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Arquivo para a ‘Antropotécnica’ Categoria

Contemplar e o Ser

16 nov

Byung-Chul Han em seu ensaio sobre a contemplação, dá uma sentença cruel ao saber ocidental eurocêntrico: “o saber não consegue retratar inteiramente a vida. A vida inteiramente consciente é uma vida morta” (Han, 2023, p. 29) e se apoia em nada mais que Nietzsche no âmbito de um “novo esclarecimento”, aquele que para Heidegger abre uma clareira do Ser, embora em uma perspectiva diferente.

Citando Nietzsche escreve Han: “não é o bastante que compreendas em que tipo de ignorância seres humanos e animais vivem; precisas também ter vontade de não saber e aprendê-la. É-te necessário compreender que em esse tipo de ignorância a vida mesma seria impossível, sob a qual o vivente se conserva e floresce: um grande e sólido sino de ignorância deve estar ao seu redor” (citando Nietzsche, pag. 29-30).

Esclarece que o objetivo último de um “mestre” é “alcançar um estado no qual a vontade se resigna. O mestre se exercita de modo a eliminar a vontade.” (pag. 31)

Afirma na página seguinte cita uma parábola feita por Walter Benjamin “Não esqueça o melhor” no qual ele esboça a ideia de uma vida feliz, trata de um homem de negócios que sempre realizou sua vida com precisão e zelo, porém em certo momento joga seu relógio fora.

Então começa a chegar tarde e as coisas começam a se realizar sem sua intervenção, e o alegram, revela-se agora um “caminho para o céu”, as coisas acontecem agora quando menos esperava, “amigos o visitam quando menos eles pensavam nele” e lembra da lenda de um rapazinho pastor que é permitido em “um domingo” entrar na montanha com seus tesouros, com uma instrução enigmática: “não te esqueças do melhor” (pag. 33).

A parábola da inatividade de Benjamin termina com estas palavras: “Nessa época ele estava bastante bem. Concluía poucas coisas começadas, e não dava nada por concluído” (pag. 33).

A época da hiperinformação, do cansaço não é um tempo de busca da verdade do ser, daquilo que realmente somos cultural, social e espiritualmente; é um tempo da busca do nada, em tempos assim, surgiram profetas, oráculos, monges e sábios que fugiam deste vazio temporal, para se encontrarem numa totalidade infinita, aquela que contempla todo o ser.

Escreveu Byung-Chul Han: “quem é realmente inativo não se afirma. Ele descarta seu nome e se torna ninguém”, não é niilismo, é um reencontro com a verdade que todos procuram nas coisas e não as encontram se não olharem para si, para o seu vazio interior e sua inatividade.

Haverá um tempo em que todos estarão procurando a verdade, dirão está aqui ou ali e não mais a encontrarão, não será um fim, mas sim um “novo esclarecimento”.

HAN, Byung-Chul. Vita Contemplativa ou sobre a inatividade. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

In-formar, vincular e o simbólico

15 nov

O que faltou no texto da Crise da Narração, também tem algo equivocado na “Infocracia: digitalização e a crise da democracia na filosofia” (Vozes, 2022), a ideia que a informação é em si incompleta, está presente em outro livro intitulado de Byung-Chul Han “Vita Contemplativa” (Vozes, 2023), porque ali retornando ao ser pode- se encontrar como a forma se torna narração no interior do ser, e se in-forma.

Diz um trecho deste livro: “A perda do sentimento compartilhado acentua a falta do ser. A comunidade é uma totalidade mediada simbolicamente. O vazio simbólico narrativo leva à fragmentação e à erosão da sociedade.” (HAN, 2023, p. 91-92). (grifo nosso)

Assim reconhecendo esse aspecto da necessidade do ser enquanto um vazio simbólico, que a narrativa contemporânea em geral não contempla por seus vícios informacionais, ao mesmo tempo afirma o autor: “O ser humano, como symbolon, anseia por uma totalidade sagrada e restauradora” (pag. 92).

O termo symbolon aparece em destaque porque o autor usa-o a partir de uma leitura de O Banquete de Platão, onde Aristófanes lembra que este pedaço partido do ser, que para ele inicialmente era esférico e foi partido, tem este pedaço partido com um “symbolon”.

Ora se símbolo é uma parte, unido a outra parte formamos uma totalidade, não apenas numa comunidade, mas em toda “totalidade sagrada e restauradora”, ali onde há homens unidos por uma causa boa e justa.

