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História, a grande clareira e parusia
O Natal está próximo e o nascimento de Jesus é um fato histórico pois o Censo ordenado pelo imperador de Roma César Augusto, quanto a data há controvérsias por seriam entre 4-5 a.C., quando Quinino era Governador da Síria como está descrito na Bíblia (Lc 2,2), porém é certo que o censo foi realizado e este foi justamente o motivo de Maria e José terem ido a Belém, onde a profecia dizia que de lá nasceria o salvador, e assim ele “foi contado entre os homens”.
Há controvérsias de datas e da precisão das datas (não dos fatos), uma vez que o calendário foi modificado.
A história também está pontuada de intervenções divinas, na decadência de Roma nascem os mosteiros, onde a cultura da culinária, os primeiros grêmios e ofícios e também uma fase anterior da escrita impressa é realizada, através dos copistas, as primeiras escolas e mais tarde as primeiras universidades, com forte influência teológica como não poderia ser de outro modo, mas tudo isto é história, também no renascimento a arte e a cultura tiveram forte influência teológica.
Entramos na modernidade, a obra que fizemos leituras pontuais nos posts desta semana “todos no mesmo barco” de Sloterdijk, menciona um fato importante, além e citar a obra clássica do Decamerão de Boccaccio como “pequena comunidade em meio ao desastre da grande” (Sloterdijk, 1999, p. 75), faz uma análise da peste negra (que aconteceu nos anos 1300) e que devastou a Europa com mais de 100 milhões de pessoas mortas (figura) quando a população era muito menor que hoje, e sua influência política e psicológica pode ser analisada.
Em nota de rodapé cita a obra de Henrik Siewierki (traduzida pela Estação Liberdade em 2001) “Uma missa para a cidade de Arras” onde analisa as consequências tanto psicológicas quanto políticas da peste, também o psicólogo Franz Renggli, em seu livro Autodestruição por abandono, desenvolveu a hipótese da influencia na modernidade da peste, e também da degradação da relação mãe-filho que teriam provocado uma espécie de fraqueza imunológica, coletiva e psicossomática que favoreceu o vírus daquela peste.
Toda esta análise é interessante em meio do retorno da Pandemia a Europa, ao mesmo tempo que é sem dúvida um flagelo, pode ele alimentar uma nova clareira sobre a nossa coimunidade, ou seja, a ideia de uma defesa mútua e solidária em vista de uma catástrofe ainda maior do que a que já encontramos.
Serve para “aplainar os caminhos”, como diz a leitura bíblica quando João, o filho de Zacarias e Isabel, anunciava no deserto usando as palavras do profeta Isaías: “esta é a voz daquele que grita no deserto: ´preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas’” (Lc 3,4) e parece propícia a este nosso tempo de flagelo e deserto.
É importante lembrar que as duas primeiras semanas do Natal comemoram não a vinda de Jesus em Belém, mas a Parusia, ou seja, a preparação de sua segunda vinda.
O deserto sem vida interior
Viver só na exterioridade, projetado sobre o mundo levou a um tipo de angústia especial, a angústia é um aspecto da filosofia, aquela que se liga ao conceito do vazio, um certo tipo de filosofia e algumas formas do conceito “Deus está morto”, sim porque existem outro, um deles é os homens tentam em vão mata-Lo como se fosse possível, como se fosse possível negar alguma intencionalidade na criação do universo, sim ele pode ser multiverso, mas também para ele deve haver uma intencionalidade.
O movimento filosófico que deu voz ao sentimento de “alienação e desespero”, veio justamente do “reconhecimento do homem de sua solidão fundamental em um universo indiferente”, as frases destacadas são de Anthony Downs, um economista político americano, falecido em outubro deste ano.
A razão pela qual devemos conhecer a origem e o desenvolvimento de certos conceitos que parecem apenas palha e sem substância (porque não são observados a fundo), é que eles passam a dominar grande parte da vida contemporânea, é o caso do idealismo que dominou quase todos os ismos de nosso tempo, incluindo socialismo e certo tipo de cristianismo (na foto a obra de Albert György).
