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Arquivo para a ‘Real’ Categoria

A luta do bem contra o mal, fragilidades do bem

15 jul

O mal em Agostinho de Hipona no livro VII das Confissões, é ausência de bem, assim como todo o universo é ordenado, ainda que agora descobrimos um universo com energia e massa escura, buracos negros, seminovas e galáxias sumindo e aparecendo, e muitas leis novas na astrofísica, ainda assim, há uma hierarquia, onde algumas coisas sobressaem as outras, e é para isto que Agostinho chamou a atenção, e já havia em Agostinho a questão do livre-arbítrio.

Mas uma lição dura mesmo para religiosos como Agostinho, que abandonou a filosofia de maniqueu, é a luta do bem contra o mal, e isto ainda domina parte do dualismo filosófico, onde ser inferior não é ser do mal, há coisas boas inferiores e coisas más superiores, assim o importante é a perda de sentido do que é bom ou mal, aquilo que Hanna Arendt chamou de “A banalidade do mal” (Companhia das Letras, 1999), assim alguém pode fazer algo “inferior” sem ser “mal”.

Assim há dicotomia entre a “luta” pelo bem e a “guerra”, trabalhar e lutar pela vida, ou eliminar o adversário.

Aqueles que querem dar a vida o puro deleite, ou que afirmam que há sentido numa vida bem vivida é o de sermos “produtivos” e “ativos”, inspirados no mitos como um QI superior ou herança fortuita (fortuna no sentido grego é diferente, é destino), mesmo que isto seja feito por meios opressores, indo até o argumento racial, que é o mais repugnante de todos, mas de onde vem estes mitos da “guerra”, do “vencedor” que se confunde com o opressor? 

Um dos grandes mitos que surgem desde a antiguidade é Ulisses de Odisséia e Ilíada (cantos VIII da Odisseia e IX de Ilíada), que significam um símbolo da capacidade do homem de superar as adversidades, embora exista o personagem Odisseu (o nome em grego de Ulisses), seria nascido em Ítaca, filho do rei Laerte, que reinou em Anticléia.

Embora Ulisses de James Joyce escrito de 1914 a 1921, fala de um personagem Leopold Blum, considerado pelo autor um homem moderno que é ao mesmo tempo forte e fraco, cauteloso e precipitado, herói e covarde, numa tentativa de criar um ser humano representante da humanidade, no entanto, é na verdade o herói solitário moderno, um dom Quixote requintado.

A contextualização do herói épico grego e o “herói” moderno são, entretanto, diferentes, assim para ler Ulisses de Joyce é necessário quase um roteiro, que inclusive foram feitos alguns.

Foi o psicólogo Carl Jung que chamou a atenção para o aspecto de “monólogo” do Ulisses de Joyce, embora pareça um homem “comum”, é um homem só e sua “luta”, alertou Jung: “O que é tão assustador em Ulisses é o fato de, atrás de mil véus, nada ficar escondido; de não estar virado nem para a mente nem para o mundo, mas, tão frio quanto a lua vista do espaço cósmico, permite que o drama do crescimento, do ser e da decadência siga o seu curso”, eis um mito moderno.

Os heróis que apareceram na pandemia, não são heróis de “guerra” nem mitos imortais, eles próprios não estão imunes da pandemia e convivem com o medo, e até o isolamento familiar, o que deveriam pensar é a vida que vale a pena ser vivida por todos, pelo planeta e pela saúde.

JUNG, Carl Gustav. Ulysses: A Monologue, UK: Haskel House, 1977.

 

Olhar sem ver, ouvir sem entender

10 jul

A pressa, a vida agitada, a ansiedade nos tornaram insensíveis no dia a dia, no plano social reina a teimosa, onde o terceiro incluído não tem vez, segue a lógica do Verdade e Falso, que é válida para o mundo dos equipamentos digitais, mas não deveria ser na lógica do pensamento humano.

