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Arquivo para a ‘Pintura’ Categoria

Contemplação e o Ser

29 nov

O terceiro capítulo sobre a “Vita Contemplativa” de Byung-Chul começa com um texto de Walter Benjamim sobre a pintura Angelus Novus em nanquim, giz pastel e aquarela sobre papel de Paul Klee de 1920, que atualmente está no Museu de Israel, em Jerusalém, no acervo cristão.

Descreve a citação de Benjamim: “é representado aí um anjo que parece como se estivesse a afastar de algo que ele encara. Seus olhos estão arregalados, sua boca aberta e suas asas estendidas. O anjo da história deve parecer assim.  Ele virou o rosto para o passado. Onde uma cadeia de acontecimentos aparece para nós, lá ele vê uma catástrofe que empilha incessante- mente escombro após escombro, escorregando diante de seus pés.  Ele bem gostaria de se demorar, despertar os mortos e juntas os abatidos” (apud Han, 2023, p. 57) e continua.

Termina o texto de Benjamim com uma sentença: “Aquilo que chamamos de progresso é uma tempestade” e assim começa o capítulo “Da ação ao ser”.

Hannah Arendt foi a primeira a compreender o século XX como época da ação, diz o autor, mais para frente no texto o autor lembrará que o antropoceno foi o resultado (eu diria a tentativa, já que a natureza se rebela) da submissão da natureza à ação humana, perdendo sua autonomia e dignidade, “fazemos” história ao agir afirma.

O que podemos fazer sobre esta ação catastrófica sobre a natureza, Arendt confessa que não pode oferecer nenhuma solução, citada por Han: “abordar a essência e as possibilidades da ação, que nunca tinham se mostrado de modo tão aberto e se desvelado em sua grandeza e em seu perigo” (apud Han, 2023, p. 59).

Ela aponta um caminho no pensamento que seria um tipo de “filosofia da política” que traria uma reflexão sobre a problemática da ação humana, em “Vita activa” ela expõe (eu penso recupera) a ação humana em sua grandeza e dignidade (pag. 60).

Refletindo ainda sobre a figura do Angelus novus (acima), “seus olhos arregalados refletem sua impotência, seu horror. A história humana é um apocalipse em avanço. Trata-se, aí, de um apocalipse sem acontecimento”, a relação com a atualidade de acontecimentos é notável.

Anos antes de Arendt publicar Vita Activa, Heidegger havia dado uma palestra Ciência e Reflexão onde dizia que em oposição â ação que impulsiona adiante, a reflexão nos traz de volta apara onde sempre já estamos. Ela nos abre um ser-aí (Da-Sein) que precede todo fazer, todo agir e que se demora (Han, 2023, pg. 62).

O mesmo Heidegger vai escrever em Cadernos negros: “O que aconteceria se o pressentimento do poder silencioso da reflexão inativa desvanecesse?” e reflete Han: “o pressentimento não é um saber deficiente. Antes, ele nos abre o ser, o aí, que se furta ao saber proporcional.  Só por meio do pressentimento temos acesso àquele lugar no qual o ser humano já sempre se encontra …” (pag. 63).

HAN, Byung-Chul. Vita Contemplativa. Trad. Lucas Machado, Brazil, RJ: Petropolis, 2023.

 

A vida e a contemplação

28 nov

Não, não se trata da arte de observar a natureza ou o universo, pois também o ato de observar é já uma “vida activa” pois certamente não escapará alguma interpretação ou detalhe que nos chame a atenção.

Trata-se de outros sentidos: escutar sem interpretar, olhar com um olhar purificado e entender aquilo que é incompreensível a razão humana, assim não é uma atitude racional, nem um desvario ou delírio sensitivo, é um exercício da “inatividade” escreve Byung-Chul Han.

Escreve o autor em Vita Contemplativa: ou sobre a inatividade (Han, 2023, p. 11): “A inatividade constitui o Humanum. O que tornar o fazer genuinamente humano é a parcela de inatividade que há nele. Sem um momento de hesitação ou de contenção, o agir se degenera em ação e reação cegas. Sem repouso, surge uma nova barbárie.”

