Arquivo para a ‘SocioCibercultura’ Categoria
Culturas originárias, redes e pós-colonialismo
As pesquisas arqueológicas e paleontológicas indicam que a África é o provável continente que surgiu a espécie humana, fósseis de hominídeos encontrados na África (por exemplo, na Tanzânia e no Quênia) indicam que a espécie primitiva habitou aquela região cerca de cinco milhões de anos atrás.
Porém. na literatura histórica, quando de fala de culturas originárias fala-se principalmente de culturas antigas como os maias no México, os Incas na região andina, os indígenas principalmente da região amazônica brasileira, na Colômbia a população é de quase dois milhões de habitantes, 4,4% que tem a Organização Indígena da Colômbia (ONIC), que estão se organizando em função da covid-19.
Na Amazônia, a comunidade indígena Sahu-Apé, está a somente 80 km de Manaus, e dados de organização (como a Terra Viva) dão conta que 65% da população indígena está na pobreza e 30% na pobreza extrema.
No Perú, um grande número de culturas originárias indígenas está retornando para as montanhas devido a escassez de alimentos e o medo da covid-19, muitas vezes apenas com a roupa do corpo, no Chile e na Bolívia a influência da cultura originária indígena é muito forte chegando a dominar a colonialista, no Perú 27% são quíchua, 3% aymara e mestiços 59,5%.
Assim estes povos formam redes de comunicação para preservação de sua cultura e autodefesa de seus valores culturais, e é preciso pensar num desenvolvimento sustentável que não os massacres como fez o colonialismo selvagem, não apenas com a violência, mas também com seus valores culturais.
As modernas redes eletrônicas, que são mídias de redes sociais, não eliminam nem se sobrepõe as redes culturais já existentes, é preciso não as ignorar e respeitar seus valores e cultura.
A questão do Ser envolve também a sociabilidade e o funcionamento em rede de culturas originárias, boa parte da cultura contemporânea em crise ignora ou tergiversam sobre os valores ontológicos que estão na raiz de muitos trabalhos em torno das culturas originárias, é preciso um pensamento pós-colonial que não veja o processo civilizatório apenas do ponto de vista eurocêntrico e colonial.
Dei uma entrevista alguns anos atrás abordando a questão das redes e ontologias em culturas originárias na rádio USP, o programa estará no ar hoje as 13 h (hora de Brasília, 16h horário de Londres e 10h horário de Nova York), o link para acesso online é: www.radio.usp.br/?page_id=5404 , ou na frequencia 93.7 MHz.
O erotismo em tempos de crise
O assunto é difícil quando não se desvia para o liberalismo geral, defesa do erótico a qualquer preço ou da “liberdade do corpo”, porém o que acontece é que entre as diversas crises civilizatórias também o amor humano se encontra em crise.
Encontro pouca literatura existe a respeito que não vá para o liberô geral ou para o moralismo doentio, o que acontece é que, reconhece o filósofo Byung Chul Han, vivemos A agonia do eros, a incapacidade de amar, e no diagnóstico do filósofo coreano-alemão, estamos destruindo as relações a partir da erosão do Outro, que atinge todos os âmbitos da vida e caminha de mãos dadas com um “narcisismo doentio” que invade nossas vidas.
Escreve seu diagnóstico mais profundo: “O fato de o outro desaparecer é um processo dramático, mas, fatalmente avança, de modo sorrateiro e pouco perceptível”, um indício é o número de selfies onde as pessoas procuram mostrar suas diversas faces, sem escolher situação e em qualquer lugar.
Se não reconhecemos a outra pessoa como um “outro”, nos tornamos incapazes de amar, e assim de chegar a uma viva e libertadora experiência do amor, é libertadora inclusive de nós mesos, de nossas frustrações e incoerências, sintetiza Han é o outro que nos salva de nós mesmos.
Em tempos de crise o amor, o carinho e o verdadeiro interesse pelo Outro é o que pode tornar a crise menos grave, se estamos vivendo o oposto, mais egoísmo, mais narcisismo e mais competição (Han argumenta como a sociedade da eficiência e do apelo ao sucesso) significa mais crise e menos erotismo.
Não há como desenvolver o amor e a alegria em torno destas situações, mesmo aqueles que tem uma relação de amor sofrem as consequências do ambiente violento e de apelos a atitudes contrárias ao amor e a afetividade, mesmo relações de amizade que requerem empatia estão em jogo.