O terceiro incluído de Barsarab e Stefan Lupascu, está também nos princípios quânticos e aos poucos vai chegando aos dispositivos físicos digitais (agora quânticos), e já se realizaram algumas experiências avançadas de teletransporte (veja o artigo), que expande o conceito para o espaço, pode-se ir de A para B, sem passar pelo terceiro intermediário, que introduz a descontinuidade.

Mas a lógica social, humana e política continua binária, maniqueísta e leva paulatinamente a um confronto num momento que as forças sociais deveriam se unir pelo inimigo comum que é o vírus e as consequenciais que ele trará socialmente, lembramos que da gripe espanhola seguiu-se as duas guerras, apesar de inúmeros avisos de pensadores e filósofos sensatos, a místicos.

Como diz Morin (veja a palestra) parece que caminhamos como sonâmbulos às escuras, o processo que poderia corresponder a uma solidariedade mundial caminha ao contrário, queremos incluir mas excluímos, amamos só os iguais, o conhecimento tornou-se obscuro.

Seguem as palavras bíblicas, como está em Isaias (6: 9): “Havereis de ouvir, sem nada entender, havereis de olhar, sem nada ver … porque o coração deste povo se tornou insensível”, e mesmo em tempos de dificuldades mundiais parece que a insensatez perdura.

Diz o evangelista Mateus sobre seu tempo, mas que também serve para o momento atual (Mt 13: 16-17) Felizes sois vós, porque vossos olhos veem e vossos ouvidos ouvem. Em verdade vos digo, muitos profetas e justos desejaram ver o que vedes, e não viram, desejaram ouvir o que ouvis, e não ouviram”, mas pode-se ainda abrir o ouvido e mudar a rota.

É tempo de conscientização mais profunda para quem deseja mudanças, e de ouvir de modo mais atendo os sinais dos tempos para os que creem e sabem o reino de Deus na terra há de vir.

 

O velamento do conhecimento, noite do pensamento

09 jul

A Carta da Transdisciplinaridade de Arrábida, escrita pelo físico Nicolescu Barsarabi, o serigrafista português Lima de Freitas e Edgar Morin, aponta o processo (anterior a Web), onde a excessiva especialização e um empobrecimento do Ser criaram um velamento do pensamento, diz a carta:

“ …a ruptura contemporânea entre um saber cada vez mais acumulativo e um ser interior cada vez mais empobrecido leva à ascensão de um novo obscurantismo, cujas consequências sobre o plano individual e social são incalculáveis.” (Arrábida, Portugal, 1994).

O problema então é como criar um saber que une e uma cosmovisão que amplie o espírito humano empobrecido e embrutecido, segundo a receita do próprio Morin: “é preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une”.

Toda a polarização e barreiras entre pensamentos distintos são a raiz onde o diálogo é ignorado, mesmo que as vezes afirmado, o fechamento semântico do pensamento, seja quais forem os princípios e muitos vezes morais, religiosos e até culturais são importantes, devem ultrapassar os pré-conceitos e ir ao encontro do positivo no Outro.

Diz a Carta de Arrábida no artigo 14: “A Abertura comporta a aceitação do desconhecimento, do inesperado e do imprevisível. A tolerância é o reconhecimento do direito às ideias e verdades contrárias as nossas”, este é o sentido de substituir um pensamento “que isola e separa” por outro que “distingue e une”, ter diferença não significa isolar ou mesmo separar.

É a ideia totalitária da verdade única, mesmo que religiosa, pragmática ou científica que muitas vezes isola e não une, em diálogos fundamentados sempre há elementos novos a serem considerados e poucas vezes eles são devidamente ouvidos e respeitados.

O físico Barsarab Nicolescu, um dos signatários da Carta de Arrábida, em seu próprio Manifesto da Transdisciplinaridade, a respeito da física quântica escreveu: “… de onde vem esta cegueira? De onde vem este desejo perpétuo de fazer o novo com o antigo? A novidade irredutível da visão quântica continua pertencendo a uma pequena elite de cientistas de ponta”, embora a realidade física a comprove e surpreenda.

