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O novo livro de Sloterdijk
O livro “Las epidemias políticas” de Peter Sloterdijk ainda está em andamento, porém já há citações e comentários sobre ele, onde se lê que há uma “quase perfeita sincronicidade da pandemia microbiana com a informativa, e acredita que a crise atual poderá levar “a uma consciência coletiva dentro do individualismo”, onde aparece um otimismo novo.
Um dos comentários mais lidos sobre o proto-livro é o que foi publicado em 26 de agosto de 2020 na por El Ciudadano, e que foi comentado pela revista brasileira IHU (Instituto Humanitas Unisinos).
Nele afirma que a sociedade ainda não está “em condições de olhar para além da pandemia” e prevê que pouco vai mudar pois “muitos aguardam com ansiedade o retorno à contidiana frivolidade do modo de vida consumista” e apenas com tempo e reflexões é que isto “levará a uma transformação da consciência coletiva dentro do individualismo.
O nome é porque vê os meios de comunicação como “portadores de infecções” e que a democracia atual é superficial para abrigar a troca de argumento e o diálogo, então estamos sempre “entre epidemias, estratégias e vacinas” num sentido mais amplo, onde a informação é apenas uma rede de “emoção, envenenamento e destruição do juízo público”.
A análise é precisa porque o dualismo e a polarização não tem só um lado, mas tem os dois igualmente e parece que estamos presos a esta lógica onde os argumentos pouco importam.
Aponta por exemplo sobre o discurso do ódio, o fato de que “as pessoas muitas vezes tendem a ver o outro como uma fonte de perigo não é uma consequencia da atual pandemia de coronavírus, nem é uma invenção do racismo pseudoobiológico do século XIXI, Claude-Lévy Strauss apontou, há muito tempo que uma dose de xenofobia faz parte da herança ancestral da espécie homo sapiens”.
Apesar dos sistemas que explicavam tudo terem fracassado detecta que “agora, quase nada é tão contagioso como o entusiasmo pelas ideias universalistas. Quando o universalismo fracassa, surge a crítica. Quando a crítica fracassa, surge furioso o ressentimento em massa” e conclui que é isto que leva as “epidemias da ira”, enfim nossa dificuldade de resignação e resiliência.
Faz sua síntese histórica analisando que “Na Europa, o Iluminismo começou com a afirmação de que o bom senso é a coisa mais bem distribuída no mundo. Existem muitas razões para duvidar da veracidade desta tese”, agora sabemos que seguranças e imunidades são mal distribuídas.
Intimidade nova e mundo novo
Na intimidade, em nossas “bolhas” que geramos nossa cultura, defendemos e promovemos nossas ideias, nossos valores e aquilo que desejamos para um mundo melhor.
O Natal de alguma forma ainda faz os homens se solidarizarem e pensarem de modo generoso no mundo futuro além da sua bolha, de seu egoísmo, e se isto se prolonga pelo ano um novo mundo pode nascer, mesmo estando numa crise pandêmica que já é também uma crise mais ampla.
As reflexões de Sloterdijk e de outros pensadores é como a interioridade tornou-se um mundo isolado, como uma “bolha”, e nela reflete o nosso estágio inicial de nossa vida no útero materno e se prolonga pela vida, a análise feita por Sloterdijk (também Bachelard o faz de outro modo, veja o post) é como a passagem bíblica do profeta Jonas no frente da baleia, que é ilustrativa deste modo de ser, de busca de uma “intimidade” de conforto.
Ao permanecer no ventre da Baleia, simbolicamente é o que buscamos como região de conforto, ou de segurança, num mundo hostil onde devemos buscar uma co-imunidade, uma defesa onde todos podem participar e usufruir de um bem-estar, estar no ventre é uma recusa deste passo.
O nascimento de Jesus para os cristãos significa o anúncio deste ventre, deste “reino”, nesses dias comemoramos a vinda através de um menino-Deus deste tempo novo de um mundo novo.
A passagem bíblica que relata o nascimento de Jesus diz que José e Maria foram para Belém, devido o censo feito pelo Império romano: “para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto, e Maria deu à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,5-7).
Esferologia, a intimidade e a exterioridade
Não por acaso Sloterdijk faz um elogio rasgado a Gaston Bachelard no início de Esferas I, sua abordagem tem um diálogo profundo com A poética do espaço de Bachelard, pois tanto um como outro o tema intimidade está ligado a articulação e duas concepções: “exterioridade” e “espaço”.
