RSS
 

Arquivo para a ‘Real’ Categoria

Reformar o pensamento e seu viático

21 nov

No início do capítulo 5 de Cabeça bem-feita de Edgar Morin, ele faz uma epígrafe de Edita de Eurípedes: “Os deuses nos inventam muitas surpresas: o esperado não acontece, e um deus abre caminho ao inesperado” (Morin, 2003, p. 61), só sabe trabalhar com o inesperado quem medita e tem a parte espiritual bem desenvolvida.

Ele nos dá três viáticos neste capítulo, o primeiro é “Preparar-se para nosso mundo incerto é o contrário de se resignar a um ceticismo generalizado”, é preciso resistir ao que é anti-humano não como um ato de coragem, mas na única certeza que é o erro do caminho que nossas convicções equivocadas podem nos levar (na foto o viático de Leonardo Alenza, 1840).

O segundo viático é a estratégia, nos perdemos no caminho daquilo que é bom e que desejamos.

“A estratégia opõe-se ao programa, ainda que possa comportar elementos programados. O programa é a determinação a priori de uma seqüência de ações tendo em vista um objetivo. O programa é eficaz, em condições externas estáveis, que possam ser determinadas com segurança” (Morin, 2003, p. 62) assim precisamos pensar na estratégia exercendo-a, se queremos mais humanidade é preciso ser humano, se queremos a paz devemos praticá-la.

O terceiro viático é o desafio, geralmente procuramos nossa zona de conforto ou segurança, mas nem conforto nem segurança estão lá, em geral exigem um desafio para conquista-las, diz Morin: “Uma estratégia traz em si a consciência da incerteza que vai enfrentar e, por isso mesmo, encerra uma aposta. Deve estar plenamente consciente da aposta, de modo a não cair em uma falsa certeza. Foi a falsa certeza que sempre cegou os generais, os políticos, os empresários, e os levou ao desastre” (Morin, 2003, p. 62) deste é o desastre da falsa paz de hoje.

O que pode nos levar a um futuro ainda melhor, quem responde não é exatamente um cristão, e sim alguém de origem judaica, mas que vive um laicismo: “A aposta é a integração da incerteza à fé ou à esperança. A aposta não está limitada aos jogos de azar ou aos empreendimentos perigosos” (Morin, 2003, p. 62), se trabalhamos para a paz e para o processo correto do que é civilizatório temos certeza de contar com alguma ajuda extra, porque não: divina.

MORIN, E.

MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. tradução Eloá Jacobina. – 8a ed. -Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

 

 

Se a noite da humanidade vier

31 out

O que fazer se a crise civilizatória chegar aos limites humanos e continuar a se humanizar? abordamos em posts anterior a tomada de consciência que Edgar Morin trás no capítulo 4 do livro Terra-Pátria sobre as “nossas finalidades terrestres”
É nele que o autor trabalha também o aparente paradoxo: conversar/revolucionar, trata- se de entender a mudança sem abandonar os principais princípios humanitários: “A tomada de consciência de nossas raízes terrestres e do nosso destino planetário é uma condição necessária para realizar a humanidade e civilizar a Terra” (Morin, 2003, p. 99) pois o adjetivo “revolucionário” tornou-se reacionário e muito manchado de barbárie” (idem).
O autor acrescenta mais a frente: “Aqui aparece um outro problema: há um poder das ideias sobre a realidade, o que suporia uma realidade e uma força das ideias? Conforme já tivemos ocasião de mostrar, as ideias e os mitos adquirem realidade, impõem-se nos espíritos e podem inclusive impor-se na realidade histórica, violentá-la, desviá-la” (Morin, 2003, p. 126) e isto é muito relevante no contexto atual.
Isto é complementado por Morin ao salientar que “conservar/revolucionar: é o paradoxo progredir/resistir”, onde o resistir é “estar na defensiva em todas as frentes contra os retornos e manifestações da grande barbárie, escrito antes do novo milênio, isto é muito atual em face a possibilidade de guerra.
Escreveu Morin naquela época, o que hoje é a realização de uma profecia: “A primavera dos povos de 1989-1990 sofreu um regelo. Todos os seus germes de liberdade estão em via de destruição. A grande barbárie faz um grande retorno” (Morin, 2003, p.100).
Resistir agora então significa não abandonar valores humanitários, também na atualidade Morin falou sobre “resistência do espírito” que é conservar em nós os mais caros valores da vida, do humanismo e da crença em valores verdadeiramente “divinos”.
Não acreditar que fomos feitos para a guerra, para a barbárie e temos um destino cruel, embora o panorama mundial seja sombrio, é preciso resistir com a armadura da paz.

