RSS
 

Arquivo para a ‘Redes Sociais’ Categoria

Serenidade e uma sonata a Kreutzer

27 nov

Serenidade foi o tema de um discurso feito por Heidegger por ocasião de 175 anos do nascimento do compositor Conradin Kreutzer, em Messkirch, em 30 de outubro de 1955, mas o mesmo Kreutzer foi digno de um romance intitulado Sonata a Kreutzer, de Leon Tolstoi, que narra o dialogo sobre o casamento em uma viagem de trem, numa posição que é quase antagónica pois há um clima de suspense entre ambos que causa intriga e pessimismo.
O pensamento de Heidegger será demarcado por dois de seus escritos: Serenidade, de 1955, e outro a partir de uma conversa sobre o pensamento que teve lugar num caminho de campo, de 1945, onde Heidegger narra um longo diálogo entre três personagens, o Pesquisador, o Erudito e o Professor, sobre a questão do pensar.
O ponto de início sobre o pensamento pode ser o Que é metafísica?, escrito em 1929, onde Heidegger afirma: “de modo nenhum é o pensamento exato o pensamento mais rigoroso”, justamente por se prender ao objetivo último do cálculo, o qual “reduz todo o numerável ao enumerado, para utilizá-lo na próxima enumeração. O cálculo não admite outra coisa que o enumerável”, isto vem de encontro ao neologicismo do Circulo de Viena, e dos algoritmos.
O que causa no pensamento esta lógica é a pretenção de tudo abarcar e submeter, o pensamento calculador “não é capaz d suspeitar que todo o calculável do cãlculo já e, antes de suas somas e produtos, num todo cuja unidade, sem dúvida, pertence ao incalculável que se subtrai a si e sua estranheza das garras do cálculo” (Heidegger, 1943, p. 248 ).
Existem, portanto, dois tipos de pensamento, sendo ambos à sua maneira, respectivamente, legítimos e necessários: o pensamento que calcula e a reflexão (das Nachdenken) que medita. […] um pensamento que medita surge tão pouco espontaneamente quanto o pensamento que calcula. O pensamento que medita exige, por vezes, um grande esforço. Requer um treino demorado. Carece de cuidados ainda mais delicados do que qualquer outro verdadeiro ofício. Contudo, tal como o lavrador, também tem que saber aguardar que a semente desponte e amadureça.” (HEIDEGGER, 1955, p. 13-14)
O que Heidegger vai explicar nesta obra é que a relação entre pensamento e vontade, em conflito e de onde parte Nietzsche para suas reflexões, não é evocado segundo a tradição, o pensamento representacional que já tem, em si, uma das formas da vontade.
Segundo Heidegger, a forma de liberação do pensamento, que possibilita a forma (ela in-forma diríamos o pensamento) na aproximação das coisas, há uma aproximação não objetificadora, não apropriadora, marcada antes de tudo por um “estar desperto para a serenidade”.
Pode parecer, mas não é a passividade, pois o agir que se oculta no âmago da serenidade é de uma ordem mais elevada do que a das usuais maquinações humanas que envia a ação, ela não implica obrigatoriamente atividade, tal como esta é correntemente compreendida.
Para o pensador esta forma elevada, que embora não o dia está associada a meditação e a contemplação, erroneamente é associada a uma debilidade do querer, a serenidade pois seria fundamental este conter-se, como caminho do pensamento meditativo, é apresentada por Heidegger como a mais elevada forma do agir humano, tão necessárias nos dias de hoje.
Serenidade é antes um conter-se ao mero impulso, a ansiedade e ao agir compulsoriamente.
HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Tradução de Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, 1955.
HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica? In: Os Pensadores. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

 