A narrativa e a informação neste contexto, onde a parte está unida, com dizia um princípio importante defendido por Edgar Morin: “É preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que une e distingue”, assim união de “símbolos” distintos e que fazem parte das culturas e povos contemporâneos.

Assim o in-formar ontológico (próprio do ser) ligado ao contexto da narração em seu tempo e objeto de pensamentos dentro de uma diversidade, não são razão para fragmentação e sim para um universo que nos une e faz mais “inteiros” dentro de nossas comunidades.

A hiperatividade contemporânea, que não só, mas também o mundo digital pode nos levar é ela própria um mundo que rejeita a interiorização, a meditação e assim, a própria narração.

Escreve o autor sobre esta interioridade: “A vida activa, com seu pathos da ação, bloqueia o acesso a religião” (pag. 154), a ação faz parte da vida religiosa tanto quanto da vida leiga, o que diferencia é que além da prudência, nossas reflexões da semana passada, podem levar a uma ação diferencia, justa e que leva a uma felicidade e plenitude diferente da pura “ação”.

Pathos, esclarecendo, faz parte da tríade grega “ethos, pathos e logos”, enquanto o ethos nos persuade pelo caráter, ou por quem narra, se este é digno de fé, o logos nos persuade pela razão lógica (ampla) e o pathos pelos sentimentos causados de tristeza ou alegria, amor ou ódio, e assim muitas vezes sem passar pela razão e pela ética.

HAN, Byung-Chul. Vita Contemplativa ou sobre a inatividade. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

Recortes iniciais da crise da narração

14 nov

Boa parte da crítica ao excesso de informação de Byung Chul Han é situada no desenvolvimento do universo digital, este ensaio recente que vê a informação como fragmentada e oposta a narração, é visto tanto na histórica como naquilo que pode ser chamado de “crise da narrativa”, lê-se no texto.

Diferentemente de outras críticas à informação, situadas no período da informação digital, Byung-Chul Han busca na história o início da crise da narrativa (traduzida como narração):

Segue na mesma página, falando da perda de aspectos históricos:

Ela cede lugar a informação, deve-se esclarecer aqui que este conceito é para ele aquela atual sem contexto e fragmentária:

Assim para a ensaísta coreano-alemão “A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção”, e isto se inicia com o jornalismo contemporâneo e não com a informação digital.

HAN, Byung-Chul, A crise da narração, Vozes, 2023.

 

As guerras e as narrativas

13 nov

O livro recém lançado, em português, “A crise da narração” (ed. Vozes), de Byung Chul Han, mais que uma discussão da crise da estética literária com Walter Benjamin e filosófica com Hegel, que são contornos do livro, o autor se depara com a república de Weimar e seus aspectos políticos.

Oficialmente conhecida como Reich Alemão, está datada do período de 9 de novembro de 1918 a 23 de março de 1933, uma república federal constitucional na Alemanha, porém que teve aspectos nacionalistas e bélicos que levaram a Alemanha a duas guerras.

O livro de Chul Han é oportuno devido ao clima bélico que aos poucos se instaura e com diferentes narrativas e interpretações que levam a uma escalada bélica, falando de paz, as mesmas forças que reforçam os orçamentos bélicos, pedem imediatos cessar-fogo.

É evidente para um bom leitor, que fica subentendido em cada discurso uma narrativa que tente justificar a guerra e a morte de inocentes, quer seja em Gaza, quer seja na Ucrânia.

As narrativas disfarçam suas comemorações bélicas, ao mesmo tempo que justificam os genocídios e os mais horrorosos crimes de guerra, ao serem indagados respondem com o cinismo: “é a guerra”, e assim se acham justificados.

O mais provável é que tudo isso estava preparado em meio a pandemia, um momento oportuno para aqueles que imaginam que medir forças criará “um mundo novo” e que a pax virá como no império romano, pela submissão ou escravidão de um povo.

Os detalhes da guerra são, para os oportunistas, detalhes que podem ser revistos articulando esta ou aquela narrativa, a morte de civis inocentes, a destruição de meios básicos de subsistência (água, energia e alimentos) deve ser condenada sempre e não deve ser admitida.

São importantes corredores humanitários (foto), mas eles não devem entrar só em Gaza, devem entrar onde há guerra e nos discursos na ONU.

É preciso defender a paz onde quer que haja guerra, assim a narrativa poderá ser verdadeira.