Os ismos de nosso tempo não são senão a racionalização de alguma forma de idealismo presente na cultura ocidental de Descartes, passando por Kant até Hegel, a sua rejeição partido do existencialismo de Kierkegaard que insistiu na irredutibilidade da dimensão subjetiva e pessoal da vida humana, o existencialismo tomou diversas formas, porém é o retorno a questão do Ser e a ontologia que considero parte essencial de redescobrir o fio de ouro do espírito humano, ou da dimensão pessoal e subjetiva como foi pensada por Kierkegaard, parte de uma pergunta essencial que é “porque existe tudo e não o nada”, e o nada é claro é o vazio.
Porém Kierkegaard trabalhou também a questão da angústia, que pode ser associada ao vazio ou ao sentimento moderno de uma forma de alienação, seu conceito é outro, é a vertigem da liberdade, preconizada pelo homem moderno, é através dela que o homem sente repulsa e atração, pode-se tudo, mas nem tudo é conveniente.
Em “O conceito de angústia”, Kierkegaard escreve: “” uma determinação do espírito sonhador (…) é a realidade da liberdade como puro possível” (KIERKEGAARD, 1968, p. 45).
Soren Kierkegaard nasceu na Dinamarca em 1813 teve uma vida sofrida com problemas pessoais e familiares, em um espaço de vinte anos viu a morte de dois irmãos e três irmãs e depois a mãe, a decepção amorosa com a noiva Regina Olsen culmina na sua própria vida aquilo que expressou na filosofia.
O conceito de angústia tornou-se central no desenvolvimento da filosofia existencialista, ele está presente em Heidegger, Jaspers e Sartre, mas não ficou de lado em filosofias anteriores como a fenomenologia de Husserl e antes na psicologia social de Franz-Brentano.
É Heidegger que torna a questão da angústia como um problema da vida cotidiana, escreve: “O ser-para-a-morte é, essencialmente, angústia. Isso é testemunhado, de modo indubitável embora “apenas” indireto, pelo ser para-a-morte já caracterizado, no momento em que a angústia se faz temor covarde e, superando, denuncia a covardia da angústia. (HEIDEGGER, 1998, P. 50).
Por isso para Heidegger a angústia é um determinante existencial e ela se manifesta na cotidianidade do estar-no-mundo, no dizer de Hanna Arendt é uma “condição humana”.
A questão volta a tona pela forma patológica que tomou na Pandemia, justamente a privação da liberdade, vejam que o conceito de Kierkegaard faz sentido.
Heidegger, M. A origem da obra de arte. In: CAMINHOS de Floresta (Holzwege). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998.
Kierkegaard, Soren. O conceito de Angústia. Lisboa: Hemus editora, 1968.
Forma e ato
Informação é uma palavra forte neste momento da história, porém o conceito de forma de in-formar parece estar separado do conceito de matéria, hylé para os gregos e se torna dados apenas.
A filosofia moderna separou a forma do conteúdo, assim como se separa um rótulo do ingrediente que existe num frasco, mas isto vem da compreensão reduzida do que é a matéria, o hylé dos gregos, cujo pensamento na terminologia aristotélica interliga-os no hilemorfismo (ὕλη, hýle = “matéria”; μορφή, morphé = “forma”).
Para que isto tenha um alcance antropológico, necessário ao discurso da diversidade cultural, é preciso ligar ato e potência, como o fez Tomás de Aquino, onde matéria não é aquilo que hoje designamos assim (como a substância por exemplo), mas sim aquilo que é como possibilidade ou em potência, escrito assim por Tomás: “matéria est id quod est in potentia” (matéria é aquilo que é em potência) (TOMÁS, ST I q.3 a.2 c), em termos atuais, enquanto se não é ato, é apenas um dado.
Assim o ato é a existência de fato, ou a atuação em si, ou seja, “forma est actus (forma é ato) (ST I q.50, a.2, obi.3).
