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Unidade ou dualismo
O dualismo é parte essencial do pensamento moderno, ainda que se conheça pouco ou nada da filosofia, e penetrou profundamente na alma humana e vez as coisas por contrastes, não aquele que veio de Platão as sombras da caverna onde não vemos com clareza e não a clareira lugar de busca de Heidegger para encontrar o ser esquecido na filosofia.
Byung-Chul Han ao descrever as narrativas modernas é incisivo: “o novo bárbaro celebra a pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso” (Han, 2023, p. 35) citando Walter Benjamin.
Em seguida dirá que eles “professam a transparência e a falta de mistério, ou seja, professam a falta de aura. Também rejeitam o humanismo tradicional” (pgs. 35-36), esclarece, entretanto, que o livro citado de Walter Benjamin “é repleto de ambivalências” e ao final após uma “certa” apologia a modernidade (as aspas são minhas) dá lugar a desilusão e prenuncia a Segunda Guerra Mundial.
Podíamos ter nos libertado deste “mal-estar da modernidade” (como escreveu Freud) porém o ceticismo de Benjamin volta a fazer sentido, citado em Han: “Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo de seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do “atual”…” (pgs. 37-38).
Falamos de paz enquanto fazemos guerras, falamos de união e estamos profundamente divididos, falamos de democracia e saímos em apoio a atitude e governo autocráticos, e talvez a maior de todas os sofismas, pretendemos eliminar a pobreza e a miséria enchendo nossos bolsos, não há coerência entre discurso e atitude, trata-se de elaborar boas narrativas, e isto partiu da divisão entre o que próprio do sujeito (não a subjetividade e sim a sua alma) e o objeto (não a objetividade, mas o uso material daquilo que produz vida).
Falta uma “aura” reclama Byung-Chul Han, talvez a espiritual, faz sentido a resistência do espírito de Edgar Morin, mas é preciso encontrar um sentido verdadeiro para isto, aquilo que a maioria dos homens chama de religião não é outra coisa senão justificar narrativas pessoais.
É possível reencontrar a unidade, o diálogo e a paz, mas é preciso “desarmar” os espíritos.
Han, B.C. A crise da narração. Petrópolis: ed. Vozes, 2023.
O amor além da dor
A dor não é a resignação da interioridade absoluta: “o sujeito que trabalha na identidade, retornando a si mesmo na sua interioridade, assimilando o mundo, é incapaz da dor” (pg. 329), enquanto outros pensadores pararam na angústia ou na busca pela diferença ou ainda pelo sujeito destinado a um “espírito absoluto”, Heidegger vê na dor uma “tonalidade afetiva fundamental da melancolia” (Han, 2023, pg. 329), é a tonalidade do ser … da finitude … do pensamento finito, “é o traço idêntico que, como base certa maneira formal, sustenta toda tonalidade fundamental ocupada por algum conteúdo, o traço principal que, enquanto o mesmo, está na base do modo como respectiva afinação” (Han, 2023, pg. 330).
Não há um porque da dor senão uma separação de algo que a transcende, diz uma canção brasileira “quem não sofreu por amor, não amou”, mas pode-se inverter esta relação se conseguimos ver o divino como Puro Amor, Ele também através da dor nos ama por amor, talvez seja sua máxima essência, assim o símbolo cristão da cruz.
Toda a filosofia nos fala de estar separado de algo, de uma busca de algo, do desejo de infinito e de felicidade ágape (aquelas que não são duradouras são apenas paliativas), assim o nome do livro de Han “A sociedade paliativa”, fala da dor hoje.
Há uma atração neste tipo de essência, a relação entre dor e amor, não por causa de um espírito sofredor ou masoquista, mas justamente pela separação do infinito, da plenitude e do puro Ser, e somente a existência do Puro Ser pode nos atrair para este tipo de amor.
Uma frase de Han que é marcante é: “A perda moderna da fé, que não diz respeito apenas a Deus e ao além, mas à própria realidade, torna a vida humana radicalmente transitória.”, o filósofo coreano-alemão está muito mais próximo do budismo do que do cristianismo, mas entende uma relação essencial que existe neste Amor/Dor, neste Ser/Não Ser, não de forma dualista, mas em relação intima como o verdadeiro Amor.
