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Verdade, linguagem e método
A compreensão de qualquer fenômeno passa necessariamente por uma linguagem e um método, a linguagem como meio de comunicação do fenômeno e o método como um caminho estratégico que a verdade pode ser alcançada sobre alguma questão.
Verdade dogmáticas e ideológicas conduziram a narrativas e distorções da realidade, mesmo aquelas que passam pelo imaginário, que não é necessariamente uma inverdade, mas muitas vezes uma analógica ou metáfora para dizer a verdade.
A linguagem como “morada do ser” é para a interpretação fenomenológica e ontológica da verdade, isto é, aquela que passa pela questão do “ser” do “ente” é a base para comunicar a verdade entre fonte e destino, porém não se pode confundi-la com emissor e receptor.
Quando temos um “ente” como meio de comunicação, seja ele analógico ou digital (outra confusão é dar categoria ontológica ao analógico) significa que ele está restrito a ser apenas “um meio” de comunicação, assim ele torna a mensagem codificada em um sinal, por exemplo uma onda acústica analógica (radio fm por exemplo) ou um sinal codificado em zeros e uns, neste caso digital, ambos não podem ser interpretados como “morada do ser”, mas apenas código, isto é, algo mais propício ao ente do que ao ser.
O sinal com vista a diminuição do ruído e autenticidade da mensagem que foi codificada não deve ser confundido com a própria mensagem já que ela provém do Ser e carrega em si não uma lógica, mas uma onto-lógica, ou seja, algo originariamente do Ser.
É nesta ontologia que podemos entender o significado de diálogo, mesmo entre mensagens opostas logicamente, já que ontologicamente elas podem compartilhar uma fusão de horizontes e podem a partir daí criar um método, desenvolvido por Heidegger e formalizado por Hans-Georg Gadamer.
A explicação do círculo hermenêutico em Gadamer é expressa como:
“O círculo não deve ser degradado a círculo vicioso, mesmo que este seja tolerado. Nele vela uma possibilidade positiva do conhecimento mais originário, que, evidentemente, só será compreendido de modo adequado quando a interpretação compreender que sua tarefa primeira, constante e última permanece sendo a de não receber de antemão, por meio de uma ‘feliz ideia’ ou por meio de conceitos populares, nem a posição prévia, nem a visão prévia, mas em assegurar o tema científico na elaboração desses conceitos a partir da coisa mesma”. (GADAMER, 1998, p. 401).
Por isto os estudos de Gadamer, intitulado de Hermenêutica Filosófica, perpassam muitos aspectos peculiares de estudos e escritos, com uma contribuição além da própria Filosofia, da Linguística e, de certo modo, da hermenêutica teológica, de onde partiu os trabalhos e estudos de Schleiermacher que falava de “esferas” e “círculos” em seus estudos sobre hermenêutica.
Somente nesta ideia da fusão de horizontes, de ir além do círculo vicioso é que podemos entender um raciocínio inverso ao de um contra todos, e entender a dialogia entre opostos, “quem não está contra nós, é a nosso favor” (Mc 9,40), diz o evangelista ao explicar o mal menor, é melhor cortar a mão ou o pé que o leva a pecar, do que ser condenado com ele.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
A narrativa e a verdade
Não são apenas alguns pensadores como Edgar Morin, Peter Sloterdijk e Mario Bunge que reclamam da dificuldade de elaborar o pensamento de modo verdadeiro, os fundamentos se perderam e as narrativas dominam até mesmo áreas como a ciência e a religião, sem falar da política que é o reino das narrativas, a paz, o clima e a seguridade social são parte da retórica.
No livro de Byung-Chul Han “A crise da narração” ele recupera um ensaio do escritor húngaro Peter Nadás “Betsutsame Ortsbestimmung” (penso que não há tradução para o português, mas Han traduziu o título como Localização pendente), narra a história de uma aldeia onde ao centro se encontra uma enorme pereira selvagem.
