Arquivo para a ‘Linguagens’ Categoria
Olhar as coisas do alto
Não são necessários milagres ou profecias para entendermos que mesmo nas realidades mais terrenas há coisas do alto, e elas respondem as realidades mais terrenas, sem elas não encontramos saídas e caminhos para uma vida plena, feliz e pacífica. É mais difícil pensar assim, mas é mais seguro.
Sem valores éticos, morais e responsáveis encontrar caminhos seguros para sair de conflitos, situações de insegurança ou de injustiça é quase impossível, pois um erro não corrige outro erro, e somente uma ação de amor e solidariedade resolve um conflito de ódio e divisão.
De divisão em divisão, de ódio em ódio, caminhamos num olhar apenas terreno sobre nossas dificuldades, não significa que devemos tirar o pé do chão e termos racionalidades nas decisões, significa que sem serenidade e atitudes sérias e proativas apenas pioramos o que está errado.
É comum mesmo em pessoas de boa vontade apelar para a violência e a força, ainda que o lado da justiça e da solidariedade seja o lado certo, agir com imprudência e crueldade tira o valor deste ato de força, o maior ato de força responsabilidade é agir com firmeza, educação e verdade.
Se estamos atribulados, ansiosos e sem equilíbrio não conseguimos encontrar o caminho da sabedoria, ouvir aquela voz interior do bom senso, da clareza e da verdade.
Também serve assim como para questões de justiça e direito para os verdadeiros valores culturais e religiosos, o uso do autoritarismo, que significa neste contexto falsa autoridade que muitos querem ter diante do cargo ou posição que possuem cometem o erro do argumento de autoridade e caem na armadilha fácil do poder em excesso.
Querem estar imbuídos de uma aureola de bondade quanto se investem contra as pessoas simples porém a graça de elevar os corações a valores do alto e retirar da situação difícil não é alcançada.
Para os cristãos uma das passagens mais significativas após a pascoa de Jesus que rememoramos a pouco na cultura cristã, é o episódio de Emaús em que enquanto Jesus caminhava entre eles e não percebiam, ainda ruminavam a morte violenta do Mestre, mas estavam cegos e não entenderam direito a vitória daquele que crucificaram.
Jesus pergunta: “o que ides conversando pelo caminho?” Eles pararam, com o rosto triste, e um deles, chamado Cléofas, lhe disse: “Tu és o único peregrino em Jerusalém que não sabe o que lá aconteceu nestes últimos dias ?” (Lucas, 24, 15-18) e deram sua versão terrena da pascoa.
E Jesus (ainda sem ser reconhecido) como explicar o sentido, já revisto elos profetas: “Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória?” (Lucas 24,26).
Aos poucos os corações deles foram se aquecendo e ao final entendem que estavam caminhando com o Mestre e depois pedem que fiquem com ele pois a noite chegava, mas Jesus desapareceu.
Não é preciso ter esta visão ou mesmo ter esta fé, é preciso escutar a voz do alto, dos valores sãos.
A frieza: da essência para a aparência
Empatia, paciência, amor verdadeiro e sentimentos verdadeiros parecem distantes, corpos enfeitados, maquiados e tatuados, mentes distantes e frias, vazias e de pouca ideias inspiradas.
Li no livro “A menina que roubava livros” (The book Thief, 2005): “talvez esse seja um castigo justo para aqueles que não possuem coração: só perceber isso quando não pode mais voltar atrás”, é uma frase dura, porém foi importante para analisar o meu contexto social, pessoal e de amizades.
Minha inspiração para ler, escrever e procurar dentro de instituições, ambientes e mídias sociais algo inteligente, inspirado e doce, produtivo onde possa encontrar caminhos diferentes do que vejo e sinto a minha volta, me fez entender e admirar o livro de Markus Zusak, pelo menos que lembro da edição de 2013, ela procurava um refúgio, um escape para a situação contextual.
Me pergunto se esta situação sobre a tensão de uma possível guerra em larga escala é diferente, vejo muita hipocrisia e manipulações no ar, enquanto inocentes morrem numa guerra estúpida, outros se preparam para um confronto ainda maior que aos poucos se espalha por todo globo.
Lembro de uma passagem bíblica (Tessalonicenses 1,5:3) quando disserem: “Há paz e segurança, então lhes sobrevirá repentina destruição, como as dores de parto àquela que está grávida, e de modo nenhum escaparão”, mas para os apressados lembro que está escrito que isto não significará o fim.
