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O que a ontologia contemporânea não é
Fundamentada nos trabalhos de psicologia social, onde Franz Brentano trabalhou duas sub-categorias do tomismo: consciência e intenção, a fenomenologia moderna foi se derivando em Husserl e depois em Heidegger, desvio para uma ontologia chamada continental, em Nicolai Hartmann e junto dela surge uma doutrina conhecida como realismo estrutural ôntico (OSR).
Aquilo que parecia um desvelar, termo apropriado usado por Heidegger para inferir sua clareira, vai ficando novamente confuso, porque a OSR não só ganhou destaque como se subdividiu em três doutrinas: OSR1, que é a visão de que as relações são ontologicamente primitivas, mas os objetos e propriedades não o são; OSR2, que é a visão de que objetos e relações são ontologicamente primitivos, mas propriedades não; OSR3, que é a visão de que propriedades e relações são ontologicamente primitivas, mas os objetos não (Ladyman, 1998).
Central para a ontologia de Heidegger, como dissemos no post anterior é a noção de diferença ontológica: a diferença entre ser como tal e entidades específicas, o erro da filosofia atual é além do esquecimento do ser, entender o ser como tal como uma espécie de entidade última, por exemplo, como “ideia, energia, substância, mônada ou vontade de poder”, as primeiras ligadas a filosofia “natural” contemporânea e as duas últimas a visão social e de poder.
Este erro teve que até mesmo ser retificado em sua “ontologia fundamental”, concentrando-se no sentido de ser, um projeto semelhante à meta-ontologia contemporânea, leia-se os trabalhos de Michael Inwood (ontologia fundamental) e Peter Van Inwagen, (meta-ontologia).
E tudo isto parece essencialmente teórico, mas não é, estamos discutindo as coisas e não-coisas ônticas (Byung Chul Han tem um ensaio) e estratégias e lógicas de poder, que esquecem o ser.
Nicolai Hartmann é um filósofo do século XX, embora sua perspectiva seja a “continental”, ele esclarece que as modalidades relativas dos sentidos dependem das modalidades absolutas e propõe esta realidade em quatro níveis: inanimado, biológica, psicológico e espiritual, que formam uma hierarquia, ainda que seu desenvolvimento seja excessivamente esquemático, há a questão do ser, da qual o homem contemporâneo escapa e não coloca apenas estes níveis em cheque, mas a própria civilização.
O esquecimento do ser é fundamental para compreender o destempero e a crise de sentido da vida que está em todas esferas humanas, da política, educacional até a espiritual.
Inwood, Michael. «Ontology and fundamental ontology» A Heidegger Dictionary. [S.l.]: Wiley-Blackwell, 1999.
Inwagen, Peter Van. «Meta-Ontology». Erkenntnis. 48 (2–3): 233-50, 1998.
Ladyman, J. What is structural realism? Studies in the History and Philosophy of Science 1998.
A verdade ontológica
Existe diferença entre a lógica que é fundamentada na razão puramente humana, e a ontológica fundamentada na realidade do Ser e sua existência, assim não é uma verdade final, mas escatológica, isto é, realiza tendo um início e um fim onde a existência se explica.
De modo meramente filosófico, a verdade ôntica e a ontológica sempre se referem de maneira diferente, ao ente em seu ser e ao ser do ente, e a relação entre elas é chamada diferença ontológica, pouco explorada na filosofia está embutida em qualquer teoria que trate do Ser.
A relação de latência entre ser e ente e entre presença e ser torna evidente que o fundamento da diferença ontológica é a presença, segundo Heidegger (pg. 102):
Desvelamento do ser é, porém, sempre verdade do ser do ente, seja este efetivamente real ou não. E vice-versa, no desvelamento do ente já sempre reside um desvelamento de seu ser. Verdade ôntica e verdade ontológica sempre se referem, de maneira diferente, ao ente em seu ser e ao ser do ente. Elas fazem essencialmente parte uma da outra em razão de sua relação com a diferença de ser e ente (diferença ontológica).
