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Desertos e oráculos
Caminhamos como sonâmbulos no escura, aponta Edgar Morin, este não é um tempo propício ao pensamento afirma Peter Sloterdijk, Byung Chul Han diz que nosso tempo é o “deserto ou inferno do igual”, mas diria que o deserto ainda pode ser fértil, e ter um Oasis porem o igual estéril, é massificação, despersonali-zador e mais que autoritário nos identifica ao nada.
São algumas das vozes que identifico como uma busca desesperada para um retorno não ao antigo normal, mas a um realmente novo normal, não deverá ser este no fim da pandemia, e sim o inferno que nos nivelou todos por baixo, pelo desumano, pelo irracional e pelo consumo.
Edgar Morin aponta para a educação como um caminho para esta renovação, mas quem serão os professores com novo pensamento e nova mentalidade, Byung Chul Han aponta para o cuidado da terra, seu novo livro “Louvor da Terra” que aponta para um jardim comunitário, onde os ritmos e características de cada flor são registrados e acolhidos com sua atenção oriental, centrada nos elementos simples de cada flor.
Peter Sloterdijk já havia escrito Se a Europa despertar, poderíamos dizer agora se o mundo despertasse no pós-pandemia, se realmente olhássemos para o Bem Moral que propõe Morin, para uma fraternidade concreta e realmente universal como propõe o papa Francisco em sua encíclica Fratelli Tutti, mas penso eu são vozes que clamam no deserto como João Batista que morreu degolado pelo pedido de uma dançarina sensual que encantara Herodes.
Quando os fariseus foram a João Batista, que vivia no deserto, vestindo peles de camelos e comendo mel de abelha e cereais, ele respondeu (João 1,23): “Eu sou a voz do que clama no deserto: ´Fazei um caminho reto para o Senhor”, como disse o profeta Isaías”.
Quando há oráculos, pensadores e sábios que falam no deserto uma mudança está próxima.
A pandemia e um alerta sobre a educação
A pandemia poderia ter auxiliado nossa compreensão humana, sobre as nossas limitações, sobre a nossa interdependência e sobretudo sobre as incertezas que vivemos desde o nosso nascimento, a vida assim como a bondade e o bem são frágeis e precisam ser cuidados.
Ao longo dos seus 99 anos, o pensador Edgar Morin viveu o que muitos de nós leu apenas nos livros, a experiência deste notável educador é que há um mal que todos sofrem em graus diferenciados, a compreensão humana, o humanismo que abranja todo homem e mude a vida.
A preocupação do filosofo nestes tempos de pandemia é a polarização política e religiosa, que em convergência com o pensamento de Jonathan Haidt, leva a ideia que a empatia e a consciência de coletividade são essenciais para evitar ou minimizar esta polarização perigosa.
O pensamento desenvolvido por Haidt em torno da pandemia é o fato que “estamos presos juntos por aqui”, leva a ideia de todos no mesmo barco, nome também de um livro de Peter Sloterdijk, é a partir dai que parte tentando levar a um novo horizonte de diálogo bem feito e civilizado, escuta paciente e aceitação de visões diferentes, de fato sempre aconteceram, mas a questão são as diferenças morais.
Não se trata de uma tarefa fácil, afirma Morin, os modos como nossa psicologia moral se desenvolveu alerta justamente para a educação, é preciso ensinar nas escolas e universidades a compreensão humana, porque é um mal do qual todos sofremos em determinado grau.
Além disto alerta o filósofo já quase centenário, é preciso ensinar que a única certeza em todo destino humano é que a vida é feita de incertezas, postamos na semana passada o ser-para-a-morte de Heidegger mal lido e mal compreendido, e que neste tempo de pandemia pode levar o ser humano justamente ao oposto para o qual estamos caminhando, a descoberta do infinito, do respeito ao outro e da moral, como quer Morin.
Uma análise fria nos deixa pessimistas, porque os perigos são tantos, mesmo com a vacina, com ela pode vir um problema ainda maior que é ignorar os problemas que temos além da pandemia, porém a insistência de Morin em temas educacionais e morais aponta um caminho bom.