Portanto inatividade contemplativa não se confunde com preguiça, ausência de ação, mas um repouso para a ação clarividente e a fala profunda, diz o autor: “É o silenciar que dá profundidade à fala. Sem o silêncio não há música, mas apenas barulho e ruído. O jogo é a essência da beleza. Onde impera apenas o esquema estímulo e reação, de carência e satisfação, de problema e solução, de objetivo e ação, a vida se reduz à sobrevivência, à vida animalesca nua” (idem) e não por acaso se confunde com a vida moderna atual.

Não somos máquinas sempre destinadas a funcionar, a verdadeira vida da ação consciente, começa quando cessa a preocupação com a sobrevivência e nasce a necessidade da vida crua.

A confusão apareceu por causa da confusão entre história e cultura, não a história das ideias (no sentido do eidos grego), mas aquela que ignora a cultura e trata apenas do poder e da opressão dos povos, diz o autor: “a ação é, de fato, constitutiva para a história, mas não é, a força formadora da cultura” (Han, 2023, p. 12) (quadro: A contemplação do filósofo, Rembradt, 1632).

E acrescenta no mesmo trecho: “Não a guerra, mas a festa, não as armas, mas as joias, são a origem da cultura. História e cultural não coincidem” (Han, idem).

Podem parecer estranho as “jóias”, mas o núcleo de nossa cultura é o ornamental. Ela está situada além da funcionalidade e da utilidade.  Com o ornamental que se emancipa de qualquer finalidade ou utilidade, a vida insiste em ser mais que a sobrevivência” (idem).

As grandes religiões instituíram o sagrado na inatividade o domingo cristão, o sabbath dos judeus, o Ramadã islâmico, não se tratam apenas de inatividade, mas um dia de “contemplar”.

O homem “activo” de busca de vida “intensa” e desenfreada de estímulos e respostas, cai num vazio de sentido e num fazer meramente de luta pela sobrevivência, pouco ou nada de humano resiste, e se queremos retornar ao processo civilizatório, a cultura, o ornamental e a festa devem retornar ao cotidiano, tempo de Natal e de festa de fim de ano, tempo de parar.

HAN, Byung-Chul. Vita Contemplativa. Trad. Lucas Machado, Brazil, RJ: Petropolis, 2023.

 

Por uma filosofia do olhar

13 abr

Ela já existe, até procurei as raízes e não encontrei e é aí que está o problema, dialogar com o que está presente na cultura, na filosofia e na arte sobre o que é o olhar e como é possível a partir daí desenvolvê-la de modo a dialogar com a cultura contemporânea.

Por exemplo, uma boa leitura de Schiller já citamos esta semana a sua “Educação estética do homem”, na arte não citei Gustav Klimt de propósito, ele tem elementos do simbolismo e toda literatura da arte reconhece, mas sua “arte nouveaux” traz algo de novo (foto sua obra o abraço).

Edgar Morin ao analisar “Cultura de massas do século XX” enfatiza os múltiplos sentidos do homem moderno:”a linguagem adaptada a esse anthropos é a audiovisual, linguagem de quatro instrumentos: imagem, som musical, palavra, escrita. Linguagem tanto mais acessível na medida em que é o envolvimento politônico de todas as linguagens” (pag. 45) e assim este olhar tanto pode se dispersar com se integrar dando a esta nova linguagem um olhar novo.

Ela não é mais específica de uma única mídia (som, imagem e objetos existem como arte desde sempre), para Morin isto é “do jogo que sobre o tecido da vida prática” (idem) e este simbolismo em Klimt é de fato uma visão integrada, mas não é específico dele, vejo-o também em Kandinsky suas obras parecem ter também música e poesia, mesmo sendo apenas quadros.

No cinema o diretor japonês Akira Kurosawa num dos quadros do filme Viver, faz a integração de pintura e cinema ao dar movimento aos quadros de Van Gogh, assim mais do que multimídia este movimentos artísticos podem ser chamados de transmídias, pelo fato de integrar aspectos da arte.