Assim se há uma precedência na relação é Dor e Amor, mas não como negação da vida e sim como sua afirmação máxima.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
A dor e o divino
O capítulo do livro sobre a Voz no “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva” de Byung-Chul Han, esta Voz poderia ser final (o capítulo também), mas como Heidegger a via se tratava mais de uma Voz interior do que uma relação com o divino, e Han lhe foi fiel, para ele é parte do desenvolvimento do Ser, também ao falar da dor, assunto que Han tratou em a “Sociedade Paliativa: a dor hoje” (fizemos alguns posts), lembrando a maneira como tratamos a pandemia e outro flagelos numa sociedade que não quer olhar este lado da vida: o sofrimento e a dor.
Não por acaso, Heidegger trata isto ao elaborar sobre Parmênides, onde a ontologia está reduzida ao Ser é e não-Ser não é, para uma lógica A e não-A, não havendo terceira hipótese, ali Heidegger fala de “certa morte (sacrificial) do ser humano: “Mas a forma suprema da dor é o morrer da morte, que sacrifica o ser humano pela preservação da verdade do ser” (Han, 2013, pg. 321), assim não estão o sacrifício não é aqui, pois “o sacrifício tem em si sua própria essência e não precisa de objetivos nem de proveito? ” (idem) e assim isto deveria se encaminhar por algo além do terreno, do apenas humano.
Han citando Foucault indaga que “trata-se aqui de certa agonia despertar o pensamento de um “sono antropológico”?” (idem), talvez um despertar antropotécnico ou ainda como optamos um despertar onto-antropotécnico, uma vez que o esquecimento do ser não é categoria filosófica apenas, há algo nela transitório, não infinito e não aberto.
Ao abordar o vazio do homem moderno, a partir também da leitura de Foucault, Han lembra que Heidegger ao retomar a categoria metafísica “subjectum” que em “sua essência é o homem moderno é o “sujeito” e é exatamente aqui que Heidegger “critica implicitamente o pensamento antropológico” (pg. 322), ela é segundo Heidegger: “a continuação do cartesianismo”, Han citando-o: “Com a interpretação do homem como subjectum. Descartes cria o pressuposto metafísico para a futura antropologia do todo tipo e orientação” (pg. 323), as categorias sujeito e objeto são próprias da modernidade.
Assim não é a oposição do homem ao ente, mas a oposição equivocada da modernidade à linguagem: “a preocupação pela linguagem seria preocupação pela morte. Devolver a linguagem ao homem significaria, portanto, devolver-lhe a morte, a sua mortalidade” (pg. 324), e também não se trata do ‘ser’ ou ‘não-ser’ do ser humano” (pg. 325-326).
Para Heidegger o sujeito se reflete no mundo; “a imagem do mundo é de certa forma sua própria imagem especular” (pg. 326), por isso ela esconde o ser, já a dor “dilacera a interioridade subjetiva. Não se perde totalmente. Á dor está associada uma concentração peculiar, que, no entanto, não se estabelece como uma interioridade subjetiva” (pg. 327).
Embora o autor e Heidegger não o digam é por isto que existe o “sono idealista”, onde subjectum e ente estão divididos, e “na dor, o pensar se concentra naquilo que dá a pensar … na dispersão concentrada da dor, o pensar voltando-se para fora aprende de cor o exterior – deste lado de cá do saber e da ciência, os quais possibilitariam um aprendizado interiorizante assimilador” (pg. 327).
É importante ressaltar a economia calculista vista por Heidegger: “A dor é do ´por´, não do ´devido a” … o luto não lamenta, não procura preencher o lugar que ficou vazio … o luto sem enlutar só é concebível fora da economia (VIII.3)” (citado em Han, pg. 328).
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
O coração e a fé
O coração é um órgão vital, irriga o sangue em todo o organismo chegando a todas as células do corpo humano, quando falamos de crenças (elas estão ocultas também em objetos do conhecimento humano, acreditamos que uma coisa é de certa “forma”) não falamos apenas da fé.