Trata-se de desvelamento porque re-velar é tirar uma camada do véu, porém encontrando outra que igualmente cobre a verdade, a razão humana e a própria ciência caminha assim, a princípio da falseabilidade de Karl Popper, ele alega que o fato de uma asserção poder ser mostrada falsa é um dos princípios para o estabelecimento de uma ciência segura.
Há uma relação circular entre verdade ôntica e verdade ontológica decorrente desta facticidade circular da presença [que é uma das traduções do Dasein de Heidegger] e esta relaciona-se com os entes compreendendo o ser, e relaciona-se com o ser compreendendo os entes.
“Com a diferenciação, que é em si mesma clara, entre ôntico e ontológico – verdade ôntica e verdade ontológica, temos efetivamente os elementos diferentes de uma diferença, mas não a própria diferença”, dito de maneira explicita a relação das coisas com os seres, é diferente da relação dos seres entre si, há uma verdade ontológica que deve ser desvelada para a relação.
Assim, como a verdade ontológica e ôntica, assim como a diferença ontológica, contribuem para mostrar o caráter relacional do eu? Conflitos e relacionamentos envolvem este Ser que é relacional, mas sua compreensão vista como instrumental, coisificada ou de interesse nada é.
HEIDEGGER, M. Sobre a essência do fundamento. In: Heidegger: conferências e escritos filosóficos. Trad. de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1984 (Os Pensadores).
Serenidade e luz
Somente há luz quando há serenidade, embora o texto de Heidegger não esteja diretamente ligado ao seu conceito de “clareira”, ele está indiretamente ligado, pois pede a reflexão, o puro pensamento, aquele que “medita” e não apenas age.
Heidegger esclarece que: “o enraizamento (die Bodentändigkeit) do Homem actual está ameaçado na sua mais íntima essência. Mais: a perda do enraizamento não é provocada somente por circunstâncias externas e fatalidades do destino, nem é o efeito da negligência e do modo superficial dos Homens. A perda do enraizamento provém do espírito da época no qual todos nós nascemos” (p. 17), é assim portanto a ausência desta clareira.
A dominação por modelos ideais e que “calculam” levam a um compromisso maior com as engrenagens da razão, do que as engrenagens do ser e da dignidade humana, vão além da ética que é profundamente ligada ao “ethos” do modo de ser e do caráter.
Não se trata de um maniqueísmo puro, porque este também levou e leva ao dualismo social e político, mas aquele que exclui o outro, o diferente e esquece de sua dignidade humana, lembramos o discurso de Eduardo Galeano sobre a guerra e o mal que ela encerra (post).
O puro raciocínio da engrenagem calculista leva a cálculos precisos de negócios, gestões de empresas e até mesmo certa lógica educacional, mas esquecem os fundamentos da ética humana: o respeito a vida, a sociabilidade entre todos e o cuidado com o planeta.
O mal é assim visto como ausência de luz, impossibilidade de uma clareira que dignifique e mostre a verdade aos homens, e isto independe de qualquer lógica racional porque está na difusa lógica humana que une desiguais e iguala os diferentes.
Para os cristãos é fundamental lembra o princípio da luz que apaga toda escuridão, como uma pequena vela acesa num breu, a clareira cristã, assim afasta-se do erro e da discórdia (Jo 3,21): “Mas, quem age conforme a verdade, aproxima-se da luz, para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus” e não há nada mais divino que a verdade.
Se o enraizamento de Heidegger refere-se a sua perda no “espírito da época”, o enraizamento mais profundo é aquele que vem da origem humana, seja ela antropológica ou ontológica.
O não-pensamento na atualidade
O texto de Heidegger sobre a Serenidade, feito em 1949 em cerimônia de comemoração do centenário de morte de Conradin Kreutzer, em sua cidade natal Meßkirch,, que por ser também a cidade Natal de Martin Heidegger, este foi chamado a falar no evento, livro é parte desta seu discurso.
