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Arquivo para a ‘Noosfera’ Categoria

Justo, a ideia e o pensamento

29 ago

As três palavras são importantes num momento de grande crise do pensamento (o que é), o que é ideia, e a ideia de justiça ou do justo, explorada por pensadores atuais como Jürgen Habermas (citado em post anteriores sobre a inclusão do Outro) e citamos de passagem os dois volumes de Paul Ricoeur o Justo (o volume dois publicado pela Martins Fontes) embora o próprio autor diga que é um ensaio, ele penetra num aspecto mais profundo, a questão da verdade e da moral.

A leitura do texto a Inclusão do Outro de Habermas, esclarece que em termos filosóficos, que a moral em John Rawls, em termos kantianos tem diferenças entre o liberalismo político original de Kant e o republicano kantiano que é como Rawls o defende, isto bastaria, mas há uma longa análise no Volume 1 de Paul Ricouer sobre a justiça em Rawls.

Para entender o livro 2 de Ricoeur é preciso entender que para os gregos a filosofia primeira é aquela que para eles, e a retomada ontológica tem a ver com isto, a metafísica como questões sobre o Ser, a existência, a causa e o sentido da realidade e a physis (natureza) devem ser colocados de modo precedente à segunda os aspectos ligados à lógica e a ética.

O livro 2 aborda aquilo que parece mais essencial em Ricoeur, embora confesse que se trata de um ensaio, sua meta é “justificar a tese de que a filosofia teorética e a filosofia prática são de níveis iguais; como nenhuma dela é filosofia primeira em relação àquilo que Stanislas Breton caracterizou como função meta- (eu mesmo .. defendia essa reformulação da metafísica nos termos da função meta-, na qual seriam unidos “os gêneros máximos” da dialética dos últimos diálogos de Platão e a especulação aristotélica sobre a pluralidade dos sentido de ser ou do ente) “ (Ricoeur,  2008, p. 63) … mas não falou (inicialmente era escrito de uma conferência) disto e sim das duas filosofia segundas.

Sua análise está fundada “num primeiro momento, pensar a justiça e a verdade uma sem a outra; num segundo momento, pensá-las de modo da pressuposição recíproca ou cruzada” (Ricoeur, 2008, p. 64) e esta empreitada “nada tem de revolucionária, situa-se na linha das especulações sobre os transcendentais …” (idem).

Ao abordar o primeiro estágio da análise: “Pensei na declaração de Rawls no início de Théorie de la justice: “A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, assim como a verdade é a primeira virtude das teorias” (pg. 65) e ali o autor retoma a parte ética de outro texto seu: Soi-même comme um autre, para “garantir o estatuto eminente da justiça”.

A ideia desenvolvida ali é que está tríade leva a “eqüidade”, não é o dualismo entre o Eu e o Outro (o próximo usa também Ricoeur), “a tríade pertence ao eixo horizontal não consiste absolutamente na simples justaposição entre o si, o próximo e o distante; é a mesma dialética do si. O querer viver bem enraíza o projeto moral da vida, no desejo e na carência, como marca a estrutura gramatical do querer … mas sem a mediação dos outros dois termos da tríade, o quer vida boa se perderia na nebulosa das figuras variáveis da felicidade … eu diria que o curto-circuito entre o querer vida boa e a felicidade resultado do desconhecimento da constituição dialética do si” (pg. 66).

O autor formula a ideia da distante nestes termos: “justa distância, meio-termo entre a pouquíssima distância própria a muitos sonhos de fusão emocional e o excesso da distância alimentado pela arrogância, pelo desprezo, pelo ódio ao estranho, desconhecido. Eu veria na virtude da hospitalidade a impressão emblemática mais próxima desta cultura da justa distância” (pg. 66).

A justiça no eixo vertical, aquele do poder e da norma é vista pelo autor assim: “no eixo vertical que leva à preeminência da sabedoria prática e, com ela, da justiça como equidade, pode-se fazer uma primeira observação referente à relação entre bondade e justiça. A relação não é nem de identidade, nem de diferença; a bondade caracteriza a meta do desejo mais profundo e, assim, pertence à gramática do querer. A justiça como justa distância entre o si e o outro, encontrado como distante, é a figura inteiramente desenvolvida da bondade. Sob o signo de justiça, o bem torna-se bem comum” (pg. 67).