Byung-Chul Han ao fazer sua análise partindo dos autores clássicos da filosofia ocidental, aborda uma perspectiva daquilo que vai chamar de “tonalidade afetiva”, se concentrando de modo principal em Heidegger.
Seu livro, diferente de outros que são só ensaios, tem “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” (Ed. Vozes, 2023), seu primeiro livro a meu ver, com análise nova, humana e a até mesmo espiritual do cerne da filosofia ocidental.
Parte de um conceito caro a civilização judaico-cristã, que é o da circuncisão, porém da circuncisão do coração e não do órgão falido (a pele presa no início do pênis), é preciso lembrar que embora órgão masculino ele é emblema do poder, da autoridade e do desejo, foi culturalmente numa cultura bélica.
A parte de sua visão com sua visão oriental e que tem um sentido espiritual para toda a sua questão filosófica, Han vai desenvolver que é a circuncisão do coração, aquela que modula e rege o afeto, a circuncisão tem um sentido diferente do que é comumente falado, a polêmica entre cristãos e judeus no início da era cristã, é a circuncisão do coração.
A circuncisão é o ato de retirar a pele do órgão sexual masculino, porém mesmo no sentido bíblico já era a do coração, em Deuteronômio se lê: “Circuncidai, pois, o prepúcio do vosso coração, e nãos mais endureçais a vossa cerviz” (Dt 10,6), citando na epígrafe do primeiro capítulo do livro: “Circuncisão do coração” (Han, 2023, p. 7).
Assim, “esta circuncisão liberta o coração da interioridade subjetiva” (Han, 2023, p. 11), e há uma conclusão preliminar surpreendente em Heidegger: “O coração de Heidegger, por outro lado [confronta com Derrida], escuta uma só voz, segue a tonalidade e gravidade do “uno, o único que unifica” (Han, 2023, p. 14-15), para ele é um “ouvido do seu coração” e assim há algo forte de espiritual nisto.
É ali que o ser humano encontra sua essência: “permanece sintonizado com aquilo a partir de onde sua essência é determinada. Na determinação sintonizadora o homem é afetado e chamado por uma voz que soa tanto mais pura quanto mais silenciosamente ela ressoa através do sonante” (Han, 2023, p. 15) citando literalmente Heidegger.
Não dirá que é a fé, e revela a influência budista de seu pensamento, único elo, a meu ver, do autor com o idealismo, pois no budismo há uma elevação apenas pessoal, não há uma Pessoa do outro lado, que ressoa através do sonante, aquela voz do Espirito Santo.
A discordância de Derridá e Heidegger, esclarece o autor: “A ´polifonia´ que Derrida opõe à totalidade não exclui a tonalidade” (pg. 16) diríamos se estes autores Han, Derrida e Heidegger fossem cristãos, que Heidegger e Han seriam monoteístas e Derrida seria politeísta, porém é claro que esta “voz sonante” não é a de Deus, mas do interior.
Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
A forma e o conteúdo
A filosofia moderna separou a forma do conteúdo, assim como se separa um rótulo de um ingrediente que existe num frasco, mas isto vem da compreensão reduzida do que é a matéria, o hylé dos gregos, cujo pensamento na terminologia aristotélica interliga-os no hilemorfismo (ὕλη, hýle = “matéria”; μορφή, morphé = “forma”).
Para que isto tenha um alcance antropológico, necessário ao discurso da diversidade cultural, é preciso ligar ato e potência, como o fez Tomás de Aquino, onde matéria não é aquilo que hoje designamos assim (como a substância por exemplo), mas sim aquilo que é como possibilidade ou em potência, escrito assim por Tomás: “matéria est id quod est in potentia” (matéria é aquilo que é em potência) (TOMÁS, ST I q.3 a.2 c), em termos atuais, enquanto se não é ato, é apenas um dado.
Assim o ato é a existência de fato, ou a atuação em si, ou seja, “forma est actus (forma é ato) (ST I q.50, a.2, obi.3), assim deixamos nos moldar por ideias, ações e pensamento que podem ser mais profundos ou mais rasos, fundados apenas em algumas palavras.
