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Autores e diálogos
Li um texto de 1968 de Roland Barthes “A morte do autor” no qual ele problematiza o conceito, propondo-o como “a destruição de toda a voz, de toda origem”, ele diria também do homem (de hoje) num momento conturbado de conceitos e de acontecimentos verdadeiramente e “estranhos” que estão se construindo “barricadas nos textos”, o que dizia de seus contemporâneos (Alain Badiou e Jacques Derridá afirmaram que sem este conceito não se pensa criticamente nenhum objeto), e o que diria hoje, certamente que sua tese estava certa, e hoje mais ainda.
É sabido que Foucault deu umas alfinetadas em Barthes, mas em Sade, Fourier, Loyola elas foram devolvidas ao inserir no jogo discursivo o leitor e reformula a questão da autoria em outra dimensão: o corpo, este objeto de consumo de tantas teorias hoje, somente em Barthes encontra alguma solidez (não líquida).
Para Barthes o texto é um corpo, um objeto de prazer dotado da capacidade de penetrar na vida do leitor em fragmentos, gerando coexistências entre leitor e autor, ou textualmente:
“O prazer do texto comporta também uma volta amigável do autor. O autor que volta não é por certo aquele que foi identificado por nossas instituições (história e ensino da literatura, filosofia, discurso da Igreja); nem mesmo o herói de uma biografia ele é … é um simples plural de ‘encantos’, o lugar de alguns pormenores tênues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto descontínuo de amabilidades, em que lemos apesar de tudo a morte com muito mais certeza do que na epopéia de um destino; não é uma pessoa (civil, moral), é um corpo.” (BARTHES, 2005).
Barthes propôs em 1977 (Leçon) uma distinção dos termos: literatura, escrita e texto, que é particularmente interessante conceitualmente, a escrita tem algo que é a manuscrição uma inscrição na qual se supõe um suporte, um utensílio, em segundo lugar (embora seja apenas de caráter didático) o sentido cognitivo, pelo qual se designa a instalação e o terceiro as formas “linguageiras” dotadas de significação que tomam um sentido artístico.
Para problematizar a questão da “pluridimensionalidade” proposta por Barthes para a literatura ele inicia a chamada “crítica genética”, problematizando o aspecto enunciativo do termo, tem como objetivo reconstituir uma história do texto em estado nascente, buscando encontrar nele os segredos de fabricação da obra, e assim é explicado o que é um texto e sua relação com a literatura.
É aqui que se estabelece o diálogo pela língua, sem a compreensão da genética de um texto, pode haver solicitude ou diálogo, mas não sairia da superficialidade e nem atingiria aquele nível desejável para muitos autores contemporâneos de assumir os pré-conceitos e estabelecer novos horizontes.
Barthes faz uma valiosa reflexão acerta da escuta distinguindo-a do ato fisiológico do mecânico de “ouvir”, dando-lhe um estatuto de ato psicológico que só se define por seu objeto e por sua intenção, categoria tão cara á hermenêutica embora não seja exatamente a mesma, guarda similaridades.
autor faz uma valiosa reflexão acerca da escuta, distinguindo-a do ato fisiológico e mecânico de “ouvir”, conferindo-lhe um estatuto de ato psicológico que só se define por seu objeto e por sua intenção.
É famosa a frase de Barthes: “Toda a recusa duma linguagem é uma morte” e um interprete deste autor explicita a diferença entre ouvir e escutar: “[…] uma escuta poiética (‘bruta’, como o quer Barthes) visa não aprisionar sons de uma maneira hierarquizante, como num insípido objeto de análise fria” (El Haouli, 2002), é este aspecto de diálogos hierárquicos que dominam muitos que julgam fazê-lo mas não o fazem, apenas desejam a submissão passiva do Outro às suas categorias.
BARTHES, R. Sade, Fourier, Loyola, Paris: Seuil, 1971. [tradução: Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
EL HAOULI, Janete. Demetrio Stratos: em busca da voz-música. Londrina: Gráfica e Editora Midiograf, 2002.
Virus e mutações aórgicas
Certamente o que somos hoje como estrutura física e DNA não foi sempre assim, também nossa relação com doenças e vírus são diferenciadas, doenças “infantis” como sarampo, caxumba e rubéola tornaram-se comuns e uma vacina tríplice tornou-se obrigatória, combatem estas doenças mais comuns, ao passo que em tribos indígenas e alguns povos podem ainda ser mortais, isto porque suas estruturas físicas são diferenciadas.