Disse na referida carta sobre a “realidade”, “Em nosso século, Husserl e alguns outros pesquisadores, num esforço de questionamento a respeito dos fundamentos da ciência, descobriram a existência dos diferentes níveis de percepção da Realidade pelo sujeito observador”, mais do que isto o observador é parte do experimento, do todo, e não é neutro.

Toda a nossa lógica e as nossas ações se baseiam em três axiomas: O axioma da identidade: A é A, O axioma da não-contradição: A não é não-A;  e o terceiro é chamado axioma do terceiro excluído: não existe um terceiro termo T (T de “terceiro incluído”) que é ao mesmo tempo A e não-A.

O que Nicolescu afirma é o que aconteceria se tornássemos o terceiro incluído, foi o que fez Stefan Lupascu (1900-1988) ao criar a lógica do terceiro incluído (tertium non datur), incluindo o estado-T que não é nem “atual”  nem “potencial”, substituem a lógica clássica do “verdadeiro” ou “falso”, e cria um nível mais generalizado que inclui a física, a epistemologia e o que é “consciência”.

NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. Triom : São Paulo, 1999. PDF

 

Homenagem a Edgar Morin, 99 anos

08 jul

Dia 08 de julho de 2020 Edgar Morin completa 99 anos, com uma lucidez impressionante, descreveu recentemente a pandemia atual como: “Temos que aprender a aceitá-las e a viver com elas, enquanto nossa civilização instalou em nós a necessidade de certezas cada vez maiores sobre o futuro, muitas vezes ilusórias, às vezes frívolas”, a mesma frivolidade que afirma Peter Sloterdijk: “Nessa esfera frívola, pensávamos ser capazes de controlar a natureza com tecnologia sofisticada, mas o vírus nos deixou de joelhos. Nossa maneira de estar no mundo mudará?”.

De origem judaica sefardita (judeus que se estabeleceram na península ibérica), com o nome original de Edgar Nahoum, nasceu em 08 de julho de 1921 em Paris, seu pai Vidal Nahoum era comerciante originário da Salônica  (a antiga Tessalônica), e sua mãe Luna Beressi, faleceu quando tinha 10 anos, adotou o codinome Morin durante a luta da resistência francesa e permaneceu.

Casou-se em 1978 com Edwige Lannegrace, a quem dedicou o livro Edwige, a Inseparável (2009), após sua morte em 2008, sobre ele, ela dizia uma frase de Montaigne: “Era ele, era eu”.

É atualmente casado com a socióloga marroquina Sabah Abouessalam de 61 anos.

Escreveu 1956, Le Cinéma ou l´Homme Imaginaire, Minuit, Paris. Em português: O Cinema ou o Homem Imaginário. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 1997, antes havia escrito Ano Zero da Alemanha (1946) e o Homem e a Morte (1951).

Entre outros livros, o segundo livro de grande impacto é O Paradigma Perdido – para uma nova Antropologia, Zahar, Brasil, 1979. (edição francesa de 1973).

Mas sua grande obra será os seis volumes do Método 1, o primeiro “A natureza da natureza” publicando em 1977, o segundo o Método 2, “A vida da vida” (1980), o Método 3 “O conhecimento do conhecimento” (1986), o Método 4 “As ideias: habitat, vida, costumes e organização” (1991), O Método 5 – a humanidade da humanidade: a identidade humana (2001) e o Método 6: a Ética (2004), os anos adotados são das edições originais francesas.

Publicou no total mais de 30 livros, em 1983 realizou um debate em Lisboa onde colocava “O problema epistemológico da complexidade” que tornou-se livro em 1985 publicado pela editora Europa América portuguesa.

