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Arquivo para a ‘Noosfera’ Categoria

A linguagem como pluralidade

23 jun

O problema da interpretação quando estamos pensando na linguagem surge como uma proposição demonstrativa, ocorre quando se torna tal interpretação como única e verdadeira, a proposta de Heidegger esta é uma das possibilidades da linguagem, mas não a única nem a principal, quando tratamos apenas de lógica ela não compreende a pluralidade da linguagem.

Isto está presente naquilo que hoje seja chama narrativa ou discurso, já tratamos em vários posts quando tratamos da Metáfora Viva de Paul Ricoeur, mas aqui a problemática é ontológica: o Ser.

A ciência e a técnica, assim como também a narrativa ideológica sequer tangencia o problema essencial da questão do ser, está voltada àquilo que se chama ciência natural ou da natureza:

“a ciência natural só pode observar o homem como algo simplesmente presente na natureza (…) dentro desse projeto científico-natural só podemos vê-lo como ente natural, quer dizer, temos a pretensão de determinar o ser-homem por meio de um método que absolutamente não foi projetado em relação à sua essência peculiar” (Heidegger, 2001, p. 53).

Este é o devaneio da tradição na concepção de linguagem e de verdade, aquela que traz a noção de finitude do ser: ser é tempo, assim por exemplo, acelerando o tempo pensamos em acelerar o ser, quando na verdade é o que provoca seu esvaziamento, tema comum dos heideggerianos.

Separamos o Ser ontológico do existencial, citando o próprio Heidegger, porque a analítica cai em outra armadilha que é ligar o ser ao sujeito, cópula e atributo, criando uma possibilidade estrutural da linguagem, ela é tentadora justamente por sua composição analítica, mas no fundo é essencialmente lógica e não onto-lógica, escapa-lhe o Ser.

Tal evasiva já era prevista por Heidegger: “a essência do ser em sua multiplicidade jamais pode ser em geral recolhida a partir da cópula e de suas significações” (Heidegger, 2003,p. 391). 

A linguagem carrega sua própria relação hermenêutica. Heidegger, a partir de Ser e Tempo, realoca a questão da compreensão e da busca da verdade, que estava colocada no âmbito da teoria do conhecimento, e a lança para o plano existencial, neste caminho surge o círculo hermenêutico, não preso a mera opinião ou ao logicismo funcional, nem ao analítico.

A hermenêutica de Heidegger ilumina a finitude humana enfatizando sua pertença à linguagem como o lugar que o humano habita, a noção de logos como desvelamento, como aletheia como os gregos a pensavam, verdade e realidade.

HEIDEGGER, M. Seminário de Zollikon Petrópolis: Vozes, 2001.

HEIDEGGER, M. Os conceitos fundamentais da Metafísica: mundo, finitude, solidão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

 

O conhecimento e o fazer

22 jun

A sociedade que vivemos é uma sociedade do desempenho, assim a chama Byung Chul Han que fez seu doutorado em Heidegger, é uma sociedade do fazer, mas não do saber-fazer.

Recordar “velhos teóricos”, endeusar teorias antigas que tiveram um funcionamento temporal determinado constitui o ocaso e a crise da filosofia, do pensamento não, porque o homem enquanto Ser é capaz de desvelar e descobrir, mas há um esquecimento do Ser.

O conhecimento não fechado em lógicas, com abertura e possibilidade de novas descobertas é o movimento constitutivo do tempo, não há algo totalmente compreendido e acabado, ele é constitutivo daquilo que acontece no tempo, e ele é que está sujeito a história, é um saber prático e da vida, um Lebenswelt como o chamava Husserl.

Heidegger partiu daí com influência direta de Husserl, o significado de sua Fenomenologia, supõe esta abertura para que se vejam as coisas como se manifestam, princípio do saber.

Assim não há algo compreendido, acabado, o que há é uma compreensibilidade num constante devir, implicando num saber prático, um saber-fazer mais do que objetivo de ciência, deve ser o fundamento de todo ato compreensivo como aquele que busca o conhecer.