Certamente algo aconteceu com o mundo inorgânico que influenciou o físico, parece assustador, mas é trivial dizer que o mundo físico antecedeu ao orgânico, portanto em nossa origem aconteceu uma mutação aórgica.
O homem não existiu sempre, acredita-se conforme estudos científicos que o homo sapiens surgiu na África Oriental por volta de 300 mil anos atrás (Hubrin, Ben-Ncer, 2017), se espalhou primeiro para o leste do mediterrâneo 100 mil anos atrás (Khan, 2015) e 60 mil anos foi para o oeste, pode ter chegado na China cerca de 80 mil anos (Sherwell, 2015), então porque variações de pele, de estrutura física e tolerância a doenças aconteceram, certamente devido a mudanças alimentares, climáticas e também variações na estrutura física conforme a adaptação ao ambiente, isto é também aórgicas, desde a estrutura primordial do homem formada a partir do mundo físico.
Muitas pesquisas sobre vírus que afetaram nossos antepassados já foram estudados, como o Mollivirus sibericum, classificado como um “vírus gigante” porque pode ser visto em um microscópio ótico simples, além dele também o Pithovirus Sibericum foi estudado por uma equipe francesa do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, assim há uma “evolução” e transformação dos vírus e como afetaram historicamente o homens e a natureza, porque agora surgem vírus cada vez mais “fortes” e com características diferentes, também é uma mudança aórgica, porém ela pode também afetar a natureza, a parte física do planeta e assim a história.
No embate entre razão e entendimento, diversos autores trataram a questão aórgica desde a análise estética até o física, por exemplo, usaram estes temas Schiller e Hölderling e a apropriação aqui, para fazer inferências sobre o inorgânico (vírus não é um organismo) e demonstrar que a totalidade orgânica (holismo orgânico) não é prevalente sobre ao inorgânico (holismo aórgico), que supõe um regime de ataxia e desordem, assim como o holismo sistêmico, o pretenso discurso único que invadiu a sociologia, a história a moda de Dilthey (Gadamer o contesta) e a polarização atual não é senão um holismo sistêmico, idealismo e física pré-quântica.
Por esta teoria do holismo aórgico pode-se supor que não apenas a estrutura física orgânica do humano poderá se modificar, mas até mesmo a estrutura do planeta, a retração de atividades, entre elas as milhares de viagens diárias de aviões, o não uso de combustíveis fósseis já estão alterando (para melhor) a estrutura de mares e da terra, assim a própria estrutura do planeta poderá se modificar, e também a natureza como todo reagirá, pode ser uma surpresa, mas a natureza nos socorrerá.
Referências:
HUBRIN, Jacques Hublin; Ben-Ncer, Abdelouahed «Scientists discover the oldest Homo sapiens fossils at Jebel Irhoud, Morocco». Nature. 2017, acesso em: 20 de agosto de 2020. disponível em: https://phys.org/news/2017-06-scientists-oldest-homo-sapiens-fossils.html .
KHAN, Amina. Discovery of 47 teeth in Chinese cave changes picture of human migration out of Africa. Los Angeles Times, Science. 14 oct. 2015, Acesso em: 20 de Agosto de 2020, Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/virus-gigante-pre-historico-da-siberia-sera-acordado-6d2dtw1rz8yudoz53visogbti/
SHERWELL, Phillip. Ancient teeth found in China reveal early human migration out of Africa. The Telegraph, 2015. Disponível em: The telegraph (acesso privado).
Conspiração do medo ou do silêncio
A pandemia gerou uma angústia e um medo diante da morte e das preocupações sanitárias, o vírus tornou-se um medo para todas pessoas sérias, porém não falar do perigo e das possibilidades presentes e futuras desta pandemia pode ser uma “conspiração do medo” ainda maior.
Alguns autores já falavam da “conspiração do silêncio” que atingia a sociedade antes da pandemia, Böemer e Adorno são dois autores clássicos que tocaram no tema da morte, tomei consciência desta questão em minha viagem para Portugal, onde o tema é tratado de forma diametralmente oposta ao Brasil, e a pandemia trouxe de volta o tema.
Já tocamos as raízes históricas e sociológicas da tragédia grega, particularmente nos textos de Nietzsche e Hölderling (veja o post), porém agora a questão é se falamos da pandemia e causamos mais medo e pânico ou evitamos e entramos numa espécie de “conspiração do silêncio”, aquela que vai passando de geração em geração, evitar que uma criança veja a morte, não ficar comentando a doença e o morte de alguém.
