibilidade” (Kierkegaard, 2010, p. 165-166), é aqui que a aflição pode encontrar o seu oposto e podemos entender que há uma fonte de consolo nela.
Assim angústia e aflição não são propriamente maldições ou estados pecaminosos ou doenças da “alma” ou dos pensamentos, são fases de ruptura ou transição para outras fases mais maduras quanto esta etapa envolve reflexão e superação.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. (Multilíngues de Filosofia Unicamp). JOLIVET, Régis. As doutrinas existencialistas: de Kierkegaard a Sartre. Porto: Tavares Martins, 1957.
KIERKEGAARD, Sören. O conceito de angústia: uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário de Vigilius Haufniensis. Tradução e notas Álvaro Luiz Montenegro Valls. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
A felicidade em Tomás de Aquino
Para analisar a beatitude, que já esclarecemos que é também um tema da Grécia antiga para a felicidade, Tomás de Aquino aprendeu com o filósofo grego a distinguir entre duas formas diferentes de felicidade: as riquezas naturais que são aquelas pelas quais o homem é ajudado a compensar as deficiências naturais como a comida, a bebida, as vestes, a habitação, etc., e as artificiais aquela não auxiliam a natureza mas a submetem, como o dinheiro, mas a arte humana inventou para facilitar as trocas, para que fossem como medidas para coisas veniais, e influenciado por Boécio vai questionar se a riqueza é de fato a que dá posso a todos bens:
“A bem-aventurança é o estado perfeito da junção de todos os bens’. Ora, parece que pelo dinheiro poderão se adquirir todas as coisas, porque o Filósofo, no livro V da Ética, o dinheiro se inventou para ser a fiança de tudo aquilo que o homem quisesse possuir. Logo, a bem-aventurança consiste nas riquezas” (Tomás de Aquino, Suma teológica. Parte III).
Mesmo com a posse de uma ideia mais ampla de riqueza, a riqueza natural que Aristóteles previu, e a riqueza artificial também, em nenhuma delas o Aquinate vai reconhecer como fonte de felicidade, pelo fato que não tem um fim em si mesma, e as pessoas que as possuem tornam-na o fim último, torna-se fiança de algo.
E que valor pode possuir esta fiança em si mesma, Tomás de Aquino examina a honra, e diz neste sentido: “é impossível que a bem-aventurança consista na honra. A honra é prestada a alguém devido alguma sua excelência: e assim, é um sinal e testemunho daquela excelência que está no honrado”, pode também ser a fama ou glória, o poder, e os bens do corpo, porém todos estes bens em si mesmo também não traduzem em felicidade, mas apenas em falso conhecimento.
Assim é ela própria a bem aventurança, diz textualmente: “a bem-aventurança é o mais estável dos bens”, assim a falta de estabilidade da fama ocorre pelo fato de ela derivar, exclusivamente, do conhecimento humano, que, por sua vez, é limitado, e muitas vezes é mesmo falso.
De modo parecido argumentava Boécio: “o poder humano não pode evitar o tormento das preocupações, nem o aguilhão do medo”.
Quanto ao corpo, argumenta o filósofo cristão: “a bem-aventurança do homem é superior em todos os sentidos à dos animais, embora muitos animais superem os homens nos bens do corpo”, assim se a beatitude vem daí o homem estaria se igualando aos animais, e quão verdade é isto muitas vezes.
Mas o que é então a felicidade para o Doutor Angélico, que faz o mesmo questionamento de Boécio: “‘é necessário confessar que Deus é a própria bem-aventurança?” e concluirá que “a bem-aventurança é o último fim, para o qual naturalmente tende a vontade humana” e “para nenhuma outra coisa deve tender a vontade como para o último fim, a não ser para Deus, pois ele deve ser objeto de gozo, como diz Agostinho” (AQUINO, 2003, p. 62).
Pode-se aqui ter a síntese do que é a felicidade para os três grandes pensadores cristãos do período medieval.
Para alguns autores, como Luiz Alberto De Boni, a filosofia de Tomás de Aquino nestes moldes: “o bem e o fim se identificam”, possui assim uma escatologia, e se entendemos que o fim é apenas esta vida terrena limitada a um período temporal sua argumentação não é validade, porém se admitimos a eternidade, a felicidade como bem último é aquela que conquistamos já aqui mas que deve se prolongar além da vida temporal, fora disto é claro, somente os prazeres temporais.
No quadro acima, de autor anônimo, O homem rico e Lázaro, (cerca de 1610, Amsterdam).
AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Vol III São Paulo: Loyola, 2003.