Tempo de pausa: será que conseguimos

26 nov

Ainda há um resto de novembro e dezembro já aparece no horizonte, em todo mundo é um tempo esperado para algo que deveríamos fazer sempre: pausa, espera e encontro com os amigos e familiares, a questão é: será que conseguimos?
Olhando o mundo os sinais sombrios continuam, maiores que os líquidos, pois se algo fosse realmente mudado de estado, do sólido para o líquido, até seria desejável porque algo estaria se movendo, mas parece a mesmice, tudo vai ficando com cara parecida.
Os protestos contra Macron e seus impostos, não é tão diferente de Portugal ou do Brasil, o Estado é enorme e pesa para a sociedade, quem pagará as contas, e os aposentados serão os que pagarão a conta ? incertezas e uma única coisa realmente clara: crise de época.
Há sinais de algum reflorescimento, palavra usada pela filósofa Martha Nussbaum, diria que sim, mas justamente onde as críticas mais pesadas caem: o mundo globalizado, a internet e o Estado “sólido” que vai tomando um feito mais sombrio, perigos à direita.
Participei de um evento de 100 anos do Padre Manuel Antunes, esse homem transdisciplinar, foi o tema de uma palestra escrita com um amigo, em sua obra Repensar Portugal, dizia que era preciso buscar em política, as “zonas temperadas” onde a natureza humana se sente mais confortável, porém a amostra de 2018 é de regiões mais radicalizadas, no sentido mal do termo.
É preciso pausa, ainda que forçada e no desconforto, olhar o futuro de modo que seja possível ter esperança, a paz e uma maior aproximação dos povos, o radicalismo nacional é perverso, a Europa costura um acordo possível para a saída da Inglaterra do bloco, o chamado Brexit.
Os EUA terminam o final do ano com o sonhado muro de Trump, e mexicanos pressionando do outro lado do muro, o que prova que não foi uma solução, mas o anúncio de uma crise.
Novos governos à direita no Brasil e na Colômbia, a esquerda no México vence depois de muitos anos de um partido monopolizar o poder, enquanto Nicarágua e Venezuela desfilam catastróficos governos de esquerda, Bolivia, Equador e Uruguai ficam em zonas temperadas.
Pensar um mundo mais integrado, a questão climática e a distribuição de renda se tornou mais difícil, o que se pode esperar é uma vigorosa reação do pensamento humano, o homem sempre foi capaz de enfrentar os desafios que apareceram, talvez o recuo seja uma retomada.

 

Incompletude da pós-verdade

19 nov

Antes de saber o que é pós-verdade, é preciso saber se há alguma definição de verdade, e isto nos leva aos primórdios da civilização ocidental, onde sabia-se que a verdade estava oculta, ou seja, seja para Aristóteles ou Platão, o ápice da cultura grega da antiguidade, a verdade estava oculta, ou seja, era necessária uma aletheia, termo grego para não oculto, manifesto, ou ainda mais a (negação) lethõ (esquecer), portanto só há verdade sobre um fato ocorrido.

Para a filosofia grega era claro que a “doxa” ou a opinião era contrária a episteme, ou ao conhecimento sistematizado e organizado, mas toda episteme implica num método, ou seja, vem daí epistemologia, ou a forma de organizar e comprovar determinado conhecimento.

O assunto surgiu no contexto da política atual pelo fato de alguns políticos, evito os nomes para evitar a polarização doxológica (de opiniões) passaram a querer negar fatos, ou seja, o que estava registrado e comprovado, e mesmo assim negavam, mas isto não é novo.

Já no seu ensaio de 1967 “Verdade e Política”, Hannah Arendt estabeleceu que a verdade que é baseada em fatos podia ser comprovada e verificada, mas os políticos insistiam em revidar e fazerem discursos baseados em opiniões, portanto não é novo, e a ver com a midia é outra coisa, o monopólio de opinião e que quase sempre não está fundamentada em dados.

O fato de existirem midias de redes sociais não é novo, grupos de opinião sempre existiram só que eram hegemônios donos de jornais e revistas, e agora não são, passa a ter um confronto aberto de opiniões, que transformam-se em torcidas organizadas, com apelos emocionais e doxológicos.

Não é por acaso que políticos populistas, que todos beiravam ou eram declaradamente fascistas eram grandes oradores e capazes de provocar fascínios nas massas, o fascínio hoje é outro, a capacidade de articular fatos e usar imagens ou dados que simulam falsas epistemes.

O Brasil foram os casos do mensalão, do petrolão e outros mal esclarecidos que geraram um corpo de meias-verdades que inflamaram e atingiram grande parte da opinião pública, outra foi a pouca consideração com valores culturais e morais da sociedade, quer seja os religiosos, quer seja a cultura negra, indígena e as regionalidades brasileiras, houve muitas não-verdades.

