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Arquivo para a ‘Noosfera’ Categoria

Reformar o pensamento e seu viático

21 nov

No início do capítulo 5 de Cabeça bem-feita de Edgar Morin, ele faz uma epígrafe de Edita de Eurípedes: “Os deuses nos inventam muitas surpresas: o esperado não acontece, e um deus abre caminho ao inesperado” (Morin, 2003, p. 61), só sabe trabalhar com o inesperado quem medita e tem a parte espiritual bem desenvolvida.

Ele nos dá três viáticos neste capítulo, o primeiro é “Preparar-se para nosso mundo incerto é o contrário de se resignar a um ceticismo generalizado”, é preciso resistir ao que é anti-humano não como um ato de coragem, mas na única certeza que é o erro do caminho que nossas convicções equivocadas podem nos levar (na foto o viático de Leonardo Alenza, 1840).

O segundo viático é a estratégia, nos perdemos no caminho daquilo que é bom e que desejamos.

“A estratégia opõe-se ao programa, ainda que possa comportar elementos programados. O programa é a determinação a priori de uma seqüência de ações tendo em vista um objetivo. O programa é eficaz, em condições externas estáveis, que possam ser determinadas com segurança” (Morin, 2003, p. 62) assim precisamos pensar na estratégia exercendo-a, se queremos mais humanidade é preciso ser humano, se queremos a paz devemos praticá-la.

O terceiro viático é o desafio, geralmente procuramos nossa zona de conforto ou segurança, mas nem conforto nem segurança estão lá, em geral exigem um desafio para conquista-las, diz Morin: “Uma estratégia traz em si a consciência da incerteza que vai enfrentar e, por isso mesmo, encerra uma aposta. Deve estar plenamente consciente da aposta, de modo a não cair em uma falsa certeza. Foi a falsa certeza que sempre cegou os generais, os políticos, os empresários, e os levou ao desastre” (Morin, 2003, p. 62) deste é o desastre da falsa paz de hoje.

O que pode nos levar a um futuro ainda melhor, quem responde não é exatamente um cristão, e sim alguém de origem judaica, mas que vive um laicismo: “A aposta é a integração da incerteza à fé ou à esperança. A aposta não está limitada aos jogos de azar ou aos empreendimentos perigosos” (Morin, 2003, p. 62), se trabalhamos para a paz e para o processo correto do que é civilizatório temos certeza de contar com alguma ajuda extra, porque não: divina.

MORIN, E.

MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. tradução Eloá Jacobina. – 8a ed. -Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

 

 

O mau pensamento, a má política e a má religião

20 nov

A estrutura da crise civilizatória que vivemos, a ameaça nuclear tornou-se real após a liberação de mísseis para o território russo estes dias, a crise energética e o problema da miséria mundial estão na pauta civilizatória, mas o pensamento, a política e a religião (em seus desvios) não os percebem claramente.

Trata-se de conseguir aliados e não de construir pontes e derrubar muros políticos, culturais e até mesmo religiosos, o pensamento iluminista ainda domina o ocidente, a visão cultural rasa invade o discurso até das camadas mais cultas e a religião quando não é puro comércio se desvia para preceitos e pré-conceitos humanos pouco ou nada tem de puro e divino.

Sobre o pensamento um texto interessante de ler é “Cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento” de Edgar Morin, diz ele sobre a crise que já era presente nos discursos sobre o “mal estar civilizatório”: “De modo que podemos, ao mesmo tempo, integrar e distinguir o destino humano dentro do Universo; e essa nova cultura científica permite oferecer um novo e capital conhecimento à cultura geral, humanística, histórica e filosófica, que, de Montaigne a Camus, sempre levantou o problema da condição humana” (Morin, 2003, p. 38).