Assim a articulação dos binômios potência x ato e matéria x forma deste modo, “matéria não é senão potência, já a forma é aquilo pelo qual algo é, pois é o ato” (TOMÁS, ScG II, c.43), estas categorias dão uma distinção da metafísica fundamental, e antropologicamente significam que uma coisa é a possibilidade de existir ou atuar: potência ou matéria, outra coisa é de fato existir ou atuar: ato ou forma.
Algumas teologias modernas querem separar corpo e alma, isto é sem fundamento escatológico e bíblico, senão a figura humana de Jesus seria dividida em duas: a divina e a humana, que estariam em oposição e lutariam uma contra a outra, e por isto que a antropologia cristã deve ser rigorosamente unitária, como o é em Tomás de Aquino.
A existência de um corpo na condição humana é a união entre a potência e o ato, entre a matéria e a forma (vista neste novo aspecto ligada ao conteúdo e essência), sem a sua existência de fato (forma) o corpo nem sequer existia, mas só a possibilidade de existir (em potência) o faz existir em ato, esta unidade é radical, já que a condição necessária para sua existência é o corpo. isto é fundamental para compreender a antropologia cristã escrita de forma clara por Tomás: “O ser humano não é apenas alma, mas algo composto de alma e corpo” (TOMÁS, ST I q. 75 a 4c), se por um lado todo materialismo (que não é hilemorfismo) nega a existência da alma, muita má teologia procura negar a existência do corpo, é a relação dualista moderna, cristalizada em objetividade e subjetividade, no qual ambas saem mutiladas.
Segundo Tomás de Aquino, os corpos vivos humanos e a existência de fato (forma, chamada também por ele de alma intelectiva) é imortal, ao contrário dos demais corpos vivos não humanos, cuja existência tem início e fim, não o fim escatológico, mas o fim finalista de uma interrupção, pois todos os humanos morrem, e para ele a morte é explicada como uma deficiência provisória pela qual passamos apara uma existência imortal e ultrapassamos a deficiência radical do corpo vivo através da morte.
Dito de maneira mais clara: “Que a alma permanece após o corpo, isto acontece por uma deficiência do corpo [per defectum corporis] que é a morte.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica São Paulo: Loyola, 2001-2006. 8 v.
O grito dos aflitos
Em muitos momentos de dificuldades pessoais, conflitos mundiais e tragédias naturais sempre aparente um grito de desespero e dor, porém o nosso tempo é de um grito silencioso daqueles que perdem a razão de viver, também a pandemia provocou em muitos angústia, solidão e desespero.
O famoso quadro O grito do norueguês Edvard Munch (figura) representa uma figura andrógina num momento de profunda angústia e desespero, tendo ao fundo o fiorde de Oslo ao pôr do Sol, caracteriza bem o que significa aflição em nosso tempo, além da miséria e da falta de solidariedade, a angústia e ansiedade da figura pode ser do próprio autor, a frase escrita no alto do quadro: “só pode ter sido pintado por um louco”, analisada pelo Museu Nacional de Oslo concluiu que era mesmo do autor.
O aspecto de ansiedade permaneceria velado, não fosse esta análise, uma vez que o autor declarado em certa ocasião: “tenho sofrido um profundo sentimento de ansiedade que tentei expressar em minha arte”, e isto reflete nossos medos contemporâneos.
A TAG (Transtorno de Ansiedade Generalizada) é um dos sintomas deste quadro, que pode ser também bipolaridade ou algum outro tipo de descontrole, este tipo foi chamado genericamente por Freud de Ansiedade Neurótica, mas há outras duas: a Realista e a Moral.
A ansiedade realista refere-se ao medo de algo existente no mundo exterior, então a pandemia ou uma catástrofe natural (furacão, terremotos, alterações bruscas no clima, etc.) são no fundo um tipo de medo de algo real acontecendo porém que nos coloca numa adrenalina diferente.
