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Arquivo para a ‘Linguagens’ Categoria

Os tempos de ira e as virtudes

19 ago

Tempos sombrios de política, de ameaças de guerra e de pandemia não ocultam totalmente as veredas da clareira, ainda que seu verdadeiro significado seja discutível, nem o renascimento e nem o iluminismo foram de fato “clareiras” e Sloterdijk tenha revisto a clareira de Heidegger, é possível em tempos de ira enxergar virtudes que levam a clareira.

Sloterdijk em seu livro/ensaio “Tempo e Ira”, aponta a exaustão dos modelos tradicionais dos processos políticos, argumento a partir de uma revisão histórica dos grandes impactos políticos mundiais, invertendo a biopolítica preconizada por Foucault para uma psico-política social.

Aponta afetos que chama de “timóticos”, em especial a ira, assim como seus derivados degenerados, o ressentimento e a vontade de vingança, por exemplo (mas podem haver outros como a incitação ao ódio), tornam-se a força motriz fundamental da história e da política, assim se trata de mobilizar estas forças, e os populistas o fazem bem, para mobilizar a população.

A virtude, as boas propostas e o apelo ao diálogo parecem perder força, entretanto, o próprio autor aponta que os ecossistemas psíquicos (entre eles o moral) podem produzir estes “afetos”.

Escrito em 2006, o autor já mostrava que a ira cujo capital é justamente a ira mundial dispersa e passível de mundialização, produz uma onipresença cultural que chama de “metafísicas da desforra”, mas não desenvolve que os tipos de “afetos” morais podem ser uma força oposta.

Não foi sem esta força que os gregos desenvolveram os conceitos de cidadão da pólis, não foi sem o encontro com o humano (excessivamente antropocêntrico é verdade) que o renascimento fez um reencontro com o humanismo, depois do seu desenvolvimento moderno, agora me cheque.

As virtudes parecem heroicas, impossíveis e quase desprezíveis, o roubo da coisa pública, o diálogo e o respeito de fato a democracia (a polarização favorece os ditadores), parecem não dar outra saída porem as virtudes existem e elas são passíveis de nossa humanidade (Na pintura de Giotto: A alegria das virtudes, 1303-5).

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Não se trata apenas da figura feminina, das forças raciais e dos inúmeros esquecidos da política, o importante é destacar que uma virada social, precisa ser composta de virtudes morais e sociais.

A figura da mãe, foi desenvolvida até pelo escritor Máximo Gorki em seu histórico livro “A mãe”, que não significa outra coisa senão a geração das boas virtudes, também daquelas que geram as justiças sociais e a paz entre os homens, a Maiêutica grega, Sloterdijk talvez faz alusão a “matris in grêmio” (no colo da mãe) em suas esferas.

Em termos bíblicos, a figura de Maria, esquecida por alguns e até desprezada por parte dos cristãos, não é outra coisa senão a lembrança que de seu “parto” vem uma redenção, uma salvação e não por acaso ela é vista como toda virtuosa.

O trecho bíblico em que Maria conta a prima Isabel que estava grávida de Jesus é claro na saudação da prima (Mt 1, 42-43): “Com um grande grito, exclamou: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar? , sendo ela humana (e divina por participação na parição) está ao nosso alcance.

SLOTERDIJK, P. O tempo e a ira. São Paulo: Estação Liberdade, 2006.

SLOTERDIJK, P. Esferas I: bolhas. São Paulo: Estação Liberdade, 2016

 

Mundos pequenos e círculos fechados

05 ago

Pequenos grupos podem potencializar seus efeitos sobre uma rede, não apenas pela capacidade de influencia ou de coesão, mas pelo grau de conectividade entre os nós, que na linguagem técnica é chamada de clusterização, não tem nada a ver com círculos fechados, mas as poucas conexões são chamadas de Mundos Pequenos (Small Worlds).