MORIN, Edgar & Kern, Anne-Brigitte. Terra-Pátria. Trad. Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003.

 

A crise do pensamento simplista e o complexo

30 out

A epistemologia da complexidade é um ramo da epistemologia que estuda os sistemas complexos e fenômenos emergentes associados, em alguns ambientes como na mecânica e na física construíram uma tendência a aprofundar o que até então eram apenas chamados de sistemas dinâmicos, e agora sistemas não lineares ou caóticos.

O processo de industrialização serviu de grande suporte para um desenvolvimento até então impensáveis das ciências naturais, depois a geração de tecnologias: o vapor e a combustão, depois a eletricidade, e tudo parecia mover-se numa engrenagem perfeita.

Tudo se caracterizou até um certo momento em um movimento que Edgar Morin chamou de disjuntor-e-redutor, tanto as ciências como nas artes a ideia de reduzir o que é complexo ao simples (por exemplo, buscar na menor parte da física até então, os átomos) uma realidade que aos poucos mostrou-se complexas (sub-partículas em dimensões cada vez mais microscópicas até chegar ao universo quântico).

As particularidades da física subatômica introduziram incertezas e mostrou os limites do reducionismo que estava levando a uma visão distorcida da realidade, mostrou suas incertezas e ingenuidades, a pretensão de captar uma realidade objetiva que poderia ser independente do observador, quanto o próprio observador faz parte do fenômeno.

Assim esta lógica redutora-reducionista da física ampliou-se para o universo social e pessoal, e mecanismos aparentemente simples poderiam resolver problemas que são complexos, e toda a problematização decorrente desta realidade não foi observada.

O pensamento complexo não se limita ao mundo acadêmico, ele transborda e está presente em diversos setores da sociedade, assim como o simplismo de raciocínios que não contemplam a complexidade e a diversidade da vida social.

Também no mundo espiritual (ou subjetivo como poderia pensar quando vemos os objetos foram da realidade do sujeito) este equívoco nos conduz a uma porta larga, onde os valores básicos do humanismo podem ser ignorados e a vida fragmentada.

Assim a porta por onde passam lógica simplistas e triviais conduzem a grandes e problemáticos enganos, enquanto a complexidade de um caminho socialmente justo e verdadeiro não se reduz às formas ideológicas simplistas e pouco humanas.

Passar pela porta estreita nunca será um caminho fácil, porém o único que pode conduzir a humanidade a um futuro sustentável e realmente humano, de paz, de fraternidade e de valores sociais de respeito a dignidade humana.

 

A identidade e a família humana

22 out

Temos identidades e culturas regionais, ligados as nações, o fato que existem nacionalidades não deveria ser contrário a existência e visão de uma família humana, não apenas pela nossa identidade genética e animal, mas principalmente pela nossa vida e relações em comum.

Edgar Morin, em seu livro Terra-Pátria (Editora Sulina, 2003) traça as origens de uma visão do homem ligado a natureza (e por consequência ao Cosmos), que irá se desenrolar nas visões de Bacon, Descartes, Buffon e Marx (Morin, 2003, p. 54) que fizeram do homem “um ser quase sobrenatural que progressivamente assume o lugar vazio de Deus” (idem), porém isto disparou uma visão arrogante e autoritária perante o Cosmos e o Outro.

Como isto regredimos em nossa visão planetária: “A identidade do homem, ou seja, sua unidade/diversidade complexa, foi ocultada e traída, no cerne mesmo da era planetária, pelo desenvolvimento especializado/compartimentado das ciências” (pg. 61), uma visão xenófoba de nacionalismo e de identidade agora explode inibindo uma visão da família humana.

Escreve Morin: “A nação e a ideologia edificaram novas barreiras, suscitaram novos ódios. Deixam de ser humanos o islamita, o capitalista, o comunista, o fascista. “ (pg. 60), note-se que isto foi escrito 1993 (a primeira edição original em francês).