Bem aventurança e beatitude
Embora o termo esteja associado a santidade cristã, e é também um dos seus aspectos, o termo na antiguidade clássica tinha um significado mais genérico, um estado permanente de perfeita satisfação e plenitude que somente um sábio podia alcançar, assim pensava Aristóteles, mas hoje está condicionado somente ao sentido religioso, pretende-se aqui mostrar que podem estar mais próximos do que se pensa.
O significado religioso é também o da felicidade, mas no sentido de gáudio de prazer equilibrado da alma, que só pode alcançar quem desfruta da presença de Deus, que sua plenitude poderá ser atingida somente na vida eterna, mas não significa descartar a vida terrena, “eu vim para que todos tenham vida, e vida em abundância” (Jo 10:10), assim proclama o evangelista, mas o que há de diferentes entre as duas propostas de felicidade.
Aristóteles no livro Das Causas vai dizer que o fim da beatitude é relativo ao desejo da mesma, assim a natureza última deste fim move-se principalmente pelo desejo e este é o prazer, tanto que absorve a vontade e a razão do homem a ponto de fazer desprezar outros bens.
Tanto Boécio, que a igreja também o beatificou (isto é o proclamou feliz, beato e santo), e Aristóteles trataram do tema, e a pergunta deles é o que se o prazer é mesmo o fim último da felicidade, da beatitude e que também Tomás de Aquino vai argumentar ao contrário.
O que diz Boécio é que são tristes as consequências dos prazeres, sabem-no todos os que querem lembrar-se das suas sensualidades, pois, se estas pudesse os fazer felizes, nenhuma razão haveria para que também os brutos não fossem considerados tais, e isto lembra muito os casos atuais de abusos e violências reprováveis.
Para Boécio: “A bem-aventurança é o estado perfeito da junção de todos os bens”, e assim parece que pelo dinheiro poderão se adquirir todas as coisas, porque o Filósofo, no livro V da Ética, afirma que o dinheiro se inventou para ser a fiança de tudo aquilo que o homem quisesse possuir, o que hoje pode ser traduzido como o dinheiro compra tudo.
Além disto diz também Boécio: “Mais brilham as riquezas quando são distribuídas do que quando conservadas. Por isso, a avareza torna os homens odiosos, a generosidade os torna ilustres”, e assim não se condena a riqueza, mas a sua má distribuição.
Na representação acima o quadro “O violinista alegre com um copo de vinho” (1624) de Gerard van Honthorst (1590-1656).
O que faz o Amor ser amado
Hannah Arendt procurou em Agostinho de Hipona suas respostas para o Amor, trouxe grandes contribuições no campo filosófico para o tema, muito além da clássica divisão dos gregos: ágape, eros e filia; mas como observou a filosofa contemporânea Julia Kristeva não foi além do Agostinho filósofo, abordando também o teólogo.
Além da divisão inteligente da sua tese de doutorado: “O amor em Santo Agostinho”, a própria Arendt acentuou o caráter filosófico da obra do bispo de Hipona, ao ressaltar: “ele nunca perdeu completamente o impulso de questionamento filosófico” (Arendt, 1996), suas bases de Cícero, Platão e Plotino são perceptíveis em sua obra.
A escolha de Arendt por dividir sua dissertação em três partes se deve a uma vontade de fazer justiça a pensamentos e teorias agostinianas que correm em paralelo. Assim cada parte “servirá para mostrar três contextos conceituais nos quais o problema do amor tem papel decisivo.”
Também ela percebe a importância do Amor Caritas, mas como o vê não é teológico, mas apenas dentro das possibilidades humanas, Julia Kristeva ao falar do Amor vai além ao afirmar: “O amor é o tempo e o espaço em que ‘eu’ me dou o direito de ser extraordinário“, enquanto Arendt tem clareza que há diferença entre o Caritas e a Cupiditas, que ama o mundo, as coisas do mundo.
Mas a questão de Agostinho que deve ser respondida também pelos cristãos sé o que “amo quando amo o meu Deus?” (Confissões X, 7, 11 apud Arendt p. 25), a quinta essência do meu interior, é verdade como pensava Agostinho que encontro em mim o que me liga a eternidade, porém há além da quinta essência ou Outro fora, não apenas Deus, mas aquele Outro que passa ao meu lado, aquele cuja identidade está escondida no invólucro humano do Outro que tem Deus em si também.
O que amo quando amo a Deus, é assim extensível ao Amor a humanidade, concreto em cada Outro que me relaciono, e está além da quinta essência do meu “Eu”.