É tão difícil compreender as vezes, que mesmo tentando esclarecer os fatos ficamos confusos, por exemplo, em Portugal ocorre agora um famoso caso de Tancos, um quartel de armas onde um caminhão de armas foi roubados e precisei de um amigo português para entender, há meias-verdades de todo lado e muita gente alta parece envolvida, e as armas foram devolvidas com até uma caixa a mais, parece piada mas não é, um brinde dos ladrões.

A parte da verdade dos fatos, existem as correntes de “opiniões” onde o termo talvez seja inadequado, seria melhor correntes de culturas divergentes ou até opostos, sem o diálogo amplo necessário a tendência são as torcidas (claques em Portugal) crescerem e aumentar o número de conflitos, onde a intolerância impera o risco de graves conflitos é eminente.

Separa-se aqui então “opinião” de divergência epistemológica, cultural ou metodológica, pois diferentes caminhos para se obter a verdade devem ser pensados a parte das paixões, senão a possibilidade de caminhos concretos para superar crises ficam bloqueados e a razão desaparece.

 

 

A religião entre fundamentalismos e farisaísmos

10 nov

É compreensível que muitas pessoas ganhem uma certa desconfiança de religião, infelizmente por causa daquilo que é praticado como tal, deveria ser religare ou religar-se, nem sempre é.
A lógica do Ser, ou a onto-lógica está ligada à aquilo que é, e aquilo que é sempre é ligado a existência, assim religar-se deveria ser ligar a vida, ao que lhe é favorável, embora seja também parte da vida contratempos, perdas e tribulações, mas poderiam ser menores.
O fundamentalismo é a interpretação daquilo que uma fé proclama ao pé da letra, sem compreender aspectos complexos aspectos de contexto, conjunturais, sociais e culturais, abro um parenteses para dizer que também ideologias podem se aproximar-se destes aspectos.
Os gregos diziam que isto era a distância entre a episteme, conjunto de conhecimentos construído em determinado assunto, que é diferente e muitas vezes oposto a “doxa”, a opinião que é apenas uma interpretação pessoal, comum, sem o necessário fundamento.
Este problema acima pode ser resolvido com uma boa hermenêutica, isto é diálogo em busca de superação de pré-conceitos, enquanto o segundo o farisaísmo é mais perigoso, pode-se em nome do que é bom e justo, estar praticando justamente o contrário, é a subversão de valores.
Em geral está associado a busca de poder, de fama e de dinheiro, ou simplesmente para ganhar uma disputa, este jamais terá uma hermenêutica e foge do controle muitas vezes.
Porém é mais fácil de identificá-lo que a “doxa”, consegue-se perceber pelas atitudes e muitas vezes pela própria palavra a distância entre o que se diz e se fala, fala de paz e faz a guerra, fala dos pobres e não os assiste, fala de Deus mas só para ser admirado.
Em termos religiosos são fáceis de serem identificados, o evangelista Marcos (Mc 12, 38-39) mostra a preocupação de Jesus: “Tomai cuidado com os doutores da Lei! Eles gostam de andar com roupas vistosas, de ser cumprimentados nas praças públicas; gostam das primeiras cadeiras nas sinagogas e dos melhores lugares nos banquetes”, mas não veem o Outro, pois no fundo preocupam-se consigo mesmo apenas.

 

É possível repensar o Brasil ?