A abertura essencial não é para a consciência hermenêutica como vista por Heidegger um ato primeiramente racional, é uma disposição afetiva, uma das estruturais existências do ser-ai, se mostra que compreender é sempre um compreender afetivamente, no sentido de “afetar”.

Segue-se ao afeto a interpretação, mas o que é interpretar aqui senão revisões e elaborações de sentido, postas em movimento, assim interpretação é para Heidegger:

“A interpretação de algo como algo funda-se essencialmente por ter-prévio, ver-prévio e conceito-prévio. A interpretação nunca é uma apreensão sem-pressupostos de algo previamente dado […]” (HEIDEGGER, 2014, p.427).

Um dos problemas filosóficos centrais de Heidegger é a questão acerca das possibilidades da linguagem, é a partir dela que o Ser elabora sua visão de mundo, da qual não pode escapar, ela que nos possibilita compreender o mundo, ela que elabora o ser-no-mundo.

Ser no mundo que implicaria num saber-fazer depende da visão de mundo, empobrecida e obscurecida pelo desempenho, pela exigência de eficiência e pela má articulação com o tempo.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo Tradução, organização, nota prévia, anexos e notas de Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014.

 

A angustia, o ser finito e o temor

18 jun

A angústia, enquanto categoria essencial, é o dado temporal mais significativo de nossa existência, o fato que o homem tem um fim, que ele morre e sua existência acaba, é a partir daí que Heidegger trabalha outro conceito que é o ser-para-a-morte [Sein-zum-tode].

Assim a morte é uma limitação da unidade originária do ser-aí, e significa a transcendência humana, o poder-ser, que contém uma possibilidade do não-ser, mas aqui só como negação, “o fim” do ser-no-mundo é a morte, este fim limita o poder-ser, que é a sua existência, e limita a totalidade possível do Dasein (1989, vol. II, p. 12)

É possível separar o medo do temor, deixar o primeiro dentro dos limites do finito, e o temor fora destes limites, aquilo que o imaginário humano penetra e projeta como não-ser, além da ser-para-a-morte, um ser-para-além-da-morte.

Byung Chul Han alerta que assim como a positividade a negatividade também é perigosa: “ela é definida pela negatividade da proibição. O verbo modal que a governa é o ´não-pode´ (…) A sociedade do desempenho, cada vez mais, está no processo de descartar a negatividade. A crescente desregulamentação está abolindo isso.  O ilimitado ´poder´ é o verbo positivo modal da sociedade da conquista (…) proibições, comandos e leis são substituídos por projetos, iniciativas e motivação. A sociedade da disciplina ainda é governada pelo ´não´. Sua negatividade produz loucos e criminosos. Em contraste, a sociedade do desempenho cria depressivos e perdedores.”

Assim é possível pensar na negatividade como um processo importante, embora gere medo, e a partir dela gerar um processo do temor, que longe de negar as proibições, demonstra que elas podem nos levar a resultados mais amplos que os prometidos pelo desempenho, é o além-do-ser.

Nem a transcendência do idealismo que é mera projeção do ser sobre o objeto, o assim chamado subjetivismo, nem o ser-para-a-morte como transcendência fatal, mas um temor produzido pela negatividade que nos leva a reconhecer limites, tal como aqueles que foram impostos na Pandemia e que não geram a morte, nem se confundem com o negacionismo que é o positivo modal, negar que a vida humana precisa de limites em situações de perigo.

A leitura Bíblica de Marcos (Mc 4, 35-41), pode neste quadro do temor, desvelar novas coisas sobre o ser, diz a leitura que “ao despedir as multidões”, Jesus foi com os discípulos “para a outra margem”, diria longe do ser-aí da pura positividade do ser-no-mundo, o barco enfrenta forte ventania e ondas fortes começam a encher a barca, o temor toma conta dos discípulos, temem pela morte e dizem ao mestre “estamos perecendo”, o mestre diz para o vento e o mar: “cala-te”.

Não se trata de mágica nem de simples demonstração de poder, a frase dita por Jesus explica muito: “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?”, mas eles ainda sentiam “um grande medo”, é a angústia.