Diz na introdução do livro: “O saber tornou-se cada vez mais esotérico (acessível somente aos especialistas) e anônimo (quantitativo e formalizado). O conhecimento técnico está igualmente reservado aos experts, cuja competência em um campo restrito é acompanhada de incompetência quando este campo é perturbado por influências externas ou modificado por um novo acontecimento.” (Morin, 2003, p. 19).

Porém as redes invadiram o discurso dos experts e piorou o conhecimento cultural e político, agora sob a influência do “enxame digital” (ler Byung-Chul Han: o Enxame), uma onda de má política e má religião foi deflagrada e invadida por “influencers”, pseudo-profetas e políticos cuja conduta anti-civilizatória já denunciam suas falsidades e maldades.

É hora dos oportunistas, do pouco pensamento (ele já atingiu a camada seleta de “cultos”) e de má religião, que profetiza o mal, a desordem, e anuncia como “profecia” a religião do lucro fácil, do desprezo a cultura e de outras culturas que não as próprias.

Porém a luz persiste, a resistência persiste entre aqueles que anunciam a boa-nova e um mundo mais humano, a nova civilização e o protagonismo do que é bom, belo e humano; e aos poucos o que é pensamento ultrapassado, má política e religiões e profetas falsos desaparecerão, será um longo e doloroso processo, mas a noite só persiste na ausência da luz.

A quem tem pouco (pensamento, cultura e fé) até o pouco lhe será tirado.

MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento / Edgar Morin; tradução Eloá Jacobina. – 8a ed. -Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

 

A alegria e re-construir a Terra

19 nov

Em meio a ameaças de guerra total: os EUA autorizaram o uso de armas de longo alcance na guerra do leste europeu, Finlândia e Suécia se preparam para possível guerra (RFI press) e a ameaça russa de uma guerra total pela aprovação de mísseis (Terra on-line).

Tudo isto parece contraditório com as possibilidades do Terra-Pátria que postamos na semana passada, porém também um teólogo, paleontógo e filósofo Teilhard Chardin aponta algo além disto: re-construir a Terra.

O texto de Chardin datado do final de sua vida na década de 30 (são vários extratos), compilado e publicado após sua morte em 1958, dizia apenas em Construir a Terra, porém não havia ainda o forte desiquilíbrio ambiental, o crescimento das usinas atômicas (a energia foi usada na guerra para bombas) e o perigo de um cataclismo global, ameaças hoje presentes, além do desiquilíbrio social.

Ele já sabia da crise da democracia e do crescimento de sistemas totalitários (fascismo e comunismo), definia sua crença no futuro em três vertentes: paixão pelo pessoal, pelo universal e pelo próprio futuro, e vendo o planeta como um organismo deu sua sentença: “cada célula pensa, pelo fato de ser livre, que está autorizada a erigir um centro para si mesma” (Chardin, 1958), porém constatou a dispersão deste falso liberalismo intelectual e social.

Vê, porém as contradições em diálogo, estas forças não tem o “poder meramente destrutivo, cada um dela contém fatores positivos … por menos que estes componentes conversem, cada um deles contém componentes positivos … cada um deles é o próprio mundo é o próprio mundo que se defende e quer chegar a luz”, claro é preciso evitar os conflitos de guerras e extremismos.

No sentido que dá ao “espírito da Terra”, este foi escrito unindo extratos de 1931, em viagem pelo Oceano Pacífico, definiu este espírito como “o sentido apaixonado do destino comum que arrasta, sempre mais para longe, a fração pensante da Vida”, e ela dá sentido à nossa consciência em círculos crescentes de famílias, de pátrias, das raças, descubra enfim que a única Unidade humana verdadeira, natural e real, é o Espírito da Terra”.

Edgar Morin em seu livro Terra Pátria criou um conceito similar como cidadania planetária, porém é preciso dar uma “alma comum” a esta ideia de um planeta como casa de todos.