Faltam esforços sinceros pela paz, espíritos armados não podem promover paz alguma, querem aliados para seu poder temporal, falta uma mensagem atemporal, além os interesses imediatos.
Assim caminham os corações, e já chegaram as escolas e ao cotidiano da vida mais simples e fugaz via uma dona de casa de uma cidade pequena exaltada no supermercado falando contra aquele tal político que pôs tudo a perder e uma criança que chorava por uma situação política que nem bem entendia.
Não se apaga fogo com gasolina, diz a sabedoria popular, porém a poesia não está mais no ar, não há canções que falam de amor puro, só interesses imediatos de pulsão erótica, numa sociedade que na verdade vive “A agonia do Eros”, um livro profundo de Byung Chul Han.
Não é determinada cantora popular que fala contra o ensino e a boa educação, a sociedade ecoa estes hinos e quase não há como fazer sucesso sem apelos emocionais e passionais fora do tom.
O desmanche da visão humana como Ser e sua transformação na visão utilitária do Ter teve uma origem histórica no pensamento ocidental e agora penetra e tenta destruir o seu significado.
ZUSAK, Markus. A menina que roubava livros. Trad. Vera Ribeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.
A arte, a consciência e o divino
A arte é uma expressão da alma humana, “diz indizível, exprime o inexprimível, traduz o intraduzível” é a frase atribuída a Leonardo da Vinci, sem ela não expressamos humanamente o belo e não nos opomos a visão destrutiva e redutiva do simples olhar só do que vemos.
A humanidade construiu aparelhos para ver e sentir cada vez mais longe, o telescópio James Webb está nos fazendo olhar e estudar o mais profundo do universo, mas um universo inteiro existe em cada alma humana e mesmo o aparato tecnológico mais avançado pode traduzi-la ou imitá-la.
Este sim é o grande delírio humano, o mito da inteligência maquínica que ultrapassaria a humana, chamado de ponto singular, o desejo de vida eterna transportando sentimentos humanos para as máquinas, o delírio humano construiu tecnologias avançadas o que é bom, mas imaginá-la como dotada de alma e emoções humanas é um delírio daqueles que não acreditam que no mistério do infinito universo há uma consciência de um Ser e não de rochas e compostos químicos.
O fato que nos confundimos no curso da história reduzindo-a ao subjetivismo idealista não é digno do percurso humano, nem mesmo da ciência que para Edgar Morin é preciso retornar ao ponto em que enxergamos e admitimos a incerteza, afinal é este um dos princípios quânticos.
Recentemente uma Teoria da Informação Integrada (ITT) termo criado por Giulio Tononi, criou a ideia que era possível calcular um número “phi” representando a conectividade das redes, seja o cérebro, um circuito ou o átomo, agora esta ideia avançou e cientistas afirmam que é possível calcular este “phi”,
A pesquisadora e cientista cognitiva Susan Schneider, afirmou a New Scientist: “eu acredito que a matemática pode nos ajudar a entender a base neural da consciência no cérebro, e talvez até de máquinas, mas inevitavelmente deixará algo de fora: a qualidade dessa experiência, sentida internamente”.
Para os cristãos, até mesmo os discípulos era difícil acreditar no que viam depois da ressurreição de Jesus, foram ao túmulo e viram “um jardineiro”, caminharam para Emaús e não perceberam que o acompanhavam e por fim Tomé queria “tocar suas chagas” para acreditar.
Na passagem João 20,27 Jesus diz a ele: “põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel”, aos que creem isto é um fato.
Por uma filosofia do olhar
Ela já existe, até procurei as raízes e não encontrei e é aí que está o problema, dialogar com o que está presente na cultura, na filosofia e na arte sobre o que é o olhar e como é possível a partir daí desenvolvê-la de modo a dialogar com a cultura contemporânea.
Por exemplo, uma boa leitura de Schiller já citamos esta semana a sua “Educação estética do homem”, na arte não citei Gustav Klimt de propósito, ele tem elementos do simbolismo e toda literatura da arte reconhece, mas sua “arte nouveaux” traz algo de novo (foto sua obra o abraço).
Edgar Morin ao analisar “Cultura de massas do século XX” enfatiza os múltiplos sentidos do homem moderno:”a linguagem adaptada a esse anthropos é a audiovisual, linguagem de quatro instrumentos: imagem, som musical, palavra, escrita. Linguagem tanto mais acessível na medida em que é o envolvimento politônico de todas as linguagens” (pag. 45) e assim este olhar tanto pode se dispersar com se integrar dando a esta nova linguagem um olhar novo.