Faço ainda uma reflexão além de Han, porque justamente a sociedade que mais exalta o erotismo sofre com a agonia dele, talvez aquilo que vemos como erótico ultrapasse os limites da privacidade, de algum recato e de respeito aos limites do Outro e do próprio corpo.
O discurso do respeito não está ultrapassado, afinal o que são os números assustadores de violência doméstica de todo tipo, senão a ausência do respeito, a imagem “Dentro e fora” (1929) de André Groz dá contornos interessantes sobre o aspecto da ligação do erotismo com a falta de sensibilidade.
O animal político: preconceito e juízo
O argumento de Hannah Arendt sobre o Zoon politikon é fundamental, argumento que se o homem tivesse algo de político que pertencesse à sua essência, não seria algo da relação entre-os-homens, e assim, totalmente fora dos homens, na polis, ou seja, no que Arendt chama de intra-espaço onde a relação se estabelece.
A política é assim uma relação, e que pressupõe a diversidade entre os homens, e assim lembra os nossos preconceitos, uma vez que a maioria de nós não é um político profissional, afirma no fragmento 2: “tais preconceitos, comuns a todos nós, representam algo de político no sentido mais amplo da palavra: não brotam da soberba das pessoas cultas e não são culpados do cinismo delas, que viveram demais e compreenderam de menos.”
Entretanto é evidente que essa justificação do preconceito enquanto medida do juízo dentro da vida cotidiana tem seus limites, é preciso que ele não se transforme num juízo, assim a opinião (doxa) é matéria-prima da política (e não o conhecimento filosófico, científico ou técnico, a epistem e ou techné) que define a democracia.
Assim é preciso, como o fez Hannah Arendt entrar na questão do preconceito e o juízo, “a periculosidade dos preconceitos reside no fato de neles sempre se ocultar um pedaço do passado”, e dirá ainda mais a frente: “O perigo do preconceito reside no fato de originalmente estar sempre ancorado no passado, quer dizer, muito bem ancorado e, por causa disso, não apenas se antecipa ao juízo e o evita, mas também torna impossível uma experiência verdadeira do presente com o juízo.”
O que acontece se um preconceito torna-se algo imperativo: “Mas é um preconceito em si mesmo o fato de algo imperativo adequar-se ao juízo; os critérios, enquanto duram, jamais podem ser demonstrados de maneira forçada; só lhes serve, sempre, a evidência limitada dos juízos sobre os quais todos concordaram e sobre os quais não se precisa mais brigar nem discutir”, e assim a democracia deve estabelecer os limites entre o juízo e os preconceitos.
O fato é que o preconceito se antecipa ao juízo, por isso a fenomenologia estabelece a necessidade do epoché, justamente a suspensão do juízo em reconhecimento que temos sempre os nossos pré-conceitos (a hermenêutica filosófica a usa no sentido positivo), em geral recorremos ao passado, como explica Arendt, pois a razão é temporal e limitada a épocas históricas, formando em termos apenas quantitativos muitos aspectos da História, nelas o novo é raro e o velho domina a política.
E se a pandemia se prolongar
Fredric Jameson chamou atenção anos atrás sobre a possibilidade de uma catástrofe cósmico (um asteróide que ameaça a vida na terra ou um vírus que matéria a humanidade), e a ameaça despertaria uma solidariedade global, pequenas diferenças são superadas e todos trabalham juntos para encontrar uma solução na vida real, agora a pandemia mostra se isto será possível ou não, se a questão fosse colocada hoje a resposta clara seria não, estamos divididos e pouco solidários.
As especulações sobre o novo normal se esgotaram, na polarização política curiosamente os dois polos erram gravemente, um ao afirmar que a pandemia é o sinal de esgotamento da sociedade que vivemos e assim iremos para uma utópica mudança, e a outra que insiste em dizer que a pandemia não existe, falta realismo a ambas.
Um exemplo desta mudança utópica está na “Sopa de Wuhan” na qual vários autores famosos da esquerda européia apontaram para um “colapso do capitalismo” devido a pandemia.