Nadás descreve esta aldeia como uma comunidade narrativa que se reúne ao redor da pereira “nas noites quentes de verão” para uma “contemplação ritual” e ratifica o “conteúdo coletivo da consciência” (Han, 2023, p. 121), nela não há “opinião sobre isso ou aquilo, mas narram ininterruptamente uma única grande história” (Há, p. 122) e onde se costumava “cantar baixinho … Hoje já não há mais dessas árvores e o canto da aldeia emudeceu” (Nadás, apud Han, 2023, p. 122).
Acrescenta o filósofo coreano: “Aquela ´contemplação ritual´ que ratifica o conteúdo coletivo da consciência dá lugar ao barulho da comunicação e da informação” (Han, p. 122), “aquele “canto” que sintoniza os moradores da aldeia em uma história, e assim, os une” (Idem).
Aquilo que vivem da comunicação “barulhenta” “não cria nenhuma coesão social, não cria um Nós. Pelo contrário, ela desmantela tanto a solidariedade quanto a empatia” (Han, 2023, p. 123).
A crítica filosófica de Han é clara: “Mas nem todas as narrativas constitutivas de uma comunidade se baseiam na exclusão do Outro, na medida em que existe também uma narrativa inclusiva que não se apega a uma identidade” (Han, 2023, p. 124) e cita até mesmo A paz perpétua de Kant, em que pese todo seu idealismo conservador.
Seu universalismo é claro: “todo ser humano usufrui de hospitalidade irrestrita. Todo ser humano é um cidadão do mundo … Ele [Novalis] imagina uma ´família mundial´ para além da nação e da identidade. Ele eleva a poesia como uma forma de reconciliação e amor” (p. 125).
O autor, apoiado em Novalis, refere-se também a questão da complexidade que contempla o todo: “O indivíduo vive no todo e o todo no indivíduo. É por meio da poesia que se origina a mais alta simpatia e coatividade, a comunicação mais íntima” (Han, 2023, p. 125).
HAN, B.-C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
Sofistas e o relativismo
A questão política e a polarização atual envolvem um problema milenar: o sofisma, sua origem na Grécia antiga é o que Platão iniciar uma escola de formação de filósofos para criar homens da “polis” que servissem não apenas a governo autoritários, mas as cidades-estados Gregas.
O discurso feito em Teeteto sobre a natureza do conhecimento, escrito em 369 a.C., é onde aparece, ao menos claramente pela primeira vez, explicitamente na Filosofia, o confronto entre verdade e relativismo.
Nele um personagem chamado de “o Estrangeiro de Eléa”, que seria tanto um companheiro de Parmênides quanto de Zenão”, elabora um tema acerca de três figuras importantes na escola platônica: o sofista, o político e o filósofo, porém nele somente não escreveu acerca da definição do filósofo que seria investigada em outros textos, porém o político para ele, por excelência, seria o filósofo, que entre outras coisas deveria ter “Aretê”, ou seja, virtudes.
A razão que há coincidência com o discurso político atual, e esta origem do relativismo, pode ser vista na explicação que ele dá sobre a realidade e a imagem que procuram representar, ambas não são aquilo que representam, no então, claramente, são alguma coisa, por exemplo a imagem de uma casa pode parecer e mostrar muito bem o que é uma casa, sem sê-la.
Assim como as imagens de um cão, se caracteriza por não ser realmente um cão, o conteúdo de um discurso falso caracteriza-se por não ser o que realmente de fato é, ambos dizem algo sobre a verdade, mas são em essência coisas diferentes.
Apesar disto no discurso permanece uma contradição ontológica, como anuncia emblematicamente o Estrangeiro: “tal afirmação supõe ser e não ser”, tese clássica de Parmênides, embora a raiz de seu pensamento seja lógica e não ontológica.
Assim a aparência e a imagem não coincidem com a verdade real, embora possa confundir um espectador pouco atento elas não são a mesma coisa, discerni-las é condição essencial para exercer a verdade, assim podemos não permanecer na verdade ao embarcar em “imagens”.
