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A cura, a alma e a lei
A pandemia segue um percurso ainda mais perigoso que é a produção de novas variantes ou novas cepas, toda humanidade quer a cura, mesmo os chamados negacionistas, todos sofremos e porque a cura não vem, o que falta para a ciência, ou para a compreensão do vírus que não acontece, na verdade temos outras doenças que são comorbidades sociais: fome, miséria, ignorância e intolerância que não dão trégua também, e a doença da alma humana da qual não se fala ou apenas da “religiosa”.
Ah sempre foi assim, não temos outra solução, falamos no post anterior sobre a próxima pandemia, se não nos curarmos é claro, há um caso diferente e emblemático.
Em 1977, Ali Maow Maalin, um cozinheiro de um hospital na Somália, pegou varíola, ele não sabia, mas era a última pessoa do mundo a contrair naturalmente a doença, ela infectou 1 bilhão de pessoas e matou 300 milhões no século 20, quando ficou curado entrou para a história, a varíola foi considerada erradicada, duas coisas foram necessárias: a vacina e gerenciar a doença.
O gerenciamento deve ser global e a OMS deve ter um papel essencial nesta luta, identificar os focos e agir com rapidez e firmeza para evitar que doenças infecciosas se alastre.
A doença que impede isto é a doença da alma, estamos quase sempre em polos de radicalização e não permitimos um avanço fraterno e geral de todos os países e em todos os países pela OMS, este problema da “alma” humana não será resolvido apenas pela lei, política e repressão, é preciso educar.
As religiões poderiam ter um papel essencial nisto, criados para tornar a família humana filha de um só Pai e assim todos seus filhos, limitados que somos diante de doenças sanitárias e sociais, não se realiza porque a alma humana segue doente, e só a “lei” não resolve é preciso mudar a mentalidade, só a radicalização produziremos mais ditaduras e menos fraternidade.
Na passagem Bíblia que Jesus cura um paralítico, e ele sai levando a cama, os judeus dizem que não era permitido carregar a cama no sábado (João 5,10-13) e Jesus já havia perdoado seus pecados, isto é curado sua alma, e nós permanecemos doentes do pecado e da mentalidade.
Teilhard Chardin escreveu “Construire la terre” (Ed. Soleil, 1958) onde fala da “alma comum”, voltaremos ao tema.
A clareira de Chardin
A palavra está na filosofia heideggeriana, porém estudando a etimologia alemã chegamos à palavra Lichtung, onde o significado é de uma clareira na floresta, enquanto Licht é a palavra para luz, ou seja, retirar as coisas ocultas e desvelá-las para que a verdade venha a tona.
Em Chardin significa olhar para o Cosmos em sua complexidade e adquirir a consciência de um universo imenso e infinito no qual estão presentes Alfa (origem) e Ômega (fim), porém com o significado de dar a consciência-complexidade a luz necessária para entender o processo da vida.
Começa no Fenômeno Humano e estará mais claro no seu livro “O meio divino” onde fala da vida interior, não no sentido intimista, mas no sentido de religá-la a Deus e ao próximo.
Explicando melhor pela leitura de Chardin:: “no seu esforço em direção à vida mística, os Homens cederam muitas vezes à ilusão de oporem brutalmente o espírito e a carne, o corpo e a alma, como se tratasse do Bem e do Mal. Apesar de certas expressões correntes, esta tendência maniqueísta nunca foi aprovada pela igreja… “ (p. 117), porém que é resistente e é sempre presente no discurso religioso cotidiano, . as visões meramente econômicas e políticas da religião levaram a este estado.
Por isto Chardin insistirá em uma vida “interior”, aquela capaz de alcançar os desígnios divinos dentro das realidades humanas, por isto “o meio divino”.
Mas o que é o meio divino, é aquela tensão permanente: “lentamente acumulada entre a Humanidade e Deus atingirá os limites fixados pelas possibilidades do Mundo, e então será o fim” (pag. 177), devemos esperar não como uma catástrofe ou um grande sinal, e sim uma ´saída´ para o mundo que se encaminha para uma crise civilizatória, e para a qual devemos colaborar que ela passe, com todas as nossas forças cristãs, de outras religiões ou de “boa fé”, sem receio do mundo,
A luz veio ao mundo, diz o evangelista João (1,20-21), mas quem pratica o mal a rejeita, “Mas, quem age conforme a verdade, aproxima-se da luz, para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus”, e assim realizar nossas ações dentro do “meio divino” onde tudo é religado ao Cosmos.