 

A metáfora e o inefável

11 jun

O desafio epistemológico é apontado por Paul Ricoeur de aceitar o modelo da descoberta, pois rejeitá-lo “ou reduzi-lo a um experiente provisório, que substitua, na falta de um melhor, a dedução direta, é reduzir a própria lógica da descoberta a um procedimento dedutivo” (p. 369).

Neste contexto destacamos a função da parábola que cria uma cena que faz ponte entre o inefável e a realidade que ela re-descreve, ela introduz uma trama que produz algo além do cotidiano, o enunciado parabólico é também neste sentido, metafórico.

Como descrever uma realidade futura que ainda não aconteceu, a lógica tem sido re-descrever a realidade usando a retórica, que explora apenas a realidade presente e nega a utopia e a ficção.

Ricoeur define assim a parábola como a conjunção de uma forma narrativa e um processo metafórico e significa também a narrativa de uma pequena história fictícia com objetivo de interpretar uma outra coisa que segundo o narrador é preferível, para interpretá-la bem, deixá-la no sentido da metafórico.

Realidades futuras que não podem assim ser simplesmente descritas ou deduzidas porque de fato não aconteceram, o que será a nossa realidade pós-pandêmica, como será o futuro humano.

Muitos autores tentam desvendar esta realidade inefável, porém não é dedutível, é uma “ponte”.

Ao explicar as realidades divinas na Bíblia, porque Jesus dizia que ela era inefável, compara a diversas situações usando parábola, diz no Cap. 4 do Evangelho de Marcos (Mc  4:26-27: “Jesus disse à multidão: “O Reino de Deus é como quando alguém espalha a semente na terra. Ele vai dormir e acorda, noite e dia, e a semente vai germinando e crescendo, mas ele não sabe como isso acontece …”, compara com a colheita e uma pequenina semente que é a mostarda.

Assim descrever estas realidades apenas por lógica e dedução é desconhecer tanto a descoberta da própria realidade como falsificar, para um caminho científico, como as realidades divinas, uma minúscula semente torna-se uma árvore bela e frondosa, e isto acontece também na história.

RICOEUR, P. Metáfora Viva. São Paulo, trad. Dion Davi Macedo. 2ª ed, Ed. Loyola. 2005.

 

Favor fechar os olhos

03 jun

Poderia ser o contrário, mas a realidade é tão assustadora que apenas será possível enxergar aqueles que tiverem a coragem em fazer aquilo que parece insano neste momento, olhar para dentro e ver até que ponto colabora com esta realidade tão dura.

O diagnóstico veio para mim de forma inesperada enquanto perguntava o que é a eternidade e para onde quero que a humanidade caminhe, tinha a intuição que tudo deveria mudar começando por mim, e ao conhecer o livro novo de Byung Chul Han algumas respostas estavam ali, recebi o livro em dois dias e já posso comentá-lo.

A intuição estava fundamentada no que muitos já sabem: as grandes utopias e os grandes discursos desmoronaram e a pergunta óbvia era então para onde iremos.

As pistas de Chul Han são inspiradoras, já no subtítulo do livro: “Favor fechas os olhos: em busca de um outro tempo”, edição agora de 2021 pela editora vozes, o ensaio é de 2013.

Pode-se pensar que vivemos um tempo de aceleração, mas Chul Han chama atenção que as “narrativas não se deixam acelerar arbitrariamente, a aceleração destrói as suas estruturas próprias de sentido e tempo, o inquietante na experiência do tempo atual não é a aceleração como tal, mas sim a conclusão do tempo faltante”, ou seja, a falta do ritmo e do compasso.

A conclusão das coisas da prática de novas vidas, os ritos que fazem com as coisas sejam feitos com ritmo e compasso para fazer as coisas bem-feitas e chegar a sua conclusão.