Na cosmologia de Chardin, ele trabalha insistentemente neste tema em sua Noosfera (esta camada pensante que cria este espírito capaz de envolver todos), dirá que “o amor é a mais universal, a mais formidável e a mais misteriosa das energias cósmicas”, hoje com tantos polos e tantas forças em conflito é preciso reencontrar este ponto essencial de convergência.

No caminho da unidade, “às maravilhas de uma alma comum”, escreveu “estas breves e pálidas devem fazer compreender que formidável poder de alegria e de ação dorme ainda no seio da unidade humana”, redescobrir este valor e esta força cósmica, como a define, é o destino nosso.

Esta é a alegria daqueles que creem na participação divina que corrige a história humana.

CHARDIN, T. Construire la Terre. Paris: Editions du Soleil, 1958.

 

As esperanças eternas

15 nov

Quando os gregos pensaram a polis grega quase que simultaneamente o mundo judaico era revigorado e atualizado pelo mundo cristão, haviam centenas de falsos profetas, um era o esperado, veio não com um estrondo, como uma euforia e sim como uma brisa suave.

No limiar de uma nova civilização, Edgar Morin deixa 4 desafios para a humanidade: “

Sair da idade de ferro planetária, salvar a humanidade, co-pilotar a biosfera, civilizar a terra são quatro termos ligados em anel recursivo, cada um sendo necessário aos outros três” (Morin, 2003, p. 178).

Simplistas e falsos profetas insistem em soluções apocalípticas ou bélicas, ou ambas, porém alerta Edgar Morin: “Pois quanta cegueira, hoje, entre os tradicionalistas, os modernos, os pós-modernos! Quanta fragmentação do pensamento! Quanto desconhecimento do complexo planetário! Quanta inconsciência em toda parte dos problemas chaves! Quanta barbárie nas relações humanas! Quantas carências do espírito e da alma! Quantas incompreensões!” (Morin, 2003, p. 179).

Assim podemos ter duas atitudes conforme nosso olhar espiritual e conceitual sobre o futuro: “De qualquer modo, devemos reassumir o princípio de resistência. Além disso, dispomos de princípios de esperança na desesperança …” (Morin, 2003, p. 180).

Aponta seis possibilidades de atitudes diante disto: o primeiro é  vital: “… princípio vital: assim como tudo o que vive se auto-regenera numa tensão incoercível voltada para seu futuro, assim também o que é humano regenera a esperança ao regene- rar seu viver; não é a esperança que faz viver, é o viver que faz a esperança, ou melhor: o viver faz a esperança que faz viver” (idem)

Enumera outros 5, mas queremos destacar o quinto: “O quinto é o princípio do salvamento por tomada de consciência do perigo. Segundo a frase de Hõlderlin: “Lá onde cresce o perigo, cresce também o que salva.” (ibidem).

Termina o livro de maneira desoladora: “A aventura continua desconhecida. A era planetária sucumbirá talvez antes de ter podido desabrochar. A agonia da humanidade talvez só venha a produzir morte e ruínas” (Morin, 2003, p. 181), de fato, isto parece cada vez mais provável.

Porém para os que creem Deus não permanecerá indiferente ao destino da humanidade, assim é preciso pensar além da resistência do espírito, ter esperança que as palavras de salvação não passarão e então todo o mundo poderá reconhecer o poder e a ação divina sobre nossas vidas. 

 