09 nov

O momento político diz que não, mas para quem pensa e consegue enxergar estas “zona temperadas”, como a chamava o Padre Antunes repensando Portugal, que é no plural porque há “além da democracia política, a democracia social”, e o pensador afirma que “foi um erro pensar as estruturas da liberdade geral, atomizada”, escreve Padre Antunes a repensar Portugal.
O Padre Antunes afirmou que “não viram os seus formuladores e apologistas – ou viram-no demasiado bem – que o “direito natural”, por eles preconizado, era, de facto, o direito do mais forte, que “a mão invisível” que dirigia os negócios ia só aumentar os lucros e proventos dos já possidentes, que a harmonia, que eles visionavam na
realização das “leis naturais” do mercado da oferta e da procura, constituiria na realidade uma terrível desarmonia se não fosse corrigida pelo imperativo do bem comum social, que a liberdade concedida a todos, num grande ímpeto de
generosidade, funcionava, na prática, apenas como o privilégio de alguns” (Antunes, 2011).
Por isso, esclarece o Padre Antunes: “durante mais de século e meio, para que ‘essa liberdade de coração se traduzisse na efectividade da aplicação, muitas lutas, ásperas lutas, foram travadas”, falando é claro das lutas em Portugal.
“Em nome da justiça e da equidade, em nome da história que caminhava – ou devia caminhar – no sentido da igualdade, em nome da fraternidade que a todos devia unir – sobretudo os mais fracos e oprimidos, aos deserdados e aos deixados por conta: homens, grupos, classes e nações”, dizia o padre Antunes sobre Portugal nos anos 70
“Até aos nossos dias. É hoje a conjugação da democracia política e da democracia social a grande preocupação do sector mais consciente e mais crítico, mais lúcido e mais generoso, de toda a Humanidade” (Antunes, 2011), mas no Brasil o projeto foi adiado, e o momento que ainda está em compasso de espera, e parece adiado.
Ao que se seguiu da Revolução dos Cravos em Portugal foi um momento de abertura e lucidez, mas com a entrada na Comunidade Europeia tudo isto veio a ser abalado, com denuncias de corrupção no governo José Sócrates (2005-2009), e com a crise financeira em 2010-2014, e uma intervenção da Comunidade Europeia que o povo português chamou de Troika, composta pela Comissão Europeia, BCE (Banco Central Europeu) e FMI, que administrou a crise financeira com muitos protestos dos portugueses.
O que o Brasil pode fazer com sua crise económica, política e moral? sem o diálogo e a abertura necessária, um intervencionismo financeiro será um desastre, no plano político se for repressor será odioso, e o social quase impensável.
É preciso atualizar discursos, interpretações e autores, quase todos datados de referencias do início do século, que ignoram as novas mídias e diversos pensadores novos e sair de uma discussão de torcidas de futebol.
Haverão canais de diálogo com a sociedade? a imprensa permanece livre? parece que Repensar o Brasil neste momento é quase impossível, mas não podemos antecipar os fatos mesmo que sejam facilmente presumíveis, é um erro político que pode piorar o frágil estágio da democracia brasileira, criaríamos uma pré-verdade ou um pré-factual.

 

Web Summit em Lisboa

08 nov

Um dos maiores eventos da Web realizou-se esta semana, estava num evento paralelo, só pude acompanhar por vídeos e noticias, sem dúvida a maior estrela foi o fundador da Web Tim-Berners Lee que já tem um grande projeto novo, embora tenha falado nas entrelinhas.
Começou uma entrevista, que na verdade ele falou a vontade sem muitas perguntas dizendo o início da Web e como seu crescimento foi também surpreendente para ele, contou detalhes técnicos como “escrevi o código do primeiro servidor e o código do primeiro browser, chamava-se WorldWideWeb.app” e estava no site info.cern.ch .
Depois contou que sua preocupação é a mesma de todos, depois de 25 anos devemos lidar com: cyberbullying, desinformação, discurso de ódio, questões de privacidade e disse o que muitos estão a falar: “Que raio poderia correr mal?” dirigindo-se ao público: “nos primeiros 15 anos … grandes coisas aconteceram. Tivemos a Wikipedia, a Khan Academy, blogs, tivemos gatos” claro disse brincando, e acrescentou: “a Humanidade conectada deveria ser mais construtiva, mais pacífica, que a Humanidade desconectada”, mas sqn (só que não).
“Porque estamos quase no ponto em que metade do mundo estará online”, explicou o engenheiro britânico se referia-se ao momento ’50/50’, isto é metade da humanidade conectada que se esperava em 50 anos, mas deve chegar a este ponto em maio de 2019.
Depois de tentar argumentar responsabilidades de governos e empresas, creio que podem acontecer mas serão lentas, falou indiretamente de seu projeto SOLID (Social Linked Data), ao afirmar que ”como indivíduos temos de responsabilizar as empresas e os governos pelo que se passa na internet” e “a ideia é, a partir de agora, todos serem responsáveis por fazer da Web um lugar melhor”, disse incentivando start-ups também a entrar neste processo.
Pensar no desenvolvimento de interfaces onde os utilizadores conheçam pessoas de culturas diferentes, mas acima de tudo garantir a universalidade da Web, segundo Berners-Lee o principal aspecto deve ser (falando indiretamente de novo do SOLID) que a intervenção popular a nível global e que fez da Web “apenas uma plataforma, sem atitude, que deve ser independente, pode ser usada para qualquer tipo de informação, qualquer cultura, qualquer língua, qualquer hardware, software”, linked data poderá auxiliar isto.
Tim Berners-Lee apresentou o movimento #ForTheWeb no mesmo dia em que a sua World Wide Web Foundation divulgava o relatório “The Case for the Web”, o evento teve uma superaudiência, mais de 30 mil pessoas, há vários vídeos, mas o da Cerimonia de Abertura é um dos mais marcantes e tem Tim-Berners Lee também, veja: https://www.youtube.com/watch?v=lkzNZKCxMKc
Amanhã voltamos ao tema político, porém a Web se tornou política e por isto deve ser pensada por todos.