Descaminhos e veredas
Enquanto o Ocidente padece com a covid-19, o oriente em meio a crise continua dando sinais de vitalidade e fortaleza, formaram um bloco de 15 países tendo a China, Coréia do Sul, Nova Zelândia, Japão e Austrália a frente, chamado de RCEP (Parceria Econômica Regional Abrangente, em inglês RCEP) foi assinado num encontro de cúpula regional em Hanói em 15/11, embora a conferência tenha sido online.
Um dos objetivos é reduzir progressivamente as tarefas em áreas essenciais nos próximos anos, além dos países que faziam parte do tratado asiático ASEAN, juntam-se Brunei, Camboja, Indonésia, Laos, Malásia, Mianmar, Filipinas, Singapura, Tailândia, Vietná, o bloco tem metade da população mundial e quase 40% do PIB de todo planeta.
Além da pandemia o ocidente digladia-se com polarizações, crises com direitos de minorias e raciais, um degradante ambiente moral, no qual a corrupção é apenas uma parte de todo uma engrenagem estrutural em torno dela, com uma presença cada vez maior de migrantes de todo o planeta, mas em especial os árabes que tem uma cultura bastante diferente.
A zona do Euro terá que reforçar os laços para sair da crise econômica imposta pela pandemia, a saída da Inglaterra que finaliza em dezembro, ainda tem efeitos imprevisíveis também para a Inglaterra, mas o governo conservador de conseguiu se impor em meio a pandemia e prepara a primeira vacinação em massa no ocidente.
Na América Latina, o passo dado por Bolsonaro do Brasil e Fernandez da Argentina de fazer a primeira reunião bilateral não deixa de ser um alento, mas a chamada a uma cooperação das forças armadas mote do governo brasileiro e o pedido de colaboração na questão ambiental apesar do toque diplomático representam também uma provocação naquilo que os presidentes acreditam.
O governo eleito da Bolívia, partidário do deposto Evo Morales, tenta romper o isolamento convidando o líder oposicionista da Venezuela, mas usou na festa de libertação do estado de Potosí, a bandeira boliviana e a Whipala, símbolo da congregação dos povos indígenas.
O aceno para uma cooperação e formação de um bloco coeso do Mercosul está difícil de sair do papel para medidas concretas onde a cooperação, o respeito a diversidade política e cultural, e a cooperação além fronteiras seja um passo dado como no Oriente ou na ainda frágil União Europeia, acordos das Américas, como era a proposta do Nafta, se forem avante com Joe Biden devem ser um processo muito lento.
O ocidente vive uma crise, porém vive de fatos passados, o período colonial da Europa, a hegemonia política dos EUA e a América Latina cheia de riqueza cultural, ecológica e com promessas de um futuro pan-americano ficam apenas no sonho de muitos idealistas.
Uma epistemologia e escatologia incompletas
Aquilo que a fenomenologia e a filosofia ontológica procura está no centro da crise científica e do pensamento que vive o ocidente, e cujo epicentro é europeu, no dizer iluminado de Peter Sloterdijk a Europa se recente de não ser mais o centro como no período colonial (chama-a de Império do Centro) e procura outras formas de colonialismo para levar o idealismo avante, aquilo que na literatura tem-se chamado de epistemicídio.
Ao negar as culturas originárias de outros povos, pensa estar encontrando a própria difusa entre o barbarismo e a antiguidade clássica, tenta um novo renascentismo explorando de maneira difusa a cultura grega clássica.
No plano religioso o desastre é maior, Slavov Zizek escreveu recentemente sobre o conceito religioso em Hegel, e este último dos pensadores que tentar reavivar o marxismo clássico, reelaborou a religião hegeliana, mas que já era presente em Feuerbach e o próprio Marx criticou, no fundo é uma teologia atéia, uma escatologia morta.
Morta porque este é na verdade o grande equívoco da escatologia idealista, não há transcendente para ela sem a separação de sujeito e objeto, precisa negar a substancialidade para afirmar sua “subjetividade” onde o sujeito precisa sempre estar morto, nega o ser-para-a-morte mote de Heidegger, mas afirma a morte em vida (e isto não é o epoché fenomenológico).