 

O homo economicus e a redução do Ser

02 nov

Ainda sobre a Carteira de Identidade Humana, cap. 2 do livro Terra-Pátria de Edgar Morin, após um longo discurso sobre a questão pré-histórica, já há novos avanços e descobertas neste sentido, como por exemplo a Caverna de Chauvet (descoberta por espeleólogos amadores, em 1994, entre eles Jean- Marie Chauvet), mostram que aquilo que é chamado de subjetividade humana é algo presente e intrínseco no homem que nos faz repensar sua origem “genética”.

Esta caverna de 32 mil anos atrás (foto), do período Paleolítico, mostra através das pinturas e ambientes de uma caverna que o homem, mesmo que primitivo, guardava sentimentos já muito superiores ao que pensamos ser datados de nossa era.

Morin mostra a fragmentação desta visão de ser do homem: “Os caracteres biológicos do homem foram discutidos nos departamentos de biologia e nos cursos de medicina; os caracteres psicológicos, culturais e sociais foram divididos e instalados nos diversos departamentos de ciências humanas, de modo que a sociologia foi incapaz de ver o indivíduo, a psicologia incapaz de ver a sociedade, a história acomodou-se à parte e a economia extraiu do Homo sapiens demens o resíduo exangue do Homo economicus.” (MORIN, 2003, p. 61)

A filosofia, somente pode “se comunicar com o humano em experiências e tensões existenciais como as de Pascal, Kierkegaard, Heidegger, sem no entanto jamais poder ligar a experiência da subjetividade a um saber antropológico” (idem), e somente nas décadas de 50-60 aparecem os pensamentos sobre “as primeiras abordagens da dialética universal entre ordem, desordem e organização…” (ibidem) e que vai nos conduzir a uma base de uma antropologia fundamental.

Morin lança 5 pontos essenciais para sair da agonia planetária: “• estamos perdidos no cosmos; • a vida é solitária no sistema solar e provavelmente na galáxia; • a Terra, a vida, o homem, a consciência são os frutos de uma aventura singular, com peripécias e saltos espantosos; • o homem faz parte da comunidade da vida, embora a consciên[1]cia humana seja solitária; • a comunidade de destino da humanidade, que é própria da era planetária, deve se inscrever na comunidade do destino terrestre.” (MORIN, 2003, p. 63).

O pensamento de Morin não é um tratado sobre a humanidade, mas um alerta dos perigos que esta falsa aventura imperativa econômica, de poder e de desastre ambiental nos conduziu.

MORIN, E. e Kern, A.B. Terra-Pátria. Trad. por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2003.

 

A identidade terrestre e o buraco negro

01 nov

O Capítulo 2 do livro de Edgar Morin é “A carteira de Identidade terrestre” ali ele desenvolve a partir das descobertas da astrofísica, da biologia, da paleontologia as ideias sobre a vida do universo, que a natureza da Terra e da própria vida do homem foram “subvertidas nos anos 1950-1970” e ainda não tínhamos o James Webb e a descoberta dos laços entre o homo sapiens e os neandertais.

“Depois, com Copérnico, Kepler, Galileu, a Terra deixou de ser o centro do universo e tornou-se um planeta redondo em torno do Sol, a exemplo dos outros planetas” (pag. 43) e parecia “testemunhava a perfeição de seu criador divino” pela ordem e regularidade, até que se descobriu um universo em expansão a partir das observações do afastamento das estrelas de  Hubble em 1923, o astrofísico daria depois o nome ao famoso telescópio já superador pelo James Web.

No começo do século XIX, “Laplace expulsou o Deus Criador de um universo auto-suficiente e que se tornara uma máquina perfeita para toda a eternidade” (pg. 44) e não citado ali, mas Também numa Conferência de matemática no início do séc. XX Hilbert propõe alguns últimos problemas não resolvidos pela matemática, para dizer que tudo ela lógico e matemático.

Em 1965, Arno Penzias e Harold Wilson dariam fatos para esta expansão do universo como uma “irradiação isótropa proveniente de todos os horizontes do universo” e esse “ruído de fundo cosmológico” uma espécie de “resíduo fóssil” da deflagração inicial da explosão inicial que confirmaria a famosa teoria do Big Bang, hoje os novos dados põe em dúvida isto, mas algo ficou deste período que é a concepção de anti-matéria e a investigação de buracos negros.