Este modelo de Redes Sociais (vista como um modelo matemático de grafos e não apenas como mídias) observa um fenômeno curioso chamado Mundos Pequenos que foi proposto pela primeira vez por Duncan J. Watts e Steven Strogatz em artigo publicado na revista Nature de 1998, o modelo estabelece que numa rede há um grau de separação entre os pontos (nós da rede) chamado de seis graus de separação.

O livro de Albert L. Barabasi “A nova ciência dos networks”, que expandiu e corrigiu este modelo para escalas maiores chamado por isso de scale-free, está assim descrito na pg. 47 do livro:

““A surpreendente descoberta de Watts e Strogatz é que poucos links extras já são suficientes para reduzir drasticamente a separação média entre os nós … graças a extensas pontes … conectam nós no lado oposto do círculo …”.(Barabasi, 2009).

Assim isto não é o mesmo que círculos fechados, já que apesar de poucas ligações, é preciso que hajam pontes com nós no lado oposto ao do círculos, portanto é necessário esta “abertura”, conforme está citado para nós no lado oposto do círculo.

Isto explica como muitas culturas e informações se expandem ou se fecham de acordo com os tipos de conectividade que tem (a questão da clusterização, no gráfico p=0 até p=1) e devido a possibilidade mais ampla de informações hoje devido a tecnologia, os fatores se tornam mais psicopolíticos que geopolíticos.

Mas também é possível explicar as expansões de períodos anteriores que dependiam da mobilidade e da “abertura” dos círculos a outras culturas diferentes, o cristianismo por exemplo, o livro do Barabasi cita, dependeu da estratégia de Paulo de Tarso que foi falar aos “gentios” e aos povos que não tinham a cultura judaica, e de lá se expandiu em rede.

Mas eram um pequeno grupo (12 apóstolos e depois 72) porém que viajaram pelo mundo ocidental da época, também esta ideia de pequenos mundos continua presente no cristianismo até hoje, embora numerosos, os preceitos de Amor e Solidariedade nem sempre são observados, e isto o reduz a círculos fechados.  

Sobre o futuro também está assim expresso na cultura cristã (Lc 12,31): “Não tenhais medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o Reino”, logo em seguida é contada a parábola do administrador que os empregados não sabem a hora que vai chegar e devem agir sempre esperando o senhor chegar e os encontrar atentos, neste caso refere-se a tesouros verdadeiros que já tratamos em postagens anteriores.

 

Vaidade e verdadeiros tesouros

29 jul

Para muitos o mundo, a história e até mesmo a felicidade pessoal se desenvolve em torno de riqueza, falsos tesouros e algum reconhecimento público, na verdade, tudo é vaidade e nela se consomem grande parte das energias humanas, sem encontrarem verdadeira alegria, não aquela da euforia, do frenesi ou da catarse, mas aquela do gáudio e da paz interior.
Socialmente significa colaborar para que todo o bem a nossa volta se propague e todos possam estar felicidades não com grandes empreendimentos, festas vultuosas ou mesmo outroas alegrias passageiras, tudo isto é juntar tesouros falsos.
Há uma alegria nas verdadeiras perenes, aquela conforme diz um versículo bíblico “onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam” (Mt 6,19), mas aquelas que existem nos laços entre pessoas boas, como definia Aristóteles para o tipo de amizade verdadeira.
Acumular valores verdadeiros, amizades verdadeiras e bens verdadeiros que não são aqueles que só a riqueza material confere, significa mais que ter uma vida virtuosa, é uma estrada que leva a paz interior e a uma felicidade equilibrada que está além daquilo que passa e por isto tem gosto de eternidade.
Em tempos de guerras, ódios e falsas polarizações (não se tratam de polos entre aquilo que é verdadeiro e falso eternamente, mas sim rivalidades temporais), experimentam apenas o gosto de uma felicidade passageira, narcótica e se uma embriguez passageira e curta.
É melhor cultivar valores e sentimentos que tenham durabilidade, e eles precisam de amor e dedicação com asceses espirituais, do que apegar-se ao passageiro que depois exigirá um tipo de renúncia mais difícil e sofrida justamente porque não tem sabor de eterno.
Homens sábios, santos e grandes filósofos buscaram este tipo de gaudio (uma felicidade mais equilibrada e duradoura) porém é impossível consegui-la com apegos temporais: vaidades, ganâncias, opressões e sentimentos de baixa moralidade porque não podem ter durabilidade justamente pelo que representam: sua limitação em um lapso temporal.
Numa sociedade da performance, do ativismo e da baixa ou pouca capacidade de perceber, viver e contemplar o que realmente é belo e eterno, só os que vão além da vaidade e do prazer temporal, podem alcançar este tipo de gáudio, as jóias preciosas da vida eterna.