Assim a articulação dos binômios potência x ato e matéria x forma é deste modo, “matéria não é senão potência, já a forma é aquilo pelo qual algo é, pois é o ato” (TOMÁS, ScG II, c.43), estas categorias dão uma distinção da metafísica fundamental, e antropologicamente significam que uma coisa é a possibilidade de existir ou atuar: potência ou matéria, outra coisa é de fato existir ou atuar: ato ou forma.
Algumas teologias modernas querem separar corpo e alma, isto é sem fundamento escatológico e bíblico, senão a figura humana de Jesus seria dividida em duas: a divina e a humana, que estariam em oposição e lutariam uma contra a outra, e por isto que a antropologia cristã deve ser rigorosamente unitária, como o é em Tomás de Aquino.
A existência de um corpo na condição humana é a união entre a potência e o ato, entre a matéria e a forma (vista neste novo aspecto ligada ao conteúdo e essência), sem a sua existência de fato (forma) o corpo nem sequer existia, mas só a possibilidade de existir (em potência) o faz existir em ato, esta unidade é radical, já que a condição necessária para sua existência é o corpo, assim espiritualidade não é só “corpo” há uma essência nele.
É fundamental para compreender a antropologia cristã, escrita de forma clara por Tomás: “O ser humano não é apenas alma, mas algo composto de alma e corpo” (TOMÁS, ST I q. 75 a 4c), se por um lado nem todo materialismo (que não é hilemorfismo) nega a existência da alma, muita má teologia procura negar a existência do corpo, é a relação dualista moderna, cristalizada em objetividade e subjetividade, no qual ambas saem mutiladas, assim não foram “moldadas” com um espírito novo.
Segundo Tomás de Aquino, os corpos vivos humanos e a existência de fato (forma, chamada também por ele de alma intelectiva) é imortal, ao contrário dos demais corpos vivos não humanos, cuja existência tem início e fim, não o fim escatológico, mas o fim finalista de uma interrupção, pois todos os humanos morrem, e para ele a morte é explicada como uma deficiência provisória pela qual passamos apara uma existência imortal e ultrapassamos a deficiência radical do corpo vivo através da morte.
A metáfora do oleiro que transcende a análise simplista de simples adesão (Jr 18, 3-4): “Fui à casa do oleiro, e eis que ele estava trabalhando ao torno; quando o vaso que moldava com barro se avariava em suas mãos, ei-lo de novo a fazer com esse material um outro vaso, conforme melhor lhe parecesse aos olhos”, somos moldados e é bom escolher o oleiro.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica São Paulo: Loyolla, 2001-2006. 8 v.
Contemplação e tesouros
Não, não se trata da arte de observar a natureza ou o universo, pois também o ato de observar é já uma “vida activa” pois certamente não escapará alguma interpretação ou detalhe que nos chame a atenção.
Trata-se de outros sentidos: escutar sem interpretar, olhar com um olhar purificado e entender aquilo que é incompreensível a razão humana, assim não é uma atitude racional, nem um desvario ou delírio sensitivo, é um exercício da “inatividade” escreve Byung-Chul Han.
Escreve o autor em Vita Contemplativa: ou sobre a inatividade (Han, 2023, p. 11): “A inatividade constitui o Humanum. O que tornar o fazer genuinamente humano é a parcela de inatividade que há nele. Sem um momento de hesitação ou de contenção, o agir se degenera em ação e reação cegas. Sem repouso, surge uma nova barbárie.” (acima o quadro de Rembrandt O filósofo).
Portanto inatividade contemplativa não se confunde com preguiça, ausência de ação, mas um repouso para a ação clarividente e a fala profunda, diz o autor: “É o silenciar que dá profundidade à fala. Sem o silêncio não há música, mas apenas barulho e ruído. O jogo é a essência da beleza. Onde impera apenas o esquema estímulo e reação, de carência e satisfação, de problema e solução, de objetivo e ação, a vida se reduz à sobrevivência, à vida animalesca nua” (idem) e não por acaso se confunde com a vida moderna atual.
Não somos máquinas sempre destinadas a funcionar, a verdadeira vida da ação consciente, começa quando cessa a preocupação com a sobre-vivência (também no sentido do prolongamento da vivência) e nasce a necessidade da vida crua e não nua.