A moral é aquela que refere-se ao sentimento de culpa, que desencadeia um medo de ser punido, e isto leva a uma situação de conflito na interioridade, assim a pessoa perde aspectos sensíveis do seu interior: o inconsciente ameaçando adentrar o consciente o que significa na prática uma perda do autocontrole.
Mas os aflitos são também os desamparados, os abandonados e os rejeitados da sociedade, os diversos tipos de preconceitos sobre os quais nascem polêmicas atuais.
Na leitura cristã, o texto de Mateus (5,4) embora algumas traduções coloquem como “aflitos”, a tradução que preferimos aqui: “”Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados!”, porque além do aspecto da “doença” existe o mal estrutural e o mal social que empurram muitas pessoas a este estado, e culpá-las apenas significa acrescenta a qualquer tipo de “aflição” a ansiedade neurótica que nasce de um sentimento de culpa desproporcional, e este é o grande tipo de pressão social atual.
Mas qual seria o consolo de que fala a bíblia, o consolo dos que creem é que o único mal que devem temer é o da alma, assim ao contrário do que diz muitas interpretações moralista, é uma moral equilibrada e sem o exagero da culpa que leva a um estado interior sem este tipo
A mansidão e o poder
A mansidão é uma virtude fundamental para resolver conflitos, estabelecer novos espaços de diálogos onde ele se encerrou e abrir novos horizontes onde eles parecem impossíveis.
João Calvino tem uma frase muito nobre: “Será inútil ensinar a mansidão, a menos que tenhamos iniciado com a humildade”, de fato a grande razão para parecer que alguns estão certos e que outros não tem razão nenhuma parte muitas vezes da soberba de um dos lados (o oposto a humildade) e nestes parâmetros nenhuma dialogia será possível, ou aquilo que preferimos nenhum “novo horizonte” será traçado que estabeleça um ponto futuro onde pontos conflitantes poderão entrar em um processo de convergência.
A polarização é inevitável pode ser os argumentos de alguns, sim se chegando a determinado ponto de conflito isto é válido, mas devemos saber que a saída de fato de um conflito terá que ter em algum momento a bandeira de paz e ela não pode ser a bandeira da submissão dos vencidos, a pax romana, depois que Roma conquista seus territórios, ela é a submissão a conceito autoritário e que em determinado ponto retornará a guerra.
É verdade que o poder é sempre assimétrico, mas ele exercido com mansidão leva ao diálogo.
A polarização é lógica pode ser o argumento para justificá-la, lembro, porém, que a lógica difusa, a lógica paraconsistente e outras lógicas não são binárias, sim ou não, e que nunca há somente dois lados, esta é uma posição idealista que induz a dualidade, pode haver múltiplos lados, por isto a lógica realmente justa admite uma terceira hipótese.
Estes nunca serão vencedores e estarão sempre a beira do caminho pode ser outro pensamento, por mais paradoxal que possa parecer o ensinamento divino, em muitas religiões, é que a mansidão e a humildade levam as pessoas para o alto, uma das bem-aventuranças bíblicas diz (Mt 5, 5): “Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra” e então onde está o poder deles, na conquista através de valores perenes só pode levar a plenitude e a própria perenidade, o problema é ceder a valores ardilosos e injustos.
A construção de uma realidade perene, um tempo de paz e justiça, no momento que começamos a sair de uma pandemia é fundamental, ainda que pareça distante.
O meio divino e o fenômeno humano
A cosmovisão de Chardin sobre o fenômeno humano vai desde a cosmogênese, a origem o universo e da vida até complexificação da natureza e o lugar do homem nela, o que a pandemia demonstra que esta complexificação cresce e mesmo a ciência tem limites para lidar com ela, porém esta pandemia pode trazer novos horizontes, quando o pensar e o clarificar precisa da ciência.