CHARDIN, Teilhard. O meio divino: ensaio sobre a vida interior. Lisboa: Editorial Presença, s/d.
O futuro humano e a unidade
Diversos pontos do pensamento de Teilhard Chardin são coincidentes com as novas correntes teológicas que surgem no meio religioso, em especial no católico porém Chardin abriu seu espírito ainda mais ao praticamente migrar para a China, o ambiente e a filosofia oriental o influenciou.
A sua originalidade está tanto na síntese evolutiva de sua visão, como vários aspectos de uma escatologia futurista que abrange todo o Cosmos e cuja convergência ele chama de “Omega”, que é uma força individualizada, porém não isolada, diferente de autores que param na crítica ao problema do individualismo contemporâneo sem entender que a individuação tende a este “ponto-Ômega” e é preciso crescer na consciência junto com o desenvolvimento cósmico.
futurística, que a evolução persegue e que atua no nível da consciência humana.
Alguns autores entendem a Cristosfera como recapitulação de tudo, dizem alguns teólogos, mas o processo evolutivo culmina como o homem, mas não termina com o homem, o universo, o homem e a mulher, a trajetória histórica, tudo respondem a um caminho para a Parusia do Senhor, e ela é inevitável e o ponto alto de uma escatologia cristã, e negar o final de tudo é negar o processo escatológico ou ao menos não o compreender em sua plenitude.
Assim afirma o U. Zilles sobre Chardin: “É o Cristo ressuscitado, que incorpora o mundo e a humanidade ao Corpo Místico, no acabamento do Cristo Total”, assim isto significa que a Terra e o Universo estarão preparados para a Parusia do Senhor, ou a volta de Cristo, na escatologia plena.
Como força de ação individualizada Ômega não está sujeito ao tempo e ao espaço (a física atual já mostrou estes conceitos como não absolutos), assim propriedades como autonomia, atualidade, a irreversibilidade e a transcendência não estão submetidas a ações temporais, e sim ao Ômega.
Chardin explica que os múltiplos fatores ecológicos, fisiológicos, psicológicos que aproxima e unem os seres vivos, especialmente os seres humanos e que especialmente as condições ambientais, físicas e espirituais são o prolongamento e a expressão, a um nível de energias da complexidade-consciência que elas podem levar uma maior aproximação do Ômega.
Eram assuntos pouco presentes no mundo eclesial cristão no seu tempo (Chardin faleceu em 1955), e suas teorias pareciam extravagantes demais, porém hoje se fala em diálogo inter-religioso, unidade dos cristãos, e uma maior aproximação de todos da família humana.
Diga -se de passagem que tudo está nas diversas passagens de Jesus (aproximação dos humildes, diálogo com pecadores públicos e por fim entrega nas mãos de maus religiosos e políticos do seu tempo), o que Chardin quer dizer é ainda além, que se entendermos a complexidade-consciência, ajudamos a humanidade a dar um salto de qualidade que nos aproxima mais do ponto Ômega.
A fenomenologia de Chardin é radical porque a Criação é o princípio dos fenômenos, e nela sempre opera o divino, presente nas ações e leis que regem os organismos e seres vivos: Deus está no nascimento e no crescimento e no fim de todas as coisas, […] não se mistura nem se confunde com o ser participado que sustenta, anima e liga” (RIDEU p. 271).
Assim olhar para os fenômenos do universo é olhar para a grandeza e o desenvolvimento humano, não por acaso cientistas buscam em cometas, astros e estrelas de todo cosmos sinais de vida e da origem da vida, ali se encontram também as marcas da Criação e do Criador.
ZILLES, U. Pierre Teilhard Chardin: fé e ciência. EDIPUCRS, 2001, pag. 59-60.