Considero a tríade o si, o outro e o distante, se visto também como uma alteridade transcendente, há um outro “desconhecido” e que pode ser divino e portador de mensagens, na teoria das redes por exemplo o “elo fraco” é considerado fundamental, o ensaio de Ricoeur é rico, porém ao retomar a questão do imperativo categórico kantiano, que justifica o idealismo político, creio que Habermas está correto em afirmar que este é o deslise na consistente “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls atual e muito influente.

Uma parte da leitura bíblica pode ampliar o conceito deste distante como alteridade transcendente (Mt 5,20): “Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”, que no sentido deontológico poder-se-ia dizer “não entrareis na verdade da justiça”.

Uma parte da leitura bíblica pode ampliar o conceito deste distante como alteridade transcendente (Mt 5,20): “Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”, que no sentido deontológico poder-se-ia dizer “não entrareis na verdade da justiça”.

RICOEUR, P. Justo 2: justiça e verdade e outros estudos. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

 

 

A essência e a virada linguística

28 ago

O dualismo presente hoje nas relações humanas e sociais, concebe a essência apenas como analogia ao Ser, e isto ficou perdido na doutrina tomista, tornando-se uma onto-teologia até o século XX, isto é, uma visão teológica que só tem relação dual com o ser social, só com a variada linguística e a fenomenologia e com o reencontro do Outro, o não-Ser é retomado não como contradição, mas como essência do Ser.

A longa discussão do período medieval entre realistas e nominalistas, tinha como base um termo hoje pouco conhecido que era a quididade, que significa que coisa a coisa é, desde a hylé grega até os modelos modernos da metafísica de Heidegger, onde a coisa que pode ser material ou não, que já era pensado na linha de Husserl, seu antecessor e professor, que afirma que só existe consciência de algo, ou da coisa.

Existiu um filósofo na idade média, Duns Scotto (1266-1308) que não fazia distinção entre a coisa que existe (si est) e o que ela é (quid est), e teologicamente era complicado pois a tese de Tomás de Aquino (1225-1274) era pela analogia, ou seja, o significado de semelhança entre coisas ou fatos (dicionário Houaiss, 2009, p. 117),  e os religiosos sempre apressados cuidado porque no século XX Duns Scotto foi aceito dentro da doutrina cristã católica, tornando—se beato (João Paulo II o declarou).

Embora chamado de realista moderado, já era de certa forma, um linguista e um precursor da viragem linguística, também William de Ockham, seu discípulos trabalhou a questão da linguagem, com o famoso tema chamado de Navalha de Ockham, mais que a simplificação o uso da linguagem como forma de superação do dualismo nominalismo/realismo.

A sua teoria do conhecimento de Scotto, trás distinções conhecidas distinctio realis (distinção real) e existe entre dois seres da natureza, e a distinctio rationalis (distinção de razão) que se dá entre dois seres, mas na mente do sujeito que conhece, mas rompe o dualismo ao criar uma terceira possibilidade a distinctio formalis (distinção formal) que se dá no ente percebido e não é nem real e nem na mente.

Assim além de seu discípulo William de Ockham, famoso pelo princípio a simplificação chamado Navalha de Ockham, mas de certa forma Descartes, Leibniz, Hobbes e Kant tiveram sua influência.

Em tempos de pandemia foi muito mais importante a fraternidade de socorrer vítimas, que o debate ainda incerto da ciência e das “crenças” que este ou aquele procedimento é certo, em ambientes hostis quem venceu foi a morte, assim dogmáticos e autoritários só atrapalharam, porém isto também se perdeu.

Assim é fundamental para retomada da consciência do Ser que tenhamos presente o Outro, sem ele a sua essência e como ele é para cada homem fica preterida.

O que somos interior e exteriormente tem a ver com esta essência perdida.

 

Os pobres e a demagogia

27 ago

O discurso fácil, especialmente em época de política, é o apelo aos pobres, os esquecidos, os descriminados, etc. durante algum tempo os populistas até oferecem alguma coisa a população, políticas de distribuição de renda e crédito barato, porém o problema é que não esquecem de abastecer aliados e o próprio bolso, além das contas públicas que explodem.