Há um dito popular, não se sabe quem falou isto pela primeira vez, mas na guerra a primeira coisa que morre é a verdade, e suas consequências mais que trágicas, levam a uma crise do que realmente somos como humanidade e com nossos direitos inalienáveis que são roubados.
Por uma ontologia política
Diversos autores falam do que é poder, desde os clássicos contratualistas (Hobbes, Locke e Rousseau), passando pelas leituras modernas de Marx, Weber, Tocqueville, Bobbio e Norbert Elias, até Byung-Chul Han (psicopolítica) e Foucault (biopolítica), mas Hannah Arendt foi além ao vislumbrar uma ontologia política e escapa completamente do pensamento hegeliano.
Em seu livro do final dos anos 1960 (e portanto, a maturidade de Arendt), ela critica a “nova esquerda” que pensava em lutar contra um mundo ameaçado pela destruição nuclear e dominado pelas grandes administrações estatais e elas seriam responsáveis pela violência e em última análise a essência de todo poder, escreve sobre as origens deste equívoco:
“Se nos voltarmos para as discussões do fenômeno do poder, rapidamente percebemos existir um consenso entre os teóricos da política, da esquerda à direita, no sentido de que a violência é tão-somente a mais flagrante manifestação do poder. ‘Toda política é uma luta pelo poder; a forma básica do poder é a violência’, disse C. Wright Mills, fazendo eco, por assim dizer, à definição de Max Weber, do Estado como o ‘domínio do homem pelo homem baseado nos meios da violência legítima, quer dizer, supostamente legítima’ “. (Arendt, 2001, p. 31)
Para a autora, seguindo a tradição greco-romana, este conceito fundamenta o poder no consentimento e não na violência, assim numa relação de mando e obediência.
A autora constata que este conceito é “um triste reflexo do atual estado da ciência política” (p. 36) e uma identificação natural da tradicional entre visão de poder e violência, já que “poder, vigor, força, autoridade e violência seriam simples palavras para indicar os meios em função dos quais o homem domina o homem; são tomados por sinônimo porque têm a mesma função” (idem) e não raro se observa esta “virilidade” desde a Grécia até hoje.
Para a autora “o poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. Quando dizemos que alguém está ‘no poder’, na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo número de pessoas para agir em seu nome” (p.36).
Para a autora é preciso rever estes conceitos: poder, vigor, força, autoridade e violência, uma vez que “violência não identificaria qualquer ato coativo, mas apenas aquele que opera, no caso das relações sociais, sobre o corpo físico do oponente, matando-o, violando-o, enfim, parece descrever apenas o uso efetivo dos implementos” (pg. 37) e assim a guerra.
Arendt fala de “isonomia” onde Chul Han fala de “simetria”, conceitos parecidos, e assim o poder é de fato aquele que “emerge onde quer que as pessoas se unam e ajam em concerto, mas sua legitimidade deriva mais do estar junto inicial do que de qualquer ação que então possa seguir-se” (p. 41, com destaque feito no meu texto).
Assim é preciso uma ação de “unidade”, de “serviço” e na melhor das hipóteses como aquele que serve à comunidade e não o que e serve dela, e para isto precisará sempre da violência.
ARENDT, H. Poder e violência Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001.
A diferença do Amor divino
É como no dia-a-dia pela secularização ou por descrença colocar o Amor em um patamar meramente humano, a leitura que Hannah Arendt faz de Santo Agostinho em sua tese de doutorado, permanece entre estas duas interpretações o Amor humano e o Divino.
Para analisar isto, Arendt qualquer interpreta a obra de Agostinho governada por três princípios que aparecem sem aparente contradição, ele aumentou sua rigidez dogmática de Agostinho na medida em que o cristianismo se insere em seu pensamento, esta consiste de sua da passagem do pensamento pré-teológico, filosófico, para o pensamento teológico, conforme a autora.