 

Violência, poder e mudança

07 nov

A ideia de ‘violência’ no discurso de Arendt tem o sentido de meio ou instrumento de coação que constituem recursos ao serviço exclusivo e soberano de uma dada autoridade (ou entidade), no exercício de uma dada forma de poder, em última e instância o Estado, ou a quem ele delega poder, mas pode ser visto e desenvolvido também para a vida cotidiana.

O que interessava para Hannah Arendt era entender os mecanismos de violência no sentido da instrumentalização da violência para servir determinados fins políticos, e nos casos paradigmáticos, sejam os revolucionários ou fascistas, como tendo sempre uma opção violenta.

O conceito de revolução, segundo Arendt, não está ligado apenas à mudança, mas, sobretudo, à fundação das liberdades, e neste sentido, podem fazer pouco sentido quando se tem armas nucleares, guerras cibernéticas ou mesmo propaganda direcionada de ódio como violência.

Claro Hannah Arendt não viveu para ver as modernas mídias, e não poderia supor um mundo onde o fato pudesse ser manipulado de forma a modificar a verdade, a chamada pós-verdade, porém este paradigma já existia e foi tratado no livro de Hans-Georg Gadamer Verdade e Método, ambos eram contemporâneos e sofreram fortes influências de Heidegger.

Não interessou a Arendt, qualquer estudo da natureza ou dos mecanismos que desenvolvem os instintos de agressão ou a investigação sobre a possibilidade de tais fenômenos terem uma origem intrínseca ao próprio sujeito (inata) ou a hipótese de serem mero resultado de um processo de aculturação (adquiridos) em regiões de guerra, de miséria ou de exclusão.

Ao falar da banalização do mal, a violência completamente instrumentalizada, pensava em uma situação de guerra, mas a volta de instrumentos sociais de coação e repressão pode e deve trazer o tema da violência de volta: a discriminação, o ódio e a violência instrumental.

Pior ainda se ela vem sob a chancela de parte da população, o que aconteceu em regimes fascistas: “a diminuição do poder, seja individual, coletivo ou institucional é sempre um fator que pode levar à violência … muito presente da presente glorificação da violência é causada pela severa frustração da faculdade de ação do mundo moderno” (ARENDT, 2009, p. 62).

Quando pensamos em violência, no sentido da banalização de Hannah Arendt, estamos dizendo quem alguém está “no poder” na realidade: “nos referimos ao fato que ele foi empossado por um certo número de pessoas para agir em nome […] sem um povo ou grupo não há poder” (Arendt, 2009, p. 60-61).

A violência cotidiana é um problema, mas instrumentalizada como poder é uma tragédia.

 

ARENDT, H. Sobre a violência. Trad. André de Macedo Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

 

O padre Antunes e o Estado

06 nov

Antes de repensar o Estado, Antunes parte do Portugal real, depois de delinear nas primeiras páginas a identidade e as fragilidades do povo, sem sair pelo chauvinismo ou isolacionismo que foi próprio durante certo período pós-colonial, afirma o pensador: “É fácil pôr no papel dezenas e dezenas de partidos políticos. É fácil fazer proclamações ideológicas como se elas contivessem a última e definitiva verdade. É fácil apontar programas, inumeráveis e ideais, mas que não mordem no real” (Antunes, 2011, p. 38), destaca-as de vez.

Vai repensar o estado português, conforme diz “partindo do país que somos”, não sendo possível colocar de lado: “nossos problemas mais graves: o do Ultramar, o da emigração, o dos múltiplos atrasos que nos afectam nos campos político, social, económico, científico, tecnológico e cultural.” (idem, p. 38), dizendo a constatação de que “durante cinquenta anos se viveu na hipertrofia do Estado”, e isto é válido não só na Europa, mas também em muitos modelos de estados contemporâneos.