Entre suas várias obras, Teilhard Chardin faz um percurso singular entre O meio divino, escrito entre novembro de 1926 e março de 1927 e o Fenômeno Humano, escrito entre julho de 1938 e junho de 1940, que formam um “todo inseparável” diz também a edição que tenho do Editorial Presença de Lisboa, Portugal.
Singular porque transita do divino ao humano, como atestam os próprios nomes das obras, sem deslizes ou arroubos, mostra-nos a “necessidade da compenetração entre a ciência e religião igualmente afirmada por Einstein”, expressão de Helmut de Terra, amigo e admirador de Chardin.
Chardin inicia o meio divino percebendo “a confusão do pensamento religioso no nosso tempo” (pag. 41) e atesta que o homem de nosso tempo “vive com a consciência explícita de ser um átomo ou um cidadão do Universo” (idem).
A atualidade do texto é porque afirma o autor afirma no início de seu livro algo que tem muito a ver com nossos dias, um despertar coletivo que um belo dia “faz tomar cada indivíduo consciência das verdadeiras dimensões da vida, provoca necessariamente na massa humana um profundo choque religioso, quer para abater quer para exaltar” (ibidem).
Isto acontece porque o mundo é demasiado “belo: é a ele e só a ele que devem adorar” (pag. 42).
O que é então o “meio divino”, o mundo (no nosso caso exploramos as cosmovisões do universo) não será cada vez mais fascinante e não estaria e seria ele a “eclipsar o nosso Deus” (idem), e existe uma conexão, na visão de parte do cristianismo, entre a Deus e a matéria, a eucaristia, ela e só ela pode criar um verdadeiro sentido de nos religar ao divino, “eis o meu corpo e meu sangue” disse Jesus, e quem comer terá acesso a vida eterna.
Afirma Chardin “a tensão lentamente acumulada entre a Humanidade e Deus atingirá os limites fixados pelas possibilidades do Mundo, e então será o fim” (pag. 177) “… que devemos esperar não como uma catástrofe mas como uma ´saída´ para o mundo para a qual devemos colaborar com todas as nossas forças cristãs sem receio do mundo, porque os seus encantamentos já não poderiam prejudicar aqueles para quem ele se tornou, para além dele mesmo, o Corpo d´Aquele que é e d´Aquele que vem”.
CHARDIN, Teilhard. O meio divino: ensio sobre a vida interior. Lisboa: Editorial Presença, s/d.
O lugar do homem na natureza
A natureza mantém uma relação como um todo com o planeta e este tem íntima interdependência com os seres vivos e que por sua vez são interdependentes entre si, assim todos os ecossistemas da Terra são apenas simplificações dos estudos de Biologia e estão separados da totalidade que é o planeta, esta é uma das teses do livro A natureza da NATUREZA, de Edgar Morin que nós já fizemos algumas postagens aqui.
Porém queremos dialogar com o conceito antropocêntrico que domina muitos estudos e cada vez mais vemos que é uma limitação já que a natureza tem seu próprio curso, e a interferência brutal do homem pode modificar e prejudicar este curso.
Segundo Ways (1970) citado em Chisholm (1974) existe uma tendência na epistemologia ocidental de objetivar a natureza para vê-la “do lado de fora”, e está é a responsável pela forma arrogante e insensível de lidar com o mundo natural, segundo o autor mesma atitude de separação do homem da natureza constitui a base do crescente conhecimento humano da mesma, sendo, portanto, uma interpretação antropocêntrica da evolução do mundo natural.
Por outro lado, é inegável a complexificação da natureza no homem, como uma animal que tem consciência, ou dito de outra forma tem consciência da própria consciência, o que pode levar a outro extremo que é a “interiorização” onde cultura e natureza se confundem, onde o subjetivismo pode ser uma tendência responsável por esta vertente.
Já o paleontólogo Teilhard de Chardin em sua obra “O fenômeno Humano”, observa que não há nenhum traço anatômico ou fisiológica que distingue o homem dos outros animais superiores, por outro lado tem a característica zoológica que o faz um ser à parte no mundo animal, é o único que habita todo o planeta, outra característica que vem de sua forma de consciência é a sua organização enquanto consciência e estrutura de pensamento, que Teilhard de Chardin chama de “noosfera”, uma esfera do pensamento também mundial.