RIDEAU, E. O pensamento de Teilhard de Chardin, Ed. Duas Cidades, 1965, p. 271
Aprofundando a espiritualidade de Chardin
Chardin desenvolve em todo os seus escritos e trabalhos duas leis que são perfeitamente dialogáveis e conectadas aos avanços recentes das diversas ciências e do processo que ele chama de “hominização”, isto é dar ao mundo uma cara cada vez mais humana e mais amorosa.
Assim não olha para o progresso humano com desdém ou com o lugar comum de criticar qualquer avanço moderno, para ele o movimento evolutivo segue numa complexidade crescente, do simples ao complexo, dos átomos e moléculas, passando pelas células a formação de uma gama de seres vivos com uma clara e sucessiva complexificação, porém outra lei deveria acompanha-la.
A lei da interiorização ou complexificação, assim a consciência deve integrar-se ao processo cada vez mais profundo da complexificação da vida dos seres vivos, e isto necessita de um processo de interiorização, ele deve corresponder a cada momento específico da complexificação.
Explicando em palavras mais simples, se usamos técnicas e conhecimentos avançados é preciso que a consciência acompanhe cada passo da evolução, criticá-la ou criar repulsa ao que é complexo é trilhar o caminho da negação da evolução e assim de não ter a consciência adequada a cada passo histórico, em termos de crise cultural e até civilizatória, o passo precisa ser um salto.
Sua leitura do processo de complexificação não ignora o desenvolvimento da “pessoa”, ou aquilo que na filosofia é chamado de “ipseidade” ou singularidade, porém remete para além dela própria e a filosofia contemporânea contempla isto ao refletir sobre o Outro, que há desde reflexões filosóficas como um “ir além” de Gabriel Marcel ou Paul Ricoeur, até Encíclicas Papais, a recente Fratelli Tutti cita estes autores assim como a Gaudium et Spes afirma que a plenitude não pode ser encontrada “a não ser no sincero dom de si mesmo”.
Chardin fala da personalização do universo (no sentido de presença da pessoa), com a evolução dos seres vivos até a chegada do humano, deve trazer à luz o que cada um possui de em si uma irrepetível: sua singularidade, o que na filosofia é a “ipseidade” ou singularidade, mas lançada além dela própria: “O que temos de nós próprios, “o cúmulo da nossa originalidade, não é a nossa individualidade, é a nossa pessoa [o ser para alguns filósofos]; e esta, em razão da estrutura evolutiva do mundo, não a podemos encontrar senão unindo-nos” (Chardin, 1965, p. 289), os colchetes são inclusões nossas.
Entender este significado para Chardin é penetrar em sua profunda filosofia unida aos outros, aos cosmos e ao Ser Absoluto princípio e fim do universo e da vida: “O processo cósmico da personalização tem como finalidade realizar a personalização, a existência de pessoas cada vez mais pessoas, até se integrarem, sem deixar de serem pessoas, na última comunhão com a Pessoa absoluta” (Chardin, 1965, p. 266).
CHARDIN, T. (1965) O fenômeno humano [1956]. Brazil, São Paulo: Herder.
Teilhard de Chardin e a espiritualidade
Cito muitas vezes de cabeça o fato que Chardin seja enviado pelos Jesuítas para a China por considerarem seu pensamento um pouco avançado para a época, para dizer o mínimo, sua primeira viagem foi em 1923, mas houve tantas entre os anos 1923 e 1945 que ele a considerou sua “segunda pátria, e diz sobre ela: provo pela China, meu país adotivo, um grande reconhecimento. A China foi a sorte da minha vida. Contribuiu, com sua imensidão enormidade de suas dimensões, para ampliar o meu pensamento e elevá-lo à escala planetária” (apud Teixeira, 2012, p. 171), por isto digo que a China “confirmou” suas teses e sua espiritualidade.
Tal foi sua sorte, que disse a um amigo Padre Leroy, que registrou em livro: “Posso dizer-lhe que vivo agora permanentemente na presença de Deus”, Chardin fez sua passagem justamente na Páscoa de 1955, em Nova York, aos 74 anos
Coloco três obras como fundamentais para entender sua espiritualidade: O fenômeno Humano, o Meio Divino e o Grupo Zoológico Humano (1948), infelizmente parte de sua correspondência pessoal e de seu diário foram perdidos, e poderiam muito bem complementar seu pensamento.