Um extra na consciência planetária

14 nov

No final do século parecíamos tomar consciência de nossa realidade, de repente explodem novos conflitos e as guerras adormecidas acordam: ódios étnicos, ódios raciais e ideológicos.
Escreveu Morin sobre este momento:
“Ainda até os anos 1950-1960, vivíamos numa terra desconhecida, vivíamos numa Terra abstrata, vivíamos numa Terra-objeto. Nosso fim de século descobriu a Terra-sistema, a Terra Gaia, a biosfera, a Terra parcela cósmica, a Terra-Pátria. Cada um de nós tem sua genealogia e sua carteira de identidade terrestres. Cada um de nós vem da Terra, é da terra, está na terra.
Pertencemos à Terra que nos pertence” (Morin, 2003, p. 175).
Então o que seria esta tomada de consciência, escreve Morin:
• “a tomada de consciência da unidade da Terra (consciência telúrica);
• a tomada de consciência da unidade/diversidade da biosfera (consciência ecológica);
• a tomada de consciência da unidade/diversidade do homem (consciência antropológica);
• a tomada de consciência de nosso estatuto antropo-bio-físico;
• a tomada de consciência de nosso dasein, o fato de “estar aí”, sem saber por que;
• a tomada de consciência da era planetária;
• a tomada de consciência da ameaça damocleana;
• a tomada de consciência da perdição no horizonte de nossas vidas, de toda vida, de todo planeta, de todo sol;
• a tomada de consciência de nosso destino terrestre. “ (Morin, 2003, p. 175)

Embora reconheça que precisa ir além, pois escreve: “E é através dessas tomadas de consciência que podem con- vergir doravante mensagens vindas dos horizontes mais diversos, umas da fé, outras da ética, outras do humanismo, outras do ro- mantismo, outras das ciências, outras da tomada de consciência da idade de ferro planetária” (Morin, 2003, p. 176), está preso a ideia do humanismo das luzes “que reconhece a qualidade de todos homens” (idem), mas esbarra nas limitações humanas sem saber como superá-los.
“Dominar a natureza? O homem é ainda incapaz de controlar sua própria natureza, cuja loucura o impele a dominar a natureza perdendo o domínio de si mesmo. Dominar o mundo?” (Ibidem), não está claro para o autor nos “horizontes mais diversos” a consciência do divino.
Sem fazer parte do imaginário um ponto elevado da civilização, que veja ao longe uma nova civilização, que o próprio autor reconhece: “Esse homem deve reaprender a finitude terrestre e renunciar ao falso infinito da onipotente técnica … ” (p. 177), porém não é o cosmo o limite.
Reconhecer como parte do imaginário realizável, “o já mais não ainda” de Byung-Chul Han (está na nota de nosso blog), é reconhecer que o destino do homem é divino, é o reino do “já” aqui na terra, mas não ainda porque caminhamos para a pátria celeste, não do cosmos apenas, mas de uma vida eterna.

Morin, E. e Kern, B. Terra-Pátria. Trad. Paulo Neves, Porto Alegre: Sulina, 2003.

 

Ser grato não é tão simples

13 nov

Parece que ser grato e dizer obrigado por pequenos ou grandes gestos de amigos, parentes e mesmo desconhecidos seja uma atitude comum, mas não é, a cultura paternalista e de certa forma assistencialista tornou o que é uma atitude de bondade em quase uma obrigação.

Alguns filósofos e até mesmo cientistas colocaram sobre a atitude externa (dita objetiva) e interna (ter compaixão pelo outro) em campos distintos quase opostos.

Para o senso comum descreveu Popper não é então a simples objetividade ou subjetividade desenvolvida pela filosofia idealista, ou ainda a intersubjetividade que liga a subjetividade de indivíduos ou discursos, é a possibilidade de atingir o conhecimento de coisas, situações e pessoas que leve ao conhecimento de determinada forma de saber que tenha fundamentos culturais, sociais ou mesmo de crenças que os levem a atitudes pro-ativas.
Então leva atos feitos isoladamente a um circulo virtuoso de atitudes, é claro que Popper não falou de gratidão, mas Marcel Mauss escreveu nos anos 20 a teoria da dádiva, ou do “dom” que é tirar a simples remuneração ou recompensa por atitudes positivas, porém não há problema em haver remuneração, este é seu aspecto idealista, mesmo neste caso pode haver gratuidade se feito como dom a quem recebe o serviço.
O que leva a gratidão e não a recompensa é como está na origem etimológica da palavra a noção de gratuidade que deve acompanhar mesmo aqueles atos para os quais existem uma justa remuneração, sem seja uma forma instrumentalizada ou corruptora aquele ato.
Assim a colaboração, a cooperação e até mesmo ações totalmente gratuitas que possam envolver valores, como é o caso de salários pagos, que devem ser pensados como atos de fraternidade e compaixão como os que estão envolvidos naquele ato.
Assim como atos contínuos levam a uma atitude, também gratidão contínua pode levar a gratitude, pode e não deve porque há uma diferença em ambos casos que é o fato que se não se torna um ato e uma gratidão social, mesmo havendo atitude e gratitude pode perder-se e levar a descontinuidade de atos e gratidões, isto é um problema em determinadas culturas.

