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O que não foi dito do nascimento de Jesus
Não é parte da narrativa bíblica, porém além do recenseamento romano, da perseguição de Herodes (dados históricos) ao colocar Jesus numa manjedoura envolto em panos e a vinda dos “reis magos” pode ser esclarecida a luz de relatos da época.
Era hábito judeu separar um cordeiro recém nascido para o sacrifício da Páscoa judaica, lembrando o sacrifício que Abrão faria com seu filho e que um anjo intercedeu oferecendo uma cordeiro, o fato que Jesus foi envolto em faixas lembra também um costume judaico da época de ao separar o cordeiro, envolve-lo em faixas e coloca-lo numa manjedoura, com cuidados especiais.
Assim este é já uma preparação da páscoa, pois ele nasce e se faz pequeno para ser como o homem terreno, ainda que fosse um Deus, um Emanuel, o divino entre nós.
Porém lembrando os fatos astronômicos de ontem, queremos lembrar também dos “reis magos”, que talvez fossem reis e não magos, isto se referem ao fato de terem dons videntes de profecias e se informaram sobre uma estrela “E, vendo eles a estrela, alegraram-se com grande e intenso júbilo” (Mt 2;10-11) e assim a seguiram e encontraram o menino em Belém como era esperado pelos judeus.
A estrela que anuncia evento cósmico que prevê a chegada do “rei do universo” e não apenas o “deus dos judeus” tanto pode ser a passagem de um cometa, evento já conhecido na época, embora confundido com uma “estrela cadente”, pode muito bem ser uma explosão de uma Supernova como a Betelgeuse que está para acontecer, como de uma Nova, como a T Coronae Borealis que deve ocorrer este ano, se tivesse que escolher (ver o post anterior), escolheria a Nova que é o nascimento de uma estrela, enfim a famosa “estrela guia” pode ser um destes fenômenos.
A imagem da Adoração dos Magos, numa pintura em pedra datada do século III d.C. (foto) mostra apenas uma estrela, sem a calda típica dos cometas, podendo assim ser qualquer um dos fenômenos celestes que provocam grande brilho.
Não é dispensável lembrar, que os reis que vieram adorar Jesus não eram judeus, e mesmo assim tiveram um sinal e seguiram suas vidências (não se tratava de magia é claro) e o adoraram.
O menino Jesus, Maria e mistério
Se um ser divino nascesse de uma mãe uma humana, apenas por hipótese filosófica (e não teológica), qual deveria ser o substrato de seu alimento e qual a relação com sua mãe.
O capítulo Matrix in Gremio (no colo da mãe) do filosofo não-cristão (a religião para
ele é só uma cultura) respondeu usando um texto de Lotário de Segni (1160-1216) que viria a ser o papa Inocêncio III), que a interrupção da menstruação de Maria durante a gravidez do menino divino provocou nele uma alimentação diferente.
O texto de Inocêncio III analisado por Sloterdijk “De miseria humanitae conditionis”, afirma: “não há dúvida que Jesus, mesmo in grêmio (significa no útero da mãe) deve ter sido provido de um diferente plano alimentar” (Sloterdijk, 2016, p. 557), e também relê a Question 31 da Summa Teológica de Tomás de Aquino, onde esta noogenese implica também na ligação de dois corações, já analisamos amplamente o livro de Byung-Chull Han sobre Heidegger: “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger”.
A análise ontológica que parte de uma visão do coração, no sentido de tonalidade afetiva dado por Byung-Chull Han, dá uma perspectiva diferente e humanizada não só da condição filosófica, mas também da análise teológica.
Grande parte das análises bíblicas e históricas sobre a questão de Maria não partem deste princípio teológico, a hermenêutica está apenas fixada na problemática do texto e de suas interpretações e traduções teológicas, em uma palavra não há afetividade, não há amor.
Sem entender esta relação de amor e afecção que há entre Maria e seu divino bebe qualquer análise, mesmo que tenha profundas relações marianas, será superficial, sem considerar sua condição de mãe e sua relação deste a concepção com o divino bebê é defeituosa e fria.
Maria foi mãe, e é evidente que todo mistério que guardava em seu sagrado útero, não pode ser pensado nem sob a condição de mãe, é verdadeira mãe, nem da condição divina, seu “grêmio” (útero) está envolto de uma aura divina e misteriosa, que se revela na sua vida adulta.