Quanto ao home resta saber, e nem a ciência sabe, se é um mero acidente superficial que aconteceu ou se há nele uma intencionalidade desde que o Universo foi criado, seja Big Bang ou não, reflete Teilhard Chardin: “que a devíamos considerar – prestes a brotar da mínima fissura seja onde for no Cosmos – e, uma vez surgida, incapaz de desperdiçar toda a oportunidade e todos os meios para chegar ao extremo de tudo o que ela pode atingir, exteriormente de Complexidade, e interiormente de Consciência” (CHARDIN, 1997).
CHARDIN, T. O lugar do homem na natureza, trad. Armando Pereira da Silva, Ed. Instituto Piaget, Lisboa: 1997.
CHISHOLM, A. Ecologia: uma estratégia para a sobrevivência. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
A peste, a verdade e a cegueira
Chega-se um momento em que também resignar-se a doença e não traçar rumos novos é também uma covardia, diz Camus na sua crônica a Peste: “Mas chega uma hora na história em que aquele que ousa dizer que dois e dois são quatro é punido com a morte”, pois é “…uma ideia que talvez faça rir, mas a única maneira de lutar contra a peste é a honestidade”.
Ultrapassar o medo, e para muitos a dor, “compreendi que toda a desgraça dos homens provinha de eles não terem uma linguagem clara. Decidi então falar e agir claramente, para me colocar num bom caminho.”, isto implica não apenas em sabedoria e coragem, mas também ultrapassar a cegueira humana.
Assim é que: “Desde o início da história, os flagelos de Deus põe a seus pés os orgulhosos e os cegos. Meditai sobre isso e caí de joelhos”, e no caso presente, um minúsculo vírus põe toda a sabedoria e inteligência humana de joelhos, assim que não sejam para admitir o infinito, o Amor e a presença de um mistério na vida.
Camus via isto não de uma maneira religiosa, mas verdadeira: “O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. Os homens são mais bons do que maus, e na verdade a questão não é essa. Mas ignoram mais ou menos, e é isso que se chama virtude ou vício, sendo o vício mais desesperado o da ignorância, que julga saber tudo e se autoriza, então, a matar”, mas se faz o ódio e a guerra.
A figura bíblica do cego Bartimeu é bastante ilustrativa da cegueira humana, porém este cego tinha consciência de sua limitação, ao saber que Jesus se aproximava dele gritava para que tivesse piedade dele, os apóstolos se incomodavam, porém Jesus vai perguntar ele gritava (Mc 10:48-52): “Filho de Davi, tem piedade de mim” Então Jesus parou e disse: “Chamai-o”. Eles o chamaram e disseram: “Coragem, levanta-te, Jesus te chama!”. O cego jogou o manto, deu um pulo e foi até Jesus. Então Jesus lhe perguntou: “O que queres que eu te faça?” O cego respondeu: “Mestre, que eu veja! Jesus disse: “Vai, a tua fé te curou”. No mesmo instante, ele recuperou a vista e seguia Jesus pelo caminho”.
A consciência da cegueira de Bartimeu o movia, e o desejo da cura o incomodava mais ainda, aquele que julga ver e vê tudo numa penumbra é mais cego que Bartimeu e como diz um trecho da crônica A peste, sobre os cegos que não querem ver: “negavam, enfim, que tivéssemos sido esse povo atordoado de que todos os dias uma partilha, empilhada na boca de um forno, se evaporava em fumaça gordurosa, enquanto a outra, carregada com as correntes da impotência e do medo, esperava a sua vez”.
