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A idade da razão e a ontologia da coisa
O final da idade média significa o renascimento do humanismo grego, porém retoma a ideia da intuição apenas se fundamentando no intelecto da razão, para René Descartes (1596-1650) ela é a única capaz de distinguir o verdadeiro do falso e ela que permite obter o conhecimento do mundo, os 4 pontos de seu método são: evidência, análise, ordem e enumeração.
Esse caminho constituído pela dúvida, a experimentação (nasce o empirismo) e a formulação de leis foram as influências que viriam a predominar os preceitos racionalistas do iluminismo.
Immanuel Kant (1724-1804) faz em sua Crítica da Razão Pura, uma reelaboração das ideias empiristas e racionalistas, e é esse caminho que irá elaborar as doutrinas iluministas dos século XVII e XVIII ocidental, ela afirma “Toda a nossa intuição não é mais do a representação de um fenómeno ; as coisas que nós intuímos não são, em si próprias, como nós as intuímos, nem as relações entre elas são em si próprias tais como nos aparecerem” sendo um ponto central da sua filosofia, em particular no seu Idealismo Transcendental.
Para Kant, mediante esta intuição, os objetos nos são dados e a doutrina que estuda estes dados é a Estética Transcendental, ela ordena e classifica as coisas segundo uma série de categorias não apenas intuídas, mas deduzidas pelo intelecto, não é mais uma transcendência divina, é fruto da razão prática de uma ordem moral.
O mundo do sujeito e suas elaborações fica reduzido a sua “subjetividade”, sua forma como cada indivíduo experiência e constrói o mundo, assim seu “método” em sua crítica da “razão pura” é a capacidade de um sujeito de pensar, julgar e agir sobre o conhecimento dos objetos.
Estabelece então um dualismo entre a objetividade do mundo das coisas e a subjetividade do sujeito que conhece através de uma “transcendência” que é sua experiência sobre o mundo.
O auge do idealismo, principalmente na Alemanha é o idealismo de Hegel e seus discípulos, e após a sua morte se dividem entre os velhos hegelianos presos ao mundo da transcendência e suas contradições dualistas e uma reelaboração do espírito religioso idealista, destacam-se David Frederico Strauss (1808-1874), os irmão Bruno Bauer (1809-1882) e Edgar Bauer (1820- 1886), e Max Stirner (1806-1956).
Entre os jovens hegelianos, segundo a visão de Karl Marx estavam ele e seu companheiro Frederic Engels, fazem uma crítica a Ludwig Feuerbach (1804-1872), para eles o único que teria passado do idealismo Hegel para um materialismo objetivista e assim nasce o marxismo.
Assim escreveu Engels: ele [Feuerbach] “…pulverizou dum golpe a contradição, repondo em seu trono, sem mais delongas o materialismo. A natureza existe independentemente de toda a filosofia e é a base sob a qual crescem e se desenvolvem os homens, que são também, eles próprios, produtos naturais; fora da natureza e dos homens nada existe …” (Engels, 1941).
Porém Feuerbach se apoiava na natureza e pouco na política, e aí nasce a crítica marxista.
A ideia de ser fica reduzida a uma concepção histórica e materialista, relacionada a produção, a economia e a política, já a visão contemplativa, moral e ética do Ser ficam sujeitas à “coisa”.
A ideia que houve um momento da criação do universo fica sujeita a matemática e a física.
Engels, F. Ludwig Feuerbach. Versão espanhola, página 13, Moscou 1941.
Sobre o ente e a essência: a ontologia escolástica
Anselmo da Cantuária (1033-1109) é anterior a Tomás de Aquino (1223-1274) e influenciado por Boécio (480-534), já traçados em posts anteriores o caminho de Plotino até Boécio, passando por Porfírio (234-304 dC), e o seu nome verdadeiro seria Malco ou Telec, ele traduziu Enéada.