A confusão apareceu por causa da confusão entre história e cultura, não a história das ideias (no sentido do eidos grego), mas aquela que ignora a cultura e trata apenas do prazer, do poder e da opressão dos povos, diz o Han: “a ação é, de fato, constitutiva para a história, mas não é, a força formadora da cultura” (Han, 2023, p. 12) pode até ser uma consequência, mas feita de reflexão silenciosa é só barulho e manifestação impulsiva.
E acrescenta no mesmo trecho: “Não a guerra, mas a festa, não as armas, mas as joias, são a origem da cultura. História e cultural não coincidem” (Han, idem).
Podem parecer estranho as “jóias”, mas o núcleo de nossa cultura é o ornamental. Ela está situada além da funcionalidade e da utilidade. Com o ornamental que se emancipa de qualquer finalidade ou utilidade, a vida insiste em ser mais que a sobrevivência” (idem).
Assim é o exemplo bíblico da vida eterna, onde o narrador explica a fala de Jesus: o reino de Deus (Mt 13,44) “é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo” e dirá isto também sobre um comprador de pérolas que encontra uma grande pérola.
HAN, Byung-Chul. Vita Contemplativa. Trad. Lucas Machado, Brazil, RJ: Petropolis, 2023.
Espírito e poder
Poder e autoridade parecem se confundir, porém não é verdade na medida em que crescem no mundo governos autoritários e este foi sempre um péssimo sintoma civilizatório porque indica tanto as contendas como no limite delas as guerras.
Byung-Chul Han em seu livro “No enxame” explica após dizer sobre a necessária distância na esfera pública, que as “ondas de indignação indicam, além disso, uma indicação fraca com a comunidade” (Han, No enxame, 20,18, pg. 22) e ele tem um livro específico sobre o poder.
O livro O que é poder? (2019) tem uma longa análise sobre a questão em Hegel, isto se justifica tanto pela influencia no pensamento ocidental quanto pela incidência da visão de poder que atinge toda a esfera pública, porém salientamos o seu vago conceito de Absoluto e a influência até mesmo religiosa, vista no post anterior.
Sua análise é importante quando remete aos conceitos ontológicos, assim define que “o ente é, até quando for finito, rodeado pelo outro” (Han, 2019, p. 110) e o Ser deve gestar uma negatividade em si, não se trata aqui de “maus pensamentos” e sim o conceito que cita em Paul Tillich (1886-1965) que a potência do ser como “capacidade dos seres vivos de superar a negatividade, ou como ele diz, o “não ser”, ou seja, a quem não envolve-la na autoafirmação” (pg. 111).
Citando-o Han afirma: “tem-se mais potência de ser, porque deve ter sido superado mais não ser, e enquanto possam-se superá-lo. Quando não puder mais aguentar ou superar, então é a impotência total, o fim da potência do ser, o acontecimento. Esse é o risco de todo ser vivo” (Han, 2019, p. 111).
Cita a tese de Foucault que o ser humano seria “o resultado de uma submissão” (pg. 118) e Hegel que pensa que o poder deve atuar primariamente de “maneira não repressiva” (pg. 119) entretanto, ambos não abandonam a ideia do Absoluto, que na verdade vem do Príncipe de Maquiável e do Leviatã de Thomas Hobbes, e o como diz o autor: “o poder promete liberdade” (pg. 121).
A necessidade de criação de uma religião “neurótica” do poder, para Hegel viria da ideia de Deus, o poder que Ele tem o poder de “ser ele mesmo”, isto vem do idealismo que não supera a divisão entre sujeito e objeto, ou seja o Criador e o criado (seres e entes) não se compõe.
Não há dúvida que o poder, sem a necessária negatividade do não ser (a inclusão do Outro) é uma neurose como diz Hegel, e assim seu “deus” ou “o espírito” “ainda seria uma aparência desta neurose” (Han, 2019, p. 121).
“A dor da finitude pode ser perfeitamente a dor de qualquer limite que me separa do outro, que apenas pode ser superada pela criação de uma continuidade particular … ela não tem a continuidade do self que o poder cria. Ela não tem a intencionalidade da volta-a-si” (Han, 2019, p. 121).