 

A amizade e a espiritualidade

22 jul

A filosofia idealista coloca amgio e amizade em uma relaçãofilosófica ideal, Aristoteles no entanto adverte: “o amigo se faz rapidamente, já a amizade [e um fruto que amadurece lentamente”, o mesmo pode-se dizer da espiritualidade, reconhcer que temos uma parte espiritual e que ela é em parte humana, exige um exercício de espiritualidade.
Foi Sloterdijk, um dos grandes pensadores da Alemanha atual, que alertou que vivemos numa “sociedade de exercícios”, porém alerta que ela é desespiritualizada.
A alta espiritualidade antes de atingir o divino, deve passar por etapas anteriores na relação com o Outro, aquele que não é espelho, que não tem os mesmos valores que nós e esta relação pode evoluir ou obstruir, sendo mais difícil quando há uma obstrução manter uma relação de respeito e de cordialidade, pois a amizade e o amor ficam mais distantes.
É possível amar quem a tudo obstrui, sim é possível primeiro manter o respeito, depois separar aquilo que são valores e exercícios reais de espiritualidade e o que é só interesse.
Neste ponto a amizade tem uma relação muito próxima ao espiritual, pode-se dizer que há além da amizade, a reciprocidade, um fluxo contínuo de relação entre pessoas boas, aquilo que Aristóteles definiu como amizade verdadeira, ela só existe entre homens bons (e justos).

Somente com homens bons a sociedade se salva, diz uma curiosa passagem bíblica sobre Sodoma (Gn 18,20-32) na qual Abraão pergunta a Deus se com um número pequeno de homens justos a sociedade se salvaria, e vai reduzindo o número porque sabe que alí há poucos.
Não há sociedade justa sem homens justos, não há amigos sem exercícios de amizade, e só a partir de uma verdadeira reciprocidade uma amizade pode chegar ao nível do espiritual.
Para quem crè diz o versículo bíblico, explica o mestre diante desta questão (Lc 1,5-8): “Se um de vós tiver um amigo e for procurá-lo à meia-noite e lhe disser: ‘Amigo, empresta-me três pães, 6porque um amigo meu chegou de viagem e nada tenho para lhe oferecer’, e se o outro responder lá de dentro: ‘Não me incomodes! Já tranquei a porta, e meus filhos e eu já estamos deitados; não me posso levantar para te dar os pães’; 8eu vos declaro: mesmo que o outro não se levante para dá-los porque é seu amigo, vai levantar-se ao menos por causa da impertinência dele e lhe dará quanto for necessário”.
Se alguém quer atingir a reciprocidade deve dar passos em respeito e amizade primeiro e o nível mais alto de espiritualidade é respeitar e amar os inimigos. 

 