Como um intelectual rejeita o pensamento teológico-filosófico ingênuo que quase sempre cai em armadilhas de puro Devocionismo (a devoção é importante), do dogmatismo superficial (a religião tem dogmas) e procura fazer uma leitura mais adequada ao homem contemporâneo.
Refuga a tendência a uma especialização extremada e assim caminha com outros pensadores atuais para o chamado “paradigma da complexidade”, no fenômeno humano vê o homem como o processo de complexificação da vida desenvolvida na Biosfera, aquilo que levou muitos a vê-lo como evolucionista e alguns teólogos como panteísta.
A deplorável situação em que se encontra o cristianismo era uma de suas preocupações constantes e tinha ao mesmo tempo um desejo de voltar às origens, como atualizá-la em contato com um mundo moderno que sofreu transformações culturais e sociais, escreveu:
“… a grande objeção de nosso tempo presente contra o cristianismo, a verdadeira fonte de desconfiança que tornam estanques à influência da Igreja blocos inteiros da humanidade, não são precisamente dificuldades históricas ou teológicas. É a suspeita de que nossa religião torna desumanos os seus fiéis (TEILHARD DE CHARDIN, 2014, p. 35).
Diz um cardeal-poeta português José de Tolentino Mendonça: ““Ser cristão é um risco, ser humano é um grande risco”, também busca uma visão realista do mundo moderno e como poeta procura integrar-se a ele, o meio divino é também o meio humano em Chardin e está imerso no universo, o grande mistério do Amor de Deus e o grande meio divino no qual a vida emergiu.
TEILHARD DE CHARDIN, Pierre. O Meio Divino: ensaio de vida interior. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
O cosmos e a ira divina
O modelo de universo racional/idealista era de um cosmos funcionando como um relógio, a realidade e o cosmos se mostraram além da ideia dos modernos (o eidos grego é outra coisa), se mostrou como um modelo quântico onde existe um terceiro incluído (modelo de Barsarab/Lupasco) e no qual o tempo e o espaço não são mais absolutos e matéria é energia.
Assim o antigo modelo de harmonia foi modificado pela física atual, chamada de Física do Modelo Padrão que a partir da física das partículas desenvolveu um modelo unificado para as forças que atuam sobre a matéria, e inclui as forças fundamentais forte, fraca e eletromagnética e gravitacional unificando-as a teoria quântica dos campos, a mecânica quântica e da relatividade especial.
A recente descoberta da Bóson de Higgs, incorretamente nomeada partícula de Deus supondo que ela seria responsável pela atribuição da matéria aos corpos, este modelo explicou a atração magnética dos planetas, a luz e os diversas formas e dividiu a matéria em muitas partículas.
Após a criação o universo e sua expansão determinadas leis desenvolveram corpos, planetas e sistemas planetários em formação e ocaso, estudos atuais mostram o desenvolvimento das estrelas vem de gás interestelar e poeira cósmica e hidrogênio que a baixas temperaturas entram em colapso e formam moléculas que dão origem a protoestrelas, estas sob pressão e rotação formam as estrelas.
Além do nosso conhecimento este universo em expansão age de forma muitas vezes surpreendente e hoje sabemos que não apenas aquilo que ocorre no planeta tem influência interiores como também exteriores, as explosões solares e a aproximação de corpos celestes por exemplo, enfim somos um minúsculo grão de areia num universo muito mais complexo e errante.
Todo este corpo celeste age com sua harmonia própria e não necessariamente como são pensadas as leis atuais que conhecemos então sempre é possível uma surpresa, por exemplo, hoje se procura o nono planeta (Plutão foi rebaixado para planeta anão) que teria uma órbita externa ao nosso sistema planetário e estaria agora em aproximação do sistema, afetando por exemplo o Cinturão de Kuiper, e teria uma orbita de translação de 14 mil anos e existiriam outros corpos externos do Sistema Solar.
Dentro desta nova lógica do universo, movimentos aorgicos (do inorgânico sobre a vida orgânica) não apenas é possível como facilmente explicável, o ambiente em torno da biosfera é um organismo vivo e este está dentro de um universo mais amplo e sujeito as suas leis.