Nossa visão de homem se reduziu, aponta Morin: “A filosofia, encerrada em suas abstrações superiores, só pôde se comunicar com o humano em experiências e tensões existenciais como as de Pascal, Kierkegaard, Heidegger, sem, no entanto, jamais poder ligar a experiência da subjetividade a um saber antropológico” (idem, pg. 61), a visão destes autores parece etérea.

Isto ocorreu também nas ciências humanitárias: “A antropologia, ciência muldimensional (articulando dentro dela o biológico, o sociológico, o económico, o histórico, o psicológico) que revelaria a unidade/diversidade complexa do homem, não poderá edificar-se de fato a não ser correlativamente à reunião das disciplinas … “ (pg. 62), e assim o fragmento humano se traduz em pensamento fragmentado.

É esta fragmentação traduzida em guerra e ódio que exige um desocultar do Ser, reclamado por Heidegger e pensadores que o seguiram (Hans-Georg Gadamer, Hannah Arendt e outros), e que está pensado também em Morin: “Donde a necessidade primordial de desocultar, revelar, na e através da sua diversidade, a unidade da espécie, a identidade humana, os universais antropológicos” (p. 60), des-velar (mais que re-velar, que é velar de novo) como diz a ontologia moderna.

A família humana pode ser desocultada em seus interesses comuns: a ecologia, o equilíbrio econômico e principalmente a paz.

MORIN, Edgar e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Patria. Trad. francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003

 

Ontologia, idealismo e a verdade

16 out

O pensamento de Heidegger deve partir da questão do Espírito em Hegel, lido por Byung-Chul em Introdução à Fenomenologia do Espírito “em termos do esquecimento do ser” (questão central de Heidegger), ele a vê como um “eu árido” que encontra “sua limitação ao ente que lhe sai ao encontro” (Han, pg. 334 citando Hegel).

Embora recupere Hegel, em parte, na epígrafe do último capítulo: “a verdade é o todo”, ele rediscute a dialética e sua metafísica no idealismo: “em relação ao “apenas ser” que o esvazia até um nome “que não nomeia mais nada”, a consciência natural … quando se dá conta do ser, assegura que ele é algo abstrato. ” (Han, pg 336).

A consciência natural (vista assim) “se demora em ´perversidades” … “ela tenta eliminar uma perversidade organizando outra, sem se lembrar da autêntica inversão” onde “a verdade da essência do ser se recolhe ao ente” (pg. 336 com citações de Heidegger), que vê nisto um passo atrás e o “já” esquecido, incompreendido (pg. 337), não aparece completamente negado, aparece na forma de “ainda não” que não é uma negação, nem uma barricada, posto “ao lado do já impede que ele se apresente” (pg. 337).

Há todo um desenvolvimento em contraste com a dialética de Hegel, mais que um tópico poderia muito bem ser um livro, porém o diálogo que trava com Derridá e Adorno no capítulo sobre o Luto e o trabalho do luto, encaminha para sua visão do todo fora da abstração dialética, diz a preocupação com a imortalidade, com matar a morte, não é secreta apenas no coração de Platão ou Hegel (pg. 384), seria a principal preocupação com o arquivo “cardiográfico” da história da filosofia, nela o filósofo “trabalha” para reverter o negativo do ser.

Este é o que vai dar base ao seu “trabalho do luto”: “ser capaz da morte como morte”, isto é, ser capaz do luto, esta “tragédia” “se distingue radicalmente do ruidoso trabalho do luto da dialética hegeliana” (Han, p. 385).

“As lágrimas liberam o sujeito de sua interioridade narcísica … elas que o “feitiço que o sujeito lança sobre a natureza” (Han, p. 394) agora citando Adorno, e o autor afirma que a “Teoria Estética é o livro das lágrimas (idem) e que ao contrário de Kant, e que “o espírito percebe, frente à natureza, menos sua própria superioridade do que sua própria naturalidade” (p. 395).

“A experiência estética abala o sujeito narcísico que se julga soberano e faz desmoronar o endurecido princípio do “eu” … a lágrima do sujeito abalado e comovido prova ser capaz de verdade” (pg. 395).

Capaz da verdade, do infinito e para os que creem de Deus, não um Deus dos bens passageiros e de falsa alegria, mas aquela do já, mas não ainda, aquela além da dor e da transitoriedade das coisas temporais.

HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.

 

Noética, Ontologia e a guerra

14 out

Para Platão noésis é superior à dianóia, que é discursiva e aparentemente lógica, enquanto a primeira é uma elevada atividade mental possível, habitando a esfera do Bem e da Harmonia.

É uma possibilidade de acesso ao mundo “divino” (o sumo bem de Platão que está no eidos), é transcendente, absoluto, além do raciocínio humano comum, os filósofos a perseguem sem ao menos tocar na questão da crença de um Deus superior onde a noésis “habita”, não é Ser, mas atitude mental.

Já a dianóia enquanto habita um raciocínio lógico, matemático e técnico fica preso ao que a mente consegue captar do mundo terreno, mesmo admitindo equívocos, verdades não absolutas e as vezes confusas, elas habitam o cotidiano do humano, também desligado do Ser.

Há uma linha fundacional que vai da fenomenologia à antropotécnica de Peter Sloterdijk e Byung-Chul Han, envolvendo essencialmente a questão do Ser, a ligação entre a noesis e o noema, fragilizada pelo bombardeio de narrativas que o universo digital proporcionou, mas o esquecimento do ser, a ausência de interioridade levaram àquilo que Chul-Han chama de “desauritização” e a “pura facticidade” dita assim:

“O desencantamento do mundo se expressa como desauritização. A aura é o brilho que eleva o mundo para além de sua pura facticidade, o véu misterioso que envolve as coisas” (Han, 2023, p. 80).

Não se trata de negar a facticidade, mas de não permitir sua noesis, isto é a compreensão inicial na mente em toda sua aura, ela faz uma “seleção narrativa”, no dizer de Byung-Chul (falando sobre a fotografia): “Ela estende ou encurta a distância temporal. Ela pula anos ou década. A narratividade se opõe à facticidade cronológica” (Han, 2023, p. 81).]

São estas as mentiras das guerras, são de todas as guerras porque escondem seus reais motivos, mas particularmente das guerras atuais porque usam narrativas para mudar o que é evidente se lido na facticidade cronológica, em exemplo bem atual, o bombardeio na semana passada de um hospital de idosos na Ucrânia (foto) e o bombardeio de bases da ONU no Líbano, isto tem correlação com a crueldade e a ausência de qualquer narração que as justifique.

A paz está nos corações e autoridades que mantem a aura da esperança, o espírito solidário.

HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.

 

Enfrentar de fato a questão da miséria

24 set

Basta distribuir a renda ou apenas dar um prato de comida, resolve a questão emergencial, mas mantém a pobreza latente e não propicia a ascensão social e estabilidade econômica.

A questão da miséria é um problema complexo embora sua consequência seja facilmente vista, porém, a elevação da qualidade de vida e a sobrevivência digna de milhões de pessoas deve ser encarada de modo além do emergencial, ainda que este seja necessário.

Entre as causas poucas vezes analisadas da pobreza estão a corrupção, as guerras, a infraestrutura precária e a dificuldade em gerar empregos e cria-los com salários dignos, assim a informalidade e até mesmo os crimes e mercados ilegais (até de drogas) são consequências.

As consequências são conhecidas: fome, desemprego, falta de moradia digna, ausência de saneamento básico, violência, propagação de doenças epidêmicas, discriminação e vulnerabilidade social.

Combater um dos aspectos ignorando outros, por exemplo, a questão do saneamento básico é crucial e não é facilmente visível para muitos gestores públicos que veem apenas aspectos que dão mais visibilidade e ajudam a melhorar a visão dos gestores, que no Brasil é sempre crítica.

A questão da distribuição de renda é um aspecto fundamental, mas não se trata de resolver só o emergencial, criar possibilidades de mobilidade social entre os níveis de renda mais baixos é um fator essencial para erradicação da pobreza, assim como promover aspectos de escolaridade e criação de empregos.

O problema global a ser enfrentado é a emigração, não só a fome e a pobreza, mas principalmente as guerras e perseguições a determinados grupos étnicos é um fator muito grave e pode escalar em uma guerra mundial, era visível isto no final das duas grandes guerras.