Assim a primeira parte da tese da autora, intitulada o “Amor como desejo: o futuro antecipado”, ela aborda o amor dentro de uma perspectiva filosófica de continuidade do pensamento helênico, em que o amor é visto como uma disposição sempre movida pela falta, por algo que não se possui, mas que se espera ter, como meio de alcançar a felicidade, assim o desejo é algo ainda não alcançado enquanto o Amor é o desejo obtido, e isto é filosófico.
Estes dois tipos de Amor recebem em Agostinho dois nomes: a caritas e a cupiditas, diferem no amor pelo objeto que amam, “porém, tanto o amor certo quanto o errado (caritas e cupiditas) possuem isto em comum – ânsia desejosa, quer dizer, appetitus”, escreveu a autora.
Caritas é o amor puro, verdadeiro, porque deseja a Deus, a eternidade e o futuro absoluto, enquanto a cupiditas ama o mundo, as coisas do mundo, aqui é pré-teológico, porque a caridade não é apenas um amor passageiro, ou desejo de um bem passageiro, mas do eterno.
Seja religioso ou não, estamos entre o desejo e a posse, depois que obtemos o objeto desejado em geral, e usufruindo do prazer desta posso a cupiditas passa e ficará algo eterno se nela houver a caritas, isto é um Amor Eterno, que dá uma posse eterna e então não passa.
Assim o homem que tem esta busca, deve se recolher em seu interior, e dentro de si, se isolando do mundo, penetra na “quaestio” agostiniana, o fio condutor que Arendt persegue: “pois quanto mais ele se retirava para dentro de si e recolhia a si mesmo na dispersão e da distração do mundo, mais ele se tornava uma ´uma questão para si mesmo´”, escreveu a autora.
Toda filosofia tem uma questão básica, e a de Agostinho se torna teológica: “O que eu amo, quando amo o meu Deus?” (Confissões X, 7, 11 apud Arendt p. 25), ainda que seja “no mundo”.
Assim a segunda parte de sua tese recebe o nome “e “Criatura e Criador: o passado rememorado”, no livro X de Confissões. “A memória, então, abre o caminho para um passado transmundano como a fonte original da própria noção de vida feliz” escreveu a autora sobre Agostinho.
Ao se propor ao relacionamento com Criador, o homem não se perde, e sim se encontra e isto é diferente de todo tipo de apego mundano, o deus do dinheiro, do consumo ou do desejo.
ARENDT, H. O conceito de amor em santo Agostinho. Tradução de Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
Hannah Arendt e o Amor Mundi
Hannah Arendt foi, a nosso ver, instigada pelo seu drama existencial, e dentro dele, a tomar a questão do Amor, desde cedo com uma questão essencial, escreveu Safransky:
“Em começos de 1924 chegara a Marburg uma estudante judia de 18 anos querendo estudar com Bultmann e Heidegger. É Hannah Arendt. Vinha de uma boa família judia assimilada de Könisberg, onde crescera. Aos 14 anos, sua curiosidade já havia despertado. Leu a Crítica da razão pura, de Kant, dominava grego e latim tão bem que aos 16 anos fundou um círculo de estudos e leitura de literatura antiga. Antes mesmo de suas provas finais no liceu de Könisberg, passou uma temporada em Berlim, onde leu Heidegger e tomou aulas com Romano Guardini (especialista em Kierkegaard)”, escreveu Safranski sobre Hannah.
Ainda adolescente, a pensadora que já havia formado um círculo de filosofia ainda adolescente, escreve suas primeiras preocupações, Hannah Arendt redige o poema Consolo (Trost):
“As horas correm, Die Stunden verrinnen / Os dias passam, Die Tage vergehen, / Resta uma graça Es bleibt ein Gewinnen / O simples persistir. Das blosse Bestehen.” (Young-Bruehl, Hannah Arendt, Por amor ao mundo, p. 53).
Numa carta de Heidegger a ela, “E o que podemos fazer além de nos abrirmos, além de deixarmos ser o que é? Deixar ser de tal modo que o amor se torne para nós uma alegria pura/ casta (reine Freude) e a nascente de cada novo dia de vida. Ser elevado ao que somos. De qualquer maneira, seria possível que um de nós ‘dissesse’ e se abrisse ao outro. Só podemos dizer, contudo, que o mundo não é mais meu nem seu, mas nosso”.