Isto aconteceu em vários países da américa latina e o resultado é que a conta chega e aí vemos os fantasmas do autoritarismo e da revolta popular saltar para fora, agora se dão conta que também isto pode ocorrer em países da África, o Congresso Nacional Africano (ANC) , partido de Nelson Mandela que libertou a África do Sul do apartheid, perdeu as eleições para prefeito em Nelson Mandela Bay e também na capital Pretória.

O presidente sul-africano Jacob Zuma está envolvido em processos de corrupção e a miséria e a economia não funcionam bem lá, assim a população perde as ilusões com promessas futuras.

O populismo ilude com discursos, mas em muitas partes do planeta aos poucos uma maior divulgação dos fatos vai tornando mais necessárias ações concretas, posturas honestas e ainda mais políticas claras de retirar a população da pobreza, a Argentina foi um exemplo disto.

Em muitos países a população de rua e desempregados aumenta, até mesmo na Europa esta é uma das fontes de xenofobia, como pessoas de países pobres não recusam trabalhos pesados e salários menores, tem-se a impressão que estão “tomando” os empregos dos trabalhadores locais, a análise demagógica de algo está melhorando vai caindo por terra.

A ameaça de guerra pode tornar isto mais grave ainda, porque governos “duros” podem ser pensados como “necessários” neste momento, enfim é preciso um turning point, e não há como fazer isto sem políticas claras, sustentáveis e menos populistas para mudar o cenário.

É preciso eliminar a pobreza de modo radical e sem fronteiras, não bastam políticas públicas assistencialistas e imediatistas, é preciso ter um horizonte claro onde a dignidade de toda pessoa seja garantida, além do socorro imediato da fome, das guerras e de doenças endêmicas.

A eleição de prefeituras e estados regionais é claro, tem um viés mais provinciano, porém não deve deixar de contemplar um cenário global em mudança e uma mentalidade mais ampla, o mundo já é uma aldeia global a algum tempo.

 

A guerra e a ilusão do poder

23 ago

Seja qual a forma que definimos com poder, e isto não exclui o empoderamento dos fracos, é sempre uma forma de dominação de um ser sobre o outro, haveria então alguma forma de equilíbrio, ou no dizer da filosofia, alguma forma de simetria ou horizontalidade ? 

A resposta de Byung-Chul Han no livro No enxame parece direta e simples: o respeito, toda as outras formas supõem alguma hierarquia ou assimetria de poder.

É triste observar que muitas filosofias e espiritualidades contemporâneas também apontem para formas de poder: seja mais, seja o primeiro, como conquistar coisas a frente dos outros e milhares de formas “mágicas” para iludir e enganar gente inocente que embarca nestas falsas promessas.

Somos seres finitos e limitados, o equilíbrio e a vida social dependem de todos, e os ódios e as guerras são a manifestação mais cruel de formas de desequilíbrios e de assimetrias.

O igualitarismo é também uma ilusão, somos diferentes e com diferentes aptidões e isto não nos prejudica, a complementaridade humana nos ajuda a realizar diferentes tarefas e em diferentes contextos, alguns com mais talento e outros com mais dificuldades, porém não é preciso descartar ninguém, a vida social é composta pelo conjunto de ações individuais.

Porém o conjunto de valores e estímulos que temos interiormente dependem de uma ascese humana e espiritual, não um altruísmo idealista, mas um bom sendo de respeito e dignidade da qual todos somos portadores.

A sociedade moderna, desde o iluminismo e o idealismo resolveu que estes fatores “subjetivos” (na verdade é a interioridade humana, real e imaginária) deveriam ser descartados, e o resultado é uma sociedade violenta, sem equilíbrio e que depende da força bruta para equilibrar-se, nisto o Estado e a força policial acabam tendo um papel preponderante.

É rato optar-se pela não violência, pelo respeito ao diferente e aos valores morais, tudo isto parece duro e parece cerceador da liberdade, mas é a garantia de equilíbrio e serenidade.

Na bíblia, os discípulos diziam ao mestre Jesus: “suas palavras são duras” (João 6,60) e Ele respondia: “isto vos escandaliza”, “o Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada” e alguns decidiram não caminhar mais com Ele, o que pomos na mente é que encaminha nossa vida.

 

O poder temporal e o perdão

15 ago

O poder temporal raramente encontra espaço para o perdão, porém isto não significa que nunca passe pelo pensamento humano e pela filosofia, ainda que em sua essência perdoar seja divino, e isto significa ir além do que humanamente é pensável.