O primeiro ponto é entender que a abordagem fenomenológica tem influência direta do Ser e Tempo de Heidegger, ao mesmo tempo que esboçam críticas, mesmo não tendo Heidegger se debruçado profundamente sobre o tema, está nas entrelinhas de seu trabalho.
No capítulo inicial, Sloterdijk refere-se ao humano com os chamados “blocos erráticos”, em que o espanto com o próprio “eu” no mundo seria como estes blocos que “estão ai”. Diante disto, abre-se a possibilidade da consciência fazer-se com o mundo. O reconhecimento desta condição de estar jogado aleatoriamente no mundo não se dá de forma tranquila, mas por meio do “inesperado, o rebelde e o inquietante que o extático achamento pessoal pode ser” (SLOTERDIJK, 2008, p. 16), blocos erráticos foram as formações geológicas deslocadas na última era gracial.
O primeiro volume é dedicado a questão da intimidade e Sloterdijk parte da relação mãe-bebê, estamos unidos a um outro corpo desde o momento da concepção, por um “órgão rejeitado” que é a placenta, enquanto em outras épocas ele era de alguma forma ritualizado, agora é descartado como lixo o “acompanhante originário”.
Ele apontará a partir disto (como fez com o profeta Jonas) procurar caminhos não explorados pela filosofia atual, “a relação, a conexão, a flutuação num dentro de-algo e num com-algo, o estar contido num entre” (SLOTERDIJK, 2016) e por isto sua esferologia é sua obra essencial.
Destaco a obra de Bachelard porque para ele há uma perspectiva que considero mais ampla, a de descrever que a experiência íntima além da experiência com o outro, com a totalidade do mundo.
É assim também em Bachelard uma contraposição a Heidegger, onde afirma: “De nosso ponto de vista, do ponto de vista de um fenomenólogo que vive das origens, a metafísica consciente que se situa no momento em que o ser é ‘jogado no mundo’ é uma metafísica de segunda posição” (BACHELARD, 1993, p. 27)
Enquanto Sloterdijk é o útero o “espaço” primordial, o local do bem-estar, para Bachelard é a casa, o lugar paradigmático do bem-estar e da proteção.
Se entendermos interioridade como o lugar em que conjugamos estas duas sensações: o útero que é a casa primordial, e a casa que é o espaço no mundo onde co-habitamos com outros seres, não apenas humanos é claro, podemos conjugar interioridade e intimidade, e temos um novo horizonte não apenas metafísico, mas humano, divino e entre estas duas conjugações: o útero original, a casa comum e o destino final que a interioridade provê.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes,1993.
SLOTERDIJK, P. O Estranhamento do Mundo. Trad Ana Nolasco. Lisboa: Relógio d’Água, 2008
SLOTERDIJK, P. Esferas I: bolhas. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
Esferologia e Jonas
A retomada do profeta Jonas dentro da esferologia de Peter Sloterdijk, deve ao conceito de intimidade que o explora bem como a concebemos, um reduto pessoal, seguro e composto por um único material particular, essa intimidade especifica não deve existe, ele usará duas expressões “díade” e pela “divalência”, depois as conjugará com uma expressão musical bicorde, onde não há uma nota dominante.
Parece que o sentido judaico de Jonas, aquele que rejeitou sua missão e foi para o ventre da baleia pouco teria de ver com isto, apenas com a intimidade, com o reduto onde caiu recusando sua “missão”, porém pensada como uma díade, a relação de dois ou mais onde não há centro, e a divalência, diferente da ambivalência onde valem iguais, há forças contrárias em relação diádica.
Não apenas nos fenômenos humanos, mas todo tipo de relação tem forças diádicas, relações intrapessoais também seriam este emaranhado de consciência entre o interno, o externo, o pessoal, o coletivo, ou se preferimos as relações idealistas, o subjetivo e o intersubjetivo.
Voltemos agora ao tema para pensar sobre Jonas, o profeta e a baleia. Ser profeta significa revelar a vontade de Deus para seu povo, assim a díade entre o divino e o humano é dita entre o homem/ santo, como homem não daria conta de sua tarefa, afinal era preciso ter santidade e habitar o divino, mas nem só santo seria o suficiente, pois é preciso ser homem para conhecer as perdições e ocupar a terra, no caso de Jonas pregar a conversão ao povo de Nínive, os assírios eram terríveis.
Aqui entra a baleia, estando nela reconhece o poder de seu Deus, reza, se arrepende e é “vomitado” em terra firme, saindo perto da cidade que devia profetizar antes de sua desobediência, mas ao ser vomitado volta para cumprir a vontade de deus e seu papel de profeta.
