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Escatologia e o ser-para-a-morte
De onde viemos e para onde vamos, cada cultura tem uma escatologia própria, a modernidade e em especial o idealismo se caracteriza por desprezar a ideia de infinito, de mistério e consequentemente da morte, vista como fatalidade ou simples finitude da vida, aos que veem pessimismo em Heidegger é preciso analisar se há coerência escatológica (origem, vida e fim).
Da filosofia de Lévinas (Totalidade e Infinito) à poesia de Goethe (Fausto), do romance de Tolstói (A morte de Ivan Ilitch) à ontologia de Heidegger (Ser e Tempo) a morte é mais que um conceito ou um tema, é a própria indagação do ser, em Lévinas o infinito é próprio do ser transcendente enquanto transcendente, o infinito é o absolutamente outro, assim não se podem pensar o infinito, o transcendente, o Estrangeiro (em Lévinas) como sendo objeto, mas como Outro que não é outra coisa senão Ser.
O idealismo ao querer viver sempre acima do real, deseja ignorar ou “transcender” a morte (no sentido falso de objeto) e por isso tergiversa sobre ela, mas diante das tragédias de uma pandemia, de uma crise que pode tornar-se civilizatória, ele imobiliza-se ou parte para o psicologismo, neste campo também há um tratamento fenomenológico adequado, afinal Franz Brentano pai da psicologia social reinaugura na modernidade a fenomenologia, a psiquiatra Kübler-Ross (Sobre a morte e o morrer, Martins Fontes, 2002) estudou aquele estágio da doença em que o paciente se pergunta “Porque eu” e aprofundou o tema.
A análise em Heidegger, para não ser superficial, deve abordar três temas correlatos: Cuidado, Impessoalidade e silêncio, senão é a análise que chamamos de epistemologia ou escatologia incompletas, uma vez que elas se deparam apenas com o pessimismo diante da morte, nem a boa psicologia a vê assim.
Antes um esclarecimento, o termo ontológico se refere ao questionar o fato de existir, o Dasein (ser-aí) não apenas é, mas tem percepção que é, para a fenomenologia assim não se pensa primeiro em si e depois no mundo, pois as duas coisas são indissociáveis, e assim é uma epistemologia ontológica.
Para ajudar o que é este ser-aí, precisamos aprofundar o que Heidegger chama de superação do mundo fático, e assim quanto ao super o mundo da impessoalidade, ele consegue se desvencilhar de uma razão estruturada dotada de sentido, de uma maneira já dada do existir e do Ser.
Safranski, um biografo autorizado de Heidegger, a interpreta assim: “A angústia não tolera outro deus além de si, e isola em dois sentidos. Ela rompe a relação com o outro, e faz o indivíduo isolado cair fora das relações de familiaridade com o mundo”, ela é sentida pela “queda”, pelo horizonte sombrio.
Assim na impessoalidade abandona a ideia de “todos morrem”, que em vida esquiva-se do ser-para-a-morte, para o seu pensar em sua morte solitária, cai naquela angústia descrita em Ivan Ilitch de Tolstói.
Sobre o Cuidado, Heidegger se apropria da fábula grega na qual Jupiter e Cuidado que está dando forma a argila brigam pelo nome que será dado a figura criada, e chamado Saturno como juiz ele diz que a Júpiter pertencerá o espírito pois foi ele que o deu a forma, enquanto Cuidado terá a terra, já que a formou, o filósofo alemão usará este sentido, muito engenhoso, para dizer o ser-para-a-morte para assim encontrar algo além da finitude da forma.
Por último o aspecto do silêncio e da solidão são invocados para descobrir o si-mesmo, e posteriormente voltar ao mundo já senhor de si-próprio, e aberto a relação com os outros, que já não é mais utilitária (tão própria dos idealistas) e nem por meio de diretrizes fixas (tão própria das escatologias incompletas), há assim um Ser além do finito e aberto ao infinito, não há pessimismo algum, que o diz é má leitura.
A felicidade a partir da beatitutde, da pureza e do amor
Toda a argumentação contemporânea sobre a felicidade quando não desce ao fundo do poço da barbárie, é ligá-la ao consumo, aos bens materiais e ao prazer.