A influência de Aristóteles e Platão é grande, porém a tentativa de síntese de Aristóteles e Platão já em Isagoge de Porfírio, que foi traduzida para o latim por Boécio, sendo atribuída a Tomás de Aquino e por consequência a igreja católica é um equívoco, foi Anselmo da Cantuária o fundador de fato, da filosofia escolástica, com sua onto-teológica e seu “argumento ontológico” de Deus.
Deve-se a Boécio a “querela dos universais”, se eles existem ou são apenas nomes, o que dividiu o nominalismo e realismo, da Baixa Idade Média e inicio da Renascença.
Na adolescência Anselmo não teve aprovação do pai para ser monge, após uma doença, ele sai de casa e vai para a Normandia, lá seu conterrâneo Lanfranco o recebe como noviço na Abadia de Le Bec em 1059, e em 1063 se torna prior, quando escreve as obras Monológio e Proslógio.
Le Bec é por este período um centro de estudos, mas inicialmente protegido de Guilherme II, recebe terras que depois serão tomadas, é deste período as primeiras investigadas dos reis sobre as nomeações de bispos e até de papa (é uma história a parte), porém nomeado bispo da Cantuária (Canterbury, é até hoje é sede do bispado anglicano) (foto).
Ele se submete ao papa Urbano II (na mesma época havia Clemente III, considerado antipapa), foi o primeiro inclusive a falar contra o tráfico de escravos em 1102, num concílio em Westminster (revendo os fatos), não se submeteu à monarquia inglesa, e teve 2 exílios.
Em Proslógio, a existência de Deus é um “a priori”, ou seja, através da razão, sem recorrer à experiência, parte do conceito que “um ser do qual não se pode pensar nada maior” (Deus) e argumenta que*, para ser o ser mais perfeito, Deus deve existe tanto na mente como na realidade.
Tomás de Aquino sofreu influência de Santo Anselmo, e em sua obra de juventude “O ente e a essência” ele descreve a questão do ser e da realidade, distinguindo ente (aquilo que é, o ser) de essência (o que algo é), nela esclarece como o intelecto percebe inicialmente o ente e sua essência, explorando a relação entre substâncias simples e compostas.
Para Duns Scotus (1265/1266-1308), um realista moderado para alguns, um nominalista na minha visão, os universais existem como entidades “in rebus” (nas coisas), mas não são separados deles como as ideias platonistas, e sim como uma “ratio” (razão) do intelecto.
Sua principal tese descrita em Ordinatio I, parte 1, qq. 1-2) é que “se há entre os entes um ente infinito atualmente existente”, para ele os universais “bondade” e “verdade” serão reais, isto está expresso biblicamente: “caminho, verdade e vida” (Jo, 14-6) e “só um é o bom” (Lc 18,19).
ANSELMO, St. Proslógio. Trad.: Ângelo Ricci, Ruy Afonso da Costa Nunes. São Paulo, SP; Nova Cutlural ed., 1988. (Coleção os Pensadores, Anselmo/Abelardo). (4ª. edição) (pdf)
AQUINO, S. T. O Ente e a Essência, R.J.: Mosteiro de São Bento, Editorial Presença, 1981.
SCOTUS, John Duns. Seleção de Textos. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
* ”Cremos, pois, com firmeza, que tu és um ser do qual não é possível pensar nada maior. Ou será que um ser assim não existe porque “o insipiente disse, em seu coração: Deus não existe”?4 Porém, o insipiente, quando eu digo: “o ser do qual não se pode pensar nada maior”, ouve o que digo e o compreende.” (4 Salmo 13, 1). Texto na Coleção Pensadores.
O ser: ontologias e epistemes medievais
Agostinho de Hipona, após ter abandonado o maniqueísmo, dualismo entre o bem e o mal, elabora uma ontologia pouco conhecida e citada, mesmo por teólogos, trata-se de uma ontologia trinitária e uma gnose (ou episteme) complexa da verdade.