Ela não é mais específica de uma única mídia (som, imagem e objetos existem como arte desde sempre), para Morin isto é “do jogo que sobre o tecido da vida prática” (idem) e este simbolismo em Klimt é de fato uma visão integrada, mas não é específico dele, vejo-o também em Kandinsky suas obras parecem ter também música e poesia, mesmo sendo apenas quadros.
No cinema o diretor japonês Akira Kurosawa num dos quadros do filme Viver, faz a integração de pintura e cinema ao dar movimento aos quadros de Van Gogh, assim mais do que multimídia este movimentos artísticos podem ser chamados de transmídias, pelo fato de integrar aspectos da arte.
Isto reeduca e estimula o olhar, porém há o aspecto da possibilidade de dispersar o olhar, porém nada fazer mais isto do que as monomídias horizontais modernas e os “mídias” sociais não estão fora disto, assim a reeducação do olhar passa pelo estímulo de outros sentidos e do espiritual que não é aquele idealista (ver post anterior) que estão separados.
Assim apesar de ser um simbolista é justo pensar Klimt como integrante da “arte nouveaux”, já que ele ajudou a criar o Movimento de Secessão em Viena, cujo objetivo era romper as tradições conservadoras que se enraizaram na história e criar uma visão internacionalista e abrangente de gêneros artísticos contemporâneos e atemporais.
A integração em novas mídias desta visão é a apresentação no histórico Atelie des Lumiéres, em Paris de uma animação transmidiática de Vang Gogh (foto), que inaugurou uma série em 2018 justamente com a obra de Gustav Klimt também animada.
Por isto não é uma síntese de contrários, mas a fusão de horizontes artísticos em movimento, a crise atual é a visão dualista de mundo, da arte e dos valores que são atemporais.
MORIN, Edgar. Cultura de massas do século XX. trad. Maura Ribeiro Sardinha. 9ª. edição. Rio de Janeiro, Forense, 1997.
O que é belo para o idealismo
Contradizemos no post anterior a visão de visão e de belo do sentido idealista, mas o próprio Schiller é descendente desta visão, ainda que tenha tentado reconstruir “a unidade da natureza humana”, nisto ele tem razão, pensou em reconstruir no modo idealista moderno.
Para Hegel a estética, e por conseguinte o Belo, é a ciência que se ocupa do belo artístico e não o belo natural, para ele o belo natural é produto do espírito (Geist), e, por ser produto do espírito, é partícipe da verdade e do que existe na natureza, veja que o espírito assim como a “transcendência” idealista é ligada a natureza e ao humano, é distante do espiritual místico.
Para um revolução interna ao idealismo, três correntes da arte estão imersas nele: o simbolismo, o classicismo e o romantismo, para muitos autores modernos, cito Byung Chul Han, permaneceu a cultura do liso, do plano e do “transparente” (vidros, plásticos, etc.).
Esta pseudo-revolução que se deu no interior da arte idealista é chamada de autossuperação, uma espécie do que foi chamado no idealismo alemão de novos hegelianos, porém faz uma divisão ainda mais profunda na arte: a pintura, a música e a poesia.
A escultura é considerada uma arte “nobre”, afirma Hegel: ““A escultura introduz o próprio Deus na objetividade do mundo exterior; graças a ela, a individualidade manifesta-se exteriormente pelo seu lado espiritual” (Hegel, 1996, p. 113), novamente o exterior é objetivo, uma escultura e não um Ser, o outro e com ele toda sua subjetividade.
Já o simbolismo foi a que “procura realizar a união entre a significação interna e a forma exterior, que a arte clássica realizou essa união na representação da individualidade substancial que se dirige à nossa sensibilidade, e que a arte romântica, espiritual por essência, a ultrapassou” (Hegel, 1996, p. 340).
Ao ver as consequências deste pensamento “romântico” Hans-Georg Gadamer vai criticar a visão romântica de consciência de Dilthey, com graves consequências no historicismo moderno quase todo ele idealista e distante da realidade, assim trata-se de criar o modelo “ideal” para a consciência e para o belo e não o transformar como pensam fazê-lo os idealistas.