Programas públicos claros não apenas que resolva o problema emergencial, que é o visível para a população, mas de médio e longo prazo são essenciais, a pouca mobilidade social e a dificuldade das camadas de mais baixa renda de acesso a bens e serviços públicos é ainda um fator crucial em muitos países do mundo, e a miséria extrema persiste, apesar de programas e política, onde elas fracassaram foram exatamente onde a propaganda era mais forte e as medida menos efetivas.

Mudar a retórica do assistencialismo e da distribuição das sobras sociais é fundamental, é preciso devolver a dignidade a toda pessoa humana, superando não só o preconceito, mas principalmente o modo de encarar estas pessoas que tem a mesma dignidade das outras.

 

A lógica do produtivismo e seu inverso

21 ago

Diversos autores argumentam sobre a lógica da sociedade moderna sobre o produtivismo, esta lógica não é específica de um modo de produção, mas caracteriza uma sociedade onde os valores são todos colocados em torno da potência e da produtividade de cada indivíduo, assim excluem, por exemplo, velhos, crianças, empregados domésticos e portadores de necessidade especial.

Segundo a literatura (A. Giddens e outros): o produtivismo é a lógica que orienta a vida de um grupo de indivíduos (os chamados “consumidores adequados”) enquanto outro grupo (chamados de “consumidores falhos”) ficam à deriva da vida econômica, política e social. 

Por isto analistas sociais mais críticos colocam como um fator de crise na sociedade contemporânea a destinação de trabalho a grupos dirigidos, também no mundo acadêmico, político e até espiritual, determinado perfil de pessoa com alguma “performance” é requerido.

Dizer que estas pessoas tomam atitudes de acordo com suas aptidões ou escolhas é uma farsa, ainda que encontremos alguma rebeldia de jovens que optam por trabalhos como cozinha, setores esportivos ou de lazer, a maioria vive sobre projetos manipulados pela sociedade da performance e do consumo.

Como inverter esta lógica, olhando para os setores excluídos da sociedade, é cada vez mais comum portadores com necessidades especiais, pessoas com determinados tipos de doenças ou síndromes se encaixarem num mercado restrito e cheio de exigência de produtividade.

A parábola bíblica dos trabalhadores de última hora é uma metáfora bem colocada, onde trabalhadores que estão sentados na praça (descartados de espaços produtivos) são chamados para o trabalho e embora cheguem na hora final receberão o mesmo valor que outros trabalhadores, não confundir com os projetos equivocados que encaixam jovens em trabalho sem ter a remuneração corresponde a mesma função feita por trabalhadores “experientes”.

A parábola chamada também de “trabalhadores da vinha” ou “empregador generoso” (Mt 20:1-16), poderia ser o inverso da visão produtivista do mercado de trabalho da modernidade.

GIDDENS, A. As consequências da modernidade. Trad. Raul Fiker, São Paulo: Ed. UNESP, 1991.

 

O que é Amor afinal

07 ago

Num mundo polarizado e agora a beira de guerras regionais e que podem escalar, falar de amor parece algo inócuo e sem reflexo na realidade, mas há boas obras produzidas pela humanidade.

Paul Ricoeur escreveu e já postamos algumas vezes sobre isto o Le socius e le prochain (O sócio e o próximo), separando interesses do amor ao próximo verdadeiro.

Porém a obra de Hannah Arendt ainda que não seja definitiva quanto ao amor, o próprio orientador Karl Jaspers manifestou isto sobre seu doutorado “O conceito de amor em Santo Agostinho” (edição portuguesa Instituto Piaget, 1996) desenvolveu e se apropriou de algumas categorias fundamentais sobre o tema, não estamos falando de amor erótico nem do familiar.

Segundo o autor George McKenna, em resenha de sua tese, Arendt teria tentado incluir em sua “A condição humana” uma revisão, porém não fica muito claro no livro de Arendt, que apesar disto ele tem bom desenvolvimento.

Se pode também manifestar expressão deste amor na literatura grega antiga, como o amor ágape, aquele que se diferencia do eros e do philia nesta literatura, do ponto de vista cristão o melhor desenvolvimento feito é de fato o de Santo Agostinho.

Primeiro porque ele separou este conceito do maniqueísmo bem x mal, dualismo ainda presente em quase toda filosofia ocidental devido ao idealismo e ao puritanismo, depois porque foi de fato arrebatado ao descobrir o amor divino, escreveu: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava fora!” (Confissões de Santo Agostinho).