O poder neurótico de Hegel não é o do Criador, é do ser enjaulado no si-mesmo, incapaz de olhar e servir o Outro, de sair do si, de negar-se para servir o Outro, é um poder neurótico.
Cansaço e verdadeiro descanso
Dando um quadro psicológico e sociológico da sociedade contemporânea Byung-Chul Han a descreve como sendo portadora de “Doenças neuronais como a depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (Tdah), transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou Síndrome de Burnout (SB) determinam a paisagem patológica do começo do século XXI (HAN, 2017, p. 7).
Usando um conceito de seu orientador de Doutorado (fez a tese sobre Heidegger) Peter Sloterdijk sua análise se estende ao chama de “o objeto de defesa imunológica é a estranheza como tal” (p. 8), o livro foi escrito antes da pandemia (escreveu também sobre ela na Sociedade Paliativa, aquela que rejeita a dor) e o conceito de imunologia aqui é aquele que afirma que o século passado foi uma época na qual se estabeleceu uma “divisão nítida entre o dentro e fora … a Guerra fria seguia o esquema imunológico”.
Assim o livro vai explorar os conceitos místicos de São Gregório de Nazianzeno, mestre na vida contemplativa (da qual Han escreveu também um livro), explora aspectos fundamentais da vida interior que combate os sérios problema da Vida Activa, que nos empurra a eficiência e ao cansaço sobre a pressão de cobranças e da guerra cultural que se estabeleceu.
Diz o paradigma imunológico “não se coaduna com o processo de globalização … também a hibridização, que domina não apenas o discurso teorético-cultural, mas também o sentimento que se tem hoje em dia da vida, é diametralmente contrária precisamente á imunização” (p. 11).
Seu conceito de resistência, vai na direção da “resistência do espírito” de Edgar Morin, porém ao nosso ver atinge o âmago da questão: “a dialética da negatividade é o traço fundamental da imunidade” (p. 11), onde o discurso do “engagement” é na verdade o vazio, pois é ausente de verdadeiras alternativas, pois a imunologia atual é aquela que acusa o Outro, lembramos aqui o distanciamento da pandemia (posterior ao livro como dissemos), uma boa “metáfora”.
Cita Baudrillard, falando da “obesidade de todos sistemas atuais”, em época de superabundância, “o problema volta-se mais para a rejeição e expulsão” (pg. 15) do Outro.
Seu aprofundamento certeiro na página 27 é que os atuais “sistemas disciplinares” (ou pseudo-éticos) buscam a lógica da produção “o que causa depressão do esgotamento não é apenas o imperativo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão do desempenho” (p. 27).
Assim meditar e completar não é distanciar-se da realidade, mas a possibilidade de olhar para ela com outros olhos, buscando uma verdadeira ascese humana e espiritual, onde podemos realmente encontrar descanso e paz (apesar e contra as guerras cotidianas e bélicas) porque na verdade só através dela é possível.
Lembro da passagem bíblica que diz “vinde a mim todos vós que estais cansados” (Mt 11,28) e numa reinterpretação para atualidade, além de buscar o divino, é também encontrar a verdadeira interioridade, que não deve estar desligada da vita activa, sob a pena do cansaço.
Han, Byung-Chul. A sociedade do cansaço, trad. Enio Paulo Giachini, 2ª. ed. Ampliada, RJ: Petrópolis, Vozes, 2017.
Um pouco de água fresca e comida quente
Enquanto poderosos lutam por domínios, colonizações e poder ignoram a vida de pessoas simples, de trabalhadores de serviços básicos que são necessários em qualquer país e cultura porque esqueceram de verdadeiros valores comunitários e morais.
Podem falar disto no dia a dia, porém suas mentes articulações e esforços estão em conquistas e poder, não a conquista de uma boa amizade, de algumas horas de alívio e prazer num dia a dia e numa sociedade que nos empurra a máxima eficiência e cansaço até o limite das forças.
Ao contratar alguns trabalhadores de serviços da construção civil, eles me disseram que gostaria que para trabalharem precisavam de uma boa água fresca e uma comida quente, as marmitas precisam ser requentadas e o suor é restaurado com uma simples água fresca.