Toda forma de cultura originária, é obvio que inclui aquelas culturas não-cristãs, tem uma origem (o próprio nome o diz), a vida e o fim escatológico, que não é para onde se caminha, e neste ponto esta teologia incompleta tergiversa sobre o que de fato é a morte, em tempos de pandemia poder-se-ia dizer que a doença que pode matar, e aqui é idêntica aos negacionistas.
Por isto mesmo que apele para a fenomenologia será incompleta, levará os que as incorporam a exaustão, ao desprezo pela vida, que até mesmo no sentido religioso é algo profundamente sagrado, sua “biós”, sua substancialidade, para ser claro para os idealistas, sua objetividade, caem no abstracionismo teórico.
A única substancialidade desta escatologia incompleta é negar a religião para torna-la idealista e pedir o que é desumano, aquilo que em termos bíblicos chama de “colocam fardos pesados nos ombros dos outros” e que eles próprios se recusam a carregar, em tempos de pandemia nem entram e nem deixam os outros entrarem.
O exame final será substancial: “eu tive fome e me destes de comer, eu tive sede e me deste de beber …” e não será questionado se elaborou uma boa epistemologia ou teologia, aquela que fez do colonialismo o terror das culturas originárias.
O problema da água e do saneamento
Embora o planeta tenha água em abundância o problema da água não é desprezível e o que afeta diretamente o planeta, em especial os pobres e os que vivem em regiões sem saneamento básico, é o problema da água potável, e nele está o grave problema da contaminação por atividades agrícolas.
Assim é preciso junto ao inadiável problema da gestão sustentável da água, pensar um desenvolvimento sustentável em três dimensões: social, econômica e ambiental, mesmo aqueles que afirmam política públicas para isto não aceitam a redução de atividades econômicas rentáveis e poluentes.
Os estudos apontam que as causas maiores, cerca de 70% são devido ao mal uso do solo na agricultura (defensivos agrícolas, assoreamento de rios, monocultura intensiva, etc.), depois vem a poluição da indústria 20%, o uso doméstico 7% e as perdas 3% (veja a figura acima).
Por que foi da biologia e dos ecossistemas que vieram as ideias da complexidade, é este o setor mais sensível a pequenas atitudes que podem e devem mudar o planeta no futuro, recolher o lixo poluente, fazer coleta seletiva e até mesmo reaproveitar agua de chuva e usar energia solar são atitudes que podemos tomar individualmente e serão benéficas como um todo, vejam que a complexidade podem envolver ideias simples de serem praticadas.
A educação das novas gerações devem assim ser responsabilidade de todos, do poder público, das escolas e das famílias, pequenos hábitos inseridos no dia a dia podem transformar em escala um número enorme de situações, efeito conhecido na complexidade como “efeito borboleta”, a batida da asa da borboleta podem influenciar o clima, e o desmatamento e descaso com a natureza tem efeito negativo no clima.
As pesquisas em planetas onde pode haver vida tem como primeiro item a presença de água, e providenciar água potável é então a primeira atitude em defesa da vida.
O erotismo em tempos de crise
O assunto é difícil quando não se desvia para o liberalismo geral, defesa do erótico a qualquer preço ou da “liberdade do corpo”, porém o que acontece é que entre as diversas crises civilizatórias também o amor humano se encontra em crise.
Encontro pouca literatura existe a respeito que não vá para o liberô geral ou para o moralismo doentio, o que acontece é que, reconhece o filósofo Byung Chul Han, vivemos A agonia do eros, a incapacidade de amar, e no diagnóstico do filósofo coreano-alemão, estamos destruindo as relações a partir da erosão do Outro, que atinge todos os âmbitos da vida e caminha de mãos dadas com um “narcisismo doentio” que invade nossas vidas.
Escreve seu diagnóstico mais profundo: “O fato de o outro desaparecer é um processo dramático, mas, fatalmente avança, de modo sorrateiro e pouco perceptível”, um indício é o número de selfies onde as pessoas procuram mostrar suas diversas faces, sem escolher situação e em qualquer lugar.