A aceleração tem a sua causa na incapacidade universal de encerrar, o tempo continua se lançando para frente, pois ele não chega em lugar nenhuma ao encerramento.” (p. 20)

Foi assim que inverti meu diagnóstico, do fim das utopias e dos grandes ideais (no sentido de eidos e não do idealismo), não aconteceram não por falta de discurso ou de “boas intenções” e sim por falta de conclusão.

Mas é importante coerente com o discurso de Chul Han, rever o impacto dentro das pessoas, na sua integridade interna de fazer uma experiência até o fim, e Chul Han vai tocar em outro termo

Vai tocar num tema tabú da morte, presente agora durante a pandemia, “e em um mundo no qual a conclusão e encerramento dão lugar a um avanço sem fim e sem direção, não é possível morrer pois também morrer significa pressupõe a capacidade de encerrar a vida” (p. 29-30), entender que a vida é um ciclo.

Ele fala também do sujeito do desempenho, aquele que busca o máximo “o sujeito do desempenho é incapaz de chegar a uma conclusão”, e isto leva a se cobrarem demais e não concluir.

Entender que estamos no fim de um ciclo e é preciso conclusões próprias ou se “tem que a-cabar [ver-ender] em uma hora inoportuna [Unzeit]” (p. 30), para isto não ocorra é preciso fechar os olhos e se examinar.

Han, Byung-Chul. Favor fechar os olhos: em busca de um outro tempo. trad. Lucas Machado, RJ, ed. Vozes, 2021.

 

Ação sem conexão, a vida “activa”

02 jun

Ao criticar a “Sociedade do cansaço”, do eficientismo que Byung Chul Han retoma em seu ultimo livro, no post seguinte comentaremos, ambos apontam o dedo para o activismo, ou a palavra que Sloterdijk gosta: “agitacionismo”.

A noção de praxis que Sloterdijk defende não é a noção de praxis como um agir que considera o mito central da modernidade – o “agitacionismo”, que é, no fundo, apenas uma inversão da poesis e da teoria –, mas como um “deixar-fluir”, um tipo de contemplação activa.  

Desmistificar esta noção de praxis como correlativo necessário da razão-acção, a filosofia prática teria de tomar consciência de que se deixou iludir pelo mito da acção e de que a sua aliança com o constructivismo e o activismo a impediu de se dar conta de que o conceito mais elevado do comportamento não é a acção, mas o deixar-acontecer, o ser capaz de largar as coisas que passam por si e que agem através de si, para ser mais fiel as palavras do autor.

Para entender o que ele quer dizer com Critica da Razão Cinica, uma de suas obras mais hermética, ele diferencia o cinismo clássico do moderno, que vem da origem do trmo grêmio “kŷőn“, do cinismo moderno que se tornou uma “falsa consciência iluminada”.

O iluminismo pressupunha que se vivia nas trevas onde se praticava o mal, mas que este mal seria fruto da ignorância, assim sua tentativa de iluminar aqueles desprovidos da luz da razão, mas isto criou uma “falsa consciência”, uma visão deturpada da realidade,

O iluminismo pressupunha as trevas onde se praticava o mal, que era tido como o fruto da ignorância. A crítica tentava iluminar os antros desprovidos da luz da razão. Daí o conceito básico de ideologia como “falsa consciência”, como uma visão deturpada, e por isso, falsa, da realidade, e para que não se pense que isto é só filosofia, também o pensador “engajado” Slovoj Zizek, vai dizer que ela está inscrita nas próprias coisas.

De modo diferente era o que também propunha Husserl, do qual é herdeiro toda a afiliação da fenomenologia moderno, voltar a consciência das coisas mesmas.

O cinismo moderno, também se tornou uma forma de ideologia no qual uma máscara continua a se transformar em ação construindo grandes teorias que tanto “no sentido figurado” como “no sentido literal agem como se não soubesse ou desconhecessem a realidade, tudo é narrativa só para usar a palavra atual.

Daí a crítica da razão cínica defender um procedimento crítico-ideológico-clássico que tornou-se obsoleto, sendo que esta crítica agora contraponha uma leveza de humor ao excedo de teoria.