Os conceitos idealistas da amizade

21 jul

Postamos que se trata de um exercício de retórica, porém como qualquer filosofia há uma origem seminal de determinado pensamento, Nietzsche parte da metafísica platônica afirmando que o jogo entre amigos da filosofia possuia um vício de concepção que seria a vontade da verdade, ora foi justamente ela que há uma crítica aos sofistas a relativizam.
Partindo deste princípio Nietzsche vai afirmar que o filósofo deve praticar certa “arte da desconfiança”, sendo o seu principal instrumento o martelo (Niettzsche em “Alem do bem e do mal”).
Deleuze afirma que Foucault teria declarado que “Heidegger sempre o fascinou, mas que somente podia compreendê-lo por meio de Nietzsche, com Nietzsche (e não o inverso)” (Deleuze, 1986, p. 120-121) e ainda que “seguramente, ao lado de Heidegger, mas de uma maneira totalmente diversa, aquele que mais profundamente renovou a imagem do pensamento” (Deleuze, 1990, p. 130-131).
Voltando a questão inicial que é a amizade verdadeira, afinal se é ela e não outra coisa que permite fazer uma ampla relação entre os diversos conceitos de amigos na filosofia, sendo ela própria por definição (filo-amigo) sofia (sabedoria).
É assim que Deleuze e Guattari desenvolvem a questão da amizade, considerando os diversos pensadores, o amigo é para ele sendo mais textuais é um “traço de personagem conceitual” que tem a ver com “personagens psicossociais” (Deleuze, Guattari, 1991, p.68)
Conforme dissemos é um esvaziamento do conceito de amigo, transformado em um objeto de reflexão subjetiva, por isto dizemos que são conceitos idealistas, mesmo abordando autores claramente não idealistas como Heidegger e Nietzsche.
Voltamos ao conceito aristotélico que diferencia a amizade por prazer ou por utilidade, da amizade verdadeira e portanto a questão da verdade é essencial, e mesmo Platão a considerou, embora divida o mundo das ideias (eidos para os gregos) e mundo sensível.
Também o conceito de próximo (aquele que está dentro de um afeto amplo de amizade) e o sócio (aquele ao qual nos associamos por determinada felicidade), conceitos de Paul Ricoeur são pontos a nosso ver essenciais para a reflexão sobre amizade.
DELEUZE, Gilles. Pourparlers Paris: Minuit, 1990.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Minuit, 1991.

 

A amizade e conceitos

20 jul

Já postamos e exploramos os conceitos de amizade em Aristóteles por prazer, por interesse e as amizades verdadeiras, também destacamos a diferença entre o sócio e o próximo (o texto de Paul Ricoeur) onde no primeiro caso há apenas interesse e uma vez terminado a amizade se encerra ou diminue.
O que queremos explorar um pouco agora é o que significa num mundo individualista onde o interesse impera qual é o conceito de migo e da amizade.
Numa outra perspectiva, na qual Deleuze e Guattari chegam a dizer que o amigo e a amizade são preocupações “ausentes” no pensamento filosófico, e fala como uma rara exceção o livro “A amizade de Maurice Blachot”, porém já há na base deste discurso uma clara distinção entre amigo e amizade.
Assim o filósfo é “amigo” da sabedoria (philos- amigo e sophia- sabedoria), porém há uma obrigação compulsória devido a “amizade” ser objeto desta relação, e assim só estes amigos poderiam participar da amizade, ou seja, há uma exigência de sabedoria.
A base deste conceito está no “olhar” de uma pretenso “sábio”, assim são conceitos dentro de cada um, são os olhos ou olhar de cada um sobre outra pessoa, mas este olhar é uma sensação que não vem dos olhos dos sentidos ou dos sentimentos pessoais, assim são um olhar de ninguém, uma exigência de observação, um selfie que deve ser visto por outro.
Mas como se pode ser amigo não sendo ninguém? Esta indagação faz mais sentido quando se trata de uma dimensão num plano altamente diferenciável, e assim pode ser vista em determinados contextos históricos, políticos e até religiosos, onde cada pensador é tomado individualmente como sendo portador de um “olhar” de sábio, ou de pretensa sabedoria.
Pode-se ilustar com o próprio Guattari e Deleuze, e assim podemos dividir a amizade em conceitos de contextos diferentes: a grega, a nietzscheana, a heideggeriana e a foucaultiana.
Tal indagação visa a explorar o território da amizade como conceito, pois se, como afirmávamos, trata-se de uma dimensão ou plano altamente diferenciável, então, pode-se detectá-la em certos períodos históricos ou mesmo em cada pensador tomado individualmente. Procuraremos, em seguida, definir e ilustrar, a partir dos elementos que acabamos de emprestar a Deleuze e Guattari, de modo apropriado à extensão do presente artigo, quatro tipos de amizade do conceito, a grega, a nietzscheana, a heideggeriana e a foucaultiana, mas é só um exercício retórico.
Pode valer a pena como exercício de pensamento, a amizade é simples e pode haver e há, entre pessoas simples e de pouca cultura livresca, e pode não haver entre “cultos”.
Arrisco dizer que há mais amizade verdadeira entre pessoas simples, que o diga Heidegger em seu Caminho da Floresta no qual convive com pessoas muito simples.