Isto reeduca e estimula o olhar, porém há o aspecto da possibilidade de dispersar o olhar, porém nada fazer mais isto do que as monomídias horizontais modernas e os “mídias” sociais não estão fora disto, assim a reeducação do olhar passa pelo estímulo de outros sentidos e do espiritual que não é aquele idealista (ver post anterior) que estão separados.

Assim apesar de ser um simbolista é justo pensar Klimt como integrante da “arte nouveaux”, já que ele ajudou a criar o Movimento de Secessão em Viena, cujo objetivo era romper as tradições conservadoras que se enraizaram na história e criar uma visão internacionalista e abrangente de gêneros artísticos contemporâneos e atemporais.

A integração em novas mídias desta visão é a apresentação no histórico Atelie des Lumiéres, em Paris de uma animação transmidiática de Vang Gogh (foto), que inaugurou uma série em 2018 justamente com a obra de Gustav Klimt também animada.

Por isto não é uma síntese de contrários, mas a fusão de horizontes artísticos em movimento, a crise atual é a visão dualista de mundo, da arte e dos valores que são atemporais.

 

MORIN, Edgar. Cultura de massas do século XX. trad. Maura Ribeiro Sardinha. 9ª. edição. Rio de Janeiro, Forense, 1997.

 

O que é belo para o idealismo

12 abr

Contradizemos no post anterior a visão de visão e de belo do sentido idealista, mas o próprio Schiller é descendente desta visão, ainda que tenha tentado reconstruir “a unidade da natureza humana”, nisto ele tem razão, pensou em reconstruir no modo idealista moderno.

Para Hegel a estética, e por conseguinte o Belo, é a ciência que se ocupa do belo artístico e não o belo natural, para ele o belo natural é produto do espírito (Geist), e, por ser produto do espírito, é partícipe da verdade e do que existe na natureza, veja que o espírito assim como a “transcendência” idealista é ligada a natureza e ao humano, é distante do espiritual místico.

Para um revolução interna ao idealismo, três correntes da arte estão imersas nele: o simbolismo, o classicismo e o romantismo, para muitos autores modernos, cito Byung Chul Han, permaneceu a cultura do liso, do plano e do “transparente” (vidros, plásticos, etc.).

Esta pseudo-revolução que se deu no interior da arte idealista é chamada de autossuperação, uma espécie do que foi chamado no idealismo alemão de novos hegelianos, porém faz uma divisão ainda mais profunda na arte: a pintura, a música e a poesia.

A escultura é considerada uma arte “nobre”, afirma Hegel: ““A escultura introduz o próprio Deus na objetividade do mundo exterior; graças a ela, a individualidade manifesta-se exteriormente pelo seu lado espiritual” (Hegel, 1996, p. 113), novamente o exterior é objetivo, uma escultura e não um Ser, o outro e com ele toda sua subjetividade.

Já o simbolismo foi a que “procura realizar a união entre a significação interna e a forma exterior, que a arte clássica realizou essa união na representação da individualidade substancial que se dirige à nossa sensibilidade, e que a arte romântica, espiritual por essência, a ultrapassou” (Hegel, 1996, p. 340).

Ao ver as consequências deste pensamento “romântico” Hans-Georg Gadamer vai criticar a visão romântica de consciência de Dilthey, com graves consequências no historicismo moderno quase todo ele idealista e distante da realidade, assim trata-se de criar o modelo “ideal” para a consciência e para o belo e não o transformar como pensam fazê-lo os idealistas.

A arte nouveau, principalmente de Antoni Gaudí (na foto a Casa Batlló, em Barcelona) considero a expressão mais fiel porque recupera os elementos naturais (luz, cor, ar e natureza) sem “afetações” e resquícios do simbolismo e do romantismo, como por exemplo, presente no “Style Tiffany” nos Estados Unidos ou o “Style Glasgow” no Reino Unido que tem elementos, ao meu ver, do simbolismo, embora também chamada de “art nouveau”.

Retomando o post anterior há uma confusão visão de ética porque está separada da estética.