Pensar o mundo como “nosso” e não meu é uma necessidade de nosso tempo, um passo essencial para nossos problemas mundiais, ao ler A tese de doutorado de Hannah “O conceito de amor em Santo Agostinho” (ARENDT, 1998), entendemos que houve uma tentativa de ultrapassar o existencial e chegar à essência do amor e a busca do amor mundi.
Ao ler Agostinho de Hipona, objeto de sua tese de doutorado, ela observa a separação entre Amor e gozo: “essa alegria está em amar o amor sem inscrevê-lo em algo particular e passageiro”, e então enfatiza: “O amor espera encontrar com a eternidade a sua própria realização” (Arendt, O conceito de amor em Santo Agostinho, p. 35).
Apesar desta referência à “eternidade” Arendt não chega àquela virtude teologal: amor, que deve ser conjugada de modo “existencial” como fé e esperança, já que na eternidade, para os que creem, a fé e a esperança já estarão em plenitude no Amor.
ARENDT, H. O conceito de amor em santo Agostinho. Tradução de Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
SAFRANSKI, R. Heidegger, um mestre da Alemanha entre o bem e o mal (biografia). Tradução de Lya Luft. Apresentação de Ernildo Stein. São Paulo: Geração Editorial, 2000.
Poder, punir e psicopolítica
Após Vigiar e Punir, Foucault se deu conta que a sociedade disciplinar não era exatamente o que refletia a sociedade moderna, está dito assim no livro sobre Psicopolítica de Byung-Chul Han, “o problema, contudo, foi que permaneceu ligado tanto ao conceito de população quanto ao de biopolítica [citando Foucault] “se depois que soubermos o que era esse regime governamental chamado liberalismo é que poderemos, parece-me apreender o que é biopolítica” (Han, 2020, p. 37).
Byung-Chul descobre que “a técnica disciplinar passa da esfera corpórea àquela mental. O termo inglês industry (indústria) significa também “esforço”. A locução industrial school pode significar casa de correção. Bentham também sugere que seu pan-óptico melhoraria moralmente os internos. Conteúdo, a psique não está no foco do poder disciplinar” (Han, 2020, pg. 35).
O ensaísta coreano-alemão desenvolve todos os pressupostos desenvolvidos por Foucault para realizar a passagem da biopolítica à psicopolítica, a qual tem razão, porem está totalmente vinculada a ideia que é o princípio neoliberal e não o hegeliano que estabelece essa lógica de poder, ainda que tanto no livro O que é poder quanto no livro No enxame, examine outros aspectos que vão da tecnologia ao comportamento humano, por exemplo, no ensaio No enxame, ele afirma que a única forma de poder simétrica é o respeito.
De modo mais analítico não deixa de considerar a filosofia idealista também dentro de um aspecto comportamental:
“Como na relação de conhecimento (Kant), não existe continuidade do Ego, sem o Alter, como ele atesta, ao denotar que, o poder permite ao ego ser no outro por si mesmo. Ele gera uma continuidade do self. O ego realiza no alter suas decisões. É desse modo que o ego continua no alter. O poder proporciona ao ego espaços que são seus, nos quais, apesar da presença do outro, ele pode estar em si mesmo.” (HAN, 2019, p. 11).
Assim é preciso escapar dos conceitos egoístas, exclusivistas para penetrar num nível de alter para realizar plenamente nossos sentimentos e decisões, não é um esforço do self nem do poder egocêntrico que atingimos este estado de paz e felicidade tão desejados.
Assim egos inflamados, senhores que se apossam do poder para dominar os outros não são capazes de criar uma política saudável que contemple toda a sociedade e quiçá toda a sociedade, por que não é possível viver em harmonia sem respeitar a diversidade, a diferença enfim o Outro.