Aqui entram as notas bicordes, o final triunfante, não é nem a estrutura de homem, nem a de profeta que vence, é um lugar de homem/profeta, a estrutura relacional já está toda aí, bem diante de nós se quisermos dissecá-la, cumprirá a missão, mesmo não a desejando.
Para os cristãos é a importância da missão, mas para Sloterdijk é mais transcendente ainda (mesmo não tendo o menor tique religioso), é responder a sua pergunta essencial da esferologia: onde estamos quando estamos no mundo, Jonas é fundamental por isto, no ventre da baleia com medo de nosso destino, então precisamos ser vomitados para entender as nossas tarefas.
Diz o filósofo ironicamente: “os únicos corpos que são localizados sem dualidade no mundo são os dos mortos” (Esferas I), e pergunta a mim e ao leitor é: Onde você está agora? A resposta para isto não é um simples GPS, mas sim é a sua consciência a única ferramenta que você possui disponível para perceber o seu entorno e articular uma resposta mais sensata e que diga algo sobre estar aí.
Noogenese: matris in gremio
Na digressão 10 de Esferas I, peter Sloterdijk faz uma relação da concepção de Maria (o nome Conceito vem de concepção) com a tragédia, e um texto que certamente é do conhecimento do filósofo é a interpretação que Hörderlin faz da tragédia grega Édipo Rei de Sófocles, onde usa o termo aórgico para a busca de Épico para saber quem é, quando mais busca a consciência menos consciente torna-se em direção a tragédia.
A tragédia é que o pai Laio, havia ouvido do oráculo de Delfos, que o filho o mataria e se casaria com a mãe Jocasta, o rei o entrega a um pastor pobre para mata-lo, mas o pastor o cria e depois ele vai parar nas mãos de Políbio, rei de Corinto que o cria como filho, mas a tragédia se cumpre e depois Édipo mata o rei Laio que era seu verdadeiro pai e desposa Jocasta ao tomar consciência da verdade cega-se, a tragédia tem mais detalhes, aqui é só para entender o aórgico.
Sloterdijk inverte esta história para falar da mariologia cristã, em sua digressão 10 Matris in gremio (colo ou regaço da mãe), onde após analisar o texto De humanitae conditionis in miseria de Lotário de Segni (1160-1216) que viria a tornar-se o papa Inocencio III, que afirma que o líquido que se alimentaria a criança é o mesmo da menstruação que seria interrompida com a gravidez.
Sloterdijk, afirma que “não há dúvida que Jesus, mesmo in gremio, deve ter sido provido de um diferente plano alimentar” (Sloterdijk, 2016, p. 557), e vai usar a Questio 31 do terceiro livro da Summa Teológica de Tomás de Aquino, porém é importante é sua “concepção”.
A citação que faz de Tomás de Aquino é importante (a leitura do filósofo é diferente, claro), pois ela explica a noogenese, e também a gênese da ligação dos dois corações:
“… pois, pela ação do Espírito Santo, esse sangue é recolhido do regaço da Virgem e conformado em feto. E por isso se diz que o corpo de Cristo foi formado pelo sangue mais casto e puro da virgem” (Aquino, Suma Teológica III, 31, 5, 3, SP: Loyola, 2001-2002).
No texto bíblico, Maria embora prometida a José, ele ainda não a desposara, diz o texto bíblico: “Maria perguntou ao anjo: “Como acontecerá isso, se eu não conheço homem algum?” (Lc 1,34), e recebe a resposta que será pela ação do espírito, sob a sombra do poder do Altíssimo.
E assim nasceu a ideia de Maria ter sido levada ao céu, mas também é o nascimento 11 séculos antes de ser aceito, o dogma de sua Imaculada Concepção (que por uso popular tornou-se Conceição), assim “é a própria matriz de Deus que ofereceu miraculosamente ao escultor o material de sua escultura, e a Deus o material para tornar-se homem …” (Damasceno apud Sloterdijk, 2016, p. 558), que assim pré-anuncia a ação aórgica de Maria com Jesus e Deus-Pai, como uma pericorese in extremis (na foto, também usada por Sloterdijk, Virgem com Abertura, final do século XIV, Museu de Cluny em Paris), citada por Sloterdijk.