Se não reconhecemos a outra pessoa como um “outro”, nos tornamos incapazes de amar, e assim de chegar a uma viva e libertadora experiência do amor, é libertadora inclusive de nós mesos, de nossas frustrações e incoerências, sintetiza Han é o outro que nos salva de nós mesmos.
Em tempos de crise o amor, o carinho e o verdadeiro interesse pelo Outro é o que pode tornar a crise menos grave, se estamos vivendo o oposto, mais egoísmo, mais narcisismo e mais competição (Han argumenta como a sociedade da eficiência e do apelo ao sucesso) significa mais crise e menos erotismo.
Não há como desenvolver o amor e a alegria em torno destas situações, mesmo aqueles que tem uma relação de amor sofrem as consequências do ambiente violento e de apelos a atitudes contrárias ao amor e a afetividade, mesmo relações de amizade que requerem empatia estão em jogo.
Faço ainda uma reflexão além de Han, porque justamente a sociedade que mais exalta o erotismo sofre com a agonia dele, talvez aquilo que vemos como erótico ultrapasse os limites da privacidade, de algum recato e de respeito aos limites do Outro e do próprio corpo.
O discurso do respeito não está ultrapassado, afinal o que são os números assustadores de violência doméstica de todo tipo, senão a ausência do respeito, a imagem “Dentro e fora” (1929) de André Groz dá contornos interessantes sobre o aspecto da ligação do erotismo com a falta de sensibilidade.
Os pobres e a pobreza
O pobre é a condição desumana de vivência de uma determinada pessoa que pode ou não estar vinculada a condição social, já a pobreza é estrutural e onde ela existe boa parte da população ali está condenada a ser pobre.
Relatório da ONU de 2019 dava o dado de 500 milhões de pessoas vivendo em condição de pobreza, abaixo da linha da dignidade humana, o português Pedro Conceição, diretor do Escritório que fez o relatório do Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento, cria um conceito importante da pobreza multidimensional, que cria indicadores ligados a saúde, à educação que são o impacto estrutural em suas vidas:
“Pobreza Multidimensional é um conceito importante, porque tenta perceber de que forma é que as pessoas vivem em pobreza, mas não só. Através do fato de serem baixos níveis de rendimento. Tende a medir também a forma como indicadores ligados a saúde e à educação têm impacto na forma como as pessoas vivem as suas vidas. Quando temos este conceito um bocado mais abrangente da pobreza, aquilo que verificamos é que o número de pessoas que vivem em pobreza é maior do que aquele número de pessoas que vivem em pobreza quando medimos apenas através do rendimento. Há 500 milhões de pessoas que vivem em pobreza multidimensional do que aquelas que vivem em pobreza extrema, se olharmos apenas para indicadores de rendimento.”
Assim quando medimos apenas o rendimento estamos encontrando aqueles que são pobres, e é preciso atacar o problema estrutural que é multidimensional.
O relatório diz que 85% da pobreza mundial está concentrada na África subsaariana, em países como Burquina Faso, Chade, Etiópia, Niger e Sudão do Sul, há 90% de crianças com menos de 10 anos consideradas multidimensionalmente pobres.
O relatório avalia os progressos que foram conseguimos para atingir o objetivo 1 da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável que prevê erradicar a pobreza “em todas as suas formas em todos os lugares”, neste relatório o número cresce para cerca de 2 bilhões de pessoas que abrangem a pobreza global.
Locais onde há “um progresso estatisticamente significativo” para alcançar o objetivo 2 e reduções mais rápidas ocorrem na Índia, Camboja e Bangladesh, mas não se pode pensar que este desenvolvimento será “natural” se não houver um esforço por parte de países ricos de repensar a distribuição de renda.
A segunda onda e as vacinas
A segunda onda chegou nos Estados Unidos, é bom lembrar que está no mesmo hemisfério que a Europa, assim o período sazonal no qual a o vírus prefere períodos mais frios e úmidos, lá estão no meio do outono e se aproximando do inverno, fez com que os números de infecções e mortes subisse em território americano, quinta feira passada chegou aos
Já as vacinas seguem a polêmica da Coronavac, enquanto o sucesso inicial dos testes da Pfizer e BioNTech apontando uma eficácia superior a 90%, fez até as bolsas subirem e haver um otimismo em torno da pandemia, afetando até mesmo as bolsas.