Todos regimes totalitários caminham para a guerra porque precisam eliminar o Outro, o diferente e a voz de quem vê o mundo sob outro prisma.
HAN, Byung-Chul. A psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas do poder, Petrópolis: Vozes, 2020.
HAN, Byung-Chul. O que é Poder? Tradução de Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis: Vozes, 2019.
Tensão máxima entre OTAN e Rússia
Acusações de agressões diretas entre o Ocidente e a Rússia chegaram a um limite perigoso.
As tensões em torno da guerra no leste europeu chegaram a um limite máximo, o primeiro-ministro inglês Keir Starmer e o presidente dos EUA Joe Biden estariam conversando sobre a permissão de Kiev utilizar misseis de longo alcance ATACMS americanos e Storm Shadow inglês em alvo interno da Rússia, sendo o governo russo isto já estaria acordado.
Por outro lado China e Rússia realizaram exercícios militares conjuntos que foram chamados de “Joint SEa-2024” que o Japão e países do oriente veem com desconfiança, além de Taiwan e as ilhas que são conflitos entre Japão e Rússia (ilhas Sacalina e Curilas) e China e Filipinas (Ilhas Spratlye e o Atol de Scarborough), porém o principal conflito é de mercados com o Ocidente.
A Rússia tem usado drones do Irã no confronto com a Ucrânia, e isto fortalece o elo com o mundo muçulmano, enquanto o apoio a Israel de França e EUA fortalecem a aliança da OTAN.
O Brasil e a China haviam proposto uma proposta de paz que seria “congelar as fronteiras atuais” num cessar fogo, porém isto se referia a maio, agora o avanço dos ucranianos em território russo muda este cenário, e não fica claro qual é a proposta de fato, porém o presidente da Ucrânia Zelensky já havia rechaçado a proposta, se dizendo não consultado.
O cenário é grave porque o simples ataque a território russo de mísseis de longo alcance será considerado uma agressão da OTAN, uma vez que países do ocidente ofereceram armas e deram um aval, por outro lado as forças da OTAN preparam uma possível retaliação.
Na frente do Oriente Médio, conforme explicando quase com os mesmos aliados e inimigos, também o clima é de hostilidades e um acordo parece estar cada vez mais longe.
Um alto comandante do Hamas, Oussama Hamdane, em entrevista à AFP acusando os Estados Unidos de não exercer pressão suficiente para Israel buscar um acordo de cessar-fogo, e afirma que ao contrário “está a tentar justificar a evasão do lado israelita a qualquer compromisso”, e a força política americana seria capaz de levar o Oriente Médio a uma esperança de paz num conflito que ultrapassou limites humanitários.
Restam esperanças, vozes que apelam para a serenidade e o bom senso, organismos e entidades diversas que procuram honestamente buscar uma paz razoável e duradoura.
A alegria, o sacrifício e a dor
A dor faz parte da realidade humana, e assim nenhuma alegria é perene se não entende o sacrifício, na etimologia da palavra “ofício sagrado”, não é exatamente a dor, conforme descreve Byung-Chul Han em A sociedade paliativa: a dor hoje, a dor sem sentido, é a “aflição corporal” a dor se coisificou, perdeu um sentido ontológico e de certa forma “escatológico”, “a dor sem sentido é possível apenas em uma vida nua esvaziada de sentido, que não narra mais.” (Han, 2021, p. 46).
Han cita autores da literatura como Paul Valéry, para quem em seu livro o personagem Monsieur Teste “Se cala em vista da dor. A dor lhe rouba a fala” (Han, 2021, p. 43), e também Freud, para quem “a dor é um sintoma que indica um bloqueio na história de uma pessoa. O paciente, por causa de seu bloqueio, não está em condições de avançar na história” (p. 45).
É com a mística cristão Teresa d´Ávila, como uma espécie de contrafigura da dor, “nela a dor é extremamente eloquente. Com a dor começa a narrativa. A narrativa cristã verbaliza a dor e transforma também o corpo da mística em um palco … aprofunda a relação com Deus … produz intimidade, uma intensidade” (p. 44), para quem não sabe foi com sua leitura que a filósofa Edith Stein, discípula de Husserl como Heidegger, se converte ao ler Teresa cristianismo, não por acaso receberá o nome novo Teresa Benedita da Cruz.