Qualquer reducionismo desta condição, situada apenas na especulação analítica, rouba a cena e o profundo mistério nesta condição divino/humana na relação com o bebê (na foto, uma escultura que está no museu de Cluny em Paris, que é datada do século XIV).
SLOTERDIJK, P. Esferas I: bolhas. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
Atos de sabotagem e abertura das Olimpíadas
Horas antes da abertura das Olimpíadas de Paris vários “atos de sabotagem” foram realizados de maneira “preparada e coordenada” afetando as linhas ferroviárias da França, o primeiro ministro francês Gabriel Attal descreveu o evento, segundos fontes francesas, como “maciço e grave” e agradeceu aos bombeiros e expressou indignação pelos transtornos ao deslocamento de turistas e franceses.
A cerimônia de abertura foi com uma mensagem estranha e sem a beleza que sempre a acompanhou em versões anteriores, a apresentação de Lady Gaga foi gravada segundo explicações “devido a chuva”, uma cerimônia de pessoas trans numa mesa pareceu uma ironia com a santa ceia (aquela famosa pintura de Leonardo da Vinci) e um mascarado que aparece coma tocha olímpica parece um personagem dos jogos de videogame Assassin´s Creed.
Também o cavalo branco simulando um cavalgar sobre as águas é algo de simbologia enigmática, talvez o cavalo do apocalipse ou alguma alusão a guerra.
Salvo a famosa canção francesa L´Hymme á l´amour de Edith Piaf, interpretada por Celine Dion, desfilaram com a tocha diversos atletas franceses e acenderam um a pira olímpica num balão, cuja iluminação é mantida por um sistema elétrico.
Houve ainda no sábado uma parte de apagão em Paris e o próprio comité olímpico, através do porta-voz do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos Paris 2024: “assumimos que ultrapassamos a linha”.
As guerras continuam, a esperança de paz aumentou uma vez que a Rússia pela primeira vez chegou a admitir uma volta ao “acordo de Istambul” anterior a invasão da Ucrânia.
Contemplação e o Ser
O terceiro capítulo sobre a “Vita Contemplativa” de Byung-Chul começa com um texto de Walter Benjamim sobre a pintura Angelus Novus em nanquim, giz pastel e aquarela sobre papel de Paul Klee de 1920, que atualmente está no Museu de Israel, em Jerusalém, no acervo cristão.
Descreve a citação de Benjamim: “é representado aí um anjo que parece como se estivesse a afastar de algo que ele encara. Seus olhos estão arregalados, sua boca aberta e suas asas estendidas. O anjo da história deve parecer assim. Ele virou o rosto para o passado. Onde uma cadeia de acontecimentos aparece para nós, lá ele vê uma catástrofe que empilha incessante- mente escombro após escombro, escorregando diante de seus pés. Ele bem gostaria de se demorar, despertar os mortos e juntas os abatidos” (apud Han, 2023, p. 57) e continua.
Termina o texto de Benjamim com uma sentença: “Aquilo que chamamos de progresso é uma tempestade” e assim começa o capítulo “Da ação ao ser”.
Hannah Arendt foi a primeira a compreender o século XX como época da ação, diz o autor, mais para frente no texto o autor lembrará que o antropoceno foi o resultado (eu diria a tentativa, já que a natureza se rebela) da submissão da natureza à ação humana, perdendo sua autonomia e dignidade, “fazemos” história ao agir afirma.
O que podemos fazer sobre esta ação catastrófica sobre a natureza, Arendt confessa que não pode oferecer nenhuma solução, citada por Han: “abordar a essência e as possibilidades da ação, que nunca tinham se mostrado de modo tão aberto e se desvelado em sua grandeza e em seu perigo” (apud Han, 2023, p. 59).
Ela aponta um caminho no pensamento que seria um tipo de “filosofia da política” que traria uma reflexão sobre a problemática da ação humana, em “Vita activa” ela expõe (eu penso recupera) a ação humana em sua grandeza e dignidade (pag. 60).
Refletindo ainda sobre a figura do Angelus novus (acima), “seus olhos arregalados refletem sua impotência, seu horror. A história humana é um apocalipse em avanço. Trata-se, aí, de um apocalipse sem acontecimento”, a relação com a atualidade de acontecimentos é notável.