Suas ideias centrais além do problema da complexidade são o retorno ao humano (que chamada de paradigma perdido), o pensamento transdisciplinar presente em quase toda sua obra e foi signatário da Carta da Transdisciplinaridade de Arrábida pelo pintor serigrafista Lima de Freitas, por ele, o físico Nicolescu Barsarabi, escrito em sintético 15 artigos, onde destaca-se:

“ …a ruptura contemporânea entre um saber cada vez mais acumulativo e um ser interior cada vez mais empobrecido leva à ascensão de um novo obscurantismo, cujas consequências sobre o plano individual e social são incalculáveis.” (Arrábida, Portugal, 1994).

Em 1985 escreveu “O problema epistemológico da complexidade” (Europa America, 1985) que foi pensado a partir de um debate realizado em Lisboa, em dezembro de 1983.

A essência de seu pensamento sobre a complexidade pode ser pensada em três conceitos novos, entre eles: o operador dialógico (entendido diferente do operador dialético), o operador recursivo (que significa entender as consequências dos atos, numa relação causa-efeito contínua porque o efeito produz nova causa) e o operador hologramáticos (a parte está no todo e o todo está na parte, então não separar a parte do todo).

Assim devemos unir coisas separadas, a saber: razão e emoção, sensível e inteligível, real e imaginário, razão e mitos, e, ciência e arte, outra coisa essencial é considerar que somos 100% natureza e 100% cultura, o velho paradigma natureza X cultura que a filosofia pergunta sobre o que somos, desde os contratualistas, passando pelos evolucionistas até os sócio-marxistas (escreveu A minha esquerda), Morin responde de maneira nova (de Pena-Veiga: O despertar ecológico: Edgar Morin e a ecologia complexa).

Sobre nosso futuro ele tem muitas indagações, a palestra a seguir explicar este momento dramático, que a pandemia pode demonstrar que é assim que devemos percebê-lo.

https://www.youtube.com/watch?v=V3t7UFTpDHE

 

Saberes necessários para o futuro

07 jul

Foi Edgar Morin quem levantou de modo magistral o véu sobre o conhecimento, seus erros e ilusões, para em seguida afirmar o conhecimento em seus princípios, que é ampliado em outro livro que fala dos “saberes globais e saberes locais: o olhar transdisciplinar” (2008).

“Os sete saberes necessários à educação do futuro” (Morin, 2000) afirma este paradoxo que em busca do conhecimento embarcamos em ilusões e erros, afirma no primeiro capítulo, enquanto no segundo apresenta a lacuna que o conhecimento ensina é “não pertinente” ao aluno, isto é, o fato que ele mostra dentro de um recorte disciplinar aquilo que deveria ser apresentado como o todo.

O terceiro saber é indicar a identidade humana, comentário a parte é curioso que se fale tanto da identidade sem falar do complexo social em que vivemos como uma “espécie” que deve se identificar como tal (daí a identidade), talvez o grande paradigma do humanismo, hoje em questão.

Isto irá desembocar no capítulo 4 que é a Identidade terrena, que reside na importância de compreender que as disciplinas (áreas das especialidades) devem convergir para a condição humana, e ela leva a compreensão humana, uma vez que na escola se deve ensinar como “compreender uns aos outros”.

O quinto saber é refere-se a como lidar com as incertezas, os conhecimentos podem parecer um grande paradoxo quando lidamos com mistérios, uma vez que a instituição escolar se dedica somente a lidar com “certezas” conceituais e científicas, e a vida é sempre uma surpresa.

O sexto capítulo (ou 6º. saber) envolve a compreensão, que vem da condição terrena, o processo de globalização começou a partir da colonização da américa no século XVI e teve consequências complexas (ideológicas, econômicas, sociais, etc.) e isto deve nos levar a condição planetária.

O sétimo capítulo envolve a ética do gênero humano, ele nomeia como uma antropo-ética (Sloterdijk vai além e diz necessária uma antropotécnica, mas foge neste escopo), a importância da cidadania em sociedade (em Terra-pátria vai além e propõe uma cidadania planetária) onde uma consciência social se faz necessária.