 

O ser, a clareira e o necessário

15 jul

Somente através da linguagem possuimos uma habitação do ser, estando nela podemos ter acesso a clareira, e desdobrando-se neste ser-aí tomamos conta de nossas ex-sistência, e assim a clareira é o mundo e está no mundo, nesta verdade acreditou Heidegger e foi atrav+es dela que escreveu Cartas para o Humanismo, que recebeu a resposta de Sloterdijk que afirma que a clareira não seria o habitat e muito menos o que hoje chamamos de ambiente ou de “casa”, porque estamos em ruptura com a natureza, enquanto Heidegger considera o Ser humano pastor do ser, Sloterdijk afirma que sua tarefa +e saber guardar o Ser, ambos não eram religiosos, Heidegger o foi por um período, mas abandonou.
Muito antes da pandemia, Sloterdijk cria o termo co-imunidade, em alusão a tarefa de cuidar do ser “enfermo” aqui num sentido amplo que inclui o social, e tal tarefa emprega- se no ser, escolhendo-a livremente e impregnaodo-se dela ou não, assim independe da linguagem a qual é meio, enquanto o homem vive uma vida de exercícios, quase sempre vazios, ou com o termo que usava fazendo uma ascese (ascensão pelos exercícios) desespiritualizada, ou seja, sem cuidar-se como enfermo, mas aderindo a enfermidade.
Assim vivemos uma vida voltada a ação, à performance, a um conjunto de exercícios para auto-explorar-se, pena que Byung Chul Han foca excessivamente nas mídias sociais, elas também são meios enquanto linguagens, porém o consumismo, o ativismo e a busca de um ser ativo encontra apenas uma falsa ascese, mesmo que religiosa, pouco profunda porque não cuida do enfermo.
Para ambos, Heidegger e Sloterdijk, não se trata da alma, nem da elevação divina do homem, vê-se apenas o processo civilizatório, porém para os cristãos que entendem o quão profundo e importante é uma verdadeira ascese pessoal, trata-se da alma e da vida eterna.
A passagem bíblica que mais reflete isto, é aquela que nos recorda o que é essencial, diria até que só uma coisa é necessária, ouvir a voz do alto, da plena vida e da verdadeira luz da clareira, Lucas 10, 38-42, na qual Jesus visita a casa de Marta, “certa mulher” e Maria sua irmã, diz a leitura portanto não se tratam das mulheres conhecidas, como dizem alguns exegetas.
Marta está ocupada com os afazeres, certamente prepara algo para o mestre, e Marta se senta aos seus pés para ouvir o senhor, e Marta fica brava com a irmã que não a ajuda.
Mas o mestre a repreende e diz (Lc 10,41-42): “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas. Porém, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada”.
Só uma coisa é necessária, não se trata de alienação e sim da clareira da qual afastamo-nos.

 

Consciência, verdade e clareira

08 jul

Pode-se classificar consciência de diversas maneiras, porém ela distante do todo ao qual pertence o ente (identificado como realidade material na modernidade) ela esquece o ser, assim permanece oculto o que de fato é consciência e fica mais próxima da senticiência a qual se referem as a inteligência artificial e que poderia ser chamada de consciência maquínica.

A clareira que emerge do ser, já foi postado neste blog aqui, é aquela que está contida no contexto de um todo, e dela emerge o ser, e esta crítica pode ser estendida a toda modernidade, onde há uma fragmentação e tudo se refere a parte, muitas vezes até oposta ao todo ao qual pertence o ente, e dele emerge a questão do ser, conforme pretendia Heidegger.