Por isso beatitude se distanciou da felicidade, embora na raiz ocidental da antiguidade clássica (Eudaimonia) seja comum, na “Etica a Nicomaco” Aristóteles estabelece: “Quanto ao seu nome, a maioria está praticamente de acordo: felicidade o chamam, tanto o vulgo como as pessoas cultas, supondo que ser feliz consiste em viver bem e ter sucesso”, mas esclarece em outro ponto que não é a riqueza: “A vida (…) dedicada ao comércio é contra a natureza, e é evidente que a riqueza não é o bem que buscamos; com efeito, ela só existe em vista do lucro e é um meio para outra coisa”, mas neste ponto dirá que é o prazer.
Põe-se a questão do que é o fim desta busca, se é sucesso, honra, reconhecimento, no final o que percebemos é que “Se, de fato, o bem fosse uno e predicável em geral, e subsistisse separado, é evidente que não seria realizável nem adquirível pelo homem; mas é justamente isso que nós buscamos”, qual é este fim.
Em qualquer escatologia perecemos e se a morte é apenas um fim trágico e final, seria bom tirar o máximo desta vida e nem mesmo valores como honra e sucesso não valeriam de nada, apenas se estes resultassem tendo como fim o “prazer”, e não é então humildade, compaixão e participar da felicidade alheia são beatitudes que resultam também em nossa própria felicidade.
Assim aqueles que buscam apenas a própria felicidade em nada favorecem a própria uma vez que não tem ocasião de compartilhar e o prazer egoísta é uma felicidade apenas parcial, as bem-aventuranças no clássico Sermão da Montanha apontam para outra felicidade, aquela que os idílicos e hedonistas procuram negar, mas que aqueles que realmente a experimentam garantem que há uma felicidade equilibrada e sempre presente, um gáudio e uma paz para os que a praticam.
O Sermão da Montanha é um clássico aos que acreditam e podem muito bem servir de meditação para os que buscam uma felicidade efetiva e plena:
os pobres em espírito
os que choram
os humildes
os que têm fome e sede de justiça
os misericordiosos
os puros de coração
os pacificadores
os perseguidos por causa da justiça
Pois estes serão consolados, receberão a terra por herança, serão fartos pela justiça que finalmente será alcançada, terão misericórdia e serão chamados “filhos de Deus”, para os que creem a maior bem-aventurança, foi a verdade central e escatológica anunciada para toda a humanidade.
A história ou caminha para lá ou teremos um processo de crise muito maior que a atual pandemia, que os ciclos horrorosos de guerra, e não serem felizes.
Aflição e angústia
Os que leram atentos O Ser e o tempo, sabem que uma das respostas importantes de Heidegger é o aquilo que deve ser lido em Kierkgaard e que está ligado a raiz filosófica de seu pensamento, e isto está ligado a angústia e discorremos aqui o que a diferencia da aflição que é a angústia pessoal e ligada ao problema do mal.
É, pois, o próprio Heidegger quem Kierkegaard separando-o em ensinamentos ditos “edificantes” que seriam mais importantes do que os “teóricos”, exceto em um caso que é o da angústia, em seu tratado O conceito de angústia, e que o filósofo da floresta faz questão de dizer que “do ponto de vista ontológico” permanece ainda “inteiramente tributário de Hegel e da filosofia antiga vista através deste”. (HEIDEGGER, 2012, p. 651, n. 6).
O que Heidegger viu neste livro de 1844, cuja autoria é atribuída a Vigilius Haufniensis, pseudônimo kierkegaardiano que se traduz como “Vigia de Copenhague”, já que Kierkegaard era dinamarquês e sua primeira intenção é retornar a sabedoria socrática, que para ele se conjugava entre o saber contemplativo (theoría) com o saber prático (phrónesis), a maneira da antiguidade grega.
Apesar dele ter chamado Sócrates de “filósofo prático, justamente queria centrar o penso da “angústia” na vivência do que era refletido pela alma e isto significou uma aproximação da psicologia, era “a doutrina do espírito subjetivo” (Kierkegaard, 2010, p. 25), era um dos ramos da Filosofia, e de uma filosofia realmente dialética no sentido grego-socrático já que a filosofia moderna se fixou no dualismo kantiano tese x antítese com uma improvável síntese
O filósofo usa a expressão “pecado hereditário”, usada pelo autor ao longo da obra, mas como aquela que correspondo o que os teólogos, por ele chamados de “dogmáticos”, denominam como de pecado original, nomenclatura a parte, é o aspecto que aproxima o seu tema da angústia daquela aflição “de alma”, que pode ter o contorno filosófico e psicológico, mas que é no fundo aquela aflição de quem se sente fora de um centro, de uma perspectiva clara de superação da angústia.