O texto da serenidade revela o quanto nós somos induzimos a um pensamento calcula que corre de oportunidade em oportunidade, é fundamental para se entender que isto que é atribuído ao mundo digital, já ocorria muito antes deste, e não está restrito ao universo digital: “este pensamento continua a ser um cálculo, mesmo que não opere com números, nem recorra á máquina de calcular, nem a um dispositivos para grandes cálculos” (pg. 13), mesmo muito anterior ao universo digital, fala dele e diz que não é dele que está falando.
A dinâmica, que muitos atribuem ao universo digital já era a muito presente no homem moderno: “o pensamento que calcula (rechnend Denken) nunca para, nunca chega a meditar. O pensamento que calcula não é um pensamento que medita (ein besinnliches Denken), não é um pensamento que reflecte (nachdenkt), não é o sentido que reina em tudo o que existe” (idem, pg. 13), isto é, do final da década de 40 e anterior aos computadores modernos.
Convém traduzir as palavras alemãs: ein besinnliches Denken (um pensamento contemplativo) e nachdenkt (pensar sobre) e das rechnend Denken (pensamento calculista).
Assim para o filósofo existem duas formas de pensamento: o que calcula e o que medita, e pode-se pensar que o segundo não se apercebe da realidade, “não contribui em nada para levar a cabo a práxis” (pg. 14), pode levar a pura reflexão, a meditação persistente ser “demasiada “elevada” para o entendimento comum” (idem).
O autor diz que a única coisa correta é que a verdade de um pensamento que medita surge tão pouco espontaneamente quanto o pensamento que calcula, ambos requerem esforços.
O fato que o homem contemporâneo está vinculado a uma forma de pensar é porque é esta a forma atual em que o pensamento foi elaborado e treinado, ligado a logos racional e ideal.
Porém pondera que cada um pode seguir os caminhos da reflexão dentro de seus limites e a sua maneira: “Não precisamos, portanto, de modo algum, de nos elevarmos às “regiões superiores” quando refletimos. Basta demorarmo-nos (verweilen) junto do que está perto e meditarmos sobre o que está mais próximo: aquilo que diz respeito a cada um de nós, aqui e agora; aqui, neste pedaço de terra natal; agora, na presente hora universal” (pg. 14).
Claro Heidegger refletia sobre a comemoração em sua cidade Natal, mas isto vale para todos os eventos que vivemos em nossas vidas.
Heidegger, M. Serenidade. Trad. de Maria Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, s/d.
Jonas e a resistência do espírito
Ao nos aproximarmos de grandes tragédias, a alegoria Bíblica de Jonas é interessante de ser lembrada, até mesmo o filósofo Peter Sloterdijk a destaca, ainda que não seja cristão, é bom lembra que Jonas também está no Alcorão e é personagem importante para o judaísmo.
A curiosa passagem Bíblia em que Jonas deveria evangelizar a cidade de Nínive para ela não perecer, uma das maiores de seu tempo, acredita-se que por medo dos Assírios, conhecidos por sua crueldade, Jonas tentou fugir num navio para Társis, que sofrendo uma forte tempestade, descobrem que o motivo é Jonas que é lançado ao mar.
No mar, Jonas teria passado três dias e 3 notes no ventre de uma baleia e depois seria lançado na cidade de Nínive para que retornasse a sua missão, ali ele pregou e Nínive se converteu.
Sloterdijk não usa os termos dualismo ou polarização, usa mesmo antes da atual polarização mundial que provoca guerras sangrentas e grandes polêmicas, o filósofo usa os termos díade, uma relação entre dois ou mais diferentes que não há centro e sim um policentrismo.
Isto é básico para entender quem é Jonas para o filósofo alemão, ele o vê como um profeta e adorador do Deus dos judeus, que tem como dever estabelecer a relação entre no divino e o humano, e que para os humanos habitarem o divino precisam conhecer e rejeitar as perdições do humano no mundo.