Depois de desfilar as funções do Estado, vai desenvolver duas linhas de reflexões, sobre dois modelos opostos: “ uma grande linha de clivagem se ergue diante de nós: a que separa o Estado monopolista do Estado pluralista” (pag. 42), na qual também o Brasil aprenderá a lição.

Diz do primeiro: “radicalmente centralizador, burocrático, jurisdicista e, tendencialmente pelo menos, totalitário” (idem), diz da lição aprendida em 25 de maio, que nem mesmo seus partidários quiseram defendê-lo, pode-se dizer o autoritarismo já estava morto.

Já o segundo é: “o segundo radicalmente descentralizador, tomando a nação e a sociedade tais como elas são com os seus corpos intermédios verdadeiramente vivos, os seus estratos sociais organizando-se da maneira que mais lhes convier e deixando ao livre jogo do mercado”, parece melhor e menos burocrático, mas “entre estes dois extremos situa-se um amplo leque em que várias combinações são possíveis” (pag. 43) é onde desenvolve suas ideias.

Vai chamá-la de “zonas temperadas” nas quais “o homem pode construir uma existência

mais de acordo com a sua natureza de ser inteligente e livre” (idem).

Pergunta então se Portugal desejará viver nesta zona temperada, onde o “princípio ideológico-afectivo da liberdade, da igualdade e da fraternidade, constantemente em instância de revisão crítica nas suas aplicações concretas e não reduzido a slogan vazio ou a mero discurso retórico sem conteúdo” que em muitas lugares deram lugar não só ao descrédito democrático, mas principalmente cedendo a tentação autoritária.

Certamente seu pensamento serviu para Portugal ir para esta “zona temperada”.

 

Padre Manuel Antunes, se “calhar” é universal

05 nov

A entrada de meu ambiente de estudos em Portugal, deparo com um cartaz que dizia uma conferência sobre o Padre Manuel Antunes: Repensar Portugal, a Europa e a Globalização, os dizeres eram exatamente estes, mas de relance me veio a memória um livro pego na Web para entender um pouco mais de Portugal: “Repensar Portugal” (veja o pdf), depois fico sabendo que há um livro da editora Bertrand com este todo nome do evento, publicado em 2017.

Se calhar é uma expressão portuguesa mais ampla que no Brasil, usada como poderá ser, quem sabe ou mesmo é possível. 
Também revejo meus pré-conceitos, daquela que eu tinha de nossa pátria mãe não só porque chegaram ao Brasil, mas também porque nos deram os governantes imperiais, D. João VI que migrou e estabeleceu a coroa lá, D. Pedro I (aqui em Portugal, D. Pedro IV) e sua filha mais velha nascida em São Cristóvão no Rio de Janeiro, D. Maria II que dá nome a um teatro e alguns sítios (lugares) em Portugal.
A leitura inicial, sem nenhuma vivência em Portugal, era de um país isolado, um tanto acanhado, e o texto do Padre Manuel Antunes confirmava, lê-se no início de Repensar Portugal: “a possibilidade do termo do isolamento internacional, daquele “orgulhosamente sós” que é a contradição mesmo do mundo em que vivemos” (Antunes, 2011, p. 35), onde já pode ler o universal, esta obra no original é de 1979, cinco anos após a Revolução dos Cravos.

Ao falar da Revolução dos Cravos, a que pôs fim a era salazarista, disse o Padre Antunes: “Festa dos cravos de Maio, da confraternização do Povo e das Forças Armadas, do entusiasmo colectivo, de uma certa irmandade não fingida, de uma vasta disponibilidade à abertura, de uma, por vezes cândida e larga, espontaneidade” (idem pag. 35).

De início a curiosidade religiosa me movia, pensando nos sermões do padre António Vieira, mas além do pensamento erudito, foi desta leitura que entendi que devia conhecer seis datas essenciais para Portugal, a Revolução dos Cravos (1974) e: 1385, 1640, 1820, 1910 e 1926.