Ser grato é uma atitude interior de amor e externa de reconhecer e dizer obrigado.

 

Além da dor e da agonia

06 nov

As crises tanto pessoais como as humanitárias devem propiciar um novo alvorecer e uma glória maior do que aquelas que o processo civilizatório permitiu.

Edgar Morin ao analisar a policrise que vivemos faz uma análise de uma certa agonia, diz:

“Se considerarmos globalmente os dois ciclones crísicos e críticos das guerras mundiais do século XX e o ciclone desconhecido em formação, se considerarmos as ameaças mortais à humanida- de vindas da própria humanidade, se considerarmos enfim e sobretudo a situação atual de policrises enredadas e indissociáveis, então a crise planetária de uma humanidade ainda incapaz de se realizar enquanto humanidade pode ser chamada de agonia, ou seja, um estado trágico e incerto em que os sintomas de morte e de nascimento lutam e se confundem” (Morin, 2003, p. 97).

E conclui: “Um passado morto não morre, um futuro nascente não consegue nascer” (idem).

Procura salvar aqui que está além destas dores e dificuldades: “Há avanço mundial das forças cegas, de feedback positivos, de loucura suicida, mas há também mundialização da demanda de paz, de democracia, de liberdade, de tolerância…” (Morin, idem) mantendo a esperança.

Mas o cenário já era difícil quando escreveu o livro: “A luta entre as forças de integração e as de desintegração não se situa apenas nas relações entre sociedades, nações, etnias, religiões, situa-se também no interior de cada sociedade, de cada indivíduo” (idem) é uma luta interior.

Estamos condenados a isto, escreve: “Estamos irremediavelmente comprometidos na corrida ao cataclismo generalizado? De que parto esperamos a saída? Ou continuaremos, aos trancos e barrancos, rumo a uma Idade Média planetária nos conflitos regionais, nas crises sucessivas, nas desordens, nas regressões – apenas com algumas ilhotas preservadas?…” (p. 98).

Só temos uma saída para o autor: “A agonia de morte/nascimento é talvez o caminho, com riscos infinitos, para a metamorfose geral… Com a condição de que venha a tomada de consciência, justamente, dessa agonia” (idem, p. 98).

Esta saída é a redescoberta das nossas finalidades terrestres, tema das páginas seguintes e que já abordamos anteriormente, este caminho exige reflexão e retomada de equilíbrio e da paz.

MORIN, E. e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Pátria, trad. por Paulo Azevedo Neves da Silva. — Porto Alegre: Sulina, 2003.

 

Um novo meta-desenvolvimento

05 nov

Encaramos viver como uma vida intensa de ação, prazer e desprezo pela verdadeira alegria de viver, aquele gaudio e paz que só corações solidários podem sentir.

Escreveu Edgar Morin sobre o meta-desenvolvimento:

“O desenvolvimento é uma finalidade, mas deve deixar de ser uma finalidade míope ou uma finalidade-término. A finalidade do desenvolvimento submete-se ela própria a outras finalidades. Quais? Viver verdadeiramente. Viver melhor.

Verdadeiramente e melhor, o que significa isso?

Viver com compreensão, solidariedade, compaixão. Viver sem ser explorado, insultado, desprezado”  (Morin, 2003, p. 106).