Anos antes de Arendt publicar Vita Activa, Heidegger havia dado uma palestra Ciência e Reflexão onde dizia que em oposição â ação que impulsiona adiante, a reflexão nos traz de volta apara onde sempre já estamos. Ela nos abre um ser-aí (Da-Sein) que precede todo fazer, todo agir e que se demora (Han, 2023, pg. 62).
O mesmo Heidegger vai escrever em Cadernos negros: “O que aconteceria se o pressentimento do poder silencioso da reflexão inativa desvanecesse?” e reflete Han: “o pressentimento não é um saber deficiente. Antes, ele nos abre o ser, o aí, que se furta ao saber proporcional. Só por meio do pressentimento temos acesso àquele lugar no qual o ser humano já sempre se encontra …” (pag. 63).
HAN, Byung-Chul. Vita Contemplativa. Trad. Lucas Machado, Brazil, RJ: Petropolis, 2023.
A vida e a contemplação
Não, não se trata da arte de observar a natureza ou o universo, pois também o ato de observar é já uma “vida activa” pois certamente não escapará alguma interpretação ou detalhe que nos chame a atenção.
Trata-se de outros sentidos: escutar sem interpretar, olhar com um olhar purificado e entender aquilo que é incompreensível a razão humana, assim não é uma atitude racional, nem um desvario ou delírio sensitivo, é um exercício da “inatividade” escreve Byung-Chul Han.
Escreve o autor em Vita Contemplativa: ou sobre a inatividade (Han, 2023, p. 11): “A inatividade constitui o Humanum. O que tornar o fazer genuinamente humano é a parcela de inatividade que há nele. Sem um momento de hesitação ou de contenção, o agir se degenera em ação e reação cegas. Sem repouso, surge uma nova barbárie.”
Portanto inatividade contemplativa não se confunde com preguiça, ausência de ação, mas um repouso para a ação clarividente e a fala profunda, diz o autor: “É o silenciar que dá profundidade à fala. Sem o silêncio não há música, mas apenas barulho e ruído. O jogo é a essência da beleza. Onde impera apenas o esquema estímulo e reação, de carência e satisfação, de problema e solução, de objetivo e ação, a vida se reduz à sobrevivência, à vida animalesca nua” (idem) e não por acaso se confunde com a vida moderna atual.
Não somos máquinas sempre destinadas a funcionar, a verdadeira vida da ação consciente, começa quando cessa a preocupação com a sobrevivência e nasce a necessidade da vida crua.
A confusão apareceu por causa da confusão entre história e cultura, não a história das ideias (no sentido do eidos grego), mas aquela que ignora a cultura e trata apenas do poder e da opressão dos povos, diz o autor: “a ação é, de fato, constitutiva para a história, mas não é, a força formadora da cultura” (Han, 2023, p. 12) (quadro: A contemplação do filósofo, Rembradt, 1632).
E acrescenta no mesmo trecho: “Não a guerra, mas a festa, não as armas, mas as joias, são a origem da cultura. História e cultural não coincidem” (Han, idem).
Podem parecer estranho as “jóias”, mas o núcleo de nossa cultura é o ornamental. Ela está situada além da funcionalidade e da utilidade. Com o ornamental que se emancipa de qualquer finalidade ou utilidade, a vida insiste em ser mais que a sobrevivência” (idem).
As grandes religiões instituíram o sagrado na inatividade o domingo cristão, o sabbath dos judeus, o Ramadã islâmico, não se tratam apenas de inatividade, mas um dia de “contemplar”.
O homem “activo” de busca de vida “intensa” e desenfreada de estímulos e respostas, cai num vazio de sentido e num fazer meramente de luta pela sobrevivência, pouco ou nada de humano resiste, e se queremos retornar ao processo civilizatório, a cultura, o ornamental e a festa devem retornar ao cotidiano, tempo de Natal e de festa de fim de ano, tempo de parar.
HAN, Byung-Chul. Vita Contemplativa. Trad. Lucas Machado, Brazil, RJ: Petropolis, 2023.
Por uma filosofia do olhar
Ela já existe, até procurei as raízes e não encontrei e é aí que está o problema, dialogar com o que está presente na cultura, na filosofia e na arte sobre o que é o olhar e como é possível a partir daí desenvolvê-la de modo a dialogar com a cultura contemporânea.