 

Viver a Vida

23 mar

O filme Ikiru (1952) do japonês Akira Kurosawa traduzido como Viver, também poderia ter a tradução Vivendo ou Viver a Vida, já que na escrita em idiogramas a conjugação de verbos é diferente, também na língua portuguesa de Portugal o gerúndio é pouco usado então ao invés de Vivendo seria Estar a viver.

Trabalhos esta semana a questão da morte, e a frase do filósofo Sócrates: “uma vida sem exame não é digna de ser vivida” pode parecer apenas apelo a erudição, porém os que assistiram o filme de Kurosawa percebem que não se trata disto, também ali o tema é o exame da vida de um “burocrata” diante do drama da morte, pelo personagem Kanji Watanabe (Takashi Shimura).

O idoso burocrata descobre que está com câncer no estomago e o primeiro impacto é o de depressão e depois de examinar a vida, a relação com o filho e o seu serviço, onde tinha o apelido de “Sutanpu” que significa carimbo, alusão ao fato que problemas eram arquivados.

Assim o filme opõe a vida burocrata, a simples rotina de vidas vazias ao drama da morte eminente do velho burocrata, que ao examinar a vida lembra de senhoras que vinham sempre reclamar em seu departamento de uma rua lamacenta e suja.

O velho resolve tomar o problema para si e até as senhoras que reclamavam ficam espantadas, resolve agir para tornar aquele lugar sujo num parque para crianças, e todos no departamento notam que ele começa a reviver, troca o chapéu, muda a feição e resolve viver a vida até o fim, como propõe também Paul Ricoeur em seu livro citado esta semana.

Os comentários em sua seção são maldosos, talvez seja uma jovem, alguma coisa deve ter acontecido na vida do velho que agora parecia outra pessoa.

As cenas finais o mostram já morto, ainda os comentários maldosos, e aparece um guarda de rua que diz que viu que estava muito frio e o velho no balanço (foto) do parque que ajudou a ser feito, mas que ele parecia tão feliz, cantava uma canção tão linda, que não quis incomodá-lo.

Quando assisti o filme em minha juventude, já fã de Kurosawa, fui ao filme com uma expectativa de que Kurosawa ia falhar ao tratar de um tema tão profundamente existencial, o filme é genial e emociona.

 

Entre o ordinário e o extraordinário

08 dez

O imenso universo e as imagens e pesquisas que o telescópio James Webb vai revelando nos mostram mais do que a grandeza da ciência o quanto a natureza e conhecimento humano são ínfimos perto da riqueza orgânica e misteriosa do universo se revela.

Não se tratam de descobertas de outros planetas habitados por seres orgânicos como o nosso, mas sim os limites das próprias leis da física a ponto de questionar o que é o tempo e o espaço absoluto a maior revelação da modernidade e da racionalidade, que agora está em mudança pelas leis da relatividade e encaminhada pela noção mais exata do que chamamos de eternidade.

Também na vida cotidiana existem fatos extraordinários, não aqueles proclamados por adivinhos, falsos profetas ou oráculos de uma sabedoria que já se sabe limitada, pela própria visão correta da ciência, incerteza e erro é o seu caminho mais seguro, ou como escreveu Bohr para Einstein: a raiz d todos males é a ideia humana de que alguém detém toda a verdade.

O período do Natal é para os cristãos a revelação de uma verdade nova e extraordinária, no sentido que ela está além de toda razão e ciência humana, por desejo divino Deus se fez homem, numa relação trinitária, desejo de Deus-Pai, concepção do Espírito Santo em uma virgem (ver post anterior) e um divino-humano Deus entre nós entra na história.

O fato é extraordinário porque a história se modificou e se modificará mais ainda como o passar da dimensão espaço-temporal na qual a vida humana está imersa, todos morrem e outros nascem e uma verdade divina vai se revelando através da noosfera, a esfera que a mente ou o espírito habita e a qual ninguém pode negar, porque até mesmos os erros e concepções filosóficas e teológicas estão imersos nela.