A lógica de Jameson é de compreender a pós-modernidade como uma “lógica cultural” e que esta seria uma terceira fase de expansão do capitalismo, o chamado capitalismo tardio, o que ele procura é por trás das manifestações culturais de nosso tempo entender que tipo de “lógica” elas tem, sem a necessária crítica a elas.
A discussão de Daniel Bell e Jean-François Lyotard são pontos de referência nesta discussão a partir dos anos 1970, Bell porque colocou a posição de entender que a nova fase econômica colocou a noção de capitalismo industrial no passado, e Lyotard desvendou uma modificação no estatuto de ciência e de tecnologia a partir do cenário de informatização nas sociedades desenvolvidas, porém a crítica convencional ficou presa a uma crítica superficial da chamada “tecno-ciência”.
O que ambos advogam e aqui dão força a uma terceira via de mudança, nem capitalismo nem socialismo, é uma cisão com o pensamento moderno e com a própria experiência da modernidade, algo que se vinculada tanto ao impacto das revoluções científicas e tecnológicas a partir dos anos 1960, e que colocou em colapso todas as narrativas modernas, que estão situadas historicamente em um ponto do passado da história recente e não apontam para um futuro claro.
Assim é a pandemia, a ausência de um futuro claro, ela nos desafia a repensar o futuro sem as narrativas convencionais, e o segundo ciclo da crise pandêmica já é a lógica que aponta para um futuro, sem mudar de atitudes e comportamentos sociais o futuro não será promissor, independente do surgimento da vacina, outros vírus poderão vir e não aceitaremos momento de pausa, de isolamento e de menos pressa no cotidiano, estamos presos a lógica da produção industrial e do consumo.
Há uma lógica mais profunda que é a relação aórgica, o inorgânico sobre o orgânico, que Sloterdijk defende e que Hölderling falava, alguns místicos também.
Redes e Bolhas
Uma sociedade que já vivia em bolhas, sejam elas culturais, políticos ou religiosas, se viu ainda mais presa as suas folhas com a pandemia e o isolamento social, ainda que isto tivesse um aspecto positivo de recuperar as relações intra-bolhas, porém as extra-bolhas parecem que terminaram por serem prejudicadas.
A pandemia mostrou que é impossível viver num isolamento, ainda que em muitos lugares foram tomadas medidas rígidas, e defendo-as como necessárias em muitos casos, o vírus não tem fronteiras, raça ou limites que não possa atingir, e o fim do isolamento social pode não ser tão benéfico como se imagina, os riscos no aspecto sanitário e também os problemas sociais agravados pela pandemia criam um cenário complexo.
É preciso rever o pensamento intra-bolha, aquele que provoca um isolamento social, voluntário ou involuntário, como é o caso das discriminações de todos tipos e não excluo as religiosas, e é preciso sanar o relacionamento extra-bolha, aquele que saindo do nosso grupo de segurança, nos leva ao encontro do Outro.
As redes sociais são um alento, sempre lembrando que não são as mídias de redes sociais exclusivamente, o conceito é mais amplo, é justamente na análise destes contornos fora das bolhas, que a potencialidade das redes se manifestam: a importância dos elos fracos, a análise dos “mundos pequenos” e até mesmo a pandemia pode ser olhada sob um prisma de redes sociais ajudando a análise dos contágios e auxiliando planos de controle.
Olhando a história foram pessoas e situações de contorno que criaram situações e soluções novas, aquelas condições que estão no limite ou fora das bolhas, que s]ao importantes e que via de regra a sociedade e o pensamento conservador as exclui, porque de alguma forma desestabilizam a “bolha”.
Profetas e oráculos na antiguidade foram rejeitados, inclusive pelas bolhas a qual pertenciam, são os casos icônicos de Jesus e Sócrates, por exemplo, mas na história são muitos casos que estão neste limite, e deve-se identificar quem são estes casos no presente, para estar a atento a soluções novas e realmente criativas.
É simbólica para explicar esta situação a parábola evangélica do vinhateiro que chegada a época da colheita manda empregados a sua vinha para receber o que lhe cabia que está em Mateus (Mt 21,33-43), os empregados são espancados, apedrejados e mortos, depois de dois envios o dono da vinha resolve mandar o próprio filho, e ele desperta uma cobiça ainda maior e é morto, e então estes maus vinhateiros tiveram a lição que mereciam.