Ao fazer a leitura de uma passagem do Genésis (Gn 1,26), que é o homem feito a imagem de Deus (imago Dei), ele pondera que a expressão correta é: “façamos o homem à nossa imagem e semelhança, façamos e nossa foram ditas no plural, e não podem ser compreendidas a não ser como relação” (Agostinho, De trinitate, VII,6,1), onde o plural “façamos” e “nossa” estão lá invocando a trindade.
Esta visão antropológica não poderia passar despercebida, porém a visão filosófica de ser e ente ficam submersas e subentendidas no texto, o homem enquanto ser criado e ente, é ao mesmo tempo Imago Dei e natureza perecível, porém a imagem significa trinitária, e, por outro lado perecível significa finito enquanto ente e não enquanto Ser.
Agostinho não usa categoria ontológicas, mas onto-teológicas, assim o homem tem alma imortal e corpo perecível, Agostinho para responder a este aparente paradoxo criacionista, usa o conhecimento neoplatônico, que o ser humano é composto por uma porção corpórea/ material e uma porção espiritual, que diferente do dualismo que desmerece o corpo.
Para Agostinho a alma conhece e vive no corpo, assim “logo, tal como a mente recolhe o conhecimento das coisas corpóreas por meio dos sentidos corporais, é por si mesma que [recolhe o conhecimento] das incorpóreas. Portanto, já que ela própria é incorpórea é por si mesma que ele se conhece” (De Trinitate, XI,3,3 ), e assim formula sua episteme inseparável da alma e vista como “trinitária”.
Dito de outra forma, é subjacente ao autocentramento da mente, o se conhecer e se a amar, há o concurso da memória, da inteligência e da vontade, isto será mais desenvolvido em Porfírio e depois em Boécio (480-524 dC).
Discípulo de Plotino, Porfírio (c. 234–305 d.C.) foi um filósofo neoplatônico e seu trabalho sistematizou e difundiu o pensamento neoplatônico, suas contribuições abrangem diversas áreas, incluindo lógica, metafísica, ética e teologia, porém é famosa sua arvore do conhecimento, chamada Árvore de Porfírio (imagem acima).
Boécio seu discípulo e tradutor avança na contribuição que Porfírio pretendia deixar de unificar a filosofia platônica e aristotélica, a chamada henologia (a doutrina da unidade divina), sua obra Consolações Filosóficas traz parte do questionamento sobre conceitos particulares e universais, que será tema polêmico entre os nominalistas e realistas da baixa idade média.
Período caracterizado pelo feudalismo e pelas rotas comerciais preparou o renascimento.
SANTO AGOSTINHO, De Trinitate / Trindade, Covilhã, PT: Paulinas Editora, Prior Velho, 2007 (pdf IX-XIII)
Princípios da história do Ser e eternidade
Na filosofia não há como referir-se ao Ser sem abordar o ente e a essência, dita de diferentes formas pelos filósofos durante o processo civilizatório e de construção do conhecimento, há pontos que podem ser traçados nesta trajetória.
Para os gregos, a partir de Sócrates, o ser (visto como o que constitui ser humano) reside na alma ou razão, que não são separadas, e a consciência é a fonte tanto intelectual como moral e o homem é capaz de transcender o mundo material e buscar a verdade e a virtude, para ele a alma é essência e não está separado do corpo (ente ou forma) é obstáculo para as virtudes.
Platão elabora o “ente” (o ser) é aquilo que existe, enquanto “essência” (a forma) é a natureza fundamental e imutável que define esse ser, enquanto Aristóteles a essência de um ser é a sua natureza fundamental, o que o define e o torna o que é, ela é a forma que se une à matéria para formar uma substância, que é o ser individual.
Assim o transcender de Sócrates some, Platão então elabora o Sumo Bem como a essência do que é bom, justo e verdadeiro, enquanto Aristóteles o define como busca da felicidade, o bem mais alto que o ser humano busca, também cria a ideia do motor imóvel, causa primeira de tudo que existe e do universo, Platão defende a imortalidade da alma, já Aristóteles está preso a ideia da finitude humana onde tudo é mortal.