O silêncio relativo a morte é mais profundo que o morrer, que é tomado como um fato natural da vida, mas que só deve ser pensado quando a hipótese de fato existe, assim não faz sentido para uma criança ou para um jovem, também para mim era um tabu porque imaginava que o ciclo biológico natural: nascer, crescer, envelhecer e morrer estava rompido, ou inter-rompido, por isso a morte parece mais “natural” que o morrer, o evento contrário ao devir, vir-a-ser.
A proximidade, quase diária com a morte, continua por outro lado com a conveniência de não afetar a “todos” porém é demasiado desumano, e isto me fez repensar mais uma vez no morrer, antes questionado para crianças e jovens, agora penso também em idosos abandonados a própria sorte e as suas comorbidades.
A “conspiração do silêncio” é aquela atenuação do morrer, tentando afastar o medo do sofrimento, a degeneração, a solidão e o abandono, a ideia é tornar o homem privado de sua “morte” conforme dizem alguns autores (Carvalho, 1994), usando do homem privado de sua morte, de sua humanidade (14,15), com eufemismos ou alusões a falsas situações (viajou, está com a vovó, etc.) para mantê-la distante do mundo dos vivos e da fatalidade do morrer.
É cruel pensar no morrer, mas mais cruel não falar e não citar que muitos estão morrendo, que é possível que menos pessoas morram, e que além da prevenção, todos devemos sonhar com remédios que possam nos separar desta noite de sofrimento que envolve toda a humanidade, falar dele é solidarizar-se.
Adorno Y. Conversando com a criança sobre a morte. Campinas (SP): Psy, 1994; 20 p. 12. Araújo PVR, Vieira MJ. As atitudes do homem frente a morte e o morrer. Texto & Contexto, Florianópolis (SC) 2001 set/dez; 10(3): 101-17.
Böemer MR. A morte e o morrer. São Paulo: Cortêz; 1986.
Carvalho MMMJ, coordenadora. Introdução à Psiconcologia. Campinas (SP): Psy II; 1994.
A verdade é lógica, ontológica ou poder
Os sofistas diziam que o homem é a medida das coisas (Protágoras), não para afirmar qualquer princípio ontológico, apenas para reafirmar o status quo vigente que em última instância é o poder, usavam para isto a arte da persuasão (Górgias) e por último afirmavam a conveniência do mais forte (Trasímaco), quase todos aparecem nos diálogos de Platão, através dos diálogos de Sócrates) e cuja preocupação era contestá-los para afirmar a democracia da polis.
Depois vivemos vários séculos organizando as leis até fazer a passagem da cidade-estado grega para os burgos pós-idade média, onde o liberalismo vai crescer até tornar-se o Estado moderno, criando o conceito de nação e o contrato social que rege determinado povo.
Para a visão epistemológica moderna, a verdade está ligada ao objeto (a coisa em si) e isto o torna relativa, pois está submetida ao espaço, ao tempo e às categorias, este conceito vem de Aristóteles, mas foi sobre ele que o pensamento da idade média se dividiu entre nominalistas e realistas, mas para ambos e também para Descartes que vai estabelecer a res-extensa (matéria), a res-cogitans (coisa pensante) e a res divina (coisa pensante perfeita, infinita).
É Kant que faz a ligação da coisa pensante sobre o objeto tornando-se relativa, pois tal verdade é ao sujeito cognoscente tendo então uma face subjetiva, própria do sujeito, para ele a “coisa em si” (o objeto) transforma-se em “a coisa em mim” (sujeita a subjetividade).
Isto significa que diante do objeto, a consciência desenvolve o trabalho na produção da verdade de acordo com o espaço em que esse objeto está ocupando, o tempo que ele está situado e em que categoria se encaixa, trata-se então de categorizar e organizar os objetos em torno de conceitos.
Não é difícil entender que isto cria uma estrutura lógica que vai num primeiro instante criar uma lógica positivista e mais tarde um empirismo lógico, ou um neologicismo, em ambas correntes qualquer aspecto metafísico é negado, assim a lógica não é mais função de uma construção argumentativa, mas de um cálculo de proposições que segue uma estrutura lógica, em última instância é também o que justifica o poder e suas maquinações.