A arte nouveau, principalmente de Antoni Gaudí (na foto a Casa Batlló, em Barcelona) considero a expressão mais fiel porque recupera os elementos naturais (luz, cor, ar e natureza) sem “afetações” e resquícios do simbolismo e do romantismo, como por exemplo, presente no “Style Tiffany” nos Estados Unidos ou o “Style Glasgow” no Reino Unido que tem elementos, ao meu ver, do simbolismo, embora também chamada de “art nouveau”.
Retomando o post anterior há uma confusão visão de ética porque está separada da estética.
O que significa ver
Exploramos muito em nossos posts a cegueira: filosófica (na República de Platão o mito da caverna), lógica (Parmênides, Russell, Hilbert, etc.), religiosa (Feuerbach, Hegel, etc.) e literária (O ensaio da cegueira de Saramago e a Peste de Camus), só para citar alguns, além deles navegamos sobre a linguagem em Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Levinas, Ricoeur e outros.
Agora queremos navegar pelo mundo da visão, dizia Bachelard: “todos os seres são puros porque belos”, já o poeta Alberto Caeiro “o mundo não se fez para pensarmos nele, mas para olharmos e estarmos de acordo, também o filósofo e místico russo Nicolas Berdjaev (há muitos místicos russos) dizia que no Paraíso não há ética e só há estética, tudo isto para dizer que ver é ter olhos para o belo, por isso muita coisa hoje feia é autoproclamada bela, assim a inversão não é só ética.
O feio era para Platão do ponto de vista ontológico o quase-nada, sendo o mundo sensível o que é o aparentemente real, sendo mera sombras das ideias (o mito da caverna) e o ideal (eidos) o verdadeiramente real, assim o feio é o informe e não tem existência real e não é modelo universal.
Não é pouco natural que num mundo fragmentado, a beira da sua policrise o belo quase desapareça, e assim o homem não vê, o que vê são sombras, rascunhos de ideias difusas e confusas, o modelo universal desaparece e o discurso é meramente o discurso do conflito.
O belo desponta harmonia, sugere fusão onde há divisão, confunde o caótico dando-lhe forma e mesmo o mundo da pura forma não é mais geométrico é fractal, não fracionário, e sim um fracionário natural pertencente ao todo da parte menos significativa ao corpo todo (na foto o fractal de Lorentz e o efeito borboleta).
Gostamos do ponto, reta e plano, mas isto é Geometria de Euclides, o mundo não é reto e plano.
Do ponto de vista lógico é a aproximação da teoria do caos (há lógica caótica), do ponto de vista filosófico é a visão da complexidade (o simples é quase sempre simplista), do ponto de vista religioso pode-se dizer: “Deus criou tudo e viu que era bom” (e belo), do ponto de vista literário penso que a melhor expressão foi a Friedrich Schiller (1756-1805): “Como reconstruiremos a unidade da natureza humana, que parece completamente suprimida por esta oposição originaria e radical?”(pag.71), escreveu em sua obra “Educação Estética do Homem”, a respeito da divisão no interior do homem entre o impulso formal que o arrasta na dimensão do seu tempo.
Visto como poeta é uma obra maravilhosa, como filosofia fica sujeito a crítica pela distância histórica de seu tempo e os muros da ideologia alemã de seu tempo
SCHILLER, F. “Educação Estética do Homem numa série de cartas”, trad. Roberto Schwartz e Márcio Suzuki, São Paulo: Editora Iluminuras, 1989.
O pensamento do alto e a comunhão
Que tipo de saber é este que engloba um saber “do alto”, do além-do-humano, mas sem contradizê-lo, a resposta de Morin e de outros como Martin Buber, Emannuel Lévinas e Paul Ricoeur parecem conduzir a um mesmo ponto, ir em direção ao Outro sem reservas.
Duas falsificações místicas são possíveis nesta direção, uma que nega a consciência e o respeito ao Outro, aqueles que apelam para uma falsa religiosidade cristã, a Bíblia é clara: “Se alguém declarar: “Eu amo a Deus!”, porém odiar a seu irmão, é mentiroso” (1 João, 4:20-21), mas há os que clamam pelo extremo oposto da materialidade da fé, a estes a resposta bíblica também é clara: “Não só de pão o homem viverá” (Mateus 4,4), curiosamente se opõe e não dialogam.
Curioso porque a visão da ceia derradeira de Jesus com seus discípulos, o seu grande memorial e seu presença eternizada em sua materialidade (carne e sangue), é causa de muita controvérsia e divergência, tanto é verdade que ele fracionou o pão, como é verdade que declarou sua divindade.