O neoplatônico Plotino (204-270 d.C.), vê a alma concebida como uma ponte entre o mundo inteligível (o Uno e o Intelecto) e o mundo sensível, é a imagem do Intelecto e da força vital que impulsiona a vida e o motivo, em seu livro Enéada VI:
“E nós, o que somos nós? Somos aquele ou somos o que se associou e existe no tempo? Na verdade, antes de acontecer o nascimento, estávamos lá [no inteligível], sendo outros homens e, alguns, também deuses: almas puras e intelectos unidos à totalidade da essência, partes do inteligível, sem separação, sem divisão, mas sendo do todo (e nem mesmo agora estamos separados). Mas agora, daquele homem se aproximou outro homem, querendo ser. E nos encontrando, pois não estávamos separados do todo, ele se revestiu de nós e acrescentou a si mesmo aquele homem, o que cada um de nós era então” (Plotino, VI, 4, 14, 16-25).
Plotino vê a Alma em vários “estágios”, é ela que conecta Espírito e Corpo, a natureza superior e sua materialidade), é uma criatura de Deus, criada à sua imagem e semelhança, composta por corpo e alma imortal, Agostinho de Hipona reelabora isto como o Ser é uma criatura de Deus, criada à sua imagem e semelhança, composta por corpo e alma imortal, a vê assim fora de sua finitude corporal.
Já o corpo em santo agostinho possui uma natureza dupla, a primeira física e material, como o seu corpo em que ele viveu e a segunda refere-se à igreja como metáfora de corpo de Cristo.
Penso nesta metáfora no sentido da cosmovisão, também o teólogo do século XX Teilhard de Chardin via assim, todo universo é corpo de Cristo, ou seja, não a igreja itinerante, mas aquela eterna e viva na imensidão do universo, assim o seu corpo é eterno, e este é o significado maior da ressureição, Jesus teve uma vivência temporal, uma ex-sistência, mas Ele é eterno.
A paz e a morte do papa
As conversações de tréguas entre Rússia e Ucrânia, entre Israel e o Hamas e a guerra só tarifaço de Trump põe o mundo sob alerta de uma grave período de instabilidade civilizatória.
A morte do papa Francisco nesta madrugada da Brasil e manhã da Itália significa também a perda de um defensor incansável da paz e repercute no mundo todo.
Em nota oficial, na tarde de hoje (21/04) o Vaticano esclareceu que a morte do Papa Francisco aconteceu as 7h35 (hora da Itália), portanto 2h35 do Brasil), causada por:
– AVC Cerebral
– COMA
– COLAPSO CARDIOCIRCULATÓRIO IRREVERSÍVEL
Deixo um vídeo pessoal onde faço uma reflexão sobre o verdadeiro pensamento do Papa sobre questões polêmicas expressa no capítulo 3 de sua encíclica Fratelli Tutti (todos irmãos), segue:
A dor, o Ser e a Páscoa
Este é um tempo que tentou abolir a dor e exaltar o prazer e a euforia a qualquer preço, porém é tempo de depressão, pânico, intolerâncias e sem vida empática, escreveu Byung-Chul Han: “Justo na sociedade paliativa hostil à dor, multiplicam-se dores silenciosas, apinhadas nas margens, que persistem na ausência de sentido, fala e imagem” (Han, 2021, p. 57).
Nada mais paradoxal neste tempo que mostra que a dor é parte essencial da existência, quem pode aceitar isto senão aqueles que ultrapassaram o desejo de imortalidade e perseguem o desejo da eternidade, Han que tem tendência budista e Hannah Arendt que tem origem judaica escreveram isto.