Retornamos as narrativas sofistas, a ideia de que é o poder que diz o que é verdade, então trata-se de conquistá-lo muitas vezes numa lógica na qual os fins justificam os meios, assim justifica-se a corrupção, a ausência de virtudes morais e até mesmo a morte.
A verdade ontológica parecia ter sucumbido, mas foi a hermenêutica e a fenomenologia as raízes que recuperam a ontologia moderna, Franz Brentano vai usar uma subcategoria do conceito ontológico de consciência, ao elevar a intencionalidade a uma categoria superior e torná-la “fenômeno mental”.
Husserl aluno de Brentano, vai recriar a intencionalidade e retirá-la do aspecto psicológico ainda com resquício empirista, e vai dizer que só tem sentido chamar de consciência, a “consciência de algo”, isto significa que não existe consciência da coisa-em-si, mas a intencionalidade na consciência de algo.
A intencionalidade distingue a propriedade do fenómeno mental: ser necessariamente dirigido para um objeto, seja real ou imaginário. É neste sentido, e na fenomenologia de Husserl, que este termo é usado na filosofia contemporânea, também por Heidegger, mas que vai recuperar e transformar a ideia do Ser.
Entretanto é necessário lembrar que Heidegger em O meu caminho na fenomenologia, deveu-se a leitura em 1907 da dissertação de Brentano escrita em 1862: “Da múltipla significação do ser em Aristóteles” (Brentano, 1862) e isto significou uma retomada do caminho de seu mestre Edmund Husserl.
Heidegger ao contrário de Brentano nega a caracterização fundamental do ser como substância, uma vez que, Brentano ainda estava ligado à tradição interpretativa medieval, desconsiderando a dimensão do papel na linguagem, por isto dirá com propriedade que é uma “questão nova” o seu Dasein.
O ser-verdadeiro (a verdade ontológica) como ser-descobridor [Wahrsein (Wahrheit) besagt entdeckend-sein] é o modo de aparição da aletheia, é o que Heidegger dá o nome de desvelar, pegando-o ao pé da letra (mas traduzido, o que já é uma interpretação):
“O enunciado é verdadeiro significa: ele descobre o ente em si mesmo. Ele enuncia, indica, “deixa ver” (apophansis) o ente em seu ser e estar descoberto. O ser-verdadeiro (verdade) do enunciado deve ser entendido no sentido de ser-descobridor.” (HEIDEGGER, 2009, p. 289)
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. 4ª ed. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: São Paulo, 2009.
A pandemia e o Areté
Areté era para os gregos um conjunto de virtudes que deviam ser exercitados para evitar uma crise ainda maior na democracia grega.
Embora esteja ligada a virtude moral, no sentido grego é claro, duas características da areté são necessárias neste momento da pandemia: a prudência e adaptação perfeita.
As condições da pandemia exigirá de todos uma adaptação, os números de infectados e mortos evoluem numa curva estável, porém em números absolutos significa um aumento diário na casa dos milhares de mortos, e milhões de infectados, os cuidados devem se tomados e significa uma adaptação a situação atual, um novo normal incerto virá , o que vivemos agora é uma adaptação a uma situação de exceção.
A prudência deve estar em nossa mente, é uma situação de limitações, porém se levada a sério torna o dia-a-dia menos tenso, também as autoridades de saúde e políticas devem tomar cuidados ao adotar as vacinas, além da saúde existem questões políticas e interesses econômicos envolvidos, e novamente a saúde deve ter prioridade, toda prudência na adoção da vacina será necessária.
A grande razão de termos dificuldades em cumprir regras, e também ter sensibilidade e respeito ao cumpri-las é que as virtudes não estão na moda, a moda é a plena liberdade, e não ela nunca é possível por razões de leis e regras sociais de boa convivência, em período de um estado completamente excepcional exige de todos atitudes ainda mais disciplinadas, de higiene, de distanciamento social e de delicadezas.
A solidariedade é outro valor que deve voltar a moda porque muitas pessoas precisaram de nossa compreensão para poderem ter sua sobrevivência garantida, não faltam campanhas e atitudes é verdade, porém será necessário um esforço ainda maior para que realmente todos tenham o mínimo de dignidade para viver.
Os gregos que construíram o primeiro modelo de polis, podem nos ajudar a corrigir valores que a cultura contemporânea corrompeu, por isto, durante toda a semana que passou tratamos deste tema, prudência e adaptação exigem esforço para que o drama da pandemia não seja um flagelo ainda pior.