A fórmula de desenvolvimento possui uma ação diferente das tradicionais, funciona como um imunizante que sim ter a capacidade de acabar com a pandemia da Covid-19, a maioria das vacinas usam a ideia do vírus enfraquecido ou do vírus inativado, que é o caso da Coronavac.
A vacina das farmacêuticas Pfizer e BioNTech, apontaram uma eficácia superior a 90% e a fórmula possui uma ação diferente das vacinas tradicionais, ele possui um imunizante a ideia é fazer o nosso próprio corpo produzir a proteína do vírus e assim ampliar as possibilidade de produção de anticorpos.
Os casos relatados que afirmam que a vacina provoca uma “ressaca”, como o próprio nome diz são casos e não há nenhum estudo científico que indique algum problema devido a este efeito colateral, quase todas vacinas provocam algum efeito uma febre pequena, um cansaço ou alguma dor no corpo.
Também a antecipação da vacina é possível tanto para a Pfizer como para a coronavac, com a comprovação de uma segunda onda vindo, o número de casos nos EUA cresceu de maneira surpreendente chegando a 76.195 na última quinta-feira (o recorde de 16 de julho foi 77.299) e a Europa já adota medidas de isolamento social para tentar conter a segunda onda, que já anunciaram medidas de fechamento de escolas e restrição de bares e restaurantes.
No Brasil os números também estão subindo, ainda sem medidas concretas, a maioria dos governos estaduais vacilam em tomar medidas duras devido o cansaço da população com as restrições que se prologam, embora nunca tenha havido uma medida dura como um lockdown ou restrição de circulação.
Uma análise comparativa com a segunda onda da gripe espanhola (figura) que matou 50 milhões de pessoas, numa população global bem menor que a atual mostra que a segunda onda pode ser de fato muito pior que a primeira, e também a sazonalidade (outono e inverno na Europa) deve ser considerada.
Dons e talentos
Dons são coisas que fazemos e parece que nascemos com ela, por isso foi traduzido no português como “dádiva”, enquanto talento podemos ter uma aptidão mas ela precisa ser desenvolvida e aprimorada para se tornar realmente um dom, assim recebemos de alguém, de uma estrutura ou cultura e precisamos despendê-lo.
Algumas culturas trazem dons naturais, assim diz-se que aquela cultura tem bons cozinheiros, aqueles são trabalhadores natos, porém uma cultura nociva ou pouco natural pode não desenvolver os talentos e até dependendo de estruturas autoritárias, sufocá-la, mas também de modo branco uma cultura pode deteriorá-los.
Dons artísticos, estéticos e até mesmo morais dependem de uma cultura que propicie seu desenvolvimento e os tornem talentos que possam ser “doados” a população de um modo geral, qualquer cultura que sufoque dons naturais está em retrocesso e pode até mesmo perder suas raízes originárias, assim muitos povos que foram colonizados, marginalizados ou inferiorizados sofrem este tipo de mutilação, porém há sempre uma maneira de resistir.
Também estruturas sociais, educacionais e religiosas podem sufocar dons naturais, e com isto os talentos que devem ser desenvolvidos não afloram, percebem o processo de crise que vive, mas não percebem a raiz e o ponto focal da crise, matam os talentos e sufocam os dons naturais que em geral resistirão, a obra de Picasso “Guernica” (foto) é ícone da resistência espanhola ao autoritarismo, só voltou a Espanha quando a democracia se estabeleceu.
É a principal característica de um sistema autoritário, sufocar os talentos e tentar controlar os dons, assim poucos artistas sobreviveram tanto no stalinismo soviético como no nazismo e regimes totalitários que serviram de apoio, como o franquismo espanhol e o fascismo italiano, mas também a modernidade perece deste mal.