Walter Benjamin que tinha raízes fortes raízes na Escola de Frankfurt escreveu: “A dor apenas, entre todos os sentimentos corporais, é, para o ser humano, um fluxo navegável, com águas que nunca se esgotam e que o conduz ao mar”.
A ausência de entendimento deste sentimento próprio do Ser, levam a dificuldades de lidar com a frustração, as perdas e as reviravoltas da existência, torna-nos mais fracos e menos resilientes a qualquer contradição, muitas vezes incapazes de lidar com elas.
Entender a dor também nos ajuda a compreender a finitude humana, a morte não como um fim em si mesma, que torna a vida limitada e pequena, mas acreditar que existe algo além dela, que há uma “passagem” para a eternidade, e que sem ela a vida parece efêmera.
Vivemos do consumo, do “disponível”, onde “o mundo que consiste do disponível só pode ser consumido. O mundo, porém, é mais do que a soma do disponível. O mundo disponível perde a aura, sim, o aroma. Ele não permite nenhum se demorar” (Han, 2021, p. 94).
É também um mundo sem a “alteridade”, assim descrita por Han: “Ela o protege de degradar- se em um objeto de consumo. Sem a distância originária, o outro não é nenhum tu. Ele é coisificado no Isso. Ele Não é convocado em sua outridade, mas sim apropriado” (idem, p. 94), aqui Han está lembrando de um texto de outro pensador e educador que é Martin Buber.
Somente pode entender a dor, e a dor extrema como aquela morte de cruz de Jesus aqueles que já passaram da finitude do mundo, do consumo imediato e da vida passageira, para um desejo verdade de eternidade, já aqui, mas como enfatizada Han, logo depois volta ao mundo circundante, que é realidade, porém não anula o desejo e o alcance do além do Ser finito.
HAN, B.-C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2021.
Serenidade: escolher o que é bom
Não há serenidade sem escolhas razoáveis sobre a vida pessoal, social e espiritual, pior ainda quem tenta eliminar uma das três, sem vida pessoal não há o ser-ai (o Dasein heideggeriano), sem a vida social vivemos uma bolha, e sem a espiritual não desenvolvemos nossa essência.
Entre as escolhas tem temos que fazer na vida, elas não podem envolver somente um dos três aspectos: a pessoal apenas nos torna egoísticas e narcisistas, sem a social nos tornamos alienados e com dificuldades de compreensão da realidade e sem o espiritual não temos uma verdadeira ascese que nos eleve como seres humanos.
Por ocasião do centenário de seu conterrâneo o grande música Conradin Kreutzer, em uma conferência de 1949 em sua cidade natal Meßkirch, na Alemanha, e escreveu o texto sobre Serenidade.
Heidegger questiona a dificuldade do pensar já naquela tempo, e pergunta se não é através da música e do canto: “não se distingue a música pelo facto de ´falar‘ através do mero ressoar das suas notas e de não necessitar da linguagem corrente, da linguagem das palavras?” e : ”já uma comemoração, que envolve o acto de pensar?” (Heidegger, 2008, p. 10).
Ao recordar a sua cidade natal, lembra que [em função da guerra]: “tiveram de abandonar as suas aldeias e cidades foam expulsos do solo natal … tornaram-se estranhos … e os que nela ficaram ? Muitas vezes estão ainda mais desenraizados (heimatloser) do que aqueles que foram expulsos. A cada hora e a cada dia estão presos à rádio e à televisão … o cinema transporta-os semanalmente para os domínios invulgares, da representação que simula um mundo que não o é.” (Heidegger, 2008, p. 16), mostrando a relação com a tecnologia.
Se vivesse em nossos dias veria o quanto é realmente visível a relação que se mantém, agora não transportando a realidades outras, mas a irrealidades que transportam as mentes ao vulgar.
Assim as escolhas que se deve fazer torna-se mais radical, mais do que nunca é preciso não só escolher o que é bom e saudável, mas lutar para que esta consciência não se perca em ilusões.
Heidegger, M. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2008.