É importante notar que são os que cuidam da vinha que fazem estas atitudes perversas, isto é, estão dentro das bolhas, assim as primeiras contradições nascem dentro das bolhas e depois se refletem fora, ter uma atitude de abertura ajuda a resolver problemas e prevenir situações limite.
A esfera primordial
O surpreendente livro Esfera I de Peter Sloterdijk entre muitos conceitos novos, traz no capítulo 7, intitulado “O Estágio das sereias: Sobre a primeira aliança sonosférica”, da página 433 até a 470, mas as digressões são igualmente interessantes, um tratado sobre a relação original com a vida, com o Outro e com a psicologia em torno da questão.
Faz de cara uma analogia fundamental com as ciência sociais: “a psicologia pode cultivar sua pesquisa sobre os gêmeos, e as ciências sociais a perseguir sua quimera, o homo sociologicus; mas, para a ciência do homem filosoficamente reformulada, é a pesquisa dos pares e a teoria do espaço dual que são fundamentais. Até mesmo o que os filósofos recentes denominaram de existir humano não deve mais ser entendido como a saída do indivíduo solitário para um espaço aberta indeterminado, tampouco como a estadia privada do mortal no nada” (página 433-434), e aqui sua relação com a morte que tematiza-se esta semana.
Antes de falar da reciprocidade e da tensão dual entre indivíduos, faz uma pergunta essencial sobre a ressonância para desenvolver sua “aliança sonosférica”, cita Sócrates para falar da ressonância interior graças á qual “Sócrates ouve teu demônio intervir dissuasivamente em suas conversas consigo mesmo ?” (pag. 435), mas também vai falar da reciprocidade “atenciosa, dita imaculada, que permite ao Anjo da Anunciação – que na maioria das vezes aparece do lado esquerdo – dizer o impossível aos ouvidos de Maria sem que sua resignação se transforme em recusa?” (pag. 435), e mais abaixo dirá “a escuta interior sempre se liga a uma mudança de atitude, passando de uma audição unidimensional atenta ao alarme e à distância, para uma audição do sobrevoo, apreendida de maneira polimorfa” (idem).
Passa ao largo os textos de Ulisses da Odisséia (já fizemos num post a comparação histórica com o Ulisses de James Joyce), vai varrer as falas e músicas, passando por ícones, livros sagrados, textos de patriarcas, hinos e clássicos” nos quais “reconhecemos potenciais culturais que sobreviveram” (pag. 436), certamente de onde retirou também o seu “estágio de sereias” do título do capítulo, fará uma justa e longa análise da Odisseia como “ressonância” desenvolvendo alguns dos seus Cantos.
O ponto central, é o ponto que considera crucial para o fundamento “da reciprocidade dos indivíduos às mensagens de seus semelhantes, alcançamos agora a região dos mais sutis jogos de ressonância” (pag. 462), para dizer que ali reside o que é sua ressonância original, e afirma que o que “denominamos de alma é, em seu núcleo mais sensível, um sistema de ressonância exercitado durante a comunicação audiovocal da esfera pré-natal mãe-criança” (pag. 462), ali se desenvolve a relação primordial com o Outro.
“Quando a futura mãe fala para o interior, ela adentra a cena primitiva da comunicação livre com o Outro interior” (idem), onde “o brilho da voz da mãe, bem antes que reapareça em seus olhos, prepara a criança para sua recepção no mundo; é somente escutando a saudação mais íntima que ela pode concordar com a insuperável vantagem de ser ela própria” (idem), é esta intimidade “em seu primeiro exercício, é uma relação de transferência” (idem), e “seu modelo não é o aprendido pela aliança simétrica dos gêmeos, os indivíduos de opiniões idênticas … mas pela comunhão inexoravelmente assimétrica entre a voz materna e o ouvido fetal” (pag. 463). (na imagem de Anita Flatzer, Ulcherrima, de Human Time Anatomy. fotografado do Museu Federal de Anatomia Patológica, Viena) (no livro página 467).
Assim a busca do gêmeo, das opiniões simétricas ou mesmo idênticas não é uma relação nem como o mundo íntimo que já envolve a relação com o Outro, nem com o mundo externo diferente, assimétrico e até mesmo hostil, é uma relação “desde sempre fora-de-si-em-si: a voz que saúde, ao se dirigir para esse co-ouvinte íntimo” (pag. 463), mesmo sendo Sloteridjk um pensador para o qual as religiões sequer existem, diria que é um texto de alta espiritualidade.