Nela não há o sentido portanto de pecado original, nem da noção de pecado, mas se confunde como tal como a sua possibilidade enquanto ideia, ou seja, uma categoria conceitual capaz de nos ajudar a pensar sobre algum mal praticado, e o que levaria a este “mal” é o conceito de liberdade para muitos pensadores.
O que conduz o existir a um modo singular, a um modo de agir de tal forma ? É aí que as noções de liberdade e de angústia emergem enquanto “conceitos” convergem para esta “angústia”, mas sem ter um locus, nem na Estética, nem na Metafísica e sequer na Psicologia, assim o autor não o diz, mas há algo de aflito e de trágico neste caminhar nesta “angústia”.
Paul Ricoeur refletindo sobre estas expressões de Kierkegaard, estabelece que o mal é “o que há de mais oposto ao sistema”, justamente porque é absurdo e escandaloso, irracional e incompreensível, situado à margem da moral e da razão, lembra Ricoeur (1996, p. 16), referindo-se às reflexões kierkegaardianas, o mal é “o que há de mais oposto ao sistema”, justamente porque é absurdo e escandaloso, irracional e incompreensível, situado à margem da moral e da razão.
Ricoeur diferencia assim o mal estrutural (já fizemos um post), ligado a angústia e o pecado e o livre-arbítrio ligado a decisões pessoais perante a angústia.
O ponto que considero essencial no pensamento de Kierkegaard sobre este aspecto existencial é que “só o que atravessou a angústia da possibilidade, só este está plenamente formado para não se angustiar, não porque se esquive dos horrores da vida, mas porque esses sempre ficam fracos em comparação com os da possibilidade” (Kierkegaard, 2010, p. 165-166), é aqui que a aflição pode encontrar o seu oposto e podemos entender que há uma fonte de consolo nela.
Assim angústia e aflição não são propriamente maldições ou estados pecaminosos ou doenças da “alma” ou dos pensamentos, são fases de ruptura ou transição para outras fases mais maduras quanto esta etapa envolve reflexão e superação.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. (Multilíngues de Filosofia Unicamp). JOLIVET, Régis. As doutrinas existencialistas: de Kierkegaard a Sartre. Porto: Tavares Martins, 1957.
KIERKEGAARD, Sören. O conceito de angústia: uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário de Vigilius Haufniensis. Tradução e notas Álvaro Luiz Montenegro Valls. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
O que faz o Amor ser amado
Hannah Arendt procurou em Agostinho de Hipona suas respostas para o Amor, trouxe grandes contribuições no campo filosófico para o tema, muito além da clássica divisão dos gregos: ágape, eros e filia; mas como observou a filosofa contemporânea Julia Kristeva não foi além do Agostinho filósofo, abordando também o teólogo.
Além da divisão inteligente da sua tese de doutorado: “O amor em Santo Agostinho”, a própria Arendt acentuou o caráter filosófico da obra do bispo de Hipona, ao ressaltar: “ele nunca perdeu completamente o impulso de questionamento filosófico” (Arendt, 1996), suas bases de Cícero, Platão e Plotino são perceptíveis em sua obra.
A escolha de Arendt por dividir sua dissertação em três partes se deve a uma vontade de fazer justiça a pensamentos e teorias agostinianas que correm em paralelo. Assim cada parte “servirá para mostrar três contextos conceituais nos quais o problema do amor tem papel decisivo.”
Também ela percebe a importância do Amor Caritas, mas como o vê não é teológico, mas apenas dentro das possibilidades humanas, Julia Kristeva ao falar do Amor vai além ao afirmar: “O amor é o tempo e o espaço em que ‘eu’ me dou o direito de ser extraordinário“, enquanto Arendt tem clareza que há diferença entre o Caritas e a Cupiditas, que ama o mundo, as coisas do mundo.
Mas a questão de Agostinho que deve ser respondida também pelos cristãos sé o que “amo quando amo o meu Deus?” (Confissões X, 7, 11 apud Arendt p. 25), a quinta essência do meu interior, é verdade como pensava Agostinho que encontro em mim o que me liga a eternidade, porém há além da quinta essência ou Outro fora, não apenas Deus, mas aquele Outro que passa ao meu lado, aquele cuja identidade está escondida no invólucro humano do Outro que tem Deus em si também.