Amanhã ele completará 99 anos e pensamos num post especial, a este lúcido educador e pensador.

Os sete saberes necessários à educação do futuro / Edgar Morin ; tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya ; revisão técnica de Edgard de Assis Carvalho. – 2. ed. – São Paulo : Cortez ; Brasília, DF : UNESCO, 2000. (Disponível em pdf)

 

A retomada ontológica e o esquecimento trinitário

29 mai

A ideia de uma substância espiritual absoluta, infinita, única e eterna (veja o post) longe de ser uma ideia de Deus, longe de ser o desvelamento da Trindade Santa, é um esquema idealista da racionalidade para um Deus abstrato, porém compatível com o hegelianismo, o deus idealista.

A crítica severa de Sloterdijk ao humanismo faz sentido agora ainda mais com as perspectiva do pós-pandemia, colocando a “vontade de poder” das duas guerras e um possível cenário futuro, como “síntese do humanismo e do bestialismo” (Sloterdijk, 2000), é claro temos outras possibilidades, as variadas teses ideológicas que muitos apostam ou uma terceira excluída: a fraternidade planetária e uma via solidária.

Assim como a retomada ontológica propôs uma lógica e uma epistemologia nova, que vem da epoché (colocar todos conceitos entre parêntesis) husserliana, junto a uma teologia nova, esta sim trinitária, onde existe uma terceira pessoa na Trindade, que é o Espírito Santo, mas não é simples.

O teólogo cristão e católico Karl Rahner escrevia sobre o “esquecimento trinitário” (Rahner, 1961), mesmo antes do Concílio Vaticano II (1962-1965), que marcou uma virada no pensamento católico, primeiro concílio ecumênico que gerou algumas polêmicas e que até hoje não é bem aplicado,

O Concílio Vaticano II marcou uma profunda mudança na relação da igreja com a sociedade, devia abrir uma nova perspectiva da participação dos popular (dos leigos), uma nova visão da missão da igreja e em especial apresentação da atualização e inserção da igreja no seu tempo com vários aspectos litúrgicos e pastorais.

Muitos cristãos em geral entendem bem o Pai e o Filho, mas o Espírito Santo é um mistério, não síntese e nem apenas a relação com Deus Pai (Aquele que ninguém viu) e nem o Jesus (O Deus visível), o Deus vivo, histórico, mas sem deixar de divino e o Espírito Santo.

A teologia clássica tratava o “mistério” da Trindade com a ideia de uma “substância espiritual absoluta, infinita, única e eterna”, assim Deus seria uma única substância, essência ou natureza, explicado como três subsistemas e pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo, nestas ideias do sistema hegeliano (e de Feuerbach) se encaixam bem.

Já a compreensão do Ser como ato e potência (própria de Tomás de Aquino), e potência assemelha-se ao virtual, coloca as pessoas divinas como relação e se integram numa nova síntese que vê Deus como comunhão pericorética* de amor, teólogos de diferentes tendências como von Balthasar, Rahner e Kasper caminharam nesta direção e a questão ontológica é um viés comum. (* mais que relacionamento, interpenetração)

 O Concílio Vaticano segunda já refletia já a virada de uma perspectiva metafísica de uma teologia que prioriza uma compreensão mais histórica, fenomenológica, hermenêutica e existencial da realidade, mais em sintonia com a cosmovisão e a cultura atual. 

A compreensão do ser como ato (tão própria do Aquinate) e das pessoas divinas como relação, se integram numa nova síntese que entende Deus como comunhão pericorética de amor.

A compreensão por outro lado de potência como virtus, possibilidade virtuosa do Amor que é essencial para entender que o pecado é não-amor e não mera oposição maniqueísta do mal.

RAHNER, K. Advertencias sobre el tratado dogmático “de Trinitate”. In: Escritos de Telogía IV, Madrid: Taurus, 1961.