A cultura de massa e sua crítica
No livro de Morin “A cultura de massa do século XX”, é colocado que há uma zona “onde a distinção entre a cultura e a cultura de massa se tornapuramente formal: A Condição Humana, a Náusea ou A peste entram na cultura de massa sem deixar, contudo, a cultura cultivada” (Morin, 1997, p. 53) e o livro de Camus é interessante pela coincidência com a questão da Pandemia atual, e interessante que não tenha entrado nas análises do aspecto cultural do momento.
Já postamos no blog em outro momento sobre o livro de Camus “O Mito de Sísifo” e outro sobre o romance de José Saramago “Ensaio sobre a cegueira” (1995), embora muito lido em alguns países da Europa em meio a pandemia, sua análise não entrou nos círculos da “alta narrativa” cultural, ou a cultura cultivada, que tentamos explicar em algumas postagens nesta semana.
Escrito em 1947, pelo fraco-argelino Alberto Camus, importante sua origem, porque sua crônica parte de uma análise de uma epidemia que ocorreu na cidade argelina de Orã, em algum ano da década de 1940, período que Camus trabalhava clandestinamente no jornal clandestino “Combat!” onde escreveu textos engajados contra o nazismo, entre eles pode -se destacar “Cartas a um amigo alemão” (1945).
O livro trata do absurdo da existência, quando em meio a uma epidemia faltam o amor e a solidariedade humana, cujos sentimentos podem ser sintetizados onde escreveu: “Havia sentimentos comuns, como a separação ou o medo, mas continuavam a colocar me primeiro plano as preocupações pessoais. Ninguém aceitara ainda verdadeiramente a doença”.
Outro trecho que pode-se destacar: “Muitos continuavam a esperar que a epidemia cessasse e que eles fossem poupados, com as suas famílias. Por consequência, não se sentiam ainda obrigados a nada. A peste nada mais era para eles do que uma visita desagradável que havia de partir um dia. Assustados, mas não desesperados, não chegara ainda o momento em que a peste lhes surgiria como a própria forma da sua vida e em que esqueceriam a existência que até então tinham podido levar.”
Com a guerra recém terminada no período que escreve o livro, não deixa de lembrar: “Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo, as pestes, assim como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas.”
Faz uma análise sagaz dos flagelos na história: “Desde o início da história, os flagelos de Deus põem a seus pés os orgulhosos e os cegos. Meditai sobre isso e caí de joelhos.” e acrescenta: “Ah, se fosse um terremoto! Uma boa sacudidela, e não se falava mais nisso… contam-se os mortos, os vivos, e pronto. Mas esta porcaria de doença! Até os que não a apanham parecem trazê-la no coração.”, e sua conclusão traz uma reflexão: “Quanto mais a pandemia se estender, mais a moral se tornará elástica.”
Compreendi que a ausência da solidariedade e da compaixão, assim como a elasticidade da moral não eram fatos atípicos em epidemias, mas de certo modo esperados, porém acrescento que sempre há uma alternativa mais humana, mais solidária que nos devolva a esperança de um muito mais justo após um triste flagelo, aprender algo com ele.
A cultura de massa e a crise
Depois de analisar os aspectos de homogeneização e de colonização cultural, Morin vai analisar quem é o homem médio e que cultura consome, afirma:
“A linguagem adaptada a esse anthropos é a audiovisiaul, linguagem de quatro instrumentos: imagem, som musical, palavra, escrita. Linguagem tanto mais acessível na medida em que é o envolvimento politônico de todas as linguagens” (pag. 45) e, portanto, não é específica das novas mídias que apenas as potencializa, e ela envolve mais um imaginário do que “do jogo que sobre o tecida da vida prática” (idem).
Isto porque “as fronteiras que separam os reinos imaginários são sempre fluidas, diferentemente daquelas que separa os reinos da terra” (ibidem), assim um homem pode participar das lendas de outra civilização do que adaptar-se a vida desta civilização, e assim Morin prepara para falar da grande crise ou grande noite civilizatória, que Morin chama de “grande craking”.