Além da dor: optar pela vida
Não a guerra, ao ódio e a indiferença significa ir além da dor, muitas vezes é difícil passar por diferenças de opinião, conflitos de cultura e até de ideologias, porém isto é exatamente o que supõe a dor como uma contingência normal da vida.
Byung-Chul Han ao analisar os analgésicos, a anestesia permanente como aquela que limita não só os sentimentos: “A dor é detida antes que ela possa colocar uma narrativa em movimento” (p. 72), e ainda: “O inferno é igual uma zona de bem-estar paliativa” (p. 73).
“Hoje, não estamos dispostos a nos expor à dor. A dor, entretanto, é uma parteira do novo, uma parteira do inteiramente outro” (p. 73), assim leva ao encontro e à vida, “ela permite apenas a prosa do bem-estar, a saber, a escrita à luz do sol” (idem).
Na incapacidade de compreender a dor como um processo de mudança, muitas vezes ela é substituída pela resiliência, que pode fazer sentido com grandes obstáculos ou um grande esforço para superar determinada circunstância de dor, porém em muitos casos é apenas uma teimosia com situações que levam a verdadeira felicidade, aquilo que Sloterdijk chama de uma “sociedade de exercícios”, esforços que não levam a uma superação.
Os gregos tinham o mito de Sísifo (já postamos sobre isto, veja a imagem), um rei astuto que desafiou enfrentar a Morte e Hades, resultando em sua condenação de empurrar eternamente uma pedra até o topo da colina, Albert Camus tem um livro que fala disto e atualiza o tema.
A verdadeira resiliência entende que existe um caminho novo, uma dor “parteira do novo”.
Quando o povo reclamava na passagem do Egito para a terra prometida, dizendo que tinha saudades das cebolas e dos restos que comiam como escravos do faraó, Moisés os repreende e diz (Deuteronômio 30, 19): “Tomo hoje o céu e a terra como testemunhas contra vós de que vos propus a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e teus descendentes, …”, indicando o caminho da liberdade e da construção de sua nação.
O enfrentamento de dificuldades, dores e até mesmo aflições em tempos difíceis, é certo exige resiliência, mas ela não pode ser confundida com o erro, a pura teimosia ou “exercícios” que a nada levam e não favorecem o encontro da felicidade.
HAN, B.-C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021.
A dor e as cinzas
O período da quaresma são os 40 dias após o carnaval até a Páscoa, como já era parte da igreja primitiva, vinda da Páscoa dos judeus, é anterior ao carnaval, lembra a Páscoa judaica (Pessach), que tem o significado de passagem ou libertação, lembrando o período que eram escravos no Egito.
A Páscoa cristã é uma renovação, lembra a morte e ressurreição de Jesus, estamos lendo e lembrando o livro de Byung-Chul Han (que não é cristão) onde fala sobre o sentido ontológico da dor e seu apagamento atual, esclarecendo: “vivemos numa sociedade com crescente solidão e isolamento” (Han, 2021, p. 59).
O autor cita Viktor von Weizsäcker em seu ensaio “As dores”, onde caracteriza a dor com uma “verdade que se tornou carne”, como um “tornar-se carne da verdade” (pg. 61), e ainda “Tudo que é verdade é doloroso” (idem).
A sociedade sem verdades, afirma o autor na passagem seguinte, é “um inferno sem igual”, e a “dor só pode surgir lá onde um verdadeiro pertencimento é ameaçado. Sem dor somos, então cegos, incapazes da verdade e do conhecimento” (p. 62).
Assim no cristianismo e no judaísmo, as cinzas e a Páscoa como um caminho de 40 dias, surgem para lembrar o pó que somos e o caminho de salvação e pertencimento que devemos trilhar: “dor é distinção [Unterschied]. Ela articula a vida” (pg. 63), “ela marca limites”.