Dirá o autor: “[…] O grande pensamento da Antiguidade tem a sua raiz na experiência de serenidade entusiasmada, quando, no auge do ter-pensado, o pensador se põe de lado, deixando-se penetrar pela ´revelação´ da verdade”, é bem próximo do distanciamento proposto por alguns autores “activos” porém com as diferenças da serenidade “entusiasmada” e da vista do “Ser”.

Esta visão é a que na antiguidade se tinha do cosmos, diz o autor: “baseia-se para os Antigos em “passividade cósmica” e na observação de que o pensamento radical pode recuperar o seu inevitável atraso em relação ao mundo dado podendo, em virtude da sua experiência do ser, atingir o mesmo nível que o “todo.”

SLOTERIJK, P. Crítica da razão Cínica, trad. Marco Casanova. BR, São Paulo: Estação Liberdade, 2012.

 

O todo e a parte

01 jun

A parte e o todo se separaram na filosofia ocidental, o método racional consagrou esta divisão.

“O mundo torna-se cada vez mais um todo. Cada parte do mundo faz, mais e mais, parte do mundo e o mundo, como um todo, está cada vez mais presente em cada uma de suas partes. Isto s verifica não apenas para as nações e povos, mas para os indivíduos. Assim como cada ponto do holograma contém a informação do todo do qual faz parte, também, doravante, cada indivíduo recebe ou consome informações e substâncias oriundas de todo o universo” (MORIN, 2006, p. 67).

Isto é para entender aquilo que no pensamento complexo de Edgar Morin chama de princípio hologramático, isto foi também o ponto de partida do pensamento de Werner Heisenberg para dar início ao pensamento quântico e que tem um livro com este nome ao contrário, “A parte e o todo”.

Também Gregório de Matos Guerra (1639-1696), um dos representantes do Barroco brasileiro, escreveu um Poema chamada “Eucaristia”, no qual diz: “Deus está todo em todo sacramento”, e como seria importante para os que creem entender isto, para entender o que viver a palavra.

A moderna física atômica lançou nova luz sobre problemas desde éticos e políticos até filosóficos e religiosos, no livro de Heisenberg logo no prefácio que é quase uma biografia escrita de forma sui generis, ele fala de diálogos com Einstein, Plank, Bohr, Dirac, Fermi, Pauli, Sommerfeld, Rutherford e vários outros colegal.

A parte e o todo têm como subtítulo: “encontros e conversas sobre física, filosofia religião e política”, o que o torna também iniciador de um “pensamento complexo e hologramático” como propôs muitos anos mais tarde Edgar Morin.

Compreender a complexa situação civilizatória que vivemos não é possível sem esta compreensão.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2006

 

Só é trinitário se são três pessoas

28 mai

No século III os cristãos começaram a usar a palavra prósopon que significa o uno em três pessoas, o primeiro concílio cristão de Nicéia (325) foi discutido a divindade de Jesus, porque era ainda mais fácil, devido ao dualismo Ser e não-Ser, acreditar em dois do que em três.

Para subsistir a ideia dualista, alguns pseudo-teólogos lançaram mão da ideia que Deus-Pai é fonte e origem de toda divindade, assim as outras duas pessoas foram geradas pelo Pai, criando uma nova forma de negar a pericorese trinitária, ou se preferir “a dança” na relação divina interna.

Foram os padres capadócios, Gregório Magno, Gregório de Nissa e Basilio de Nissa que viram esta contradição, que vem revestida de nova roupagem, da troca da palavra prósopon (persona) por hipóstasis e esta por sua vez confundida com ousía.

Basílio usou da fórmula de Mt 28,19 que afirma que a comunicação dos Três no batismo manifesta o Espírito Santo na união do Pai com o filho, na mesma dignidade, e manifesta ao homem no batismo, por isto o batismo válido é em nome das Três pessoas.

Basílio classificou a expressão da fé, sobre o mistério trinitário, transformando e codificando a ideia confusa na seguinte fórmula: “Mia Ousía” e treis hipóstasis”, apresentando uma distinção entre ousia e hipostasis na Trindade.