Isto deve estender a todos povos, religiões e culturas do planeta, não haverá verdadeira processo civilizatório, justiça e liberdade sem estes valores, caras conquistas da humanidade.

Não apenas Edgar Morin sonhou com uma cidadania planetária, todos verdadeiros sonhadores e humanistas sonharam com ela, embora alguns se limitem a olhar os fracassos, a vida plena e a liberdade que não ignora os direitos dos outros é a única capaz de conduzir um novo momento.

Talvez as guerras e todas as mazelas que elas envolvem: lutas econômicas, politicas e até religiosas (uma verdadeira religião jamais contemplaria a menor violência contra a vida) é preciso sobretudo resistir e ter esperança que um futuro novo poderá vir, talvez com os sofrimentos atuais, diria uma “paixão violenta” na vida planetária com ameaças e guerras.

A que tipo de retrocesso, uma verdadeira barbárie estamos caminhando, já percebi o gênio e a sagacidade de Morin, da dupla barbárie: “É verdade que em todos os tempos, em todos os lugares, a humanidade se viu diante da necessidade de resistir à crueldade difusa feita de maldade, desprezo, indiferença. As duas barbáries presentes são formidáveis desenvolvimentos de crueldade: a crueldade odiosa vem da primeira barbárie e se exprime no assassinato, na tortura, nos furo- res individuais e coletivos, a crueldade anónima vem da barbárie tecno-burocrática” (Morin, 2003, p. 100).

Morin percebeu o retrocesso depois da primavera vivida em 1989-1990, onde os muros caíram, agora eles se reerguem é preciso resistir, conforme afirma em seu texto.

MORIN, E. e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Pátria, trad. por Paulo Azevedo Neves da Silva. — Porto Alegre: Sulina, 2003.

 

Querela pacis e a verdadeira vida da paz

01 nov

Embora um filósofo que possua várias limitações, Erasmo de Rotterdam, há mais de 500 anos escrevia o Querela Pacis, um lamento da Paz, que falava em primeira pessoa sobre a Paz e dizia “a paz precisa sempre de alguém que lhe dê voz”, assim é antes uma atitude do interior do Ser.

Os textos de Byung-Chul Han, destaco três: A sociedade do Cansaço, A crise da narração e Vita Contemplativa, podem parecer alienantes num mundo em pé de guerra, mas é um texto que aponta também este caminho, uma paz interior que dê voz ao mundo da pura exterioridade.

Diz na Crise da Narrativa: “a filosofia como ´poesia´(mythos) é um risco, um belo risco. Ela narra, até mesmo ousa, uma maneira nova de viver e ser” (Han, 2023, p. 106), destaques do autor, aponta até mesmo a concepção do Iluminismo e de Kant sobre a alma, como “ousada”, mas são narrativas e mais a frente lembra que Nietzsche apontará um mundo “transnarrado”.  

É a partir deste autor que apontará um mundo onde “uma narrativa do futuro, baseada em uma “esperança”, em uma “fé” no amanhã e no depois de amanhã” (Han, 2023, p. 108) que é aquela mesma que o autor aponta em outro texto como o “já”, mas não “ainda”.

O que aconteceu com a filosofia na atualidade, e isto transbordou para as outras ciências é que “no instante em que a filosofia reivindica ser uma ciência, ser uma ciência exata, seu declínio começa. A filosofia como ciência renega seu caráter narrativo imaginário” (p. 108).

Como diz o autor “se priva de sua linguagem. Emudece” (idem), se esgota na administração da história, e é incapaz de narrar (p. 109), daí todas as modernas narrativas.

Depois o autor apontará a narração como cura, das páginas 111 até 129, para desembocar no capítulo seguinte “a comunidade narrativa”, que recupera a capacidade de narrar e imagina “uma família mundial” (p. 125), para além da nação e da identidade, esta é a paz desejada.