O que amo quando amo a Deus, é assim extensível ao Amor a humanidade, concreto em cada Outro que me relaciono, e está além da quinta essência do meu “Eu”.
Caritas é assim o extraordinário em mim, tanto Arendt, Kristeva e o próprio Agostinho estão certos em parte, porém o Deus que amo está agora presente também no Outro, que é além do meu espelho e além da minha quinta-essência interior.
Talvez a maior cilada feita para Jesus pelos fariseus esteja na pergunta, depois que Jesus havia calado os saduceus, estava na pergunta (Mt 22,36) “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?”, e Jesus responderá (Mt 22,37-39): “Jesus respondeu: “‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento!’ Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’”, e conclui que esta é a síntese de toda Lei e dos profetas.
Hannah Arendt cita esta passagem, mas a sequência é clara amarás com todo coragem e toda alma, aspectos teológicos e depois com o entendimento, o filosófico.
Porém a pergunta atualizada é esta de Agostinho: “O que amo quando digo que amo a Deus?” e se na resposta é também “O próximo como a ti mesmo”, ou seja, com a sua quinta-essência interior dirigida ao Outro, significa que não posso dizer que amo de fato o Amor, que vem de Deus, se não é o Amor caritas.
ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Chicago: University of Chicago Press, 1996.
Figura: Texturas e acrílico sobre tela 100×120 cm | Janeiro, 2018. Galeria Eva-sas.
Transformação digital além da Buzzword
Alertamos e problematizamos nos 10 anos deste blog a transformação que estava sendo encaminhada pelas mudanças digitais, aspectos sociais, educacionais, industriais e até mesmo comportamentais, boa parte dos céticos reagiam, ironizavam ou desprezavam uma mudança real que estava acontecendo.
A pandemia mostrou que as ferramentas mais do que necessárias podem construir pontes, estabelecer relações novas, dinamizar empresas e evitar desperdícios de tempo, dinheiro e principalmente nestes tempos por em perigo a saúde.
Agora todos vivem a realidade digital, empresas sobreviveram por serviços online, famílias, grupos sociais, serviços públicos e reuniões de diversos tipos dependem das ferramentas digitais, os espetáculos dependem de lives, de meetings ou postagens em ferramentas de mídias sociais.
Uma buzzword surgiu muito forte a chamada “transformação digital”, porém o perigo do oportunismo é grande de empresas e sites que exploram e mistificam estes serviços e cobram caro por ele, assim alguns conceitos são necessários, primeiro o que acontece diferente na geração Z da anterior chamada de millennials, os que são nascidos no início do milênio, portanto antes do ano 2000, que agora tem de 22 a 37 anos.
Os millenials acompanharam a evolução a Web (as páginas, sites e blogs), nasceram numa realidade em que os computadores eram uma eletrodoméstico, assim só eram usados em casa e opcionalmente na escola, enquanto a geração Z através do celular levou o mundo digital a todo lugar, criam os grupos de chats e tem um comportamento diferente com a credibilidade dos sites, blogs e mídias de redes, criam suas próprias relações e ídolos, em geral diferente do tudo que é conhecido.
Embora mais fechados e com tendência a pouca relação social, são mais críticos que os millenials, mais ansiosos, são mais eficientes e são mais exigentes.
Assim as relações com o mercado são muito diferentes, voltam a preferir as compras em lojas físicas e selecionam bem o que compram, menos impulsivos e já tem a tecnologia com um excelente apoio, embora muito conectados já conhecem os limites da tecnologia.
Grandes revistas de economia como a Forbes e a Fortune fizeram análises da geração Z para entender a transformação de mercado necessária, a Forbes diz que ela representa 25% da população mundial atual, o meio digital é parte natural da vida deles, como a TV e o rádio das gerações passadas, enquanto a Fortune afirma que 32 da geração Z se esforça para um trabalho dos seus sonhos e descartam assumirem qualquer trabalho, embora temporariamente aceite para alçar o futuro.
Assim os CRMs ( Customer Relationship Management) antigos não funcionam e muitas críticas e análises feitas para a geração millenials estão ultrapassadas.