Caritas é assim o extraordinário em mim, tanto Arendt, Kristeva e o próprio Agostinho estão certos em parte, porém o Deus que amo está agora presente também no Outro, que é além do meu espelho e além da minha quinta-essência interior.
Talvez a maior cilada feita para Jesus pelos fariseus esteja na pergunta, depois que Jesus havia calado os saduceus, estava na pergunta (Mt 22,36) “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?”, e Jesus responderá (Mt 22,37-39): “Jesus respondeu: “‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento!’ Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’”, e conclui que esta é a síntese de toda Lei e dos profetas.
Hannah Arendt cita esta passagem, mas a sequência é clara amarás com todo coragem e toda alma, aspectos teológicos e depois com o entendimento, o filosófico.
Porém a pergunta atualizada é esta de Agostinho: “O que amo quando digo que amo a Deus?” e se na resposta é também “O próximo como a ti mesmo”, ou seja, com a sua quinta-essência interior dirigida ao Outro, significa que não posso dizer que amo de fato o Amor, que vem de Deus, se não é o Amor caritas.
ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Chicago: University of Chicago Press, 1996.
Figura: Texturas e acrílico sobre tela 100×120 cm | Janeiro, 2018. Galeria Eva-sas.
Ainda o amor em Santo Agostinho
O que fez Hannah Arendt chegar a conclusão que uma civilização do Amor não era possível, além de sua experiência pessoal como judia que não voltaria a sua “casa” em Israel, ainda tem que tivesse feito planos para isto, é a incompreensão do Caritas Agápico, o verdadeiro amor.
A filósofa Julia Kristeva divulgou um relatório reservado do orientador Karl Jaspers sobre sua orientanda Hannah Arendt, parecia-lhe que sua aluna que sua aluna na época “[…] estava apta a sublinhar o essencial, mas que ela, simplesmente, não reuniu tudo o que Agostinho disse sobre o amor. […] Alguns erros surgem nas citações. […] O método exerce alguma violência sobre o texto. […] A autora quer, através de um trabalho filosófico de ideias, justificar sua liberdade com relação às possibilidades cristãs, que, no entanto, a atraem. […] Não merece, infelizmente, a mais alta menção [cum laude]. Efetivamente, Arendt parece privilegiar, em Agostinho, o filósofo, em detrimento do teólogo.” (KRISTEVA, 2002, p. 41).
A filósofa Kristeva assinala o ponto essencial indo mais a fundo no pensamento de Agostinho, e questiona que tipo de amor o filósofo se referia e se existiria mais de um tipo de amor, além dos já conhecidos filia, ágape e Eros: “Numerosos termos declinam o conceito de amor em Agostinho: amor, desejo (com suas duas variantes, appetitus e libido), caridade, concupiscência, formando uma verdadeira ‘constelação do amor’ (…)”. (KRISTEVA, 2002, p. 42).
O que havia de revolucionário na forte mensagem cristã de Agostinho, além de sua capacidade intelectual e teológica, era a noção de libertação das leis antigas, o que alguns chamam incorretamente de legalismo (não se trata de leis “humanas”), centrando no amor a base da religião era possível superar a filiação anterior de Agostinho do dualismo maniqueísta, ao qual ainda boa parte da teologia e da filosofia estão presos, esta última porém mais ligada ao racional-idealismo atual.
Será impossível pensar em uma civilização que supere o ódio, a violência e a divisão dualista da sociedade sem haver caridade verdadeira, aquela que se estende a todos, aquela que admite a diversidade, e aquela que almeja a justiça, conforme pensava Agostinho: “onde não há caridade não pode haver justiça”, e assim o desejo maior de justiça deve ter como pressuposto a caridade, ainda que ela pareça altruísta demais, ou piegas, basta ver o que o ódio construiu senão guerras e violência.
O conjunto de volumes do “Gênio Feminino” de Julia Kristeva (1941- ) é analisar e prestar uma homenagem a três pensadoras do século XX, talvez a mais conhecida Hannah Arendt (1906-1975), Melanie Klein (1882-1960) e Colette (1873-1954).
Julia Kristeva é considerada uma estruturalista (ou pós), junto a Gérard Genette, Lévi Strauss, Jacques:Marie Lacan, Michel Foucault e Althusser, tem ainda um importante trabalho sobre semiótica Introdução à semanálise (2005), onde diz frases contundentes como: “todo texto se constrói como um mosaico de citações” (Kristeva, 2005, p. 68) e ainda: “O texto não denomina nem determina um exterior” (KRISTEVA, 2005, p. 12), afirmando assim que a literatura não dá conta do real.
KRISTEVA, Julia. O gênio feminino: a vida, a loucura e as palavras. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.