Também são gratos com um tratamento de dignidade e um pouco de repouso após o almoço, é incrível que grande parte da sociedade abastada desconheça estas coisas simples e que podem trazer grande felicidade, equilíbrio e paz, a sociedade do cansaço ignora isto.
Os centros de poder são rodeados de pessoas ambiciosas e que sabem (ou pensam que sabem) como iludir o povo simples, mas desconhecem o dia-a-dia e a vida destas pessoas.
Vejo quando formam rodas de conversa, os assuntos e as preocupações, quase sempre também há também preocupações com as relações que se perdem, o uso de violência e produtos químicos que correm a vida familiar deles, na medida que os valores humanos desmoronam e caem também sobre eles as piores degradações e desumanidades.
Uma boa palavra, é também um pouco de água fresca agora num sentido figurado, mas não menos verdadeiro, verdadeiras culturas e religiões guardam esta “água fresca” em seus jarros térmicos e onde o alimento da alma pode ser digerido e dar disposição para o cotidiano.
A passagem bíblica na qual Jesus fala as multidões, e seus familiares o procuram, ele tem uma resposta surpreende Mt 12,49-50: “E, estendendo a mão para os discípulos, Jesus disse: “Eis minha mãe e meus irmãos. Pois todo aquele que faz a vontade do meu Pai, que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”, não significa que ignore sua família, mas quer dar aquelas pessoas um pouco de bom alimento e água fresca.
Não se ignora o mundo que vivemos, aliás os donos do poder o ignoram, mas é bom trazer um pouco de paz e esperança as almas que sobrevivem numa sociedade do cansaço, do ódio e do descaso.
A questão do espírito em Hegel
Byung-Chul Han critica a Fenomenologia do Espírito de Hegel vista “em termos do esquecimento do ser” (tema central de Heidegger) como um “eu árido” que encontra “sua limitação ao ente que lhe sai ao encontro” (Han, 2023, p. 334), assim não é a resistência do espírito.
Recupera Hegel em parte, na epígrafe do último capítulo “a verdade é o todo”, rediscute a dialética e sua metafísica no idealismo “em relação ao “apenas ser” que o esvazia até um nome “que não nomeia mais nada”, a consciência natural … quando se dá conta do ser, assegura que ele é algo abstrato” (Han, 2023, p. 336).
Esta consciência natural (idealista) “se demora em “perversidades” … “ela tenta eliminar uma perversidade organizando outra, sem se lembra que a autêntica inversão” [ocorre quando] “a verdade da essência se recolhe ao ente” (Han, 2023, p. 336, citando Heidegger).
Em contraste com a dialética de Hegel, este tópico daria um livro, trava um diálogo com Derrida e Adorno na questão sobre o luto e o trabalho do luto, matar a morte, não é apenas algo secreto no coração de Platão ou Hegel (pg. 384), mas também reverter o negativo do Ser.
Este trabalho da “tragédia” se distingue do “trabalho do luto” da dialética (Han, 2023, p. 385), é aquilo que Han chama em outros trabalhos do excesso de positividade, não entender a dor (na sociedade paliativa por exemplo, analisando a pandemia e a própria dor).
“As lágrimas liberam o sujeito de sua interioridade narcísica … elas que o “feitiço que o sujeito lança sobre a natureza” (Han, 2023, p. 394), citando Adorno a “Teoria Estética” é o livro das lágrimas e que ao contrário de Kant “o espírito percebe frente a natureza, menos sua própria superioridade do que sua própria naturalidade” (Han, 2023, p. 395).
O absoluto de Hegel é abstrato: “o Absoluto só é absoluto na medida que se sabe como Absoluto, isto é, como autoconsciência” (Hegel no §565 da Fenomenologia do Espírito).
Para a ascese verdadeira ela está além da natureza humana, aquilo leva a uma ascensão, uma nova interioridade que se expresse numa exterioridade mais humana, não a autoconsciência humana (pensada até na religião) e sim aquela que admite a singularidade humana no uno divino e este sim Absoluto.
Han, B-C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. RJ: Petrópolis, Vozes, 2023.