SLOTERDIJK, P. Esferas I: bolhas. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
Dois corações e uma nova relação
A sagacidade de Peter Sloterdijk penetra na mística católica pós-reforma, “particularmente sob a influência mística do Sagrado Coração de Jesus, Marguerite Marie Alacoque (1647-1690). um vasto movimento de culto, que também acabou por impor concessões litúrgicas e formulações doutrinárias” (pag. 115).
Vai destacar a obra do padre oratoriano e missionário popular João Eudes (1601-1980) “nascido na Normandia, que entrou nos anais católicos como fundador de um culto de grande força litúrgica, o culto de dois corações” (pg. 116), o Imaculado Coração de Maria e o Sagrado Coração de Jesus.
Ao contrário de muitas interpretações, este filósofo ateu, além de manter a atualidade do tema, desde ao fundamento deste tipo de mística, é “uma luta contra a vida exterior, não católica, separada de algo que não está no interior de Deus” (pag. 116).
Segundo Eudes a vida dos santos era sustentada numa “contínua suspensão da bolsa amniótica do Absoluto” (a citação é de Sloterdijk), porém o importante é destacar o típico engajamento de Maria, que consiste segundo o filósofo “no fato de ter criado um céu cardíaco bipolar, no qual o coração do Filho podia fundir-se em uma união mística com o coração da mãe” (pag. 116), algo com o tema do post anterior, mas em qualidade muito superior.
Retirada a manifestação ateística do “bipolar”, pode-se dizer que estes corações em profunda relação não é uma espiritualidade antiga, algo de senhoras que usam a fita vermelha em dias festivos do Apostolado do Sagrado Coração de Jesus, mas sim aquilo que o padre Eudes elaborou no período pós-reforma e que o filósofo chama de “o baldaquim do duplo coração do Filho e da Mãe … uma família intercordial, metafisicamente ampliada” (idem, p. 116).
Esta relação destes corações, interpretado no coração da natureza, ardendo em colabora que toca o coração radiante de amor do mundo superior na obra de Jacob Böhme (Obras Teosóficas, 1682), na foto ilustrada na página 117 do livro, a relação mais ampla aparece nas páginas finais na digressão 10 “Matris in grêmio” (no colo da mãe), descrita como um “capricho mariológico”.
A ideia da criança no ventre de Maria, toma uma figura divina (do Deus Pai), aquilo que os ortodoxos e católicos chamam de Teotokos (mãe de Deus) (na foto o ícone de G. Gashev) que para evangélicos é uma heresia, porém o que significam para este momento de crise pandêmica, e de uma anterior crise civilizatória ?
SLOTERDIJK, P. Esferas I, trad. José Oscar de Almeida Marques, São Paulo: Estação Memória, 2016.
Excesso ou acesso eucarístico
Em Esferas I, o autor Peter Sloterdijk vai revelar de supetão quando está discorrendo sobre o “pensar o espaço interior”, que sua inspiração inicial deve-se a Gaston Bachelard “que, com sua fenomenologia da imaginação material e, especialmente por seus estudos de psicanálise dos elementos, aponta-nos um tesouro de luminosos insights aos quais é sempre preciso retornar” (pag. 91).
Faz uma revelação surpreendente, reafirmo seu aguçado sentido religioso ainda que declare o contrário, afirmando que devido a Bachelard “, todo homem, pelo simples fato de olhar para o interior, se transforma em um Jonas ou, mais exatamente, em baleia e profeta reunidos em uma só pessoa” (pag. 91), e indica que vai seguir essas indispensáveis intuições.
Tal é o final desta introdução onde afirma: “o risco fundamental de toda intimidade … destruidor chega mais próximo de nós que o aliado” (pag. 92) porém e se fosse o inverso.
Vai liga a questão cardíaca o excesso eucarístico, vai explorar a ideia do coração ligando-a inicialmente a duas expressões japonesas que tem cosmogonias mais completas: kokoro (coração, alma, espírito, sentido) e hara (ventre e centro do corpo), citando a obra de Guido Rappe.
Depois retorna a cultura ocidental, tomando o escrito Herzmaere do Poeta Conrado de Wüzburg que foi produzido na década de 1260, e o relato do confessor Raimundo de Pádua de Catarina de Siena, que está em Vida dos Santos, onde ocorrera uma misteriosa troca da mística com o coração de Cristo (acima quadro de Giovanni di Paolo), comentará ainda depois o escrito De amore de Marcílio Ficino sobre O Banquete de Platão que é da 1649.
O conto medievalesco de Würzburg é a recorrente troca de corações, cita o autor só no Decamerão há duas passagens, porém é na análise de Catarina de Siena que há pontos vitais.