Para o filósofo Jacques Derrida: “quando o perdão está a serviço de uma finalidade, seja ela nobre ou espiritual, como a redenção ou a reconciliação, ou seja, cada vez que ele tenciona restabelecer uma normalidade, social, nacional, política ou psicológica, por um trabalho de luto ou terapia, não é puro […] O perdão deveria permanecer excepcional e extraordinário, colocando à prova o impossível, como se ele interrompesse o curso ordinário da temporalidade humana”, assim permaneceu dentro de limites humanos.

Não há dúvida que crimes contra a humanidade, atrocidades e barbáries são além do limite da “temporalidade humana” e assim o poder terreno também o é, uma vez que é temporal, mesmo ditadores que permaneceram toda vida no poder tiveram um fim trágico ou de morte temporal, e alguns foram esquecidos, outros até banidos da memória popular.

Assim é de se considerar como algo fundamental o perdão além do poder temporal, e ele poderia ser um regulador para períodos de crises e de guerras, em quase todas não se pode medir o grau de atrocidades cometidas, tanto da parte dos “vencedores” como “perdedores” e o racional (e divino) seria considerar que se enfiaram numa contenda que jamais deveriam entrar.

Assim também nossas mágoas e desavenças pessoais e sociais, o quão seria útil e saudável um momento de serenidade e sentar-se a mesa de diálogo e poder tratar de soluções impensáveis, ou no dizer de Derrida “colocando à prova o impossível”, o momento parece este.

Se tivermos a coragem de ouvir aquele “inimigo” que jamais ouviríamos, de dar a mão a alguém cuja mágoa ou desavença é muito grande, poderíamos retornar um caminho destrutivo que parece sem volta, e cuja superação depende apenas de uma atitude: perdoar.

Até mesmo aqueles que nunca nos pedirão perdão, perderam a serenidade e humanidade de ver o outro além de julgamentos e discórdias, há sempre um outro ser ali, ontologicamente só negamos o Ser, se negamos a ouvi-lo e dar-lhe algum crédito, talvez precise disto.

Perdoar é divino, quem dá este passo entende que há outra realidade além do que imaginamos ser real e possível, o impossível também está ao alcance de quem perdoa.

 

O amor além da dor

09 ago

A dor não é a resignação da interioridade absoluta: “o sujeito que trabalha na identidade, retornando a si mesmo na sua interioridade, assimilando o mundo, é incapaz da dor” (pg. 329), enquanto outros pensadores pararam na angústia ou na busca pela diferença ou ainda pelo sujeito destinado a um “espírito absoluto”, Heidegger vê na dor uma “tonalidade afetiva fundamental da melancolia” (Han, 2023, pg. 329), é a tonalidade do ser … da finitude … do pensamento finito, “é o traço idêntico que, como base certa maneira formal, sustenta toda tonalidade fundamental ocupada por algum conteúdo, o traço principal que, enquanto o mesmo, está na base do modo como respectiva afinação” (Han, 2023, pg. 330).

Não há um porque da dor senão uma separação de algo que a transcende, diz uma canção brasileira “quem não sofreu por amor, não amou”, mas pode-se inverter esta relação se conseguimos ver o divino como Puro Amor, Ele também através da dor nos ama por amor, talvez seja sua máxima essência, assim o símbolo cristão da cruz.

Toda a filosofia nos fala de estar separado de algo, de uma busca de algo, do desejo de infinito e de felicidade ágape (aquelas que não são duradouras são apenas paliativas), assim o nome do livro de Han “A sociedade paliativa”, fala da dor hoje.

Há uma atração neste tipo de essência, a relação entre dor e amor, não por causa de um espírito sofredor ou masoquista, mas justamente pela separação do infinito, da plenitude e do puro Ser, e somente a existência do Puro Ser pode nos atrair para este tipo de amor.

Uma frase de Han que é marcante é: “A perda moderna da fé, que não diz respeito apenas a Deus e ao além, mas à própria realidade, torna a vida humana radicalmente transitória.”, o filósofo coreano-alemão está muito mais próximo do budismo do que do cristianismo, mas entende uma relação essencial que existe neste Amor/Dor, neste Ser/Não Ser, não de forma dualista, mas em relação intima como o verdadeiro Amor.