Por exemplo, uma boa leitura de Schiller já citamos esta semana a sua “Educação estética do homem”, na arte não citei Gustav Klimt de propósito, ele tem elementos do simbolismo e toda literatura da arte reconhece, mas sua “arte nouveaux” traz algo de novo (foto sua obra o abraço).
Edgar Morin ao analisar “Cultura de massas do século XX” enfatiza os múltiplos sentidos do homem moderno:”a linguagem adaptada a esse anthropos é a audiovisual, linguagem de quatro instrumentos: imagem, som musical, palavra, escrita. Linguagem tanto mais acessível na medida em que é o envolvimento politônico de todas as linguagens” (pag. 45) e assim este olhar tanto pode se dispersar com se integrar dando a esta nova linguagem um olhar novo.
Ela não é mais específica de uma única mídia (som, imagem e objetos existem como arte desde sempre), para Morin isto é “do jogo que sobre o tecido da vida prática” (idem) e este simbolismo em Klimt é de fato uma visão integrada, mas não é específico dele, vejo-o também em Kandinsky suas obras parecem ter também música e poesia, mesmo sendo apenas quadros.
No cinema o diretor japonês Akira Kurosawa num dos quadros do filme Viver, faz a integração de pintura e cinema ao dar movimento aos quadros de Van Gogh, assim mais do que multimídia este movimentos artísticos podem ser chamados de transmídias, pelo fato de integrar aspectos da arte.
Isto reeduca e estimula o olhar, porém há o aspecto da possibilidade de dispersar o olhar, porém nada fazer mais isto do que as monomídias horizontais modernas e os “mídias” sociais não estão fora disto, assim a reeducação do olhar passa pelo estímulo de outros sentidos e do espiritual que não é aquele idealista (ver post anterior) que estão separados.
Assim apesar de ser um simbolista é justo pensar Klimt como integrante da “arte nouveaux”, já que ele ajudou a criar o Movimento de Secessão em Viena, cujo objetivo era romper as tradições conservadoras que se enraizaram na história e criar uma visão internacionalista e abrangente de gêneros artísticos contemporâneos e atemporais.
A integração em novas mídias desta visão é a apresentação no histórico Atelie des Lumiéres, em Paris de uma animação transmidiática de Vang Gogh (foto), que inaugurou uma série em 2018 justamente com a obra de Gustav Klimt também animada.
Por isto não é uma síntese de contrários, mas a fusão de horizontes artísticos em movimento, a crise atual é a visão dualista de mundo, da arte e dos valores que são atemporais.
MORIN, Edgar. Cultura de massas do século XX. trad. Maura Ribeiro Sardinha. 9ª. edição. Rio de Janeiro, Forense, 1997.
O que é belo para o idealismo
Contradizemos no post anterior a visão de visão e de belo do sentido idealista, mas o próprio Schiller é descendente desta visão, ainda que tenha tentado reconstruir “a unidade da natureza humana”, nisto ele tem razão, pensou em reconstruir no modo idealista moderno.
Para Hegel a estética, e por conseguinte o Belo, é a ciência que se ocupa do belo artístico e não o belo natural, para ele o belo natural é produto do espírito (Geist), e, por ser produto do espírito, é partícipe da verdade e do que existe na natureza, veja que o espírito assim como a “transcendência” idealista é ligada a natureza e ao humano, é distante do espiritual místico.
Para um revolução interna ao idealismo, três correntes da arte estão imersas nele: o simbolismo, o classicismo e o romantismo, para muitos autores modernos, cito Byung Chul Han, permaneceu a cultura do liso, do plano e do “transparente” (vidros, plásticos, etc.).
Esta pseudo-revolução que se deu no interior da arte idealista é chamada de autossuperação, uma espécie do que foi chamado no idealismo alemão de novos hegelianos, porém faz uma divisão ainda mais profunda na arte: a pintura, a música e a poesia.
A escultura é considerada uma arte “nobre”, afirma Hegel: “A escultura introduz o próprio Deus na objetividade do mundo exterior; graças a ela, a individualidade manifesta-se exteriormente pelo seu lado espiritual” (Hegel, 1996, p. 113), novamente o exterior é objetivo, uma escultura e não um Ser, o outro e com ele toda sua subjetividade.