A pax romana e até mesmo a paz eterna (Kant) não saem dos limites das narrativas pessoais ou da identidade restrita a grupos, esta narração do cidadão do mundo, deve partir de vozes que tenham capacidade de ver a humanidade como família, como um todo na diversidade.

Eis o paradigma da complexidade desenvolvido nos posts desta semana: “o indivíduo vive no todo e o todo no indivíduo. É por meio da poesia que se origina a mais alta simpatia e a coatividade, da comunidade mais íntima” (Han, p. 125), lembrando um texto de Schriften Novalis), esta paz vem da voz interior, mas aponta para a coletividade, para a humanidade.

Esta paz beatífica, divina e verdadeira (Pax et Spes) é que pode dar voz a uma paz efetiva e duradoura.

 

HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023

 

Uma nova revolução copernicana

24 out

O centro de nosso universo não é mais o sol, no centro de nossa galáxia o que existe é um buraco negro, apesar do nome parecer ser negativo, segundo as novas teorias depois do super telescópio James Webb ele é apenas uma nova realidade além do pensamento físico atual, chamado Sagitário A* tem um diâmetro de 35 milhões de quilômetros e é o objeto mais massivo da galáxia (primeira foto feita em 2017 pelo telescópio Event Horizon, Feryal Ozel).

Edgar Morin aponta esta e outras mudanças científicas de nosso século mais “formidáveis” que as ideias aparentemente revolucionárias de nosso tempo que pouco ou nada mudaram na concepção social, humana e de mundo que ainda tempo.]

Escreveu Morin: “Tivemos que abandonar um universo ordenado, perfeito, eterno por um universo em devir dispersivo, nascido na irradiação, no qual atuam dialogicamente, isto é, de maneira ao mesmo tempo complementar, concorrente e antagónica, ordem, desordem e organização” (Morin, 2003, p. 62), e ainda: “estamos num universo que não é nem banal, nem normal, nem evidente” (p. 63) e deveríamos pensar assim também da vida humana e social.

Assim nossa minúscula casa num universo quase-infinito é “… é um pequeno cesto de lixo cósmico transformado de maneira improvável não apenas num astro muito complexo, mas também num jardim, nosso jardim” (p. 64) e assim deveríamos pensar e não em conflitos.

“Nossa árvore genealógica terrestre e nossa carteira de identidade terrestre podem hoje finalmente ser conhecidas” (p. 64) e aponta para isto a evidência de nossos problemas.

A primeira evidência que aponta é o desregramento econômico: “Não poderíamos considerar a economia como uma entidade fechada. Trata-se de uma instância autónoma dependente de outras instâncias (sociológica, cultural, política), também elas autónomas/dependentes umas em relação às outras” (p. 65), assim as guerras atuais não são senão a disputa de mercados onde poderiam reconhecer a interdependência e autonomia de cada economia.

A segunda e a crise ecológica: aponta o relatório Meadows encomendado pelo Clube de Roma em 1972, mas também: “as grandes catástrofes locais com amplas consequências: Seveso, Bhopal, Three Mile Island, Chernobyl, secagem do mar de Arai, poluição do lago Baikal, cidades no limite da asfixia (México, Atenas)” e agora mais recentemente Fukushima e as catástrofes naturais.

Apontava ainda a crise de desenvolvimento e a crise universal do futuro, aquela que estamos mergulhados hoje, com ódios e guerras mundiais escalando onde o amor e a fraternidade se encontram sufocados.

“Assim, por toda parte, o desenvolvimento da tríade ciência/ técnica/ indústria perde seu caráter providencial. A ideia de modernidade permanece ainda conquistadora e cheia de promessas onde quer que se sonhe com bem-estar e meios técnicos libertadores” (p. 76).

Sem um retorno ao bom senso, à cooperação mundial e a fraternidade a crise será profunda.

MORIN, Edgar e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Patria. Trad. francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003