Este todo é também reivindicado por Edgar Morin, que completa no dia de hoje 101 anos, e junto do Lima de Freitas e Barsarab Nicolescu escreverem na “Carta da Transdisciplinaridade” de Arrábida (1994) como “a ruptura contemporânea entre um saber cada vez mais acumulativo e um ser interior cada vez mais empobrecido leva a ascensão de um novo obscurantismo, cujas consequências sobre o plano individual e social são incalculáveis” (Arrábida, 1994).

Este tipo de consciência formal leva também uma noção não só de saber, mas também de cultura e até de religião a um desvio longe da clareira do Ser e sujeito a regras e preceitos formais, de Lei e saber em uma lógica aparentemente rigorosa, mas desumana e que oculta o Ser.

Na cultura significa limitar a concepção a um tipo particular de cultura, de uma única cosmovisão, que é válida, mas que não pode ser imposta a outras visões de mundo em especial, às originárias.

Aos cristãos a passagem bíblica que esclarece esta falsa consciência é a que Jesus é questionado por um mestre da Lei, especialistas em consciência formal, pergunta ao mestre o que precisa fazer para conquistar o reino divino, e Jesus diz numa linguagem moderna respeita o Outro e admite o Ser Divino por excelência, aquele que está é o Todo em uma cosmovisão monoteísta (Deus).

Porém a parábola do Bom Samaritano é dita logo em seguida e torna clara a consciência formal, diz a parábola que um homem foi assaltado e maltratado por assaltando e ficou a beira do caminho, passou um sacerdote e um levita (tribo de onde saiam religiosos daquele tempo) e se desviaram do problema, passou um samaritano (que era um povo sem religião e que não gostava dos judeus) e ofereceu ajuda, colocou óleo e vinho nas feridas, colocou em seu animal e levou-o a uma pensão pagando sua estadia e caso se prolongasse pagaria na volta.

Somente o samaritano teve uma atitude de consciência verdadeira com o homem, então Jesus disse aos que perguntavam como conquistar o reino divino “Vai e faze a mesma coisa” (Mt 10,37).

 

Polêmica da máquina consciente e algumas devaneios

06 jul

Antes de qualquer polêmica é importante entender que a questão da ética está presente em todas equipes sérias de AI (Artificial Intelligence) e desde a conferência de   na Suécia, diversas empresas e centros de pesquisa assinaram um acordo de não desenvolver máquinas letais em AI.

Jean-Gabriel Ganascia escreveu um importante livro sobre o Mito da Singularidade, o ponto em que a máquina ultrapassaria a inteligência humana e ele próprio tem um setor de ética em seu laboratório, como muitas equipes tem inclusive a Google.

Uma polêmica recente surgiu a partir de uma entrevista do engenheiro da Google Blake Lemoine ao Washington Post e ter definido a máquina de AI LaMDA (Language Model for Dialogue Applications) da gigante de buscas como tendo senciência, imediatamente a Google o afastou e através de seu porta-voz Brian Gabriel informou que as preocupações de Blake não estavam “de acordo com nossos princípios de IA e o Informou de que as evidências não respaldam suas alegações”, mas a polêmica continuou.

A primeira coisa a esclarecer é que senciência tem uma grande diferença de consciência, que significa que “perceber pelos sentidos [no caso das máquinas sensores [ou que ter impressões, enquanto consciência existem diversas definições, porém ficamos com a da fenomenologia que afirma que só se pode falar de consciência de algo, assim depende do fenômeno e da intenção.

Também para a fenomenologia, em especial para a ontologia de Heidegger sua descendente direta (Heidegger foi aluno de Husserl) o Ser é descrito como morada da linguagem, mas não se pode esquecer que linguagem para Heidegger tem uma função poética, ou seja, em um sentido mais amplo que o cotidiano.

Voltando ao sentido dos sensores, agora temos uma evolução da IoT (Internet of Things), pode-se pensar em expressões faciais, gestos e atitudes que possam identificar a senciência de uma máquina, porém a consciência de algo significa também para Heidegger, desvelar o oculto, aquilo que nos leva a uma clareira do objeto ou do fenômeno, a constatação de sua ex-sistência, seu Ser.