A mãe do Senhor e a tragédia grega
A tragédia grega Édipo Rei foi analisada pelo poeta Hölderlin, onde usa o termo aórgico para a busca que Édipo faz para saber que é, uma vez que fora doado a um pastor pelo pai Laio para cria-lo, para evitar a tragédia prevista pelo oráculo de Delfos, e para completar a tragédia Édipo acaba por desposar a própria mãe.
O termo aórgico aqui é usado para entender a corrupção da natureza humana, e pode ter um sentido novo a cada nova tragédia humana, é o sentido de Hölderlin ao dizer que “onde há medo há salvação”, devemos temer não só a pandemia que já é um desastre, mas o que pode vir de desumano e aórgico após esta tragédia.
Não faltam apocalípticos, no entanto o interessante seria pensar o além da tragédia e inverter o papel de Jocasta para uma mãe que defende e quer seus filhos são e salvos, e assim numa reinvenção humana olhássemos não para Eva da criação humana, mas para Maria que deu à luz ao divino filho.
Não é só o preconceito religioso que desvia deste sentido profundo da fecundidade e da maternidade humana, é a relevância do papel da mulher ao segundo plano, a a análise de Hölderlin envolve os paradoxos que comumente constituem o trágico, como o humano e o divino, e a tarefa poética da modernidade como uma tarefa possível para toda e qualquer poesia, assim seu plano cultural não pode eliminar o trágico, mas deve também incluir o divino.
É esta misoginia do humano ao divino que nega todo e qualquer papel da mulher, Maria deveria ser tema apenas religioso, mas também o divino ligado ao trágico, a Pietá ainda que lembrada e revisitada por tantos autores, esconde o papel da mãe desolada diante do filho desfalecido, também Salvador Dali em seu quadro Christus Hypercubus coloca uma figura feminina ao pés do quadridimensional Christus, inspirada em sua esposa.
Aos cristão ignora-se a passagem bíblica do evangelista Lucas (Lc 1,43): “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar “, e o Senhor neste caso não é apenas o filho divino-humano que nascerá de Maria, mas também o Deus Senhor de Maria e Isabel, que diz isto “cheia do Espírito Santo” (Lc 1,41), assim a relação é trinitária e aórgica, afinal o acontecimento natalino está envolto do mistério das leis do universo que sobre ela agiram.
Em meio a pandemia seria extraordinário se a mesma mãe da Pietá estive com a humanidade em seu colo (matris in gremio) e pudesse numa inspiração trágica e divina socorrer a humanidade que desfalece e vê um futuro cada vez mais sombrio a frente, os mistério de Medjugorje e Garabandal (aparições misteriosas) podem não ser apenas fantasias de crianças (hoje todos adultos), mas a própria revelação divina sobre o trágico humano, quem dera seja verdade, onde há medo, há salvação.
Divisão da cultura grega e a judaico-cristã
Foi Karl Popper que chamou a atenção para a origem do iluminismo moderno, assim não é possível uma crítica ao idealismo e empirismo iluminismo contemporâneos sem uma releitura atenta da história do pensamento ocidental.
Primeiro porque é a história do pensamento, grande parte da noite civilizatória está na crise do pensamento, alerta Morin, e também Marx ao fazer a Crítica em Teses sobre Feuerbach (1845) apontou na verdade ao idealismo presente no cristianismo moderno, porém a raiz judaico-cristã é outra, a divisão se dá em dois pontos da história a libertação pelos Macabeus (167 a.C. – 37 a.C.) e as incursões do apóstolo Paulo.
Voltando ao iluminismo pré-socrático, raiz do pensamento ocidental, Popper fez uma incursão pelos três maiores filósofos deste período Xenófanes, Parmênides e Heráclito: “maior e mais inventivo período da filosofia grega”. O autor constata que a “aventura do racionalismo crítico grego”, e identifica um princípio de crise já em Aristóteles que após desenvolver sua episteme: “matou a ciência crítica, para a qual ele mesmo fez uma contribuição capital.”,
Conforme desenvolve Popper “foi essa concepção de conhecimento demonstrável, apresentada por Aristóteles, que eclipsou a atitude crítica desenvolvida pelos pré-socráticos, e assim toda a herança moderna desta “lógica” demonstrável, porém admitindo-se o desenvolvimento de Popper como este iluminismo tendo raízes ontológicas (e não lógicas), a famosa máxima de Parmênides: “o ser é e o não ser não é”, não havendo terceira hipótese além da lógica dual e um terceiro incluído, além do clássico terceiro excluído, não há terceira hipótese T (na figura).