Afirma, neste ponto que considero praticamente central sobre o “ouvir o outro”, que ao falar da relação fetal primordial, a vê como aquela onde “não há, nesta relação nenhum traço de narcisismo, nenhum gozo ilegítimo de si próprio por um enganoso curto-circuito na relação consigo mesmo. O que distingue essa relação é uma entrega quase ilimitada de um ao outro, bem como o fato de que as duas fontes de estímulo se cruzam quase sem nenhuma fissura” (pag. 463).
A relação de guerra, da quase exclusão do Outro, são os reflexos de um individualismo extremado, do gozo a custa do Outro, e até mesmo de sua vida, o que a pandemia poderia levar a todos a uma defesa intransigente da vida parece estar colocada em outro extremo, a eliminação do Outro, do diferente e do frágil.
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: bolhas (José Oscar de Almeida Marques, Trad.). São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
A tragédia da cultura moderna
Theodore Dalrymple, pseudônimo do médico e psiquiatra inglês Anthony Daniels, que propôs uma reflexão sobre o apodrecimento moral da cultura moderna, o efeito do perigoso politicamente correto na sociedade (como se ele fosse uma única posição política) e as consequências para a verdadeira cultura dos povos, o seu livro Qualquer coisa serve (2016) é uma análise “clínica” profunda de que tipo de crise cultural vivemos.
O autor colabora com vários periódicos The times, The Daily Telegraph, The Observer e The Spectator, é um ponto de vista conservador que olha a história sem dúvida, mas nem por isso deixa de ser importante algumas observações que faz da vida contemporânea e vê como muitos outros o desgaste da cultura atual.
Ganhou o primeiro Liberdade em Flandres em 2011, região que fala o flamengo dois terços da Bélgica, depois de elogiá-la como culta vai criticar seu nacionalismo: “solicitei um quarto … a recepcionista me respondeu em inglês, mas não por conta do meu sotaque com minha esposa, que é parisiense, fez ela o mesmo. Fomos assim apresentados ao nacionalismo flamengo, que demonstra que país nenhum é excessivamente pequeno para o separatismo nacional” (pag. 30), a outra região é a Valônia que fala o francês, mas em Flandres só mesmo o flamengo, ainda que conheçam o francês.
Ele revela sua verdadeira identidade no livro ao dizer “como médico e psiquiatra, passei um terrível período de minha carreira tentando levar pessoas por um caminho que se me afigurava adequado e benéfico a eles” (pag. 81) e depois confessa seu fracasso, diz que seus pacientes eram “autodestrutivos que, se encarados de maneira imparcial e com mínimo de bom senso, não poderiam conduzir a nada além da angústia” (idem), mas não é seu ponto alto.
Noutra linha, mas também em defesa da cultura que se erigiu entre os povos do planeta, com raízes originárias claras e inconfundíveis, Byung-Chul Han, um filósofo coreano migrado para a Alemanha, também critica a cultura do liso, da ausência de imperfeições e ranhuras que se confunde na arte com o politicamente correto.
Escreveu Byung-Chul escreveu que a beleza hoje é lisa, não apresenta resistência, não quebra e exige likes, a distância convida somente ao toque, não há negatividade que é oposta, sem ela, desaparece a surpresa e o maravilhamento: “sem distância não é possível haver mística, a desmistificação torna tudo fruível e consumível.”, não há alteridade do Outro, há só espaço para uma diversidade estetizada e homogeneizada, e assim consumível e explorada.
Não se trata da defesa da tradição, bons críticos e bons reformadores sempre fazem um diálogo com o lado oposto, porém o que se trata é o esquecimento e até o desprezo pelas raízes originárias de cada cultura e uma massificação que quer tornar tudo uniforme e disforme.
É apenas um lado da cultura que atinge o pensamento que tornou-se vulgar e sofista, da religião que tornou-se ideológica ou fundamentalista, e da cultura da qual todos descendemos que é ignorada, as consequenciais sociais e morais são apenas a parte visível do que ocorre nos fundamentos da sociedade moderna.
DALRYMPLE, Thedore. Qualquer coisa serve. trad. Hugo Langone. São Paulo: É Realizações, 2016.