Aquilo que acontece na esfera humana também tem seus equilíbrios instáveis e desequilíbrios, assim não se podem mais pensar em tudo como uma “harmonia”, no sentido cartesiano, e sim como aquilo que tende a favorecer ao funcionamento do universo como um todo e para o qual as forças tendem a empurrar perante suas próprias leis e determinações aos olhos humanos podem ser a ira divina, ou a “perfeita harmonia divina”, porém diferente daquela explicada como movimento preciso de relógio.
A carta de Paulo aos Corintios (Cor 1,1, 22-25) dizia que os gregos pediam sabedoria e os judeus sinais, mas que para Deus isto era insensatez humana, o universo esconde o amor e a ira divina.
A noosfera: da matéria primária ao pensamento
Teilhard Chardin descreve assim a complexificação a partir dos primeiros desenvolvimentos da vida, a passagem crítica da vida das células para uma vida ultracomplexa:
“Provavelmente jamais descobriremos (a não ser que, por sorte, a ciência de amanhã consiga reproduzir o fenômeno no laboratório) – a História por si só, em todo o caso, jamais descobrirá diretamente os vestígios materiais desta emersão – aparição – do microscópico para fora do molecular; do orgânico para fora do químico, do vivo para fora do pré-vivo.” (Chardin, 1965, p. 63)
Embora possa parecer que a natureza teria feito esta preparação sozinha, chama a atenção a originalidade essencial da célula produzindo algo inteiramente novo, e compondo uma multiplicidade orgânica num mínimo espaço, embora o processo possa ter levado anos, cada célula foi longamente prepara para ser algo original.
Será através de discretas, mas decisivas mutações que ocorreram durante milhares e milhões de anos, que a complexidade de células e seres vivos foram se formando sendo possível perceber “os irresistíveis desenvolvimentos que se ocultam nas mais frouxas lentidões, a extrema agitação que se dissimula sob o véu de repouso, o inteiramente novo que se insinua no íntimo da repetição monótona das mesmas coisas” (Chardin, 1965, p. 8).
Foi pela complexificação da vida que surgiu o humano, na origem Deus o fez de matérias inorgânicas, metaforicamente a Bíblia diz do barro, porém é certo que o universo nasceu antes.
Assim o mundo da physis (Chardin vê sua física no sentido grego da palavra) estaria ligada a biologia, e pensa:
“Poderíamos hesitar um só momento em reconhecer o parentesco evidente que liga, na sua composição e nos seus aspectos, o mundo dos proto-vivos ao mundo da física-química ? Quer dizer, não estaremos ainda, neste primeiro escalão da vida, senão no âmago, pelo menos na própria orla da ´matéria´?” (Chardin, 1965, p. 66)
Ao nascimento da vida humana, após bilhões de anos depois da formação do universo, uma grande e decisiva mutação ocorrerá, o nascimento do pensamento e da consciência, e do que Chardin chama de interiorização, que em termos religiosos significa a alma individual que é também ligada ao coletivo, o princípio da associação desde as primeiras células.
Ao pensamento e à consciência desenvolve-se a noção de pessoa, esta experiência foi dada graças ao desenvolvimento cerebral do homem, e aos desenvolvimentos do que Chardin chama de Noosfera, a última etapa depois da Biosfera, a criação e desenvolvimento da vida.
Desenvolver e explicar a cosmogênese chardaniana é um longo processo que nem mesmo em vida ele desenvolveu completamente, muitos avanços da astrofísica atual (muitas descobertas tentam explicar a origem da vida) ajudam a compreensão, o que importa é ressaltar que o panorama de evolução do próprio cosmos, não apenas a Terra, está ligado ao desenvolvimento da consciência e da capacidade humana de ligar-se a harmonia da vida.
CHARDIN, T. O fenômeno humano. BR, São Paulo : Herder, 1965.
A primeira mutação aórgica
Como se originou exatamente a vida é ainda uma especulação, uma das teorias mais elaboradas foi feita por Lynn Margulis (1938-2011) primeira esposa de Carl Sagan famoso pela série Cosmos, a teoria dela chamada de Endossimbióse.