A pergunta central de Sloterdijk em Esferas I – as bolhas, é onde estamos quando estamos no mundo? E na língua alemã há uma palavra específica para estar no mundo e estar COM o mundo, a palavra é “vorhandensein”, que quer dizer “ser-no-mundo”, que embora signifique outra coisa para Heideggeer que seria apenas “dasein”, ela adquire um significado maior.
Para Sloterdijk os únicos corpos que estão fora desta díade ou deste policentrismo “os únicos corpos que são localizados sem dualidade no mundo são os dos mortos” (Esferas I), ou seja, toda vez que você se encontra em um lugar você está nele e com ele, você o vê e o reconhece.
Onde Jonas estava quando estava no mundo? Dentro da baleia. A baleia é parte da consciência de Jonas que lhe provoca a pensar no exterior a partir de um interior. Heidegger já havia pensado neste puro interior de que todos somos vítimas, um espaço radical e intrínseco, nossa habitação única e primeira por onde permeiam todas as nossas impressões, pensamentos e afetos.
A relação com o exterior é então de “tensão”, não é só filtro do externo, mas também é lente para entender tudo, até mesmo o próprio interior, assim estar na “baleia” foi preparação para Jonas enfrentar, vejam que antes há uma tempestade no navio que está “no mundo” e ele é jogado para fora.
O nosso caminho interior deve “ajudar”, iluminar e nos conscientizar do que somos “no mundo” e sermos como mundo outra coisa quando temos esta luz.
SLOTERDIJK, P. Esferas I : bolhas. Tradução José Oscar de Almeida Marques. Sáo Paulo : Estação Liberdade, 2016.
A clareira e a verdade
O conceito de verdade na filosofia grega não surge da lógica, da matemática ou da física, a alegoria da Caverna em Platão, onde aqueles que estão na caverna veem apenas as sombras e não a verdade como ela é, na interpretação de Heidegger, ele vai demonstrar que o esquecimento do verdadeiro Ser das coisas produzidas pelo pensamento moderno (Kant e Descartes) nada mais é do que o resultado necessário de uma forma de pensar metafísica.
Esta metafísica sofreu uma mudança na determinação da essência do conceito de verdade: nesta passagem ocorreu uma transformação da noção de verdade como desvelamento para a noção de verdade como correção ou correspondência do pensamento como a coisa.
Esta interpretação começa pela correção da palavra grega eidos e ideia (Ideia) por “aspecto”, este aspecto de um ente não é a sua mera aparência tal como percebida de forma imediata pelos sentidos, é aquilo como o ente se mostra mediante aquilo que ele se apresenta.
É nesse automostrar-se no seu aspecto que o ente aparece e pode ser captado pelo intelecto (Heidegger, 2007, p. 3), assim como o olho vê os objetos sensíveis em sua aparência externas graças à luz do sol, o homem “vê” o ser à luz das ideias, assim as Ideias iluminam o ser dos entes, tornam visíveis a sua essência (na terminologia de Heidegger: o entitativo do ente), e permitem que a alma a contemple.
Como afirma Heidegger (2007, p. 6): “Os aspectos dos quais as coisas mesmas são, ou seja, as eidee (as ideias no sentido grego), constituem a essência em cuja luz todo ente particular, este ou aquele, se mostra em cujo mostrar-se o que aparece chega a ser recém desoculto e acessível”.
Heidegger afirma numa passagem do Ser e o Tempo, que a concepção tradicional de verdade (de Kant e Descartes) baseia-se na premissa que a essência da verdade reside na concordância do juízo com o objeto (adequatio intelectos et rei) uma correspondência (ou omoiosis) sem explicar o que é a noção de correspondência.
A proposição ontológica de mostrar o que e descobrir o que ele é (Heidegger, 2005, p. 288) é assim algo que “descobre o ente em si mesmo, propõe, mostra permite ver (apofánsis) o ente em seu estado de descoberto”, desvela o ser em si mesmo, porém o Ser foi esquecido.