Já o simbolismo foi a que “procura realizar a união entre a significação interna e a forma exterior, que a arte clássica realizou essa união na representação da individualidade substancial que se dirige à nossa sensibilidade, e que a arte romântica, espiritual por essência, a ultrapassou” (Hegel, 1996, p. 340).
Ao ver as consequências deste pensamento “romântico” Hans-Georg Gadamer vai criticar a visão romântica de consciência de Dilthey, com graves consequências no historicismo moderno quase todo ele idealista e distante da realidade, assim trata-se de criar o modelo “ideal” para a consciência e para o belo e não o transformar como pensam fazê-lo os idealistas.
A arte nouveau, principalmente de Antoni Gaudí (na foto a Casa Batlló, em Barcelona) considero a expressão mais fiel porque recupera os elementos naturais (luz, cor, ar e natureza) sem “afetações” e resquícios do simbolismo e do romantismo, como por exemplo, presente no “Style Tiffany” nos Estados Unidos ou o “Style Glasgow” no Reino Unido que tem elementos, ao meu ver, do simbolismo, embora também chamada de “art nouveau”.
Retomando o post anterior há uma confusão visão de ética porque está separada da estética.
Viver a Vida
O filme Ikiru (1952) do japonês Akira Kurosawa traduzido como Viver, também poderia ter a tradução Vivendo ou Viver a Vida, já que na escrita em idiogramas a conjugação de verbos é diferente, também na língua portuguesa de Portugal o gerúndio é pouco usado então ao invés de Vivendo seria Estar a viver.
Trabalhos esta semana a questão da morte, e a frase do filósofo Sócrates: “uma vida sem exame não é digna de ser vivida” pode parecer apenas apelo a erudição, porém os que assistiram o filme de Kurosawa percebem que não se trata disto, também ali o tema é o exame da vida de um “burocrata” diante do drama da morte, pelo personagem Kanji Watanabe (Takashi Shimura).
O idoso burocrata descobre que está com câncer no estomago e o primeiro impacto é o de depressão e depois de examinar a vida, a relação com o filho e o seu serviço, onde tinha o apelido de “Sutanpu” que significa carimbo, alusão ao fato que problemas eram arquivados.
Assim o filme opõe a vida burocrata, a simples rotina de vidas vazias ao drama da morte eminente do velho burocrata, que ao examinar a vida lembra de senhoras que vinham sempre reclamar em seu departamento de uma rua lamacenta e suja.
O velho resolve tomar o problema para si e até as senhoras que reclamavam ficam espantadas, resolve agir para tornar aquele lugar sujo num parque para crianças, e todos no departamento notam que ele começa a reviver, troca o chapéu, muda a feição e resolve viver a vida até o fim, como propõe também Paul Ricoeur em seu livro citado esta semana.
Os comentários em sua seção são maldosos, talvez seja uma jovem, alguma coisa deve ter acontecido na vida do velho que agora parecia outra pessoa.
As cenas finais o mostram já morto, ainda os comentários maldosos, e aparece um guarda de rua que diz que viu que estava muito frio e o velho no balanço (foto) do parque que ajudou a ser feito, mas que ele parecia tão feliz, cantava uma canção tão linda, que não quis incomodá-lo.
Quando assisti o filme em minha juventude, já fã de Kurosawa, fui ao filme com uma expectativa de que Kurosawa ia falhar ao tratar de um tema tão profundamente existencial, o filme é genial e emociona.
Entre o ordinário e o extraordinário
O imenso universo e as imagens e pesquisas que o telescópio James Webb vai revelando nos mostram mais do que a grandeza da ciência o quanto a natureza e conhecimento humano são ínfimos perto da riqueza orgânica e misteriosa do universo se revela.
Não se tratam de descobertas de outros planetas habitados por seres orgânicos como o nosso, mas sim os limites das próprias leis da física a ponto de questionar o que é o tempo e o espaço absoluto a maior revelação da modernidade e da racionalidade, que agora está em mudança pelas leis da relatividade e encaminhada pela noção mais exata do que chamamos de eternidade.
Também na vida cotidiana existem fatos extraordinários, não aqueles proclamados por adivinhos, falsos profetas ou oráculos de uma sabedoria que já se sabe limitada, pela própria visão correta da ciência, incerteza e erro é o seu caminho mais seguro, ou como escreveu Bohr para Einstein: a raiz d todos males é a ideia humana de que alguém detém toda a verdade.