Nesta teoria as mitocôndrias e cloroplastos tornam-se organelos em uma célula, os primeiros por energia química e o segundo por fotossíntese, embora a teoria nunca foi comprovada em laboratório é interessante, Teilhard Chardin as chamava de “cadeia de moléculas carbonadas” (O fenômeno humano) e ATP (adenosina trifosfato) molécula transportadora de energia nos seres vivos, há outras teorias é claro.
Fundamentalistas de plantão fiquem calmos, também no Genesis da Bíblia está que Deus fez o homem do barro e depois soprou-lhe nas narinas, assim também a vida surgiu em determinado momento (Genesis 2,7), e o texto anterior diz que “mas subia da terra um vapor que regava toda a terra” (Gn 2,6), esse vapor bem que podia ser o CO2.
Talvez nunca saibamos exatamente como isto aconteceu, porém é certo que a Terra e a Natureza vieram antes que os organismos vivos e certamente depois deles (ou da maioria deles) apareceu o homem, porém a mutação aórgica não parou ai.
As mutações gênicas, embora raras podem acontecer, elas podem fazer surgir novos genes numa determinada população, por mecanismos de adaptação natural, se determinadas características forem favoráveis à sobrevivência e à reprodução em determinado ambiente, portanto se o ambiente muda as mutações podem tornar-se estáveis no novo ambiente.
A terra passou por diversas mudanças ambientais, e talvez a que estamos passando seja a que mais profundamente afeta a estabilidade do meio ambiente, pássaros e animais foram extintos e florestas e ambientes naturais devastados, assim é de se esperar que alguma mutação ocorra, porém será o ambiente o primeiro a mudar e reagir, assim fenômenos naturais podem ocorrer.
Isto levam muitos anos para ocorrer, mas de repente rompem-se numa cadeia de mutações, assim a descreve Teilhard Chardin: “os irresistíveis desenvolvimentos que se ocultam nas mais frouxas lentidões, – a extrema agitação que se dissimula sob um véu de repouso, – o inteiramente novo que se insinua no íntimo da repetição monótona das mesmas coisas” (Chardin, 1965, p. 8).
Em tempos de riscos pandêmicos, olhar ao universo da cosmogênese que vivemos é essencial.
CHARDIN, T. O fenômeno humano. BR, São Paulo : Herder, 1965.
Tempo de mudança na esfera cósmica
Um tempo de mudança real é sempre um tempo em que a natureza e a própria vida se transformam criando uma cosmogênese mais profunda que se desenvolve também na consciência, já chegamos a Marte com nossos aparatos e nos aproximamos de Vênus, na vida terrena já sabemos como os dinossauros foram extintos e de fato foi um meteoro, estudos do cosmos avançam.
Isto acontece porque a vida está ligada a consciência, e em fenomenologia ela é sempre consciência de algo, mas não está separada da metafísica na qual a própria concepção de Ser, de Natureza e de Cosmos evoluem, também no aspecto espiritual.
Um dos teólogos que nunca desvinculou a evolução espiritual da evolução da “espécie” foi Teilhard Chardin (aqui usamos um termo aristotélico-darwiniano não para confundir, mas para explicar), para ele, entretanto seguir a trilha da Patrística (os santos sábios do início da igreja) e da Escolástica (Tomás de Aquino, Santo Anselmo e agora o recuperado e santo Duns Escoto), o que acontece é a complexificação da Natureza na sua hominização (O Fenômeno Humano).
Aqui iniciamos a explicação do que chamamos de mutação aórgica, que pode acontecer em nova escala neste momento presente, não por causa do vírus mas do universo e da Natureza (aqui em maiúscula para torna-la também sacra), afirma Chardin na terra jovem nascente: “nas rochas mais sólidas, é possível distinguir, em vaga simetria com a metamorfose dos seres vivos, uma perpétua transformação das espécies minerais” (Chardin, 1965, p. 51), isto num primeiro momento levou-o a ser condenado como “panteísta”, porém uma leitura mais atenta, ele explica o processo.