 

O que é espírito e transcendência hegelianos

27 mai

Já fizemos vários posts para explicar que a transcendência de Kant nada mais é que a separação de sujeitos e objetos, porém Hegel completa e sistematiza toda esta filosofia em Fenomenologia do Espírito, obra que influenciou profundamente as filosofias do direito, da história, da estética e da religião, o próprio Marx e muitas correntes que daí derivam, não escaparam disto.

Também já fizemos posts sobre a questão da consciência histórica de Gadamer, crítica as ideias principalmente de Dilthey sobre a história, agora analisemos o “espírito” em Hegel.

Primeiro como o nome diz é uma fenomenologia, portanto não um conjunto de fatos ou mesmo de realidades tangíveis, mas um conjunto de fenômenos colocados sob um certo esquema  (veja ao lado).

Hegel entende a história, a arte, a religião e a própria filosofia como fenômeno objetivo, e como  tal (ou seja, um objeto) está direcionado ao espírito para um autoconhecimento.

Sua capacidade de síntese, fará que sua história da filosofia, com esquemas e elementos específicos sobre a transcendência e a metafísica na filosofia, deem força ao seu pensamento, e a Fenomenologia do Espírito é central para este esquema.

Para entender o que ele pensava como fenômeno, é preciso entender o que ele chama de “consciência natural” que era o que abria caminho para o conhecimento filosófico, e é por ela que vai fazer uma leitura da história da filosofia e assim elaborar o que é conhecimento.

Só para fazer um contraponto, por isso Husserl vai dizer ao contrário, que só existe consciência de “algo”, enquanto Hegel constrói esta categoria como sendo “natural” e nela está a objetividade.

Mas o “natural” de Hegel não é só natural e sim histórico, portanto, sua introdução a um sistema de filosofia, é construído no percurso histórico do pensamento, parece “natural”, mas é sua ideia de filosofia da história.

O que está escondido por trás deste esquema é o que Nietzsche vai chamar de genealogia da moral, mas depois surgiram outras genealogias a viragem linguística a partir de Wittgenstein por exemplo, vai ver os objetos na sua relação com os outros: “também não podemos pensar em nenhum objeto fora da possibilidade de sua ligação com outros” (Wittgenstein, Tractatus, 2.0121).

Para entender o que é Espírito em Hegel, e que influencia profundamente as concepções de artes, história e religião de hoje, são as formas correlacionadas a uma ideia de subjetividade absoluta, portanto “fora” do objeto, e relacionada a ela por um tipo especial de lógica essencial que leve ao conhecimento da realidade, por isto não é um realismo fenomenológico como vê Husserl, está separado da existência na “ontologia” de Hegel (ramo superior do esquema acima).

O espiritual e transcendente em Hegel é “o mais interior, do qual toda a construção do mundo espiritual ascende”, era aquilo que Marx chamava do “céu para a terra” e que ele (Marx) a inverteria, construindo assim uma história da filosofia, e dizia que se tratava de “colocar em ação” a filosofia, porém, a separação de sujeito e objeto permanecerá, assim espiritual é um tipo de Espírito Absoluto da Religião (veja também no esquema).

 

 

 

 

O pós-pandemia e a espiritualidade

26 mai

A vida feita de exercícios que nos levou a “Sociedade do Cansaço” (Byung Chul Han) apesar da pandemia e da quarentena em muitos lugares não parou, acostumados ao ritmo frenético da sociedade moderna, continua-se atrás da ação, da agitação e de preencher o vazio com nada.

Apressados já há os que prognosticam uma sociedade mais fechada em fronteiras, fortalecendo o nacionalismo e o protecionismo nos negócios, os que proclamam uma “nova ordem mundial” (uma nova teoria da conspiração) e os sempre prontos a defender as ideologias: é nossa vez.