Destaca já no início, em busca de uma identidade portuguesa, sem chauvinismo, sem messianismos e sem isolacionismo, a vê como um “um país paradoxo vivo dos mais estranhos que a memória dos homens conhece” (pag. 36), com muitas exceções: um império colonial tão largo (Portugal é o primeiro império da era moderna de Macau, Goa até a África e o Brasil), exceção como realizou sua revolução política (a esquerda como é normal), foram as próprias forças armadas que desaparelharam o Estado e fazem voltar do exílio membros de partidos proscritos.

Perguntava na época, fazendo um paralelo ao ano da revolução liberal de 1820 (feita pela coroa), “prefácio às Cortes Constituintes do mesmo ano. Seguir-se-á 1823?” (pag. 37) e teria relação com nossa “independência” de 1822.
Diz em sua obra como que definindo uma identidade portuguesa, após dizer que fizeram várias imitações (1820, a Espanha; em 1834, a Inglaterra; em 1910, a França jacobina com o regicídio e 1926 Itália fascista), foi com o assassinato do Rei Carlos I e o herdeiro que se fez a república.

Porém destaca traços peculiares no povo português: “Povo místico mas pouco metafísico; povo lírico mas pouco gregário; povo activo mas pouco organizado; povo empírico, mas pouco pragmático” (idem) e destaco o traço mais essencial que difere-o de toda Europa: “povo convivente, mas facilmente segregável por artes de quem o conduz ou se propõe conduzi-lo” (ibidem), mas o convívio reservado na privacidade como todo europeu, é prazeroso e alegre diferente de toda europa e parte do mundo onde a indiferença já impera.

Este erudito português, falecido em 1985 não viu Portugal integrar-se a Comunidade europeia e a crise que se sucedeu, mas deu uma sentença fundamental: “A hora lírica está a passar. Começou a suceder-lhe a hora da acção” (ibidem), alertando para modelos de mudança que se estagnaram, que é um alerta para muitos que estão em passos de retrocesso. 

Site: http://centenariopadremanuelantunesj.pt/

 

Aplacar medos e ódios: a mansidão

31 out

Há pouca literatura filosófica sobre a mansidão, mas sobre medos e ódios são abundantes, exploramos isto nos posts da semana anterior, agora desejamos amadurecer e superar tanto os ódios, os medos e principalmente as mágoas que entravam as vidas é necessário algo relacionado a temperança, a mansidão e claro uma boa dose de sabedoria crítica.
Poder-se-ia conjugá-la com a paz, com a tolerância, mas são assuntos com relação direta ao social, ao justo e principalmente a alguma dose de poder no sentido positivo que dissemos em nosso post anterior, a paz interior ou a resiliência interior como forma de tolerância não são outra coisa que a negação do contexto social e humano externo.
A mansidão é aquela força capaz de mesmo diante do contraditório ser capaz de ouvir, argumentar e em muitos casos apenas calar até que a outra pessoa consiga ouvir.
Diferente da “paz interior” ou dos conceitos sociais de paz, ela é uma forma pacífica de olhar o mundo, o Outro para além de suas limitações, de seus rompantes momentâneos ou habituais, e é capaz de transmitir serenidade e calma em ambientes hostis.
Os medos nascem da imaturidade, da incompreensão ou da fragilidade diante de uma situação, o uso de armas não leva a uma maior mansidão, leva a tentativa de leva o medo ao outro, porém quase sempre isto constrói uma escalada de ódio.
Agora sim pode ser conjugada com a ideia de paz social, a pax romana previa a submissão dos povos, a Pax de Vestfália que não foi senão um tratado de tolerância religiosa que levasse a uma paz política, já a pax eterna o direito do estado de interferir num conflito, até mesmo com violência se for necessário, isto volta a discussão na realidade brasileira.
Kant afirmava que “pelo uso e predomínio da razão, pela constituição da esfera individual – a construção do indivíduo moderno, pelo estabelecimento do espaço público para o debate e resolução dos conflitos sociais”, tal era o modelo construtor da pax eterna da modernidade.
Sem mansidão, uma dose de compreensão de hermenêutica da interpretação.
Este discurso do relembra Heidegger que tem um ensaio sobre a Serenidade (1959), Byung-Chul Han lembra que “coragem serena para enfrentar um medo essencial “[Heidegger], e quando este medo falta, o idêntico permanece, então o pensamento põe-se à mercê da “voz silenciosa” que o “acorda com os horrores do abismo”.