A pré-vida estava imersa (poderíamos dizer já em germe) no átomo, mas onde já há vida, localiza-a espectro de elementos químicos no qual seus elementos vão se diferenciando (o termo químico para isto é polimerização, formação de macromoléculas pela união das outras mais simples), esta pré-vida “sobre os abismos do passado, observemos sua cor, que vai mudando. De era para era, o tom aviva-se. Algo irá rebentar-se sobre a Terra, não mais nascente, mas juvenil: a vida! Eis a Vida!” (Chardin, 1965, p. 58), a Terra teria permanecido bastante fria para que pudessem forma e subsistir, á sua superfície, as cadeias de moléculas carbonadas (molécula orgânica).
A Terra era então aquosa e nela começa a se formar aqui e ali, seres minúsculos, e uma espantosa massa de matéria organizada surge a última (ou melhor a penúltima) camada na ordem do tempo, dos invólucros do nosso planeta: a Biosfera (Chardin, 1965, p. 63).]
Esta evolução do inorgânico ao orgânico é a mutação chamada de Aórgica, e ela continuará, um dia ela poderá mudar a face do planeta e isto é parte da evolução humana também.
Os perigos de mudanças existem, não apenas por um vírus que obriga a natureza humana se adaptar, mas um asteróide (a causa apontada pela extinção dos dinossauros) pode nos atingir, o asteróide temido Apophis (foto), formado por uma gigantesca rocha existe e está sendo observado por astrônomos, sua aproximação temida será em 2029, claro não é previsto que nos atinja.
CHARDIN, Pierre Teilhard de. O fenômeno humano. São Paulo : Herder, 1965.
A ascese da alma
Vivemos tempos em que mesmo o pensamento organizado sofreu desvios e quem desejar encontrar a verdade terá dificuldade, a grande maioria das pessoas busca a ascese através daquilo que Peter Sloterdijk chama de “vida de exercícios”, receitas de como ter uma vida boa, em geral, apenas a financeira, mas em muitos casos também o cuidado com a alimentação e com o corpo e para ai, como fica a ascese da alma e onde encontra-la é a questão.
É certo que há aqueles que nem mesmo acreditam que existe a alma, porém vivem num desconforto de se apegarem apenas as coisas que passam e nunca encontrarem a que não passa, o desenvolvemos esta semana é a ascese do encontro com o Outro, aquele que não é o espelho.
As torcidas organizadas deste ou daquele tipo, desta ou daquela forma de espiritualidade, desta ou daquela corrente estão em busca apenas do espelho, alguém que pensa e que vive o modelo de ascese vinculado apenas a um grupo, por esta razão como são excludentes, não são um modelo para todos e não podem ser uma verdadeira ascese.
Mesmo em termos de religião, aquele que “ama a Deus que não vê e não ama o irmão que vê, é mentiroso” (Jo 1:4,20) também outras religiões têm fórmulas parecidas que se resumem na chamada “regra de ouro”, não fazer ao Outro aquilo que não gostaria que fosse feio a você.
Os mercados e shoppings lotam em tempos de pandemia, aparentemente até mais que em tempos normais, claro quando estão abertos e é permitido, as pessoas buscam lá o que uma falsa ascese deu, ou seja, uma vida de exercícios, neste caso de consumo.
Assim os tempos serão mais duros, e com mais dificuldade de encontrar a verdadeira paz que é aquela que nos leva ao alto, afinal ascese significa elevar-se, subir e chegar a uma região de conforto da alma, não material e nem mesmo aquele que entramos ali e ficamos bem (no nosso grupo ou torcida), e sim uma elevação do espírito e da alma que nos conforta, mesmo na crise.
A passagem bíblica que revela esta ascese é a passagem em que Jesus escolhe três discípulos e vai ao monte Tabor (cuidado porque a outra ascensão de Jesus é uma ascensão dívida, que foi depois de sua Morte e Ressurreição), diz esta passagem (Mc 9,2-3): “Naquele tempo, 2Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre uma alta montanha. E transfigurou-se diante deles. Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar”.
Depois do monte Tabor (foto acima) tiveram que voltar a realidade e descer de lá, Pedro queria ficar lá, esta é a diferença da outra ascensão na qual Jesus retorna a sua realidade divina (o céu é uma metáfora).
Tempo de ascensão verdadeira, a pandemia nos retirou tudo que era falso, ficamos diante do Ser.
O vídeo a seguir dá uma explicação cristã do significado litúrgico da leitura acima.
Transfiguração do Senhor, no Monte Tabor – YouTube