Dirá que não é possível ao humano nivelar-se ao divino a não ser por sua anulação absoluta, e é esta “a situação de exceção mística, entretanto, a clivagem metafísica entre os polos nivela-se.” (pag. 103), vai afirmar isto é “pura subjetividade chega á zona quente do ser-sujeito totalmente desmaterializado, não representado” (pag. 103), segue o raciocínio até dizer que é “histeria”.
Para o filósofo o desejo da mística era desde o início não tanto acolher “o Outro em si quanto mergulhar ela própria na aura do Outro” (pag. 106), aqui transformo o excesso em acesso, para o cristianismo não há excesso, e o que há é o divino de submeter-se a ser “devorado” na eucaristia pela criatura, e assim dar-lhe acesso ao inacessível: o divino transubstanciado, numa reação anti-aórgica.
Sua saga penetra ainda mais na mística cristã, em especial a católica, ao falar das chagas de São Francisco, a exumação do corpo de Felipe Néri, que ter-se-ia encontrado uma falha da largura de uma mão, e este ao ter acesso (ou excesso como quer o autor) a eucaristia: “ao receber a hóstia, edemas da boca e das bochechas que davam a impressão de que estava amordaçado.” (pag. 115).
É importante em período natalino esta leitura, porque o próprio autor afirma que desde os primórdios a igreja se via constrangida “diante do embaraço de ter de determinar corretamente a proporção em que se realiza o ingresso de Deus no âmbito do humano” (pag. 126) pois se trata exatamente este sim um excesso (como quer o autor) que dá acesso (que não acredita).
As esferas de Sloterdijk
Os volumes I, II e III das Esferas de Peter Sloterdijk são digressões sobre as esferas humanas que incluem o pensamento, a cultura e a religião (embora ele diga não a considerar escreveu Pós-Deus e faz diversas alusões a questões religiosas, como “matris in grêmio” e “excesso eucarístico”).
O que é Esferas de fato para o autor dos estudos antropotécnicos, pode ser lido como: “ a vida é uma questão de forma, essa é a tese que associamos a venerável expressão “esfera”, dos filósofos e geômetras.” (Sloterdijk, p. 14)
Porém estas “esferas” vão além da forma, é uma forma metafísica, que na sua representação serve como o luar de proteção da humanidade, que se coloca em bolhas de pedras, armas, poesias e ideias, porém falta-lhe imunidade, escrito antes da pandemia, lançou a co-imunidade.
Sua esferologia pretende responder, além do dasein de Heidegger, ser-ai-no-mundo, como o que queremos dizer quando dizemos estar no mundo desde o acolhimento nos braços da mãe após a expulsão do útero, até a construção da civilização após a expulsão do Éden, claro é uma metáfora.
Com a morte (ou noite de Deus para religiosos), a grande esfera protetora da civilização humanista perdeu seu caráter local e estendeu-se ao infinito, dissolveu-se as relações protetores do íntimo em relações formais cinzentas, assim agora é o que acontece nesta exterioridade absoluta ?
É necessário especular então sobre como sobreviver e se proteger, um animal com carências que deixou de possuir habitat para aventurar na excentricidade da ex-sistens (ser para fora), é também a questão de morada, habitar uma comunidade de cuidado, eis a co-imunidade.
Mesmo anterior a pandemia, o raciocínio de Sloterdijk desvelou o que é cuidar e co-existir, sem estes conceitos a pandemia passará e voltaremos a frivolidade, como diz o pensador.
SLOTERDIJK, P. Esferas I, trad. José Oscar de Almeida Marques, S]ao Paulo: Estação Memória, 2016.
A crise ecológica e a mudança aórgica
A aparente morte do pensamento foi desenvolvida por Peter Sloterdijk, também está em outros escritos seus Se a Europa despertasse, A crítica da razão cínica e os 3 volumes das Esferas, porém uma raiz ali apontada não é plenamente desenvolvida a relação com a natureza, sua “aorgica”.
Rousseau já havia se debatido com os Iluministas ateus afirmando que o que há de mais injurioso “não é pensar (a Divindade) e sim pensar errado a seu respeito”, ele elaborou seu famoso discurso sobre a Profissão de fé do vigário Saboiano no qual expressa suas concepções religiosas.
Porém o importante é seu pensamento sobre a natureza “uma vontade move o universo e anima a natureza”, desde Aristóteles a relação com o homem é de vê-la como submissa a vontade humana tal é o paradoxo antropocêntrico, pois a Natureza está além e precede ao homem, que é parte dela e não seu senhor absoluto, embora como diz Teilhard Chardin é sua complexidade máxima.