A ousia indica o que é comum e único ás três pessoas, natureza e substância. A hipóstasis constitui a particularidade que constituem cada pessoa da Trindade, não havendo prevalência entre Elas.

Gregório de Nazianzeno foi o primeiro a aplicar o termo pericórese na relação entre as duas naturezas de Cristo (Perichoresis cristológica).

Gregório de Nissa afirma que na Trindade Santa não há diferença de honra e que a estrutura que diferencia o criado não pode se aplicar às pessoas divinas, já que a natureza divina é incognoscível e eterna.

Foi João Damasceno no século VII (+749) que fez além e uma síntese da doutrina dos padres capadócios, uma nova abertura desenvolvendo a pericorese, empregando-a como termo técnico designando, tanto a compenetração das duas naturezas em Cristo como a compenetração entre si da Três Pessoas Divinas, vão definir o que é a cossubstancialidade.

A chave de leitura entender o trinitário, que passa por Deus-filho (Jesus) que se abandona nas mãos do Pai, a ponto de chamá-lo como qualquer homem o chamaria de Deus e não mais de Pai, é ponto crucial para uma teologia contemporânea, ali onde mora a divisão, a dor, a injustiça, o mal que o homem causa a si próprio e a humanidade, ali está um rosto deste “Jesus Abandonado” (a figura acima foi encontrada por acaso numa mesa).

Unidos a Ele encontramos o diálogo, superamos os radicalismos, as incompreensões e os erros

 

A trindade e os filósofos contemporâneos cristãos

27 mai

Obras sobre a trindade na patrística cristã destacam-se a obra De Trinitate de Agostinho, os padres capadócios: São Basílio e São Gregório de Nazianzeno (imagem), João Damasceno e Tomás de Aquino, estes da Antiguidade até a Idade Média, que trabalharam a pericorese na Trindade.

Começo por uma referência que considero importante pela adoção do pensamento fenomenológico e hermenêutico, a obra L´Idole et la distance (1977) de Jean Luc Marion, ele como outros partem de Santo Agostinho, mas como bom hermenêutica deseja apenas fazer “o jogo trinitário [i.e., a pericorese trinitária]” que ela assuma as desolações incluindo a metafísica, e nos levem a paciência, o trabalho e a humildade.

Refere-se a pericorese com uma “dança” e as desolações são as críticas filosóficas que surgiram a partir do século XIX, em particular Nietzsche, fez a religião, especialmente à ideia de Deus, vai identificar que a ideia de que a morte de Deus traria ao homem a luz, se olharmos a realidade, veremos que não aconteceu, vemos um homem sem humanismo, agora nos horrores de uma pandemia que não cede e o perigo de uma crise civilizatória.

A hermenêutica por sua estrutura interpretativa, a transmissão e a mediação “não se referem apenas à anunciação, à comunicação de Deus com o homem, definem a vida íntima do próprio Deus, que, por essa razão, se não pode pensar nos termos de uma plenitude metafísica imutável” (na obra de Gianni Vattimo: Etica de la interpretación, 1991).

Longe do idealismo absoluto de Hegel, e avançando a ideia da ontologia trinitária, que tem início nos primórdios do século XX, autores como Pavel Florenskij, Sergei Boulgarov, mais recentemente John Zizioulas e vários italianos como Massimo Cacciari, Bruno Forte, Piero Coda e na Alemanha Joseph Ratzinger e Klaus Hemmerle, na França já citamos Jean-Luc Marion e Michel Henry.

Piero Coda utiliza uma categoria da fundadora do Movimento dos Focolares, iniciado por Chiara Lubich, que é a figura de Jesus Abandonado para tornar sua “dança trinitária” uma relação cotidiana com todos os seres e assim recria a ontologia trinitária, que é capaz de estabelecer uma relação entre o Logos expresso em Jesus, e plenamente realizado na sua figura quando já desfalecido e entregue as dores e sofrimentos da cruz, não chama mais Deus de Pai, mas apenas de Deus: “Meu Deus, meu Deus porque me Abandonastes” diz o relato bíblico, parece parodoxo, uma pericorese com o homem.