Como afirma Heidegger: “O ser verdadeiro do lógos como apofasis é o aletheien”. A alethéia, o desvelamento, portanto, é “o fundamento do fenômeno original da verdade” (Heidegger, 2005, p. 288).
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2005. vol. 1.
HEIDEGGER, M. La doctrina de Platón acerca de la verdad. Eikasia, Revista de Filosofía, v. 12, Extraordinário I, 2007
A verdadeira ascese
Não há definições claras, nem na psicologia, nem na sociologia e na moral daquilo que seja uma verdadeira alegria equilibrada, ou se desvia para uma euforia que é manter a alegria em níveis elevados, o que não é possível todo o tempo, ou sua compensação, que é diminuir para níveis nostálgicos e baixos que não pode mais que um contentamento.
Também na filosofia de falou sobre alegria e euforia, para derivada do grego (euphoria) que significa sustentar facilmente o que carrega (phoros), porém o termo aparece em termos modernos em 1875 pra referir-se ao contentamento experimentado pelos viciados em morfina, sendo também característica daquilo que se chama transtorno bipolar.
Tudo depende do desejo de elevação humana a um estágio em que estando mais alto seja sustentável (carregado – eu + phoros), assim pode-se supor uma subida, uma ascese.
Peter Sloterdijk conceituou a sociedade atual como tendo uma ascese desespiritualizada, claro que sua espiritualidade não se refere a um culto ou crença definida, porém questiona que esta subida é hoje sem sustentação espiritual, sem uma verdadeira ascese.
A metáfora que Sloterdijk usa das esferas, mais uma vez com alusões explícitas a Heidegger, se referir às construções das esferas íntimas e imunológicas, é a da casa (Haus ou Gehäuse), não é apenas um lugar que oferece proteção, mas também constitui uma esfera psíquica, espiritual e intelectual para esta “ascese”.
Não há subida sem esforço, e muitas vezes sem sacrifícios, e não há subida se não for para o alto, assim uma ascese não é um exercício um treino, mas uma vida prática de ascender.
Portanto a alegria sem esforço para a vida, para o pão de cada dia, para o progresso humano e não apenas material é falsa ascese, não tem sustentação, desmorona após o “exercício” e se pode-se comparar a subida de um monte, deve-se lembrar para ao descer suportá-la no alto.
Discursos, apoteoses e vertigens são buscas quase intermináveis nos dias de hoje, frases de efeito não produzem vida, não dão alegria e paz duradoura as pessoas, posse de sabedoria falsa, de alegria e elevação falsas, porque desmoronam no dia seguinte diante da realidade.
Promessas de paraíso terrestre, enriquecimento e bens de consumo não passam de euforia, de falsa ascese, a posse de um bem não significa necessariamente a felicidade e a paz interior, o que todos homens almejam, mais ainda nos dias de hoje, um pouco de paz e alegria durável só é possível com uma verdadeira ascese, sem abdicar dos bens da vida e do respeito mútuo.
A alegria passará e uma quarta-feira de cinzas virá e então enfrentemos as dificuldades com coragem e determinação, uma ascese verdadeira sabe cada passo que deve dar.
O idealismo e a vivência real
A grande descoberta da vida real (ou redescoberta se tomamos como base a ontologia clássica e medieval) é uma crítica radical ao idealismo, que separa o sujeito da vida com o mundo real, o que é prometido na vida projetada sobre as coisas e as não-coisas (nossos posts da semana passada) é a catástrofe da vida real que não se traduz em valores reais e concretos.
A fenomenologia retoma a vida real através do Lebenswelt (mundo da vida) que foi retomado pelo filósofo Husserl e que é tocado e citado por Habermas, sem desenvolvê-lo realmente.
O objetivo desta filosofia é mostrar que deve ser o ser humano o centro do processo de conhecimento, a consciência humana é doadora de significado ao mundo das coisas, ou dos fenômenos deste mundo, de onde vem o nome fenomenologia, não-coisas também podem readquirir sentido se penetrarmos nesta razão humana (que o idealismo chama subjetividade).