Segundo Kasey Panetta, pesquisadora da Gartner, 5 conceitos novos são emergentes: Composite architectures, arquiteturas ágeis e responsivas, Algorithmic trust, produtos, links, sites e transações confiáveis, Beyond silicon, os limites da lei de Moore da evolução dos computadores, agora tecnologias menores e mais ágeis são procuradas, Formative Artificial Intelligence (AI) adaptação ao cliente, customização dos serviços, tempos e localização, e o conceito Digital Me, uma espécie de passaporte para o mundo digital, ferramentas e sites que já conhecem o cliente e suas necessidades, formas de comportamento e preferencias.
Portanto todo o universo digital que parecia estável também vai desmoronar e muito do que se chama “transformação digital” é só uma mistificação digital, cuidado com oportunistas.
Panetta, Kasey. 5 Trends Drive the Gartner Hyper Cycle for Emerging Technologies, 2020. Disponível em: https://www.gartner.com/smarterwithgartner/5-trends-drive-the-gartner-hype-cycle-for-emerging-technologies-2020 , Acesso em: 15 de setembro de 2020.
O banquete de Platão
Nos banquetes, as mesas e o compartilhamento de alimento se celebram muitas coisas, inclusive o diálogo sobre temas essenciais.
Ocorrido por volta de 380 a.C. é um diálogo, e há alguns que preferem a tradução do grego como Simpósio (no grego antigo sympotein significa “beber junto), e o tema central é o Amor, entre o eros e o ágape, e o personagem central como na maioria dos seus diálogos é Sócrates.
Também estão no diálogo Aristófanes e Ágaton (ou Agatão), na casa dele ocorrera um banquete anterior em comemoração ao prêmio literário que ele havia ganhado, neste banquete Sócrates e outros participantes discursaram sobre o “amor”, estavam nele Apolodoro e Glaucon, Aristodemo e o próprio Ágaton.
Glaucon considera Apolodoro como doido porque despreza o material, Ágaton significa “bom” em grego, coisas boas e o amor levam à prática do bem e do belo, e se soubéssemos a prática do amor o bem que faz, os homens fariam um exército de amantes, lembrando o exército de banos, cuja frente estava Pelópidas e Epaminondas em 371 a.C.
O discurso de Fedro é que o amor cultuado pelos homens revela-os mais virtuosos e felizes durante a vida e após a morte, mas é na cosmogonia que os discursos vão se contrapor, enquanto Fedro vê a origem de Eros como um deus muito antigo, sem menção de progenitores, teve seu nascimento junto a Geia (terra) após o Caos.
Pausânias o segundo a discursar, contrariando Fedro, existem vários Eros, era filho de Afrodite, e duas Afrodites, uma filha de Urano e outra de Zeus, a de Zeus gera um eros vulgar e a de Urano um Eros celeste.
Eriximaco aprova a distinção de Pausânias sobre a duplicidade do Amor e, universalista, o amplia a todo cosmo: “grande e admirável, e a tudo se estende ele, tanto na ordem das coisas humanas como entre as divinas”, sendo médico afirma que o amor e a concórdia provem a harmonia, combinando opostos (o sadio e o mórbido) que se estendo por todo universo: “deve-se conservar um e outro amor …”.
Aristófanes insistirá no poder que o amor possui sobre a natureza histórica, com o uso do mito dos andróginos, legimitima a homoafetividade e a desenfreada busca pelo que hoje chamamos de “almas gêmeas”, que é uma busca pelo perfeccionismo e de certa forma pelo narcisismo.
Sócrates elogia o fato de Ágaton ter principiado a mostrar a natureza e quais são as obras do Amor, mas depois segue seu clássico método da Pergunta: “é de tal natureza o Amor que é Amor de algo ou de nada?”, Ágaton confirma que o Amor é Amor de algo. De qual “algo” é o Amor e segue com a indagação: “Será que o Amor, aquilo de que é amor, ele o deseja ou não ?” e segue o banquete a moda dos clássicos gregos.
O banquete, a mesa a qual todos sentam é o importante deste diálogo, parece tão clássico e tão presente, mas acrescentaríamos uma questão e Francisco de Assis, lembrado estes dias, afirmava ele com convicção: “O Amor não é amado”, assim antes de ser instrumento como afirma Agaton é ele próprio algo a ser usado como instrumento, em momento de tanta dor na humanidade, ou então a maneira socrática perguntar: “É o Amor amado ?”.
Platão, O Banquete, ou, Do Amor – trad. José Cavalcante de Souza, Rio de Janeiro: DIFEL, 2008.