Também no cristianismo há uma terceira pessoa, na relação entre Pai e Filho há o Espírito Santo, e não é só espírito.
Somente no século XX com a física quântica formulando a hipótese já comprovada de um terceiro estado da matéria chamando de “tunelamento”, e a proposta de Barsarab Nicolescu do terceiro incluído, é que pode-se pensar em um ser e não ser simultâneos.
Não se trata de afirmar o paradoxal da existência de algo e seu contrário, haveria uma anulação recíproca evidente, não haveria nenhuma possibilidade de previsões e a própria abordagem científica do mundo seria colapsada, o que a Física Quântica admite, e nisto se fundamenta Barsarab, é que existem inúmeras conexões imutáveis sobre as quais se pode realizar uma experiência ou interpretar os resultados, é ao mesmo tempo o “princípio da incerteza” de Heisenberg e o método da “falseabilidade” de Popper.
Ela não abole a lógica do Sim e Não de Parmênides e Aristóteles, apenas admite uma terceira hipótese, as consequências filosóficas, sociais e políticas são evidentes, a científica é o que foi formulado como transdisciplina-ridade, enquanto estamos confinando a uma teoria disciplinar especializada a terceira hipótese parece infundada ou inexistente, se olhar de um outro ângulo ela aparece, porém o idealismo reduziu este olhar e tornou-o especialista.
A cultura jadaico-cristã também se viu reduzida e confundida com este simplismo, e com isto tornou-se idealista também, apesar de uma origem diferente.
O pensamento complexo de Edgar Morin vai na mesma direção, mas deixemos isto para o próximo post.
POPPER, K. O mundo de Parmênides: o iluminismo pré-socratico. Tradução: Roberto Leal Ferreira. SP: UNESP, 2014.
A escatologia do bem
Assim como qualquer cosmovisão tem alguma alegoria para o princípio e fim, no caso da cristã o Genesis e o Céu e Inferno, e outras propõe que nascemos de plantas ou animais, ou que voltamos a vida através da reencarnação, o bem possui sua escatologia, enquanto o mal uma “estrutura” simbólica.
Não é definição de visões religiosas apenas, também na filosofia clássica Platão na República e Aristóteles na Ética a Nicômaco trataram da questão e já fizemos alguns posts aqui, porém foi Demócrito que definiu de maneira mais próxima a nossa atual, ao dizer que o bem depende do desejo interior do homem, o homem bom não apenas pratica o bem, mas o deseja sempre.
Assim é na história humana também, sem determinismo ou romantismo histórico caminhamos para o bem se exercitamos a partir do interior de cada homem, mas praticando socialmente, aquilo que os gregos chamaram de “virtude”, mas também temos o ciclo vicioso do mal.
O ciclo vicioso do mal leva a uma “crise” do bem, o mal simbólico pode se estruturar de tal forma que determinada estrutura social pode levar a um fim, pode ser o fim de uma época que é muito trágico, mas pode também levar a uma crise civilizatória grave se não se encontra uma saída.
A humanidade sempre encontrou saídas, isto dá esperança, porém as tragédias fazem parte da mudança, e a gravidade da tragédia depende da resiliência do bem, embora frágil é ele que pode indicar o caminho novo, uma saída para a cidadania terrena, para o futuro civilizatória humano.
A leitura bíblica indica três metáforas para a escatologia do bem, e compara o “reino dos céus” (Mt 13, 24-43) com o plantio do joio e do trigo que crescem e que só no final escatológica deve ser colhido e separado do mal (o joio), a segunda parábola o grão de mostarda, a menor das sementes, que dá uma arvore bela e frondosa onde “os passarinhos vem fazer seus ninhos”, e a terceira é uma receita de pão, uma mulher mistura três porções de farinha.
A terceira “parábola” a mulher mistura três porções de farinha, uma parte só deve ser fermentada, seriam aqueles que tem a virtude do bem e ela deve ser praticada de forma a produzir boa fermentação no resto da massa, as outras duas porções, então o fermento é o bem.
O final da leitura diz que um pai tira de seus tesouros coisas boas (a parte fermentada boa) e más então sempre tem-se um “mal simbólico”, é preciso saber se parte boa foi “fermentada”.