Porém assim como a pandemia ninguém previu o que virá está fora das grandes teorias e uma novidade será uma busca de refugio em forças além do humano para suportar as novas e reais novidades que já aconteceram: maior recolhimento em casa e tempo para inspiração e contemplação, uma vida mais pobre ou ao menos mais austera, e, as novas formas de convívio.

Os que apocalípticos da sociedade em rede, redescobriram as novas mídias, porém devido ao atraso ainda o uso é irregular e mais curioso que frutuoso, mas com o tempo amadurecerá, há um hiato sem dúvida que é a educação online e pouco se pensou e se planejou sobre isto.

Porém uma coisa já mudou, algo fizemos com nosso “tempo livre”, fazer a comida da casa, dividir as tarefas cotidianas, olhar com olhos novos as pessoas do convívio próximo e para muitos um novo olhar sobre a natureza e a nossa própria natureza: o complexo fenômeno humano.

Se fizemos grandes teorias do diálogo, agora temos que praticá-la ou ficaremos presos a nossas relações mais próximos, pois ao sair delas enfrentamos um Outro diferente e impensado.

Os que sobreviveram a pandemia, e ela poderá inclusive retornar, a Espanha e a China apresentam novos casos preocupantes, vai requerer de cada e da sociedade uma lição nova: repensar tudo o que tem sido os fundamentos de nossas vidas, inclusive a religiosa, podemos acordar ou não.

Aos convictos do futuro próximo lembro que não previam a pandemia, talvez uma guerra ou uma profecia, ou um caminho histórico irrevogável, um vírus invisível e desconhecido balançou a vida.

 

Entre a essência e o Ser

21 mai

Como o dualismo permanece presente hoje, se concebe a essência por analogia ao Ser, e esta também era a doutrina tomista, ela permaneceu como uma onto-teologia até o século XX, foi preciso todo um percurso da fenomenologia para encontro o Outro, o não-Ser não como contradição, que o fim do dualismo entre Ser e essência iniciasse.

A longa discussão do período medieval entre realistas e nominalistas, tinha como base um termo hoje desconhecido que era a quididade, que significa que coisa a coisa é, desde a hylé grega até os modelos modernos da metafísica de Heidegger, onde a coisa que pode ser material ou não, e também o que pensamos sobre ela, na linha de Husserl só existe consciência de algo, ou da coisa.

Mas existiu um filósofo na idade média, Duns Scotto (1266-1308) que não fazia distinção entre a coisa que existe (si est) e o que ela é (quid est), e teologicamente era complicado pois a tese de Tomás de Aquino (1225-1274) era pela analogia, ou seja, o significado de semelhança entre coisas ou fatos (dicionário Houaiss, 2009, p. 117),  e os religiosos sempre apressados cuidado porque no século XX Duns Scotto foi aceito dentro da doutrina cristã católica, tornando—se beato (João Paulo II o declarou).

A sua teoria do conhecimento usava as duas distinções conhecidas distinctio realis (distinção real) e existe entre dois seres da natureza, e a distinctio rationalis (distinção de razão) que se dá entre dois seres, mas na mente do sujeito que conhece, mas rompe o dualismo ao criar uma terceira possibilidade a distinctio formalis (distinção formal) que se dá no ente percebido e não é nem real e nem na mente.

Assim além de seu discípulo William de Ockham, famoso pelo princípio a simplificação chamado Navalha de Ockham, mas de certa forma Descartes, Leibniz, Hobbes e Kant tiveram sua influência.

Porém a recuperação de Duns Scotto é fundamental para superar o dualismo nominalismo/ realismo e a superação do puro realismo pelo hermenêutica filosófica, e assim também o correspondente moderno do nominalismo que é a viragem linguística faz sentido e abre diálogo.

Não é, portanto, a afirmação do realismo nem do nominalismo, mas o fato que podem dialogar dentro de um círculo hermenêutico é que importa, a recuperação filosófica do nominalismo na viragem linguística, e na fé cristã do nominalismo de Duns Scotto não é sua verdade, mas sua importância para o diálogo filosófico.