A década de 60, quando Penzias e Wilson ganham um prêmio Nobel, traria novos corpos celestes entre eles: “os quasares (1963), pulsares (1968) (pg. 44), depois buracos negros, e os cálculos dos astrofísicos fazem supor que conhecemos apenas 10% da matéria, 90% sendo ainda invisível a nossos instrumentos de detecção” e que só agora o James Web olha.

O centro de nossa galáxia não é mais o sol, mas um buraco negro, e nele se desdobra toda uma nova visão do universo como “em seu princípio o Desconhecido, o Insondável e o Inconcebível” (pg. 44), eis-nos agora numa galáxia de 8 bilhões de anos após “o nascimento do mundo, e que, com suas vizinhas parece atraída a uma enorme massa invisível chamada “grande Atrator” “ (idem), que é um buraco negro.

E nós um pequeno planeta, surgido a 4 bilhões de anos, descobre-se que tem uma história, “e adquire forma no século XIX” e no limiar do século XX, o alemão Alfred Wegener elabora a teoria da deriva dos continentes, apesar da resistência inicial, comprovada posteriormente.

Após os seus longos períodos iniciais de esfriamento, formação dos primeiros microrganismos, e finalmente o homem aparece “ramo último e desviante da árvore da vida, aparece no interior da biosfera, a qual, ligando ecossistemas a ecossistesmas, envolve já todo o planeta”, esta nascimento inicial, em descoberta recente também une Neandertais e homo sapiens.

Se “Bacon, Descartes, Buffon, Marx lhe dão por missão dominar a natureza e reinar sobre o universo” (pg. 54), a partir de “a partir de Rousseau, o romantismo irá ligar umbilicalmente o ser humano à Natureza-Mãe” e assim tendo uma mãe o homem pode nascer e habitar esta Mãe-Terra.

MORIN, E. e Kern, A.B. Terra-Pátria. Trad. por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003.

 

Entre as narrativas e o desenvolvimento interior

18 out

Antes de prosseguir com a história de Israel que envolverá ainda dois êxodos até a sua tentativa de dissolução como nação, uma leitura do livro “La crisis de la narración” (editora Herder, Argentina) esclarece um aspecto importante das narrativas modernas, ou daquilo que o autor chama de “pós-narrativas”, “contar histórias é vende-las”.

Ele esclarece que a “arte de narrar histórias como estratégia para transmitir mensagens emocionalmente”, hoje todos falam de narrativas para justificar sua pós-verdade, levou-nos a um paradoxo “que o uso inflacionário de narrativas pode manifestar uma crise na própria narrativa” , em outros tempos, as narrativas “nos acomodavam no ser”, dando sentido e orientação para a vida.

Havia uma verdade intrínseca, ou ao menos uma teoria completa de soluções que incluíam o homem como um todo, e ao contrário das atuais narrativas aligeiradas (distorcendo a narrativa original, quando baseada em alguma), “são a descrição das micronarrativas do presente, que carecem de toda gravitação e de toda pretensão de verdade”.

Fiel ao seu estilo, não é informativo nem ilustrativo, exemplo e categorizações plasmam de maneira caótica fatos e ideias ao longo do texto, e quando há narrativa original, é distorcida.

Esclarece, agora, para entender [determinado tema], não há nada que explique, ordene e uma. Não há relato, porque não há passado. Não há comunidade. Sem história, então não há esperança de futuro.

Conclui que “com a hiperatividade atual, que busca espantar o aborrecimento, nunca alcançamos um estado profundo de relaxamento espiritual”, o que é desenvolvido em outros livros seus como “A sociedade do cansaço” e “O aroma do tempo”.

Chama o homem atual de “phono sapiens”, que não conhece “o desenvolvimento da existência interior”.

 

As religiões e o mal

04 out

Um dos grandes equívocos, já desenvolvidos em alguns dos posts, é a dualidade maniqueísta mal x bem, sem entender que o mal é justamente a ausência do bem, grande pensador cristão, Agostinho de Hipona se converteu justamente abandonando o maniqueísmo.

Conceito religiosos há muito esquecidos, ou que ficam submersos em pregações equivocadas impedem aquilo que seria o “fluxo natural da humanidade em direção a iluminação da alma”, o mal tem fontes arraigadas em forma de pensamentos antigos e cargas emocionais do passado e, apesar de obsoletas, ainda persistem impedindo o progresso das almas.

O remédio seria muito simples, quanto mais próxima da iluminação da alma menos o mal está presente, e mais almas iluminadas torna o mundo mais empático, harmônico e sem injustiças.