Se aquela noite vier
A Europa vive sobre o medo de uma nova onda da pandemia, e mesmo assim ainda a solidariedade aos que falecem é pequena, até há expressão de sentimentos ou alguma comoção, mas o sentimento humanitário fraterno é localizado às pessoas que sempre caminham em ações humanistas em momentos de crise.
O aconteceria se houvesse alguma catástrofe natural ou algo que chamasse a humanidade à consciência de um modo ainda mais grave, claro que não é desejável e não se deve espalhar este pânico, porém por hipótese se uma noite mais profunda se abatesse sobre a humanidade talvez uma nova tomada de consciência da grave situação da civilização fosse pensada e alcançada em larga escala.
Também é visível que são os últimos na valorização social aqueles que mais são solidários, já vivendo em situação grave a pandemia os torna mais solidários, ali a fraternidade é uma necessidade para a própria sobrevivência humana.
A noite e a cegueira não é anunciada agora pela pandemia, aqui neste blog em várias postagens chamamos a atenção para a noite cultural, social e até mesmo religiosa da humanidade, o caminho do processo civilizatório parece estar em colapso, isto quem observa a história ao longo dos últimos séculos é claramente visível, duas guerras, processo de isolamento social de culturas, raças e credos, preconceito a migrantes e principalmente aumento da desigualdade.
Se a noite vier, ao contrário daqueles que imaginam que as vidas humildes sejam “vidas desperdiçadas”, será ao contrário as vidas arrogantes e opulentes aquelas menos preparadas para uma “noite civilizatória” já em curso.
Não foi a pandemia que fez isto emergir, ela apenas tornou evidente e palpável o que já está em processo a algum tempo, porém o que se deve indagar é se houvesse uma noite alargada, visível que nos coloque em xeque.
Não se trata de uma visão apocalíptica ou mesmo profética, sem deixar de ter respeito por elas, um olhar profundo sobre os processos desumanos, violentos e antissociais que se vive, a decadência e o agravamento da crise está aí.
Se a noite vier, poucos estarão preparados, somente aqueles que já estão em ambientes e processos solidários, aqueles que durante o período de calmaria trabalharam e vivenciaram o lado fraterno, humano e solidário da vida cotidiana.
Ódio, desdém e reflexão
Não é por acaso que a região do cérebro de estruturas como o córtex frontal medial, cuja capacidade de argumentar e portanto de dialogar se encontra ali, tenha como núcleo o putâmen, o córtex pré-motor e o córtex insular, cujas estruturas participam também da percepção do desdém e do nojo, isto é a ativação do ódio está fisicamente no cérebro próximo àquelas áreas associadas ao julgamento e ao raciocínio, assim pode-se tanto ativar um como o outro, há as duas opções.
Os que querem justificar o ódio então estão cheios de argumentos, são capazes de raciocínios até profundos para agir contra o odiado, mas se a premissa for o diálogo o mesmo raciocínio pode ser usado para compreender, cuidar e desviar a violência do outro, como algumas artes marciais ensinam, desviado o “corpo”.
O ódio não desaparecerá esperando que as circunstâncias externas mudem, em geral ela não acontece, não é uma mágica, para curá-lo é necessário que se reconheça a diversidade, sua problemática, como diria Gadamer ter consciência dos pré-conceitos, isto é, dos fundamentos que iniciam uma desavença ou um tipo de crédito, reconhecer o Outro em sua bolha e reconhecer a nossa, ambas como tendo pré-conceitos.
Se de fato ativamos a parte do raciocínio, do pensamento e colocamos as desavenças neste nível, atenuamos um pouco a parte do ódio, mas é essencial perguntar e uma parte de nosso ódio viria abaixo ao refletir dessa forma: “Por que odeio? O que pretendo conseguir com isso? O que ganho e o que perco com meu ódio?”.
Não conheço situação que se resolveu neste caso, em geral levou a um conflito maior, a um ódio mutuo maior, se o objetivo é a guerra provavelmente chegaremos lá, mas creio que para a maioria das pessoas não é, então o que falta é refletir, analisar as origens de tal “mal” em suas bases mais profundas.