Os personagens bíblicos, homens sinceros apesar de seguidores de Jesus, também duvidaram de sua concepção, de sua vida (andar sobre as ondas do mar, a multiplicação dos pães, a cura do cego de nascença, a ressurreição de lazaro) ao todo 36 atos extraordinários dos quais 22 são curas, tudo isto um dia será conhecido pela ciência, é possível, porém foram feitos aquém deste tempo, quando a ciência dava passos iniciais.

Mas há os atos só divinos, como a passagem a pé enxuto pelo mar, a visão da sarça ardente de Moisés e o maior de todos os atos extraordinário, aquele que só a revelação divina pode confirmar, e talvez um dia a faça com algum fenômeno extraordinário, a virgem concebeu e Deus veio habitar entre nós, também ele morreu, mas a crença cristã é que ressuscitou e vive na vida eterna.

Até mesmo a virgem que concebeu, a jovem Maria prometida em casamento a José, que ao saber da notícia anunciada por um anjo duvida do que está acontecendo com ela própria (Lc 1,29): “Maria ficou perturbada com estas palavras e começou a pensar qual seria o significado da salvação”, assim os personagens bíblicos idealizados por teólogos e pastores, foram na verdade muito humanos e não supersticiosos (quadro de Leonardo da Vinci, Anunciação, por volta de 1472).

É verdade depois Maria cantará o seu Magnificat, sabendo que Deus a engrandeceu, mas só depois de andar quilômetros até a casa da prima Izabel, que também recebeu uma graça de ficar virgem na velhice, porém no caso dela não há algo tão extraordinário, são conhecidos casos na história de mulheres com idade avançada que conceberam.

A fé é acreditar no extraordinário, ainda que não esteja na posse dele, saber que é possível a intervenção de Deus na história, e o que o Natal representa é a grande intervenção que é a própria vinda do menino-Deus.

 

A sociedade paliativa ou a ausência da dor

13 abr

A sociedade paliativa explica Byung Chul Han nada tem a ver com a medicina paliativa, pois explica o filósofo coreano-alemão: “Assim, cada crítica da sociedade tem de levar a cabo uma hermenêutica da dor. Caso se deixe a dor apenas a cargo da medicina, deixamos escapar o seu caráter de signo” (Han, 2021).

Lembra um ditado de Ernest Jünger: “Dize tua relação com a dor, e te direi quem és!”, assim não é possível uma crítica sociedade sem uma hermenêutica da dor, a relação com cada sofrimento não só o produzido pela história, mas aquele que está na particularidade de cada Outro.

“A sociedade da sobrevivência perde inteiramente o sentido para a boa vida. Também o desfrute é sacrificado à saúde elevada a um fim em si mesmo” (Han, 2021, p. 34).

Lembra e cita Agamben na sua visão de homo sacer e via nua: “Sem resistência sujeitamo-nos ao o estado de exceção que reduz a vida à vida nua” (Han, 2021, idem).

Na sociedade paliativa “A arte de sofrer a dor se perdeu inteiramente para nós … A dor é agora, um mal sem sentido, que deve ser combatido com analgésicos. Como mera aflição corporal, ela cai inteiramente fora da ordem simbólica” (Han, 2021, p. 41), os grifos são do autor.

Assim hoje remove-se a dor qualquer possibilidade de expressão, ela está condenada a calar-se, e “a sociedade paliativa não permite avivar, verbalizar a dor em uma paixão” (p. 14), grifo do autor.

HAN, Byung-Chul. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021.

VARGAS, Cecília.  Systems of Pain/Networks of Resilience project in one gallery. Curated by Cecilia Vargas, Dickson Center at Waubonsee Community College, June 2018 (foto).

 

A crise civilizatória

23 nov

Não é apenas uma ideia dos apocalípticos, dos pessimistas e dos gostam de tragédias, espíritos sombrios que não refletem realmente sobre a realidade, são aqueles que pensam o humanismo, que olham para uma vida polarizada, fragilizada e impotente diante de uma pandemia (veja a Europa no post anterior) é a crise da fragilidade que não se vê frágil.