A ética e a moral que deriva da necessidade de progresso civilizatório não encontra espaço se não houveram almas e pessoas em posições de destaque com iluminação clara e convincente, é por isto que o mal tornou-se uma questão social, teológica ou ideológica, e as vezes ambas.

Não são só pensadores cristãos que afirmam isto, Hannah Arendt fala da Banalidade do Mal, Nietzsche da “morte de Deus” (ou como “matamos” Ele, claro impossível), Paul Ricoeur e Lévinas sobre o Outro e Byung Chul Han sobre na “Sociedade do cansaço” fala da vita contemplativa em complemento da vita activa (das quais Hanna Arendt também falou), lembrando inclusive pensadores cristãos.

A volta de ameaças de uma guerra, a crise social de valores morais (tudo é permitido!), antes que uma verdadeira crise civilizatória aconteça é necessária uma nova iluminação das almas (no quadro (na pintura: São Francisco expulsando demônios de Arezzo*, de Benozzo Gozzoli).

A ausência de compreensão da subjetividade e do imaginário humano, ou sua submissão a valores pouco iluminados, a ausência de compaixão com os semelhantes, a incompreensão do progresso como tendo aspectos positivos fundamentais, até mesmo para salvar o processo civilizatório, leva a sociedade a exaustão, a descrença ou a fatalidade de guerras e ódios.

Não é difícil encontrar em jornais e mídias sociais encontrar posições favoráveis ao processo de exclusão de pessoas de determinada opinião, religião ou mesmo simples discordância de valores morais duvidosos (veja o caso do aborto no Brasil nesse momento), os debates são estéreis e ao invés de argumentos as reações são de sarcasmo e ironia.

São sementes do processo mais amplo de crise civilizatória em andamento e detectada por grandes pensadores desde o século passado, creditá-las as novas mídias, ao ressurgimento de nacionalismos e correntes autoritárias é olhar apenas a consequência, a raiz é a ausência de alma iluminadas que ajudem a humanidade a contemplar seu futuro com maior grandeza.

*  Quando Francisco foi a Arezzo, havia o maior escândalo e uma guerra quase na cidade inteira, de dia e de noite, por causa de duas facções que havia muito tempo se odiavam. 

 

Estoicos, epicuristas e Cínicos

14 set

Sêneca foi advogado e grande escritor, porém foi muito questionado e é ainda hoje, por ter sido preceptor de Nero, é bom lembra que lenda ou fato Nero o condenou ao suicídio por traição, e o filósofo foi coerente com sua teoria contra a ira e o fez pacientemente.

Também é famosa sua frase “Se eu decidisse percorrer uma por uma das repúblicas atuais, não encontraria nenhuma apta para tolerar o sábio ou uma que o sábio poderia tolerar”, era assim consciente de seu tempo e talvez esta seja a razão de estar voltando “a moda”.

Era diferente dos epicuristas porque defendia o envolvimento público dos filósofos, afinal este foi o primeiro argumento no tempo de Platão para fundar sua academia, porém Sêneca chegou a afirmar em “A retirada”, que em certas circunstâncias seria melhor retirar-se da vida pública, porém isto jamais significava uma omissão, e explica-a em “A retirada” desta forma:

“Flutuamos, sendo atirados de um lado para outro; coisas almejadas, abandonamos; o que foi posto de lado, retomamos. Assim, ficamos alternando em fluxo permanente de volúpia e de arrependimento. Estamos condicionados, inteiramente, ao parecer alheio”.

Em tempos de polarização, nem sempre racional, também é motivo para ele voltar à baila.

Além dos “puristas” epicuristas e os “retirados” estóicos como Sêneca, há os cínicos, enquanto os primeiros valorizavam os aspectos “naturais”, o comportamento dos filósofos cínicos apontava para uma distinção filosófica entre os aspectos naturais (physis) e os costumes humanos (nomos), um problema que permeou todo o pensamento filosófico da Grécia Antiga, chegando, de certa forma, também aos nominalistas e realistas da idade média.

Lembro a crítica da razão cínica, obra de Peter Sloterdijk, para dizer que o problema é atual e não por acaso estas correntes ressurgem, ainda que atualizadas por problemas sociais e políticos, apontam uma crise civilizatória.

A sociedade que tenta eliminar a dor, o sofrimento, que cultua a “natureza” lembra também os estóicos, os que tentam destruir a cultura e os costumes humanos, lembra os cínicos, é preciso dizer aqui que não significa o senso comum de dizer o que não é verdade.