Esta complexidade da natureza está desenvolvida por Edgar Morin, em seu Método I que é a Natureza da Natureza, porém o lugar do homem na natureza (o título de um dos livros de Chardin) é ainda incógnito e sabemos agora que se não a obedecermos, ela perece e nós também como consequência, por isto o antropocentrismo é um paradoxo, somos codependentes e coparticipes da Natureza, e ela dá sinais de agonia, também o cético Harari vê isto, e muitos especialistas.
Qual será a reação da natureza, ela poderá acontecer por um evento forte que mude todo o planeta, a chamada reação aórgica, o inorgânico sobre o orgânico, a terra mudaria totalmente e alguns místicos criaram uma imagem desta nova terra (acima), que chamo de “neogeia”, em referência a grande mutação da terra por sucessivos terremotos na pangeia, agora haveria uma reação em cadeia simultânea.
Devemos lembrar as fontes energéticas como as usinas nucleares, o maremoto seguido de tsunami no Japão (em março de 2011) mostrou que as usinas nucleares são um problema, desativá-las não é possível.
Harari ao falar do Homo Deus, seu segundo livro de sucesso, acredita que o homem faria isto, os religiosos (alguns claro), místicos e visionários sabem que algum evento aórgico pode ocorrer.
Morte aparente do pensamento
Se há uma esfera além da pura antropologia e do cientificismo darwinista não está apenas no pensamento religioso, mas também no pensamento que vai além do humano, este pensamento embora em crise, está presente na filosofia contemporânea.
Peter Sloterdijk escreveu A morte aparente do pensar: sobre a filosofia e a ciência como uma vida de exercícios, seu tema geral sobre a sociedade contemporânea como “uma vida de exercícios”.
O livro é o resultado de várias palestras proferidas em 2009 chamada de Palestras “unseld”, no Fórum Scientiarum da Universidade de Tübingen cujo tema era “A antropologia nas discussões da ciência”, e o autor propõe duas formas de antropotécnica, a de curto alcance (Tens de mudar sua via) e uma de longo alcance chamada Selbstverbesserung (aprimoramento do sim).
Há uma releitura de Kant e Cassirer devido a um excesso ontológico, que compensa o “déficit biológico”, explico melhor, o ser que procura transcender a uma realidade biológica deficiente, de tal forma que o seu “exercício de vida” geral novos problemas, teorias filosóficas e científicas.
Vendo que a exposição e práticas na história usual das ideias tornaram possível a existência de uma improvável ciência e filosofia, ele elabora uma genealogia do “homo teórico”, o “puro observador”.
Analisa as condições que surge no Ocidente a atitude teórica em geral, e a ciência em particular, onde vê o que ele denominará “o assassinato de um morto aparente” (p. 14), ampliará a noção husserliana do epoché, colocar entre parêntesis toda exterioridade e juízo, e amplia este conceito.
O método genealógico proposto capaz de reelaborar a origem do produto das ciências, implica o que Nietzsche adotou como atitude de suspeita: “Será que o homo teórico realmente vem de um berço tão alto quanto ele garante-se desde os primeiros dias? Ou é melhor um bastardo que quer impressionar com títulos falsos? ” (p.57), a provocação tem um caminho anterior já trilhado.
Ira e Tempo (2006), refere-se ao produto do fracasso no espaço da polís), psicológico (para uma disposição psíquica de se distanciar do meio), sociológica (por uma pedagogia de formação do indivíduo) e meio-teórico (o resultado de uma cultura escrita que predispõe a distância de um texto, que por sua vez mantém a distância do tempo da vida.
Todo este arcabouço e para dizer que estamos diante de dilemas extremamente duros para o homem, para o pensamento e para o próprio processo civilizatória, é além e aquém da pandemia, a irrupção do real em Marx e nos neohegelianos, o perspectivismo nietzschiano, a consciência de classe em Lukács, a trajetória de Heidegger, a revolução ética nas ciências naturais depois de Hiroshima e Nagasaki, o compromisso existencialista, o conhecimento em Scheler, Kuhn e Foucault, a desmistificação do isolamento em pesquisa científica de Latour e CTS (Ciência, tecnologia e Sociedade) (pags. 121-129).
SLOTERDIJK, P. Muerte aparente en el pensar. Sobre la filosofía y la ciencia como ejercicio. Siruela. Barcelona, 2013.