Se a Europa (e o mundo) despertarem
Peter Sloterdijk se perguntava se uma Europa destruída por uma guerra em 1945 poderia ser vista como uma metáfora para um império moderno e esclarecido as vésperas de um novo século, era um ambiente mais otimista daquele tempo, porém o filósofo já havia previsto a guinada violenta da política norte-americana e uma possível crise mundial.
A pandemia parece ter unido a Europa, exceto o Reino que se diz unido, mas parece que não é, uma política de recuperação que sustente a economia “doméstica”, isto é, aquelas empresas e negócios que tradicionalmente sustentam das diversas nações européias podem ter uma nova injeção de animo (e de dinheiro) para se recuperar.
O livro de Sloterdijk Se a Europa Despertar, de 2002, tinha apesar de algum otimismo de uma “nova Europa”, a ideia que os europeus não se voltam a seus fundamentos histórico-filosóficos para buscar uma orientação baseada numa “mitomotricidade” que vai de encontro aos mitos fundadores que resultaram de esplendores culturais, filosóficos e políticos que a Europa se julga herdeira, mas podemos pensar nisto depois de uma trágica safra de totalitarismos e guerras mundiais?
Edgar Morin prepara seu mundo sobre a pandemia e apesar de toda expectativa, ele sempre tão otimista parece agora não estar, em uma entrevista em novembro de 2019 ele afirmava que apesar de “caminharmos como sonâmbulos em direção a uma catástrofe”, ele não deixou uma ponta de esperança “resistir ao ditame da urgência … a esperança está próxima.”
Porém o clima é sombrio, com as nuvens pairando nas relações China e EUA, e nas relações com a Turquia e parte do mundo árabe não tão amistoso com o ocidente, que resposta um mundo em ebulição poderá ter, é a pergunta que fica.
Os ânimos estão exaltados e a sociedade da velocidade e do cansaço parece não ter cedido muito espaço a uma pausa, mesmo a pandemia impondo isto a todos, passados 6 meses parece que não há mais política equilibrada que convença os cidadãos a civilidade, a compaixão e a solidariedade.
Em meio a um mar agitado, os discípulos quando viram Jesus andando sobre as ondas gritaram “é um fantasma”, porém logo Ele lhes disse “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” (Mt 14,26-27), a crise é para os valentes e para os visionários, que lideranças e líderes realmente fraternos e solidários nos ajudem no pós-pandemia e num mundo com aspectos sombrios.
Aos que desejam um mundo mais fraterno, o respeito as diferenças e minorias, o apreço aos que sofrem, há algo a esperar no pós-pandemia.
Como viver a crise e o platô estável
Edgar Morin e Patrick Viveret escreveram em 2010 “Como viver em tempo de crise” (edição em português da Bertrand de 2013), e certamente não pensavam numa pandemia, porém já viam um horizonte difícil para humanidade, e certamente este horizonte foi agravado.
Assim filósofos e outros tipos de visionários que tentam ver um futuro tranquilo não tem um fundamento, ou até podem ter, mas baseados em filosofias e pensamentos já superados, a pandemia exigirá ainda mais dos grandes estrategistas e pensadores humanitários.
Na página 37 do livro mostra os sintomas da crise: “Wall Street conhece apenas dois sentimentos, a euforia e o pânico”, mesmo sem saber é assim que pensam os que prometem “felicidade”, mas é falsa e a ela se seguirá a depressão, uma análise mais sensata pode preparar o desafio que vem.
O platô estável chegou, em termos de mortes pois os dados de infecção são imprecisos, mostram estes picos, agora caminhando para um platô estável não só no Brasil, mas no mundo como um todo, isto porque o ciclo de infecção chegou a todo planeta, e no Brasil a todo país.
O ciclo pode ser realimentado porque não como isolar polos de infecção, mesmo países sem novos ciclos poderão ser afetados, mas observe-se que Nova Zelândia e Taiwan são ilhas, então com o isolamento por mar, são mais controláveis, porém o comércio também pode afetar estes países.
Edgar Morin e seu colaborador citam no livro “três mutações” importantes na crise e que valem para a situação social da pandemia, pois elas representam o mundo antigo, o mundo “estados-nação, da sociedade industrial, de uma organização segmentada (veja os conflitos EUA x China) … o desafio ecológico coloca a pergunta sobre o que vamos fazer com nosso planeta?” (pag. 57).