Arrogantes, pseudossábios, e pseudoprofetas estão de plantão, porém mesmo um otimista como Edgar Morin se dobra ao perceber um sistema que não consegue lidar com seus problemas fundamentais, ele se desintegra, assim começou sua recente palestra sobre a metamorfose da humanidade, disse no evento: “ele se torna ainda mais bárbaro”, mas lembra que esta não é a primeira e provavelmente não é a última metamorfose da humanidade, fomos na origem (ele disse por mais de 100 mil anos) caçadores e coletores.

Não tinha exército, nem estado e nem classes, mas aos poucos alguns grupos queriam dominar os outros, isto aconteceu na Índia, na China e no Oriente Médio, nos Andes onde se organizou um Império Inca e no México (onde fez a palestra).

Estas sociedades se metamorfosearam para melhor ou pior, ele não fez uma afirmação sobre isto, porém pensa que uma metamorfose sobre os nossos Estados-nações é possível.

Afirma que é preciso ter esperança, mas esperança não é certeza, a esperança que no passado era uma crença agora, porém se a esperança existe ela é o fermento necessário para grandes transformações, e fica subentendido que é neste momento que estamos vivendo esta realidade, num mundo pós-moderno ou pós-pós-moderno, há uma transformação.

Resta-nos saber qual nos leva a destruição, e qual é verdadeiramente portadora da esperança, não dá grandes dicas, mas façamos um exercício.

A primeira grande destruição é a guerra, com o arsenal de armas ultra potentes, até mesmo interplanetárias, há vários objetos em torno do planeta, é preciso defender a paz com a mesma força que defendemos a justiça, uma guerra agora seria uma catástrofe.

A segunda grande destruição é o desiquilíbrio social, a insegurança e a falta de um plano sustentável para o uso dos recursos naturais, os grandes encontros discutem apenas a questão da poluição e o desmatamento em algumas regiões do planeta, quando deveriam discutir o planeta como um todo, a natureza dá sinais de esgotamento e é previsível um maior desiquilíbrio nas forças naturais, de proporções planetárias.

Como afirma Edgar Morin é preciso ter esperança, já passamos outras etapas do processo civilizatório por situações parecidas, claro que a proporção agora é planetária.

Edgar Morin – Do esgotamento à metamorfose dos sistemas – YouTube

 

O grito dos aflitos

04 nov

Em muitos momentos de dificuldades pessoais, conflitos mundiais e tragédias naturais sempre aparente um grito de desespero e dor, porém o nosso tempo é de um grito silencioso daqueles que perdem a razão de viver, também a pandemia provocou em muitos angústia, solidão e desespero.

O famoso quadro O grito do norueguês Edvard Munch (figura) representa uma figura andrógina num momento de profunda angústia e desespero, tendo ao fundo o fiorde de Oslo ao pôr do Sol, caracteriza bem o que significa aflição em nosso tempo, além da miséria e da falta de solidariedade, a angústia e ansiedade da figura pode ser do próprio autor, a frase escrita no alto do quadro: “só pode ter sido pintado por um louco”, analisada pelo Museu Nacional de Oslo concluiu que era mesmo do autor.

O aspecto de ansiedade permaneceria velado, não fosse esta análise, uma vez que o autor declarado em certa ocasião: “tenho sofrido um profundo sentimento de ansiedade que tentei expressar em minha arte”, e isto reflete nossos medos contemporâneos.

A TAG (Transtorno de Ansiedade Generalizada) é um dos sintomas deste quadro, que pode ser também bipolaridade ou algum outro tipo de descontrole, este tipo foi chamado genericamente por Freud de Ansiedade Neurótica, mas há outras duas: a Realista e a Moral.

A ansiedade realista refere-se ao medo de algo existente no mundo exterior, então a pandemia ou uma catástrofe natural (furacão, terremotos, alterações bruscas no clima, etc.) são no fundo um tipo de medo de algo real acontecendo porém que nos coloca numa adrenalina diferente.