A arte é sempre um momento de resistência, Byung Chul Han desenvolveu o conceito de Jardim Secreto, onde é possível cheirar, apalpar e as coisas, sem mediação das mídias, uma forma de recuperar o que ele chama de “beleza original”, o termo é bom, mas deveria ser conjugado com o conceito de dons originários.
Também Da Vinci afirmou que a “lei suprema da arte é a representação do belo”, já para Kandinsky: “É belo o que procede de uma necessidade interior da alma”.
Segundo Aristóteles “o belo é o esplendor da ordem”, porém por causa da associação desta palavra ao positivismo, faria uma paráfrase dizendo que o belo pode contribuir para uma harmonia originária que nos leve ao bom e belo como pretendia Platão, um diálogo que leva a alma para além do mundo físico, então ali se encontra o dom, a parte da cultura originária de cada pessoa e de cada povo.
Conjugando dom e talento, temos um dom natural que ao desenvolver-se dentro de uma cultura propícia torna-se um talento e nos eleva enquanto Ser.
A teoria do dom
Deixamos uma questão ao final do post anterior (Poder e dom), como os dons poderiam servir a sociedade, e há estudos sociológicos a respeito.
Marcel Mauss, junto com seu tio Emile Durkheim foram animadores da Revista francesa Année Sociologique, e ele foi o principal sistematizador da teoria do “dom” que foi traduzida para o português como dádiva, em inglês é ainda pior porque tornou-se teoria do presente (gift em inglês), pensamentos importantes para os fundados de solidariedade e de alianças fraternas nas sociedades contemporâneas.
Alain Caillé, fundador e editor da Revue du M.A.U.S.S. (Movimento Anti‑Utilitarista nas Ciências Sociais) e um dos propagadores do pensamento de Marcel Mauss na atualidade afirmou que esta teoria “fornece as linhas mestras não apenas de um paradigma sociológico entre outros, mas do único paradigma propriamente sociológico que se possa conceber e defender” (Caillé, 1998, p. 11).
O livro de Marcel Mauss Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas (2003), trouxe entre muitas contribuições a ideia sociológica que o valor das coisas não pode ser superior ao valor da relação e que o simbolismo é fundamental para a vida social.
O surgimento de uma obrigação moral coletiva envolvendo os membros de uma sociedade, supõe aspectos tão diversos desde a troca de mercadorias como a simples troca de um mero sorriso, é preciso ressaltar a complexidade das motivações e as modalidades das interações para não reduzi-las ao simplismo das ideias puramente econômicas, aquilo que chamou de homo economicus.
As noções de honra e prestígio perpassam a economia da dádiva, sendo essenciais para garantir a circularidade e reversibilidade das trocas.
O Ensaio sobre a dádiva inaugura uma profícua tradição de estudos sobre a reciprocidade e a circulação das coisas, ampliando o tema da aliança, central na Antropologia francesa a partir da obra de Claude Lévi-Strauss (1908-2009), e que conhece leituras específicas nos trabalhos de Maurice Godelier (1934-) e de Pierre Bourdieu (1930-2002), ele elabora não apenas a teoria do dom ou do doar, mas a tríplice obrigação do dar, receber e retribuir, a partir da análise de diversos povos que estudou.
Em seus estudos os bens circulam entre clãs e tribos seguindo a regra de que, quanto mais grandiosas as doações, maior prestígio concedido a seus doadores, porém as prestações devem ser retribuídas, se não imediatamente, em momento posterior, assumindo um caráter disfarçadamente desinteressado ou informal.
Conforme seu estudo, isto ocorre com os taonga na Polinésia (foto), com os vaygu’a na Melanésia e com os cobres brasonados no noroeste americano.
Esta ideia de dom (ou dádiva como foi traduzido) é a que aquilo que temos seja como valor ou como talento pode ser dado, retribuído ou recebido.
CAILLÉ, Alain. “Nem holismo, nem individualismo metodológicos: Marcel Mauss e o paradigma da dádiva”, Revista Brasileira de Ciências Sociais.1998.
MAUSS, Marcel, Essai sur le don. Forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques, Paris, PUF, 2007 (Trad. Bras. Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 2003)