Assim se há uma precedência na relação é Dor e Amor, mas não como negação da vida e sim como sua afirmação máxima.

HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

A dor e o divino

08 ago

O capítulo do livro sobre a Voz no “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva” de Byung-Chul Han, esta  Voz poderia ser final (o capítulo também), mas como Heidegger a via se tratava mais de uma Voz interior do que uma relação com o divino, e Han lhe foi fiel, para ele é parte do desenvolvimento do Ser, também ao falar da dor, assunto que Han tratou em a “Sociedade Paliativa: a dor hoje” (fizemos alguns posts), lembrando a maneira como tratamos a pandemia e outro flagelos numa sociedade que não quer olhar este lado da vida: o sofrimento e a dor.

Não por acaso, Heidegger trata isto ao elaborar sobre Parmênides, onde a ontologia está reduzida ao Ser é e não-Ser não é, para uma lógica A e não-A, não havendo terceira hipótese, ali Heidegger fala de “certa morte (sacrificial) do ser humano: “Mas a forma suprema da dor é o morrer da morte, que sacrifica o ser humano pela preservação da verdade do ser” (Han, 2013, pg. 321), assim não estão o sacrifício não é aqui, pois “o sacrifício tem em si sua própria essência e não precisa de objetivos nem de proveito? ” (idem) e assim isto deveria se encaminhar por algo além do terreno, do apenas humano.

Han citando Foucault indaga que “trata-se aqui de certa agonia despertar o pensamento de um “sono antropológico”?” (idem), talvez um despertar antropotécnico ou ainda como optamos um despertar onto-antropotécnico, uma vez que o esquecimento do ser não é categoria filosófica apenas, há algo nela transitório, não infinito e não aberto. 

Ao abordar o vazio do homem moderno, a partir também da leitura de Foucault, Han lembra que Heidegger ao retomar a categoria metafísica “subjectum” que em “sua essência é o homem moderno é o “sujeito” e é exatamente aqui que Heidegger “critica implicitamente o pensamento antropológico” (pg. 322), ela é segundo Heidegger: “a continuação do cartesianismo”, Han citando-o: “Com a interpretação do homem como subjectum. Descartes cria o pressuposto metafísico para a futura antropologia do todo tipo e orientação” (pg. 323), as categorias sujeito e objeto são próprias da modernidade.

Assim não é a oposição do homem ao ente, mas a oposição equivocada da modernidade à linguagem: “a preocupação pela linguagem seria preocupação pela morte. Devolver a linguagem ao homem significaria, portanto, devolver-lhe a morte, a sua mortalidade” (pg. 324), e também não se trata do ‘ser’ ou ‘não-ser’ do ser humano” (pg. 325-326).

Para Heidegger o sujeito se reflete no mundo; “a imagem do mundo é de certa forma sua própria imagem especular” (pg. 326), por isso ela esconde o ser, já a dor “dilacera a interioridade subjetiva. Não se perde totalmente. Á dor está associada uma concentração peculiar, que, no entanto, não se estabelece como uma interioridade subjetiva” (pg. 327).

Embora o autor e Heidegger não o digam é por isto que existe o “sono idealista”, onde subjectum e ente estão divididos, e “na dor, o pensar se concentra naquilo que dá a pensar … na dispersão concentrada da dor, o pensar voltando-se para fora aprende de cor o exterior – deste lado de cá do saber e da ciência, os quais possibilitariam um aprendizado interiorizante assimilador” (pg. 327).

É importante ressaltar a economia calculista vista por Heidegger: “A dor é do ´por´, não do ´devido a” … o luto não lamenta, não procura preencher o lugar que ficou vazio … o luto sem enlutar só é concebível fora da economia (VIII.3)” (citado em Han, pg. 328).

HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

A forma e o conteúdo

01 ago

A filosofia moderna separou a forma do conteúdo, assim como se separa um rótulo de um ingrediente que existe num frasco, mas isto vem da compreensão reduzida do que é a matéria, o hylé dos gregos, cujo pensamento na terminologia aristotélica interliga-os no hilemorfismo (ὕλη, hýle = “matéria”; μορφή, morphé = “forma”).