O período do Natal é para os cristãos a revelação de uma verdade nova e extraordinária, no sentido que ela está além de toda razão e ciência humana, por desejo divino Deus se fez homem, numa relação trinitária, desejo de Deus-Pai, concepção do Espírito Santo em uma virgem (ver post anterior) e um divino-humano Deus entre nós entra na história.
O fato é extraordinário porque a história se modificou e se modificará mais ainda como o passar da dimensão espaço-temporal na qual a vida humana está imersa, todos morrem e outros nascem e uma verdade divina vai se revelando através da noosfera, a esfera que a mente ou o espírito habita e a qual ninguém pode negar, porque até mesmos os erros e concepções filosóficas e teológicas estão imersos nela.
Os personagens bíblicos, homens sinceros apesar de seguidores de Jesus, também duvidaram de sua concepção, de sua vida (andar sobre as ondas do mar, a multiplicação dos pães, a cura do cego de nascença, a ressurreição de lazaro) ao todo 36 atos extraordinários dos quais 22 são curas, tudo isto um dia será conhecido pela ciência, é possível, porém foram feitos aquém deste tempo, quando a ciência dava passos iniciais.
Mas há os atos só divinos, como a passagem a pé enxuto pelo mar, a visão da sarça ardente de Moisés e o maior de todos os atos extraordinário, aquele que só a revelação divina pode confirmar, e talvez um dia a faça com algum fenômeno extraordinário, a virgem concebeu e Deus veio habitar entre nós, também ele morreu, mas a crença cristã é que ressuscitou e vive na vida eterna.
Até mesmo a virgem que concebeu, a jovem Maria prometida em casamento a José, que ao saber da notícia anunciada por um anjo duvida do que está acontecendo com ela própria (Lc 1,29): “Maria ficou perturbada com estas palavras e começou a pensar qual seria o significado da salvação”, assim os personagens bíblicos idealizados por teólogos e pastores, foram na verdade muito humanos e não supersticiosos (quadro de Leonardo da Vinci, Anunciação, por volta de 1472).
É verdade depois Maria cantará o seu Magnificat, sabendo que Deus a engrandeceu, mas só depois de andar quilômetros até a casa da prima Izabel, que também recebeu uma graça de ficar virgem na velhice, porém no caso dela não há algo tão extraordinário, são conhecidos casos na história de mulheres com idade avançada que conceberam.
A fé é acreditar no extraordinário, ainda que não esteja na posse dele, saber que é possível a intervenção de Deus na história, e o que o Natal representa é a grande intervenção que é a própria vinda do menino-Deus.
A sociedade paliativa ou a ausência da dor
A sociedade paliativa explica Byung Chul Han nada tem a ver com a medicina paliativa, pois explica o filósofo coreano-alemão: “Assim, cada crítica da sociedade tem de levar a cabo uma hermenêutica da dor. Caso se deixe a dor apenas a cargo da medicina, deixamos escapar o seu caráter de signo” (Han, 2021).
Lembra um ditado de Ernest Jünger: “Dize tua relação com a dor, e te direi quem és!”, assim não é possível uma crítica sociedade sem uma hermenêutica da dor, a relação com cada sofrimento não só o produzido pela história, mas aquele que está na particularidade de cada Outro.
“A sociedade da sobrevivência perde inteiramente o sentido para a boa vida. Também o desfrute é sacrificado à saúde elevada a um fim em si mesmo” (Han, 2021, p. 34).
Lembra e cita Agamben na sua visão de homo sacer e via nua: “Sem resistência sujeitamo-nos ao o estado de exceção que reduz a vida à vida nua” (Han, 2021, idem).
Na sociedade paliativa “A arte de sofrer a dor se perdeu inteiramente para nós … A dor é agora, um mal sem sentido, que deve ser combatido com analgésicos. Como mera aflição corporal, ela cai inteiramente fora da ordem simbólica” (Han, 2021, p. 41), os grifos são do autor.
Assim hoje remove-se a dor qualquer possibilidade de expressão, ela está condenada a calar-se, e “a sociedade paliativa não permite avivar, verbalizar a dor em uma paixão” (p. 14), grifo do autor.
HAN, Byung-Chul. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021.
VARGAS, Cecília. Systems of Pain/Networks of Resilience project in one gallery. Curated by Cecilia Vargas, Dickson Center at Waubonsee Community College, June 2018 (foto).