Sem apelo a filosofia, voltando ao cotidiano, é possível um comportamento humano que emite e que se desenvolva como máquina, uma robotização de nossas ações, o que inclusive é muito comum na modernidade, uma “mesmice”, a linguagem poética, a arte e a cultura vem em socorro.

Quanto ao aspecto técnico, é desejável que se conheça mais a fundo, enquanto o aspecto social não pode deixar de observar aspectos técnicos importantes e seus limites, claro, inclusive ético.

Aos que querem detalhes técnicos recomendo a entrevista que Melanie Mitchel  concedeu a Zeeshan Aleem: Did a Google create a sentient program ?, há muita fantasia e ficção por ai.

 

A antropotécnica: duas formas de dominação

30 jun

Se há uma relação estreita do pensamento de Sloterdijk com Heidegger e algum paralelo com o pensamento de Hans Georg Gadamer, a ligação do pensamento alemão com nomes como Ernst Cassieer, Max Scheler, Arnold Gehler e Hellmuth Plessner nos leva tanto a uma antropologia filosófica como nos devolve a uma perspectiva quase esquecida das “ciências do espírito”.

Destes autores, alguns muito próximos dos projetos nazi, ele aproveita a ideia do homem como um ser deficitário, que não dispõe de meios naturais (garras, dentes ou chifres, por ex.) para defender-se e deve buscar em meios artificiais, mas não os diferencia dos meios “espirituais”

Não por acaso sua obra traça paralelos com Nietzsche do “Deus Morto”, a crítica ao humanismo de Heidegger, porém sua obra busca uma antropogênese original, e nela se insere a sua antropotécnica, especialmente o que está escrito em “Tens que mudar sua vida” onde diferencia duas formas de produção artificial do comportamento humano que floresceram desde a antiguidade nas chamadas “altas culturas”, sofrendo uma profunda transformação na modernidade, a primeira é a produção de alguns homens por outros homens, que ele chama de técnicas de “deixar-se operar”, enquanto a segunda é a produção dos homens a partir de si mesmo, que seriam então os “autos” – as técnicas de Operação” (Sloterdijk, 2009).

Sobre estes dois tipos de antropotécnicas ele se propõe a repensar, n uma base da antropologia filosófica, os conceitos foucaultianos de “biopolítica” e “estética da existência”, com ideias parecidas nestes dois polos, a domesticação do outro, por isto sua ideia do parque humano, e a autocolonização, que seu discípulo Byung-Chul Han chamará de autoexploração.

A diferença básica de Sloterdijk é a ideia de “Aperfeiçoamento do mundo” (Weltverbesserung) com base no aperfeiçoamento das populações que domina a teoria ocidental vindo desde de Platão é trocada por um “aperfeiçoamento de si mesmo” (Selbsverbesserung) e o faz com as “tecnologias do eu”, e para isto os homens o fazem como uma “sociedade de exercícios”.

Para Byung-Chul Han, estes exercícios são controlados por tecnologias do “self” que cada vez remetem a exercícios psicológicos, e assim chama-a de “psicopolítica” (Sloterdijk fez um ensaio em 2020), uma vez que acreditam que é a autorrealização que transforma sua vida, embora pratiquem uma “autoexploração”.

Tanto Foucault, como Sloterdijk e Byung Chul Han, e isto está na origem no pensamento de Nietzsche, que o surgimento de práticas ascéticas provocou uma antropogenese que dividiu os humanos em duas categorias: os virtuosos e os não virtuosos, enquanto na sociedade de exercícios, há uma asceses desesperitualizada.

É Chul Han chama a atenção para as categorias da vida ativa e a vida Contemplativa, a partir dos pensamento de Hannah Arendt e São Gregório de Nazianzo  (ou nazianzeno), Sloterdijk fica preso a sua crítica a Scheler, que vê apenas a pessoa como “algo” além de seus atos, e nisto vê um “espirito”.

SLOTERDIJK, P. Tens de mudar sua vida. Lisboa: Relógio d´Água, 2018.