Para que isto tenha um alcance antropológico, necessário ao discurso da diversidade cultural, é preciso ligar ato e potência, como o fez Tomás de Aquino, onde matéria não é aquilo que hoje designamos assim (como a substância por exemplo), mas sim aquilo que é como possibilidade ou em potência, escrito assim por Tomás: “matéria est id quod est in potentia” (matéria é aquilo que é em potência) (TOMÁS, ST I q.3 a.2 c), em termos atuais, enquanto se não é ato, é apenas um dado.

Assim o ato é a existência de fato, ou a atuação em si, ou seja, “forma est actus (forma é ato) (ST I q.50, a.2, obi.3), assim deixamos nos moldar por ideias, ações e pensamento que podem ser mais profundos ou mais rasos, fundados apenas em algumas palavras.

Assim a articulação dos binômios potência x ato e matéria x forma é deste modo, “matéria não é senão potência, já a forma é aquilo pelo qual algo é, pois é o ato” (TOMÁS, ScG II, c.43), estas categorias dão uma distinção da metafísica fundamental, e antropologicamente significam que uma coisa é a possibilidade de existir ou atuar: potência ou matéria, outra coisa é de fato existir ou atuar: ato ou forma.

Algumas teologias modernas querem separar corpo e alma, isto é sem fundamento escatológico e bíblico, senão a figura humana de Jesus seria dividida em duas: a divina e a humana, que estariam em oposição e lutariam uma contra a outra, e por isto que a antropologia cristã deve ser rigorosamente unitária, como o é em Tomás de Aquino.

A existência de um corpo na condição humana é a união entre a potência e o ato, entre a matéria e a forma (vista neste novo aspecto ligada ao conteúdo e essência), sem a sua existência de fato (forma) o corpo nem sequer existia, mas só a possibilidade de existir (em potência) o faz existir em ato, esta unidade é radical, já que a condição necessária para sua existência é o corpo, assim espiritualidade não é só “corpo” há uma essência nele.

É fundamental para compreender a antropologia cristã, escrita de forma clara por Tomás: “O ser humano não é apenas alma, mas algo composto de alma e corpo” (TOMÁS, ST I q. 75 a 4c), se por um lado nem todo materialismo (que não é hilemorfismo) nega a existência da alma, muita má teologia procura negar a existência do corpo, é a relação dualista moderna, cristalizada em objetividade e subjetividade, no qual ambas saem mutiladas, assim não foram “moldadas” com um espírito novo.

Segundo Tomás de Aquino, os corpos vivos humanos e a existência de fato (forma, chamada também por ele de alma intelectiva) é imortal, ao contrário dos demais corpos vivos não humanos, cuja existência tem início e fim, não o fim escatológico, mas o fim finalista de uma interrupção, pois todos os humanos morrem, e para ele a morte é explicada como uma deficiência provisória pela qual passamos apara uma existência imortal e ultrapassamos a deficiência radical do corpo vivo através da morte.

A metáfora do oleiro que transcende a análise simplista de simples adesão (Jr 18, 3-4): “Fui à casa do oleiro, e eis que ele estava trabalhando ao torno; quando o vaso que moldava com barro se avariava em suas mãos, ei-lo de novo a fazer com esse material um outro vaso, conforme melhor lhe parecesse aos olhos”, somos moldados e é bom escolher o oleiro.

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica São Paulo: Loyolla, 2001-2006. 8 v.

 

Construir a vida e não excluir

30 jul

Tanto Nietzsche em A gaia ciência como O pós-Deus de Peter Sloterdijk, afirmaram a morte de Deus, na verdade é só uma tentativa de matar Deus, porque se não existe não se pode matá-lo e se existe é imortal, então só podemos apenas apagá-lo de nossa mente temporariamente pois voltará intuitivamente, a prova é que ateus não O ignoram.

O texto de Nietzsche é claro, mas também foi deturpado: “O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. ‘Para onde foi Deus’, gritou ele, ‘já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis?” (Nietzsche, A gaia ciência, § 125)

Assim não podendo matá-lo destroem seus valores “simbólicos” como a Santa Ceia nas olimpíadas, por exemplo, ou deturpando a história verdadeira do Deus homem: Jesus, como fez a teologia idealista de Ludwig Feuerbach que postamos recentemente, criou um “absoluto” vazio e abstrato, que não pode ser Deus pessoa trinitária.