Pensar as coisas do alto assim não pode deixar de ter sua concretude, sua materialidade, vejam que o pão não é o trigo, mas o trigo transformado por mãos humanas em pão, assim como o vinho.
Não deixa de ter o aspecto mais sagrado e divino ao pedir aos discípulos que façam isto em sua memória e em seu nome, assim ele é renovado e divinizado pelas mãos humanas que o repetem.
Como entender a comunhão sem a presença do Outro, sem a dialógica com o contrário, sem este paradoxo de entender que mesmo havendo oposição é possível novos horizontes como preconiza o círculo hermenêutico, que pede que antes sejam deixados “entre parêntesis” os pré-conceitos.
Temos uma visão de verdade, de lógica e de racionalidade, porém a verdadeira comunhão só é possível com um passo além, a crença que algo divino também pertence ao Outro, ao diferente e ao oposto a minha visão de mundo, não há comunhão sem isto, há apenas tolerância.
Sempre me perguntei porque guerras, fome, miséria, injustiças entre os homens, minha resposta hoje é que não há verdadeira comunhão entre homens, talvez alguma pequena tolerância, algum respeito que esconde verdadeiros interesses, talvez um respeito até humano porém não divino.
A policrise e pensar alto
Quando pensamos apenas nas coisas cotidianas, elas são importantes e até fundamentais, muitas vezes deixamos de perceber o que de mais profundo implicam nelas, o pensamento e a cultura que estamos imersos e que apontam aceleradamente para uma policrise.
A palavra cunhada por Morin foi retomada em uma entrevista ao Le Monde, onde ele enfatizou: “A crise da saúde desencadeou uma engrenagem de crises que se concatenaram. Essa policrise ou megacrise se estende do existencial ao político, passando pela economia, do individual ao planetário, passando pelas famílias, regiões, Estados. Em suma, um minúsculo vírus em um vilarejo ignorado na China desencadeou a perturbação de um mundo”(Le Monde, em 20 de abril de 2020).
Em seu livro VI do Método: a ética, ele explica: “Nossa civilização separa mais do que liga. Estamos em déficit de religação e esta se tornou uma necessidade vital”, assim não como não pensar em coisas do alto: a empatia, a civilidade, a cordialidade e outros valores que aos poucos foram se perdendo e nos embrutecendo como civilização.
Como pensador complexo o seu pensamento é antidisciplinar (no sentido de especialidades rígidas) e transdisciplinar (no sentido de recuperar o todo perdido em fronteiras rígidas do pensamento que definem apenas um aspecto da vida).
Os operadores do pensamento complexo (o livro Introdução à Complexidade é fundamental) é como diz a própria palavra intrincado e abrangente, porém destaco dois pontos essenciais ao seu método, o aspecto dialógico e hologramático.
O dialógico considera a união de termos opostos e contraditórios como complementares, por exemplo vida e morte, este paradoxo é vivido no sentido sagrado nesta semana de Páscoa, embora não se limite ao religioso, pode e deve ser pensado no existencial e político.
O hologramático destaca que o aparente paradoxo dos sistemas são partes componentes de um todo (na figura a formação do universo), assim como cada parte tem prefigurado um aspecto do todo, o exemplo mais comum é o do caleidoscópio, porém o do corpo humano também é interessante, cada parte é viva pelo funcionamento do todo e auxilia o todo a funcionar.
Nos comportamos como torcidas fanáticas e desinteressadas do todo por exercer de modo demasiado uma cultura material, puramente terrena e humana que torna o todo, o alto e o divino inconcebíveis no dia a dia.
Pertencimento, inclusão e inocência
A questão levantada por Michael Sandel transcendente os limites do direito, da vida e da própria ontologia, são estes os argumentos que justificam a morte de um inocente, a violência e por fim a guerra, enquanto o argumento de um simples espectador que lembra que alguém vai morrer e pode ser doador dos órgãos livremente e por uma morte natural.
O pertencimento também podem ser argumento tanto para a morte de um inocente, quanto a recusa dela, não são poucos os casos numa guerra em que por algum motivo alguém que poderia matar um “inimigo” em alguma situação inusitada se recusa a fazê-lo.
O aspecto do contrato social onde o estado tem o “monopólio” da violência, assim é justo matar para defesa da sociedade, é justo até mesmo usar de requintes de crueldade (como a tortura por exemplo) para obter informações e combater o “mal” do grupo oposto também é questionável.