A moral é aquela que refere-se ao sentimento de culpa, que desencadeia um medo de ser punido, e isto leva a uma situação de conflito na interioridade, assim a pessoa perde aspectos sensíveis do seu interior: o inconsciente ameaçando adentrar o consciente o que significa na prática uma perda do autocontrole.

Mas os aflitos são também os desamparados, os abandonados e os rejeitados da sociedade, os diversos tipos de preconceitos sobre os quais nascem polêmicas atuais.

Na leitura cristã, o texto de Mateus (5,4) embora algumas traduções coloquem como “aflitos”, a tradução que preferimos aqui: “”Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados!”, porque além do aspecto da “doença” existe o mal estrutural e o mal social que empurram muitas pessoas a este estado, e culpá-las apenas significa acrescenta a qualquer tipo de “aflição” a ansiedade neurótica que nasce de um sentimento de culpa desproporcional, e este é o grande tipo de pressão social atual.

Mas qual seria o consolo de que fala a bíblia, o consolo dos que creem é que o único mal que devem temer é o da alma, assim ao contrário do que diz muitas interpretações moralista, é uma moral equilibrada e sem o exagero da culpa que leva a um estado interior sem este tipo

 

As intermitências da morte

31 ago

José Saramago (1922-2010), além do seu célebre livro Ensaio sobrea Cegueira, escrito em 1995 e que depois tornou-se um filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles e com roteiro de Don McKellar, escreveu muitos outros romances: O memorial do convento (adaptado numa opera), O evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a lucidez, e muitos outros, destaco aqui As intermitências da Morte (2005).

Recebeu no ano de 1998 o prêmio Nobel da Literatura, porém duas obras parecem proféticas para os dias de hoje: O ensaio sobre a cegueira, que já fizemos um post e as Intermitências da Morte.

Cético e irônico, Saramago não deixou de perceber os dramas de nosso tempo, porém a maneira inesperada que acaba O ensaio a cegueira com a volta da visão de muitas pessoas, parece um tanto inexplicável, mas não é para quem ler também o seu Ensaio sobre a Lucidez, diria usando a metáfora heideggeriana que é possível a clareira, se penetramos no drama existencial da vida.

Em As intermitências da Morte, penetra nos dramas existenciais da vida, como um cético religioso, também vai ironizar as saídas com resposta “do alto”, isto é, transferir para “outro mundo” os nossos dramas permanentemente mundanos, entre eles, o que é a própria vida.

Diz numa passagem na página 123: “É possível que só uma educação esmerada, daquelas que já se vêm tornando raras, a par, talvez, do respeito mais ou menos supersticioso que nas almas timoratas a palavra escrita costuma infundir, tenha levado os leitores, embora motivos não lhes faltassem para manifestar explícitos sinais de mal contida impaciência, a não interromperem o que tão profusamente viemos relatando e a quererem que se lhes diga o que é que, entretanto, a morte andou a fazer desde a noite fatal em que anunciou o seu regresso.” (na foto uma figura do quadro de Gustav Klimt).

Depois de indagar em todo livro sobre a vida, coisa pouco comum nos dias de hoje, pois tudo que se quer é a volta a frivolidade, a normalidade do vazio, da ausência de vida, dos consumos e das falsas alegrias, o autor dirá no final do livro que a morte é a normalidade, dito assim:

“Permaneceu no quarto durante todo o dia, almoçou e jantou no hotel. Viu televisão até tarde. Depois meteu-se na cama e apagou a luz. Não dormiu. A morte nunca dorme.” (Saramago, 2005, p. 189).

E conclui que sua ironia comum em tempos que a pandemia sequer era sonhada (sua pandemia foi O Ensaio sobre a cegueira), diz sobre a morte: “(…) Não entendo nada, falar consigo é o mesmo que ter caído num labirinto sem portas, Ora aí está uma excelente definição da vida, Você não é a vida, Sou muito menos complicada que ela, (…)” (Saramago, 2005, p. 198).

Pena, pena mesmo que Saramago jamais tivesse acreditado numa vida verdadeira, esta descrença está também em toda sua obra, em especial “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991), mas ao menos não era indiferente ao tema, algo o “incomodava”.

SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005