O ódio deve ser combatido com a compreensão e principalmente que leve a um novo tipo de ação, o que implica reconhecer em primeiro lugar que ele existe e é fomentando por dois lados e não por um só, nas manifestações das pessoas e em suas propagandas, as denuncias são recorrentes para dizer toda verdade está deste lado e no outro só mentira, é preciso explicar as consequências e que de fato quem se beneficia são aqueles cuja razão de existir e de pensar é mesmo o “ódio”.
Pessoas sábias de diversos matizes como Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Nelson Mandela ou madre Teresa de Calcutá com sabedoria e inteligência diante de conflitos enormes e absurdos souberam mostrar que a bondade e a generosidade, a criatividade e o respeito ao outro podem levar a buscar um bem coletivo maior e em embora um pouco mais demorado terão frutos mais duradouros, com menos violências e mortes, mas porque mesmo em grupos sérios o ódio persiste, a resposta é muito simples.
Incentivados por líderes e grupos que vivem em bolhas políticas, ideológicas ou religiosas, o principal recurso é a demonização do adversário, identificado com algum aspecto repugnante do mal: morte, corrupção, violência sexual, racial ou de gênero, enfraquecimento de valores ou algo do tipo, e uma vez unidos em grupo o medo desaparece e isso reduz a inibição de quem odeia para agir de outras formas não a da argumentação e exposição dos fatos, mas a violência contra a violência.
Os líderes que incitam este ódio, dizem já não poderem controla-lo, mas no fundo o desejaram, desenvolvem esta parte do raciocínio que dizemos no início perto da parte do cérebro do putâmen, e liberado o ódio será executado pelas pessoas que usam a outra parte com menos raciocínio e mais visceral, assim o ódio “explode”.
O que devemos pensar diante de fatos indignos, e neste momento não deveria haver nenhum maior que a pandemia, é que o sentimento de medo e de exaustão pelo confinamento é explorado não em conseguir modos de relaxamento e anti-stress, mas de liberá-lo em formas violentas, quais as consequências ? e a quem estão favorecendo ? penso que aos odiosos, e não aos amorosos que de fato tem amor pela humanidade e pelo apreço mais frágeis.
Parece um caminho sem volta, em meio a pandemia e com duas eleições tensas se aproximando, a nacional dos Estados Unidos e as municipais no Brasil, vejo pouca ou quase nenhuma discussão sobre a pandemia e sobre os que morrem todos os dias, as famílias enlutadas e a compaixão com estes, nem de um lado nem do outro.
Felizmente os níveis de mortalidade diminuíram, mas o fim de semana prolongado prometem aglomerações, a vila de carros para a praia era enorme, e a pandemia ?
A arte, a cisão e a unidade
Hölderlin, poeta alemão citado e elogiado por Heidegger, também manteve intimidade com a filosofia, em um de seus escritos pouco conhecido contestou o “eu absoluto”, mas é preciso questionar também um “nós” preciso a uma bolha, a um mundo hierarquizado e estilizado, na perspectiva do poeta a consciência sem objeto seria inconcebível e todo juízo pressupõe o mundo, o que é muito próximo da consciência de algo que a fenomenologia propõe.
Os princípios teóricos de uma filosofia da história, muito próxima a visão da consciência histórica de Gadamer, foi elaborada como divida em três épocas: a unidade, a cisão e a recuperação da natureza (sob a forma da naturalidade da arte), porém Hölderlin tratou também do aórgico, e poder-se-ia pensar na real recuperação da natureza, em tempos pandêmicos parece dar um respiro: peixes, pássaros e animais reaparecem, o ar está mais leve e parece que a natureza agradece.
A cisão, que faz com que o homem se veja diante de tantas contradições e desigualdades, é também disse Rousseau, uma condição de liberdade, entretanto ao se deparar com indignidades e injustiças esta condição parece estar ameaçada, o poeta lançava mão da poesia como uma “contraposição harmônica” entre o eu e o mundo, porém reivindica um terceiro, poético e harmônico no qual que habita o mundo dos textos como supôs Roland Barthes, diz em sua poesia Metade da Vida:
Onde se é inverno, achar as flores, e onde a luz do sol e as sombras da terra?”
No final restam somente “muros e bandeirolas ao vento”
O próprio poema é metade que não se completa sem o leitor e o mundo.
É também incerteza, conforme esta bela imagem da “canção do destino de Hipérion”:
“como água de penhasco em penhasco lançada incessantemente no incerto”.