Afirma Coda: “de alguma forma a circulação eterna do amor dos Três é comunicada a nós na história … sua abertura para a história dos homens” (Dio uno e trino, Edizione San Paolo, 1993, p. 141).

Houve uma compreensão desta realidade, porém a interpretação hermenêutica ainda não houve.

 

 

A trindade na perspectiva antropotécnica

26 mai

Toda a filosofia de Sloterdijk deve ser precedida de uma boa leitura de Heidegger, tentando simplificar o que é per-si impossível, explicamos a categoria “ser-em” que será bastante utilizada no seu discurso sobre a relação trinitária, de onde desvela a “cossubjetividade imbricada da díade Deus-alma” (Sloterdijk, p. 490), onde o “surrealismo teológico oculta-se, como mostraremos, o primeiro realismo das esferas” (idem).

Sloterdijk não usa epígrafes apenas para decorar o texto, no capítulo 8 “mais perto de mim que eu mesmo: propedêutica teológica para a teoria do interior comum”, na epígrafe explica: “… quer dizer ´ser-em´[In-sein] ?… Ser-em … significa uma constituição ontológica da existência (Dasein)” citando o  § 12 de Ser e Tempo de Heidegger.

Esclarece na outra citação da epígrafe que “talvez o Em seja o reino pressentido de toda a vida (de toda moral) de Deus”, citando Robert Musil no seu livro “O homem sem qualidades”, que o é hoje o homem moderno.

Antes de penetrar na questão da trindade, explica que o amor humano “não existe de maneira nenhuma antes de se produzir” … “na perspectiva da modernidade individualista – duas solidões que se desenraizam pelo encontro” (pag. 491), e irá retornar a incidente do paraíso perdido perguntando se não foi ele “um doloroso fosso de estranhamento?” (idem).

Foi Agostinho, esclarece nas “Confissões” que levou “a dialética do reconhecimento a partir do desconhecimento” (pg. 492), em sua “obra-mestra críptica” De trinitate (em particular os livros VIII e XIV) “que tratam da acessibilidade de Deus através dos traços deixados no interior da Alma” (p. 493), e embora trace suas contradições com o discurso teológico, afirma “ele pode ser considerado como o grande lógico da intimidade da teologia ocidental” (idem).

A longa análise que vai da página 494 até a 524 em que penetra nas contradições do discurso religioso, passando por citações bíblicas, Nicolau de Cusa, o duque João da Baviera, um Cardeal erudito e não autorizado na literatura da tradição cristã, chega a um veredito final, este sim importante, que é como o dualismo platônico provocou “efeitos secundários … em doutrinas deste tipo [que] rompem também o sentido de ser-em” (pg. 524).

Ilustrada com a pintura de Juan Carrero de Miranda “A fundação da Orden da Trindade” (óleo de 1666), o autor passa a fazer a repartição “topográfica dos Três no Um”, destaca no quadro a “quase-quaternidade clássica abrange a Trindade e o Universo” (destacamos com um pequeno círculo vermelho), seria bom que a fizesse.

Dentro de sua esferologia, Sloterdijk explica que “ecos característicos da filosofia da natureza, mesmo que se trata há muito tempo, da coabitação de entidades espirituais”, assim estamos mais próximos de outras cosmovisões “animistas” do que imaginamos, numa teológica dualista.

Analisando o discurso do Pseudo-Dionísio Aeropagita, esclarece que “o páthos da diferença dos diferentesno interior do Um já era conhecido do neoplatonismo, e a “justificação mútua dos princípios das pessoas da Trindade” (pag. 130) se beneficiará dele.

Conhece bem a pericorese dos padres capadócios (São Gregório de Nissa, São Basílio e São Gergório de Nazianzeno) (pag. 540-541) além de Agostinho usado fartamente, não deixa de citar João Damasceno (pag. 538, 544-546) e cita Tomás de Aquino.

SLOTERDIJK, P. Esferas I: Bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques, São Paulo: Estação Liberdade, 2016.