Na medida em que melhora a qualidade técnica mediatiza a qualidade artística, diz Morin: “sobem na cultura industrializada (qualidade redacional dos artigos, qualidades das imagens cinematográficas, qualidade das emissões radiofónicas), mas os canais de irrigação seguem implacavelmente os grandes traçados do sistema (pag. 50).
Morin separa as correntes culturais vindas de Hollywood em três correntes principais: a que “mostra o happy end, a felicidade, o êxito; a contracorrente, aquela que vai da morte de um Caixeirio-Viajante a No down payment [Rock do AC/DC], mostra o fracasso, a loucura, a degradação” (pag. 51), mas há uma terceira corrente que chama de “negra”.
Esta é “a corrente em que fermentam as perguntas e as contestações fundamentais, que permanece fora da indústria cultura: esta pode usurpar em parte, adaptar a si, tornar consumíveis publicamente certos aspectos, digamos, de Marx, Nietzsche, Rimbaud, Freud, Breton, Péret, Artaud, mas a parte condenada, o antipróton da cultura, seu randium fica de fora” (idem).
Morin descreve este anti-climax no início do capítulo 5 “O grande ´cracking”: “os discos long playing e o rádio multiplicam Bach e Alban Berg. Os livros de bolso multiplicam Mlaraux, Camus, Sartes. As reproduções multiplicaram Piero dela Francesca, Masaccio, Césanne ou Picasso” (pg. 53), a cultura parecia se democratizar pelo livro barato, o disco, a reprodução, como preconizara Walter Benjamin, mas o resultado foi a vulgarização, pois a “cultura cultivada” não é na cultura de massa a corrente principal nem a específica.
O imaginário sai dos ritos, das festas e das danças e vai para o rádio, a televisão e o cinema, lá “esses espíritos fantamas, gênios que perseguiam permanentemente o homem arcaico e se reencarnavam em suas festas” (pag. 62), agora são “escorraçadas pela cultura impressa”, a cultura de massa quebra “a unidade da cultura arcaica a qual num mesmo lugar todos participavam ao mesmo tempo como atores e espectadores da festa, do ritmo, da cerimônia” (pag. 62), espectador e espetáculo estão fisicamente separados.
Essa transformação de uma “do homem da festa” sucede o que chamamos de público, audiência e espectadores: “o ele imediato e concreto se torna uma teleparticipação mental” (pag. 63(, este mass media (hoje confundido com as redes, que é outra coisa), ao mesmo tempo que “restabelecem a relação humana que destrói o impresso”, “é ao mesmo tempo, uma ausência humana, a presença física do espectador é, ao mesmo tempo, uma passividade física”. (pag. 63).
A cultura de massa mantém e amplifica um “voyeurismo”, de modo mais amplo: “um sistema de espelho e de vidros, telas de cinema, vídeos de televisão janelas envidraçadas dos apartamentos modernos, plexiglas dos carros Pullman, postigos de avião, sempre alguma coisa de translúcido, transparente ou refletidor nos separa da realidade física” (pag. 72-73) e tudo isto foi anterior às novas mídias, depositar a elas unicamente este grande “cracking”, é ignorar a construção (ou desconstrução histórica) do imaginário, do folclore e das festas, que se inicia antes mesmo do século passado com a cultura impressa, o iluminismo e o idealismo.
Tentativas de reativar a cultura “cultivada” não faltam, como já discorremos, através dos mesmos mass media que vulgarizam e destroem a substância da cultura humana, não faltam obras vividas de Van Gogh que Akira Kurosawa animou no cinema, de grandes eventos públicos com “vídeo-mapping” animado de Vang Gogh (feito no Atelie des Lumiéres, em Paris, foto), que apresentou em 2018 a obra de Gustav Klimt também animada.
A crise cultural não é apenas obra dela própria, sua raiz é o pensamento e o desenvolvimento de uma cultura de massas do idealismo, de um objetivismo que ignora o humano.
MORIN, Edgar. Cultura de massas do século XX. trad. Maura Ribeiro Sardinha. 9ª. edição. Rio de Janeiro, Forense, 1997.