O mal civilizatório, além do simbólico
Já comentamos em um post o “Mal simbólico”, obra de Paul Ricoeur que deve ser lida em conjunto com “O mal: um desafio à filosofia e a teologia e“, o mal simbólico existe e pode se tornar estrutural, porém numa boa leitura da filosofia significa tornar-se um vício pessoal ou social, assim como a virtude também.
O filósofo Aristóteles diz que a virtude se adquire pelo hábito, se pratica de novo e de novo, até que ela torna-se atitude natural ou social se muitas pessoas a praticam, quando os valores sociais e humanos se confundem o mal se difunde, e assim uma sociedade ou civilização entra em ruina.
Voltar as virtudes é voltar as nossas raízes como seres humanos, por isto não se trata de maniqueísmo, uma luta perene entre bem e mal, porém se o mal simbólico se instala é preciso que retornemos a nossa raiz mais profunda como seres humanos, o fato que quase toda a filosofia contemporânea reconhece um mal estar civilizatório, na psicologia Freud (Freud, 1969) e de Jung (JUNG, 1988), até contemporâneos como Sloterdijk e Byung Chull Han, quase todos também nesta pandemia alertam para atitudes numa crise civilizatória.
Numa leitura rápida de Freud, com a possibilidade de ser um tanto superficial, o mal estar da civilização está igualado ao da cultura, afirma o autor que existe uma dicotomia entre os impulsos pulsionais e a civilização, ou seja, os indivíduos e a sociedade, assim o bem da civilização o indivíduo manifesta em pulsões e vive um mal-estar.
Já Jung aponta para a massificação do homem ocidental, esmagado pelo Estado, e sobre a defesa que cada um tem buscando através da própria personalidade ou da atitude religiosa.
A obra de Morin desde a década de 70 está toda vinculada a ideia de um novo humanismo, e este texto específico sobre o assunto, ele aprofunda o que considera uma ética necessária a este retorno ao humanismo, sua obra essencialmente aponta para os fundamentos perdidos, a instituição do método complexo e uma visão de uma cidadania planetária, nesta texto sobre a responsabilidade pessoal de cada um.
O que Morin, Freud e Jung apontam é a responsabilidade pessoal não pode e não deve depositar nas estruturas sociais, sejam boas ou más, as responsabilidades de cada um.
FREUD, S. O mal-Estar na civilização (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
JUNG, C.G. Presente e futuro. Petrópolis, Vozes, 1988 (tradução Márcia Cavalcanti).
MORIN, E. “A ética do sujeito responsável”. In: Ética, solidariedade e complexidade. São Paulo, Palas Athena, 1998.
O razão e o mal
Para demonstrar duas verdades, Agostinho de Hipona escreveu longas páginas no seu livro “Sobre o Livre-Arbítrio”, praticamente todo o livro II (do capítulo 3 ao 17), onde conclui que todos os bens procedem de Deus, inclusive o livre-arbítrio, e questiona se este bem deveria ser dado ao homem.
Tanto Agostinho (De Trinitate) como Boécio (Opuscula) defenderam a cooperação entre fé e razão, porém será na Alta Idade Média que Tomás de Aquino e também Duns Scotto, em correntes diferentes (realista e nominalista) defenderão que o uso da razão é complemento da fé.
Enquanto Tomás de Aquino vai defender a distinção entre Ser e essência, Scotus vai elaborar a lei da analogia, que afirma que não podemos conceber o que é ser algo sem conceber este algo existindo realmente, assim uma coisa que existe (si est) é o que ela é (qui est).
O importante tanto em Tomás de Aquino quanto em Duns Scotto é a complementaridade entre fé e razão, assim a ideia que Descartes, Kant, Leibniz e Hobbes sejam herdeiras dele é muito simplista, o que vai acontecer é a substituição dos argumentos da fé, por argumentos racionais, o fato que sejam importantes, isto deve ser estudado a partir dos aspectos ontológicos.
Assim, o argumento ontológico foi retomado por Franz Brentano, incorretamente chamado de neo tomista, pois apenas retoma uma sub categoria do “ser” que é a consciência, a hermenêutica e a fenomenologia que é retomada a partir dele, e terá desenvolvimento em Husserl, Heidegger e Gadamer é uma filosofia ontológica, tendo em comum a questão metafísica do Ser.
Hanna Arendt e Paul Ricoeur que vem destas correntes retomam a questão do “mal”, mas as questões da razão e toda a literatura moderna é analisada (Descartes, Kant e Hegel).