Depois o homem deve amar o seu próximo como criação de Deus: […] o homem ama o mundo como criação de Deus; no mundo a criatura ama o mundo tal como Deus ama. Esta é a realização de uma autonegação em que todo mundo, incluindo você mesmo, simultaneamente recupera sua importância dada por Deus. Esta realização é o amor ao próximo (ARENDT, 1996, p. 93).

O homem pode amar ao próximo como criação ao realizar o retorno à sua origem: “É apenas onde eu pude ter certeza do meu próprio ser que eu posso amar meu vizinho em seu ser verdadeiro, que é em sua criação (createdness).” (ARENDT, 1996, p. 95)

Neste tipo de amor, o homem ama a essência divina que existe em si, no outro, no mundo, o homem “ama Deus neles” (ARENDT, 1996, 95).

Também a leitura bíblica sintetiza a lei e os profetas cristãos assim (Mt 22, 38-40): “Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’. Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos”.

O amor contém todas as virtudes: não se envaidece e não se encoleriza, sabe ver onde se encontram os verdadeiros sinais de felicidade, equilíbrio e esperança, mesmo num mundo conturbado.

ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Chicago: University of Chicago Press, 1996.

 

Espírito e poder

25 jul

Poder e autoridade parecem se confundir, porém não é verdade na medida em que crescem no mundo governos autoritários e este foi sempre um péssimo sintoma civilizatório porque indica tanto as contendas como no limite delas as guerras.

Byung-Chul Han em seu livro “No enxame” explica após dizer sobre a necessária distância na esfera pública, que as “ondas de indignação indicam, além disso, uma indicação fraca com a comunidade” (Han, No enxame, 20,18, pg. 22) e ele tem um livro específico sobre o poder.

O livro O que é poder? (2019) tem uma longa análise sobre a questão em Hegel, isto se justifica tanto pela influencia no pensamento ocidental quanto pela incidência da visão de poder que atinge toda a esfera pública, porém salientamos o seu vago conceito de Absoluto e a influência até mesmo religiosa, vista no post anterior.

Sua análise é importante quando remete aos conceitos ontológicos, assim define que “o ente é, até quando for finito, rodeado pelo outro” (Han, 2019, p. 110) e o Ser deve gestar uma negatividade em si, não se trata aqui de “maus pensamentos” e sim o conceito que cita em Paul Tillich (1886-1965) que a potência do ser como “capacidade dos seres vivos de superar a negatividade, ou como ele diz, o “não ser”, ou seja, a quem não envolve-la na autoafirmação” (pg. 111).

Citando-o Han afirma: “tem-se mais potência de ser, porque deve ter sido superado mais não ser, e enquanto possam-se superá-lo. Quando não puder mais aguentar ou superar, então é a impotência total, o fim da potência do ser, o acontecimento. Esse é o risco de todo ser vivo” (Han, 2019, p. 111).

Cita a tese de Foucault que o ser humano seria “o resultado de uma submissão” (pg. 118) e Hegel que pensa que o poder deve atuar primariamente de “maneira não repressiva” (pg. 119) entretanto, ambos não abandonam a ideia do Absoluto, que na verdade vem do Príncipe de Maquiável e do Leviatã de Thomas Hobbes, e o como diz o autor: “o poder promete liberdade” (pg. 121).

A necessidade de criação de uma religião “neurótica” do poder, para Hegel viria da ideia de Deus, o poder que Ele tem o poder de “ser ele mesmo”, isto vem do idealismo que não supera a divisão entre sujeito e objeto, ou seja o Criador e o criado (seres e entes) não se compõe.

Não há dúvida que o poder, sem a necessária negatividade do não ser (a inclusão do Outro) é uma neurose como diz Hegel, e assim seu “deus” ou “o espírito” “ainda seria uma aparência desta neurose” (Han, 2019, p. 121).

“A dor da finitude pode ser perfeitamente a dor de qualquer limite que me separa do outro, que apenas pode ser superada pela criação de uma continuidade particular … ela não tem a continuidade do self que o poder cria. Ela não tem a intencionalidade da volta-a-si” (Han, 2019, p. 121).

O poder neurótico de Hegel não é o do Criador, é do ser enjaulado no si-mesmo, incapaz de olhar e servir o Outro, de sair do si, de negar-se para servir o Outro, é um poder neurótico.