“Dor é realidade. Ela tem um efeito de realidade. Percebemos primeiramente a realidade na resistência que dói. A anestesia permanente da sociedade paliativa desrrealiza [entwirklicht] o mundo” (p. 64) e “a realidade retorna na forma de um contra-corpo viral” (p. 65) escreveu o autor por tratar-se do período da pandemia.
Assim as cinzas e o período da quaresma para os cristãos é renovar o período da paixão de Jesus como seu ápice na semana santa, onde há o ápice da dor da cruxificação e o ápice da renovação que é sua ressurreição, cristãos ou não, esta é a lógica verdadeira e real da vida.
Sem entendermos isto, paralisamos na dor do ódio, das guerras, da indiferença, dos vários tipos de injustiça, da exclusão do Outro enfim, da não vida que toda esta ausência de sentido da dor provoca e assim é necessário lembrar do pó das cinzas, de tudo que passa e que só faz sentido se entendemos a dor não como um fim, mas como uma passagem para a vida.
HAN, B.-C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021.
A dor e seu sentido
Em seu livro “Sociedade paliativa: a dor hoje”, Byung-Chul Han caracteriza o ser que “coisificou a dor” como aquele que vive em uma “aflição puramente corporal” pois, o ser “dotado de sentido [Sinnhaftigkeit] a dor pressupõe uma narrativa que insere a vida em um horizonte de sentido”, assim sem uma vida corporal ligada a um sentido maior é “uma vida nua esvaziada de sentido, que não narra mais” (Han, 2021, p. 46).
Cita Walter Benjamin, em Imagens do pensamento, onde mostra a força curativa da narração: “A criança está doente. A mãe a traz para a cama e se senta ao seu lado. E então começa a contar histórias” (p. 47), ao menos era o que se fazia antigamente, antes mesmo de levar ao médico.
Conforme citamos nas frases do blog do mês passado: “vivemos, hoje, em um tempo pós-narrativa” (p. 48), “o ser humano hipersensível da modernidade tardia, que sofre dores sem sentido … aquela onda de dor na qual o espírito reconhece sua impotência afunda rapidamente hoje” (p. 49).
Cita também a obra de E. Jünger “Sobre a dor”, “o ser humano delira estar em segurança, enquanto é só uma questão de tempo até que ele seja arrastado pelos elementos para o abismo” (p. 55).
Jünger explica que a dor não pode ser levada ao desaparecimento, fala de uma “economia da dor, se colocada em segundo plano desse modo, ela se assoma ocultamente em um ´capital invisível´, que ´se aumenta com juros e juros sobre juros’. Parafraseando a “astúcia da razão” de Hegel, Jünger postula a ´astúcia da dor´” (p. 55), assim não é um poder autocrático e sim a dor que não foi coisificada em alguma forma de dominação.
Escreve citando Jünger: “Nenhuma reivindicação é mais certa do que aquela que a dor tem sobre vida. Onde se poupa a dor, se restaura o equilíbrio segundo as leis de uma economia inteiramente determinada” (pgs. 55-56).
Assim é possível falar, segundo o autor, “tomando de empréstimo uma expressão conhecida, de um ´astúcia da dor´, que alcança o seu objetivo por todos os caminhos” (p. 56), “… a luz dispersa com que a dor, em troca, começa a preencher o espaço” (idem), somente se esta luz está fora de nossa “segurança” coisificada (aquela ligada a bens e confortos materiais) é que podemos encontrar outro tipo mais duradouro de ´conquistas´, que não são coisificáveis.
O autor explica ainda que “numa Sociedade paliativa hostil à dor, multiplicam-se dores silenciosas, apinhadas nas margens, que persistem em uma ausência de sentido, fala e imagem” (p. 57).
Longe do narcisismo e do egoísmo encontramos um sentido a dor, encontramos mais que um sentido, uma recompensa que vem de nossa solidariedade, do encontro com o Outro e com a verdadeira felicidade da vida em família, em comunidade e em verdadeira segurança.
HAN, B.-C. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021.