Com isto a consciência humana readquire significado e sentido aos fenômenos e coisas do mundo, direciona ao que é cada coisa em essência, num caminho sempre intencional e com isto doador de sentido.
Husserl na sua obra “Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia transcendental”, é onde este conceito aparece de forma clara e aprofundada, porque estabelece uma relação entre a epistemologia (a sistematização do conhecimento) e a filosofia e redescobre a ascese.
Assim, uma verdadeira ascese não separa o mundo das coisas e não-coisas apenas mostrando que haveria uma irrealidade em um destes mundos, como ele não está separado da vida, é lá que se verifica que nos deslocamos do mundo concreto da vida para um caminho cujo evolução destrói a base do humano e do real, as guerras e as decadências pessoais são isto.
Em Habermas o mundo da vida é trabalhado como algo que está imediatamente disponível para os atores sociais sob a forma de significado e/ou representações disponíveis a todos, já para Husserl a fundamentação fenomenológica remete a uma ética para a ciência e a técnica do mundo, dado que a ciência não conseguiu alcançar este patamar como discurso sobre a ação na qual é ausência a vida da reflexão, e dentro da ciência, o que faz o criticismo de Kant.
Sloterdijk desenvolveu algo próximo a este conceito como uma ascese desespiritualizada, ou seja, apesar de trabalhar o conceito de “fenomenologia do espírito” eles ficam no campo abstrato e sua real atualização no mundo da vida não acontece, porque não é claro que tipo de exercício é este.
Assim realizamos uma série de “exercícios”, somos a sociedade dos exercícios físicos e mentais, mas sua tradução no mundo da vida não leva a atos sociais e morais concretos.
HUSSERL, E. A crise da humanidade europeia e a filosofia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.
Não coisas e a subjetividade, o eidos deturpado
A subjetividade vem do idealismo que julga o Ser separado das coisas, assim só ser se projetado sobre os objetos, porém o “eidos” gregos, de onde veio o idealismo nascente, não havia esta separação, tanto nas 4 causas de Aristóteles: material, formal, eficiente e final, como também na teoria das ideias platônicas que é a essência e que já relacionamos à coisa.
Enganam-se aqueles que julgam o mundo imerso na erotização, seja o mundo da fantasia, aquela que vem das obras de ficção, do imaginário infantil e do olhar com esperança para um futuro melhor, hoje em um presente cada dia mais preocupante, Chul-Han escreve assim:
“Sem fantasia, só existe pornografia. Hoje, a própria percepção tem traços pornográficos. Ela ocorre como um contato imediato, mesmo como uma copulação de imagem e olho. O erótico ocorre no fechar dos olhos” (Han, 2022), ou seja, é justamente seu inverso, estamos no vazio existencial, na negação do Ser e nele só resta a pornografia, como degradação do Ser.
Citando Barthes, Hul-Han esclarece a parte do pedaço que é: “A subjetividade absoluta só pode ser alcançada em estado de silêncio, o esforço para alcançar o silêncio (fechar os olhos significa fazer a imagem falar no silêncio). A fotografia me toca quando eu a retiro de seu blábláblá habitual […] não dizer nada, fechar os olhos […]” (Han, 2022) e está citando Roland Barthes em sua obra (foto): A câmera clara (ou Lúcida, dependendo da tradução).
A fotografia é portanto uma forma de perpetuar o silêncio, o desejo de muitos tirarem fotos como ato de individual é assim retirá-la do cotidiano e inserir um que de eterno, enquanto a exposição pública que o universo digital permitiu é devolvê-la ao “blábláblá habitual”, diz o autor: “O desastre da comunicação digital decorre do fato de que não temos tempo para fechar os olhos” e talvez ele não saiba mas isto é inclusive físico, por não piscar os olhos devemos usar lubrificantes para a vista se a expomos muito tempo nos ecrãs.