O sacrifício é a arte de viver de modo alegre a dor, claro é equívoco pensar e desejar a dor, se ela vem porém, e algum dia virá, ela pode ressignificar como “ofício sagrado” oferecido, Byung-Chul Han escreveu sobre ele: “O sofrimento não é um sintoma, nem é um diagnóstico, mas uma experiência humana muito complexa”, só penetraram nele grandes místicos.
No evangelho de Marcos (Mc 9,31), Jesus choca os discípulos ensinando em segredo, E dizia-lhes: “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, três dias após sua morte, ele ressuscitará”, e depois nega toda forma de poder humano: “quer quiser ser o primeiro seja o servo de todos” e por último ensina a simplicidade das crianças: “quem acolher uma destas crianças é a mim que acolhe”, é diferente do que pensam hoje.
Compreender a dor, a lógica invertida de poder e a simplicidade e inocência das crianças é uma lógica distante numa civilização em crise, hedonista, autoritária e cheia de malícia.
HAN, BYUNG-CHUL. A Sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado, Petrópolis: ed. Vozes, 2021.
Assimetrias, poder e sociabilidade
O ensaísta coreano-alemão Byung-Chul Han, em seu livro No enxame, ressalta que somente o respeito é simétrico, as diversas formas de comunicação e poder são assimétricas, porém isto levado ao limite causam ódios, desprezos e guerras.
Jacques Rancière que escreveu “Ódio a democracia”, ressalta que este tema tomou contornos dramáticos atualmente, mas já existem na literatura: “ O autor ressalta que a rejeição à democracia não é novidade, no entanto apresenta novos contornos:
Seus porta-vozes habitam todos os países que se declaram não apenas Estados democráticos, mas democracia tout court. Nenhum reivindica uma democracia mais real. Ao contrário, todos dizem que ela já é real demais. Nenhum se queixa das instituições que dizem encarnar o poder do povo nem propõe medidas para restringir esse poder.
Relendo a literatura lembra autores que a defendiam: “A mecânica das instituições que encantou os contemporâneos de Montesquieu, Madison, Tocqueville não lhes interessa. É do povo e de seus costumes que eles se queixam, não das instituições do seu poder. Para eles, a democracia não é uma forma de governo corrompido, mas uma crise da civilização que afeta a sociedade e o Estado através dela”, e assim não falamos de “crise civilizatória” ao acaso.
Assim a discussão de mídias e meios influenciando a política existe a séculos, também o fato de difamar adversários através de situações nem sempre verdadeiras ou mesmo descontextualizadas é prática comum para tentar impor uma opinião de modo assimétrico.
O fato atual é que temos um meio mais potente que pode potencializar estas falsidades e as novas mídias não são apenas algoritmos de controle ou mecanismos eficientes de Inteligência Artificial agora novo enfoque tecnológico, o fato que buscar um equilíbrio, uma simetria desde a relação pessoal até o poder.
Não se pode aplicar as leis unilateralmente, ou mesmo, fazê-las ao sabor de situações políticas, elas devem valer para todos e se mudarem devem seguir um rito e as instituições apropriadas para isto, atropelar os poderes, antecipar processos ou fazer ritos sumários são abusos do poder.
Assim começamos com o respeito a opinião, ao diálogo, ao diferente e chegamos ao exercício do poder com moderação e o máximo de equidade, mesmo que forças contrárias enfrentem o discurso contraditório, é preciso fazê-lo no âmbito da legalidade e da legitimidade.
No nível pessoal superar empasses, rusgas e diferenças pessoais com parcimônia e respeito ajudam o equilíbrio das relações sociais, ainda que muitas vezes para um lado beire a ofensa.
Não é uma atitude heroica, é uma defesa do convívio, da tolerância e da paz social.
RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.