Porém a reação ao Teocídio hegeliano, aquele de Feuerbach, em que Deus só existe na mente e assim é um algo do pensamento ideal e só com a “transcendência” idealista o alcançamos, há a reação religiosa de se fechar na “comunidade dos eleitos”, dos prediletos de Deus, os escolhidos por critérios que uma certa comunidade determina e o restante são leprosos, pecadores públicos e indignos do “reino”, má semente.

A parábola do joio e do trigo é clara, ambos nascem em um mesmo ambiente, porém uma não dá frutos, não participará da colheita do trigo e será separada como palha.

De certa forma a reação a este Deus elevado, distante dos homens “todo poderoso” não passa de uma visão do poder também mundano e temporário e de uma forma de ascese desespiritualizada, a vida de “exercícios” como preconiza Peter Sloterdijk.

A verdade espiritual é aquela em que todos são incluídos, existe unidade e respeito a todos e ninguém é visto como leproso ou má semente, isto é interpretação farisaica, porém é claro que boa semente dá bons frutos então pode-se olhar a realidade a sua volta, mas sem julgamento preconceituoso ou excludente.

Fundada no perfeccionismo e no moralismo extremado, a moral que é importante e não se deve negá-la, porém, levada ao extremo torna o “vício” muito mais próximo e passível de cair nele, ou seja, são na verdade são falsos moralistas porque não conseguem pôr em prática o que defendem, e são estes falsos exercícios que levam a uma prática de desvios e aberrações morais.

A união destes conceitos com o verdadeiro humanismo, aquele cuja inspiração é divina, não pode e não deve levar a atitudes de exclusão, de isolamento e falta de caridade.

Tudo tem que ser pensado de um modo equilibrado, da política à religiosidade, da família a vida social, da ação social à contemplação.

 

Promoção social e bens públicos

26 jul

A promoção da vida social e a verdadeira boa administração dos bens públicos (água, energia e saneamento) são os verdadeiros insumos básicos de promoção social da vida humana, porém é o que se vê só em propagandas eleitorais, mostram riquezas que serão acessíveis a todos, mas poucos e só em época de eleição.
Falar da fome é o slogan de muitas eleições, em todo mundo, porém as condições que são sustentáveis para isto pouco ou quase nunca são entendidas, e elas dependem sim de um maior equilíbrio de mercados mundiais e garantias de importação e exportações dos insumos básicos, inclusive para a saúde.
Crises econômicas, basicamaente é um desequilíbrio entre a produção e distribuição de bens essenciais e o consumo, e surgem em setores isolados da economia, não é necessário que haja a escassez de vários bens, é um desiquilíbrio em cascata e os capitais e bolsas são mais reflexos do que origem destas crises, que incluem as guerras e revoluções.
Também fatore naturais podem influenciar (secas, inundações, epidemias ou algum evento de grandes proporções como um terremoto ou uma crise atômica que agora é possível).
Assim os verdadeiros tesouros devem ser aqueles que levam a humanidade a um maior equilíbrio e sustentabilidade, incluindo os cuidados com a natureza, pois dela dependem as produções de alimentos, de energia e até mesmo de bens de consumo menos essenciais.
Os verdadeiros tesouros assim, mesmo que só pensemos nos terrenos esquecendo dos espirituais que nos dão conforto e verdadeira alegria, são aqueles que propiciam um maior entendimento civilizatório, a tolerância entre raças e culturas, e nelas não pode ser relegada a segundo plano as que incluem o plano espiritual.
A cultura cada vez mais crescente do individualismo, do ódio (de diversos tipos), da acumulação de bens como símbolo de felicidade, do consumo até mesmo do corpo e da mente humana levam ao caminho oposto daqueles que querem construir tesouros reais.
Os ilusórios passam, a traça consome, o tempo enferruja ou apodrece, porém o que permanece é essencial e dele depende uma verdadeira ascese espiritual, um bem que vislumbre as gerações futuras, e para os que creem, a eternidade.
Assim a crise atual é na sua base uma crise do pensamento, dos valores éticos e solidários, do respeito mútuo e de uma clareza sobre o que significa construir tesouros verdadeiros.

Na bíblia Jesus pega poucos pães e peixes e distribui, o significado é bem direto e simples o pouco distribuído alimenta a todos, e mal distribuído causa opulência de alguns e fome e miséria a muitos.