“O ruído é tanto uma poluição acústica quanto uma poluição visual. Polui a atenção” (Han, 2022) e citando Michel Serres diz que este instinto é de origem animal, como os cães, tigres e outros animais que urinam para demarcar terreno, poluem com seu fedor para inibir que os outros animais se aproximem.
Permitir a aproximação do outro é não demarcar território, é sábia a resposta bíblica de Jesus ao contato inicial de dois novos discípulos (Jo 1,38): “Jesus perguntou: “O que estais procurando?” Eles disseram: “Rabi (que quer dizer: Mestre), onde moras?” e ele respondeu: “Vim e vede” e foram e ficaram com Ele, porque não demarcou terreno e não se fechou.
A lógica do silêncio é contrária ao ruído, que não significa apenas a poluição de um som audível, mas um completo vazio capaz de conter e receber o Outro.
HAN, Byung-Chul Não-coisas : reviravoltas do mundo da vida, tradução de Rafael Rodrigues Garcia. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2022.
A não-coisa e o mundo amoral
Para Byung Chul-Han o que está se alterando é o mundo da mercadoria com o digital, vai fazer uma análise da posso do livro e o ebook, este como não-coisa, o smartphone e outros objetos digitais, porém o mundo da moral também está se alterando, cita de passagem:
“A pessoa desinteressada pelas coisas, por posses, não se submete à “moral da coisa” baseada no trabalho e na propriedade. Ela quer brincar mais do que trabalhar; vivenciar e desfrutar mais do que possuir. Em sua fase cultural, a economia também mostra traços lúdicos. A encenação e a performance estão se tornando cada vez mais significativas. A produção cultural, ou seja, a produção de informações, adapta cada vez mais os processos artísticos. A criatividade se torna seu lema”, usando um raciocínio de Vilém Flusser sobre a moral da coisa.
O que Chul-Han chama de fase cultural dever-se-ia analisar a fundo o período da indústria cultural, radio, cinema e televisão, que não foi senão uma passagem da mercadoria para o imaginário através da propaganda, onde se vende a marca e não o conteúdo, assim não estão alienados somente o trabalho e o produto, mas sua própria essência está alienada, usando um termo do período medieval, já analisamos num post anterior, perde sua quididade, sua identidade e singularidade, pois foi a indústria cultural que deu a tudo o aspecto de mesmice.
Também no trecho final vai analisar coisas do coração, e é bom lembrar que estas também tiveram outrora sua singularidade, hoje transformada em um caráter amoral e atemporal, no mal sentido da palavra, o que é eterno é essência e singular e então retoma a quididade.
Diz o trecho final, coisas do coração, relembrando o diálogo da raposa com O Pequeno Principe de Antoine de Saint-Exupéry: “O principezinho pergunta à raposa o que significa “cativar” (apprivoiser). Ao que a raposa responde: “É uma coisa quase esquecida […]. Significa nos tornarmos familiares, estabelecer relações. […] Para mim, você é apenas um garotinho como cem mil outros” e isto é a perda da singularidade, ali introduzirá a escuta e a relação com o Outro, não se pode desenvolver estas relações sem uma concepção moral.
A exposição de relação pessoais, o fim da vida privada pelas filmagens legais e ilegais, a exposição crescente até mesmo de crianças, é crescente e amoral, não há espaço para o crescimento e o respeito a moral de cada idade, nem mesmo da velhice, rejeitada como moral e como idade da sabedoria, é cada vez mais comum a exposição desta “boa idade” no sentido pejorativo e amoral, sem limites de respeito (Chul-Han chama de simetria em O enxame) e de uma moral equilibrada.
Tudo visto como “liberdade”, porém que mergulha em “reviravoltas no mundo da vida”, o subtítulo do autor, caminhamos para uma crise civilizatória e o retorno depende não das coisas, e sim de uma nova moral do estado, das relações humanas e da vida pública.
Han, Byung-Chul Não-coisas : reviravoltas do mundo da vida / Byung-Chul Han ; tradução de Rafael Rodrigues Garcia. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2022.