Em tempos de pandemia seria muito mais importante a fraternidade de socorrer vítimas, que o debate ainda incerto da ciência e das “crenças” que este ou aquele procedimento é certo, em ambientes hostis quem venceu foi a morte, assim dogmáticos e autoritários só atrapalharam.

 

 

A fenomenologia e as hermenêuticas históricas  

20 mai

Qualquer leitura por mais simples ou complexa que seja envolve uma interpretação,  e em qualquer que seja a cultura do interpretante ela está fundamentada na linguagem, em especial a escrita para povos que ultrapassaram a linguagem oral, assim se fala da interpretação de textos.

É claro que o imaginário e as diversas linguagens, por exemplo, agora as midiáticas, tem uma influência diferenciadora, porém ainda estarão fundadas naquela escolarização primários dos diversos interpretantes e ainda é na escola primária a interpretação de textos.

Já dissemos no post anterior que ela começa com a maiêutica (ato de parir ideias) de Sócrates, não por acaso o nascimento da escola como conhecemos hoje, depois vieram a acadêmica platônica e o liceu aristotélico, o longo período chamado de “translatio studiorum” da baixa e alta idade média, até chegar a prensa de Gutenberg e a escola moderna, vinculada ao iluminismo moderno.

A hermenêutica contemporânea, cujo ponto de partida para diversos autores é Schleiermacher (1768-1834) foi contemporâneo de Hegel, porém com influencia direta de Kant e Fichte, não optou pelo subjetivismo idealista, e como religioso luterano, também fugiu da ortodoxia católica.

Porém a hermenêutica vai encontrar outro solo em Franz Brentano, que até romper com a visão escolástica católica (ele foi inclusive um clérigo), em 1871, ele faz uma reinterpretação da intencionalidade escolástica-aristotélica “a in-existência intencional” (a referência é de Safranski) distinguindo dois modos de ser: o esse naturale, ser natural ou real situado fora independente do sujeito que o percebe, e o esse intentionale, o ser mental ou intencional dos objetos que existem imanente ao sujeito que o conhece.

Esta digressão filosófica é importante para entender que em Franz Brentano e depois em Husserl, a hermenêutica passou por uma mudança profunda, conservando sua raiz ontológica, mantendo assim a relação a um conteúdo, porém mergulha na questão mental ou psicológica.

Husserl aluno de Franz Brentano vai provocar outra mudança na hermenêutica agora na direção da crise epistemológica da ciência em meados no início do século XX, Husserl responde com uma ruptura ao dualismo kantiano entre o objeto e o sujeito cognoscente, com uma pergunta: “eu existo, logo todo o não eu é simples fenômeno e se dissolve em nexos fenomenais?” (HUSSERL, 1992, p. 43).

A evolução deste pensamento passará por Heidegger, aluno de Husserl, que em o Ser e Tempo (1986), explicando que estas elaborações desde Platão e Aristóteles estavam presas aos fenômenos naturais: “A representação dominante no Ocidente da totalidade da natureza (o mundo) foi, até ao século XVII, determinada pela filosofia platónica e aristotélica …” (pag. 86) e que agora a questão do Ser deveria ser retomada, é assim um passo grande na hermenêutica filosófica.

A maturidade deste pensamento, elaborando o método do círculo hermenêutico é desenvolvida por Gadamer, para quem interpretar “… não é tomar conhecimento do que se compreendeu, mas elaborar possibilidades projetadas na compreensão”, é assim uma abertura nos pré-conceitos.

Referências

GADAMER, H.-G. Verdade e Método. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. São Paulo: Vozes, 1986.

HEIDEGGER, M. Que é uma coisa? Lisboa: Edições 70, 1987. (pdf em inglês)

HUSSERL, E. A ideia da fenomenologia. Lisboa: Ediçoes 70, 1992