O fato que não abandonamos tais métodos e princípios é o mais grave testemunho do pequeno avanço que socialmente ainda caminhamos no processo civilizatório, o fato que retornamos aos poucos aos graves períodos da guerra fria indica que estamos ainda em compasso de espera.
Quantos inocentes e civis que pouco ou nada tem de apoio a determinadas guerras, como a menina russa que fez um inocente desenho sobre a guerra, mostra que ao lado da perversidade de lutas imperiais e processos colonizadores estão longe de terem sido banidos da civilização.
Porém o que significa a morte de um inocente, qual o significado ontológico e teológico deste símbolo, o cordeiro que Abrão imolou no lugar do filho que seria imolado, lembremos que há três grandes religiões abramicas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, o que significa
Com certeza está longe da lógica do direito, longe da lógica racional, significa que só a inocência e o pacifismo podem contribuir num verdadeiro processo civilizatório que dignifique o homem, quantos inocentes ainda precisarão morrer?
A semana Pascal que se inicia no próximo domingo embora seja festa cristã pode e deve levar a humanidade a refletir sobre a verdadeira paixão civilizatória, que apesar de todo sofrimento humano causado por guerras e injustiças podem sonhar com uma nova civilização.
Contratualismo e inocência
A grande discussão dos contratualistas era sobre a não inocência da pessoa, todos eles são defensores dos poderes do estado e em última análise do in dubio pro societate (na dúvida, a favor da sociedade e não do réu), Hobbes via o homem como mau e o estado devia policia-lo, Locke via como limitava os poderes do estado e dava direito ao povo de rebelião e Rousseau via o homem como bom, a sociedade é que o corrompia.
Nenhum deles nega a necessidade e a prioridade dos poderes do estado, assim foram pilares de todas as modernas constituições dos países, e sua atualização está em John Rawls e seu sucessor Michael Sandel.
Ambos foram idealistas kantianos e utilitaristas, porém há uma pequena diferença que Sandel criticava o voluntarismo de Rawls, segundo o qual princípios políticos e morais se legitimam partir do exercício da vontade individual através da escolha ou do consentimento.
Reivindicava para isto o empirismo de Locke: “somos todos, por natureza, livres, iguais e independentes, ninguém pode ser excluído dessa situação e submetido ao poder político de outros sem que tenha dado seu consentimento” (1988, seção 95).
Para entender a posição de Sandel é necessário ler ao menos a obra que indicamos ou entender claramente seus exemplos, os quais procura tornar práticos e claros seus conceitos, em relação ao pertencimento de grupos, como garantia de interesses coletivos (ele rejeita o termo comunitarismo) cita dois casos: o de um piloto da resistência francesa que durante a Segunda Guerra Mundial se recusou a bombardear a sua cidade natal, mesmo sabendo que isso contribuiria para a libertação da França (2012, p. 279), o pertencimento a sua cidade natal.
O segundo exemplo é o de uma operação de resgate organizada pelo governo de Israel para salvar judeus etíopes de campos de refugiados no Sudão (2012, p. 280), o pertencimento ao povo judeu.
Porém em uma de suas famosas palestras na qual dá outros exemplos, e faz vários diálogos com a plateia, é pego em contradição ao dar o exemplo de 6 pacientes chegam a um pronto socorro e 1 está em estado grave enquanto os 5 pacientes que precisam de doação de diferentes órgãos para sobreviverem e o paciente em estado grave exige muito tempo de cuidados, faz a pergunta se o deixaria morrer para ajudar os outros.
A maioria das pessoas concordaram em deixá-lo morrer, mas um jovem (na foto) disse que tinha outra solução, dos 5 que estavam para morrer, o que morresse primeiro doaria os órgãos para os outros, o que deixou Sandel constrangido e chegou a admitir: “é uma boa ideia, exceto pelo fato que destruiu o ponto de vista filosófico” (vejam o vídeo abaixo).
Há relações interpessoais e ontológicas que ultrapassam a mera subjetividade é algo entre seres e não apenas dos seres e suas culturas ou pertencimentos, está numa espécie de alma coletiva, numa noosfera onde tudo é mais do que lógico, é onto-lógico.(155) Justiça com Michael Sandel O Lado Moral do Assassinato – YouTube
LOCKE, J. (1690). “Second Treatise of Governement”. In: Two Treatises of Government Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
SANDEL, M. “Justiça – o que é fazer a coisa certa”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.