Antístenes, de Atenas, e Diógenes, de Sinope, foram os primeiros cínicos, viviam desprezando os costumes e os “sábios” de seu tempo, Sloterdijk diz que hoje “não é um tempo próprio para o pensamento” e de certa forma tem razão, cinismo vem da palavra grega kynikos, que quer dizer cães pela forma que viviam abandonados nas ruas e muitas vezes pedindo esmolas.

Neste pensadores há um fundo de razão pelo qual devem ser estudados, sabiam a crise que a civilização de seu tempo vivia, procuravam dentro de uma sociedade conturbada um vida feliz e longe dos falsos problemas de seus contemporâneos, mas Sêneca e outros não se omitiram na vida pública, razão pela qual ensinavam a valorizar o sofrimento e entender seu porque.

 

Desoneração da violência e ira

12 set

Não foram as religiões abramicas (islamismo, judaísmo e cristianismo) que desoneram a violência, assim pensou Peter Sloterdijk em Ira e Tempo (Sloterdijk, 2012), na verdade foi a ideia do Iluminismo que fez da violência e domínio, desde o princípio da expansão do mercantilismo e que depois tornou-se colonial-imperialismo, que era anticlerical e pouco religioso, e depois foi sacralizado no “absoluto” de Hegel, cuja imagem do poder e do Estado se justapõe ao poder e dominação e nada tem ligado a Deus.

Assim esse poder é a desoneração da violência e sua captura e tutela pelo estado, assim pode-se desenvolver o plano colonial e imperialista, fundo da crise civilizatória de hoje, é um estado prepotente militar e autocrático, de liberal só o nome, não pode dar em outra coisa: a ira.

A constatação de Sloterdijk sobre a leveza e alívio, é particularmente clara supondo que o progresso iria numa jornada progressiva, nós pensaríamos numa resposta mais trivial que ele estaria levando as pessoas em condições melhores que as anteriores, e isto não é verdade.

O autor também fala da dor, lembra que até 1940 a ideia da dor era normal nos tratamentos centros cirúrgicos, não cita mas lembro que cicatrizes nos rostos masculinos indicavam virilidade e algumas era feitas de propósito, antecessores das atuais tatuagens, o autor lembra que os analgésicos aparecem na década de 40 e depois aos poucos os antidepressivos e estimulantes e finalmente as cirurgias plásticas que corrigiam o que deve ser corrigido em nós.

Diz o autor que o pensamento a direita é a disciplina e a esquerda é a salvação dos pobres, a disciplina cai em sonhos e leva ao mundo da lua, enquanto a pobreza na sua condição de caído, de perseguido por um sistema injusto se vê sempre vitimizado o que nem sempre é real, assim ambas narrativas escapam de um conceito de justiça, de paz e de equilíbrio e nos vemos em narrativas que justificam a ira e o desprezo pelo Outro,  vão em direção a ira.

Se o ser deve ser leve é ser alguém que não é sério, assim a leveza do ser é insustentável, ele deve ser em ambas narrativas “pesado”, transformando-se em balões de gás que estão em voos a esmo, o próprio voo não é razoável, embora o desejo final seja tudo pode, mas nada é.

Diz o cancioneiro popular brasileiro diria: “não há pecado do lado debaixo do equador”, mas já era o que havia na Europa pós-renascentista, na “divina comédia” de Dante que se transforma na comédia humana de Balzac,  foi ali que se fez a circum-navegação (na foto a armada de Jacob Hashimoto), sim a terra é redonda, então os povos deviam ser dominados e colonizados,  novamente a esferologia de Sloterdijk faz sentido.

O acontecimento fundamental de nosso tempo é sair deste fardo pesado do dogmatismo, do stress perfeccionista da sociedade do cansaço, sair das batalhas físicas, discursivas, políticas, projetistas e espaciais, a tecnologia para o homem e não do homem, robôs são máquinas.

É a agonia do pesado que tinha e que não tem mais uma narrativa coerente. a esferologia, parte do princípio de que uma espécie de “hermenêutica da existência” deve formar arte de figuras, sentidos e vocabulários de uma existência leve, digamos, descarregada do ódio pelo Outro que não é nosso espelho, claro o caminho reverso está aí, ele leva a ira e a violência.

SLOTERDIJK, P. Ira e tempo: ensaio político-psicológico. Estação Liberdade, 2012.