A canção de destino de Hipérion diz:
Andais lá em cima na luz
Em chão macio, gênios felizes! Cintilantes brisas divinas
Tocam-vos de leve
Como os dedos da artista Cordas sagradas.
O que Hölderlin me inspira é a diferenciação entre o pensar e o filosofar, Heidegger também descartou o segundo, no caso do poeta sua vida e obra ocasionam relações entre o pensamento e a poesia, e esta sim, numa relação nova com a filosofia propõe um terceiro, não há mais poetas logo filósofos também não.
Virus e mutações aórgicas
Certamente o que somos hoje como estrutura física e DNA não foi sempre assim, também nossa relação com doenças e vírus são diferenciadas, doenças “infantis” como sarampo, caxumba e rubéola tornaram-se comuns e uma vacina tríplice tornou-se obrigatória, combatem estas doenças mais comuns, ao passo que em tribos indígenas e alguns povos podem ainda ser mortais, isto porque suas estruturas físicas são diferenciadas.
Certamente algo aconteceu com o mundo inorgânico que influenciou o físico, parece assustador, mas é trivial dizer que o mundo físico antecedeu ao orgânico, portanto em nossa origem aconteceu uma mutação aórgica.
O homem não existiu sempre, acredita-se conforme estudos científicos que o homo sapiens surgiu na África Oriental por volta de 300 mil anos atrás (Hubrin, Ben-Ncer, 2017), se espalhou primeiro para o leste do mediterrâneo 100 mil anos atrás (Khan, 2015) e 60 mil anos foi para o oeste, pode ter chegado na China cerca de 80 mil anos (Sherwell, 2015), então porque variações de pele, de estrutura física e tolerância a doenças aconteceram, certamente devido a mudanças alimentares, climáticas e também variações na estrutura física conforme a adaptação ao ambiente, isto é também aórgicas, desde a estrutura primordial do homem formada a partir do mundo físico.
Muitas pesquisas sobre vírus que afetaram nossos antepassados já foram estudados, como o Mollivirus sibericum, classificado como um “vírus gigante” porque pode ser visto em um microscópio ótico simples, além dele também o Pithovirus Sibericum foi estudado por uma equipe francesa do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, assim há uma “evolução” e transformação dos vírus e como afetaram historicamente o homens e a natureza, porque agora surgem vírus cada vez mais “fortes” e com características diferentes, também é uma mudança aórgica, porém ela pode também afetar a natureza, a parte física do planeta e assim a história.
No embate entre razão e entendimento, diversos autores trataram a questão aórgica desde a análise estética até o física, por exemplo, usaram estes temas Schiller e Hölderling e a apropriação aqui, para fazer inferências sobre o inorgânico (vírus não é um organismo) e demonstrar que a totalidade orgânica (holismo orgânico) não é prevalente sobre ao inorgânico (holismo aórgico), que supõe um regime de ataxia e desordem, assim como o holismo sistêmico, o pretenso discurso único que invadiu a sociologia, a história a moda de Dilthey (Gadamer o contesta) e a polarização atual não é senão um holismo sistêmico, idealismo e física pré-quântica.
Por esta teoria do holismo aórgico pode-se supor que não apenas a estrutura física orgânica do humano poderá se modificar, mas até mesmo a estrutura do planeta, a retração de atividades, entre elas as milhares de viagens diárias de aviões, o não uso de combustíveis fósseis já estão alterando (para melhor) a estrutura de mares e da terra, assim a própria estrutura do planeta poderá se modificar, e também a natureza como todo reagirá, pode ser uma surpresa, mas a natureza nos socorrerá.
Referências:
HUBRIN, Jacques Hublin; Ben-Ncer, Abdelouahed «Scientists discover the oldest Homo sapiens fossils at Jebel Irhoud, Morocco». Nature. 2017, acesso em: 20 de agosto de 2020. disponível em: https://phys.org/news/2017-06-scientists-oldest-homo-sapiens-fossils.html .
KHAN, Amina. Discovery of 47 teeth in Chinese cave changes picture of human migration out of Africa. Los Angeles Times, Science. 14 oct. 2015, Acesso em: 20 de Agosto de 2020, Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/virus-gigante-pre-historico-da-siberia-sera-acordado-6d2dtw1rz8yudoz53visogbti/
SHERWELL, Phillip. Ancient teeth found in China reveal early human migration out of Africa. The Telegraph, 2015. Disponível em: The telegraph (acesso privado).