A revolução industrial colocou a vida num modo de viver frenético, “a sociedade industrial clássica se organizava em torno do sésamo clássico ´o que você faz da sua vida?´”, e que continua a ser uma pergunta que nos interroga a todos, o recém lançado em português “Tens de mudar sua vida” de Peter Sloterdijk coloca isto em torno da antropotécnica, trazendo ao debate a questão técnica.
Ambos apontam para a dupla face da crise: perigo e oportunidade, com respostas diferentes, no entanto o que devemos pensar indicam Morin e Viveret: “o que faremos do planeta, com nossa espécie e com nossa vida” (pagina 54), e dá uma resposta universal e possível: “na esfera de desenvolvimento da ordem do ser, mais que de um crescimento na ordem do ter” (pag. 55), enquanto Sloterdijk indaga se o humanismo não morreu.
O livro apesar da defasagem história é muito atual, e aponta para questão do além pandemia.
MORIN, E.; VIVERET, P. Como viver em tempo de crise? Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2013.
O mal e a crise do humanismo
O idealismo continua a defender seu ideário de Estado, de Ética (moral e virtudes são outras coisas, por exemplo, acabar com as corrupções), agora defender as nações, um Estado mais forte (esquerda e direita no fundo desejam isto) e por isto pode-se falar do zoon politikon, o animal político de Aristóteles, é preciso então entender o que é o animal político.
Há duas condições que pode não tornar-se político: ser degredado (diríamos hoje excluído) ou ser sobre-humano (ou divino, assim de ordem superior as leis e regras humanas).
Esta é a primeira premissa para entender “Regras para o Parque Humano – uma resposta à Carta de Heidegger sobre o Humanismo”, não se trata por tanto de ver o homem como “bicho” do zoológico, mas como animal “natural” porém que seu humanismo encontra-se em cheque.
A polêmica que seguiu-se a sua palestra no castelo de Elmau, na Baviera, significava que a tentativa (desde as escolas de Platão e Aristóteles) de programar a história e o humanismo por meio de uma engenharia social faliu, outro tema importante é a questão da “domesticação”.
A domesticação também não é nova, o filósofo recebeu de uma influência direta de Nietzsche, e Foucault também tratou o tema, sua proposta na Conferência que depois virou livro, era a de inverter a prioridade de Heidegger da dimensão ontológica sobre a ôntica (Sloterdijk, 1999,).
A polêmica causa é porque o filósofo se perguntou se não passaríamos da fatalidade “do nascimento ao nascimento escolhido e seleção pré-natal” (Sloterdijk, 2000) que foi o ponto principal da polêmica tentando mostrar isto as ideias nazistas e fascistas do período da guerra.
As questões de manipulação genética, que na Alemanha sofreram restrições rigorosas até 2002 e a liderança da Escola de Frankfurt por Haberrmas foram o pano de fundo desta polêmica, porém o fundamental que é o humanismo de Heidegger e Levinas, tema da conferência de Elmau é um aspecto principal, esquecido por muitos comentaristas, pois o humanismo está mesmo em crise.
Quanto a resposta de Sloterdijk, ele próprio retorna ao tema de em Esferas I de forma diferente ao falar de manifestação aórgica, o inorgânico sobre o orgânico, afinal o homem veio da Terra até mesmo pela metáfora bíblica, assim do inorgânico barro Deus “soprou” as narinas e introduziu o espírito, gostem ou não, o tema é metafísico e não religioso, e se algo aórgico acontecer.
Hora não será a primeira vez na história, o homem veio depois dos céus, da terra e das águas, novamente também nas diversas cosmogonias (mesmo não cristãs) e também a própria terra já teve outras manifestações, como a que eliminou os dinossauros, porque uma nova não pode ocorrer, e ela nos ajudar a enfrentar a crise de época (ou civilizatória) que enfrentamos.
O tempo é diferente do nosso, o cometa volta depois de 6.800 anos a nos visitar, nem registro dele tínhamos, e quando voltar depois de outros 6.800 anos o que encontra, só Deus sabe, afinal neowise significa “agora”.
SLOTERDIJK, P. Regras para o Parque Humano – resposta a Carta sobre o Humanismo de Heidegger, São Paulo: Estação Liberdade, 2000.