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As intermitências da morte
José Saramago (1922-2010), além do seu célebre livro Ensaio sobrea Cegueira, escrito em 1995 e que depois tornou-se um filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles e com roteiro de Don McKellar, escreveu muitos outros romances: O memorial do convento (adaptado numa opera), O evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a lucidez, e muitos outros, destaco aqui As intermitências da Morte (2005).
Recebeu no ano de 1998 o prêmio Nobel da Literatura, porém duas obras parecem proféticas para os dias de hoje: O ensaio sobre a cegueira, que já fizemos um post e as Intermitências da Morte.
Cético e irônico, Saramago não deixou de perceber os dramas de nosso tempo, porém a maneira inesperada que acaba O ensaio a cegueira com a volta da visão de muitas pessoas, parece um tanto inexplicável, mas não é para quem ler também o seu Ensaio sobre a Lucidez, diria usando a metáfora heideggeriana que é possível a clareira, se penetramos no drama existencial da vida.
Em As intermitências da Morte, penetra nos dramas existenciais da vida, como um cético religioso, também vai ironizar as saídas com resposta “do alto”, isto é, transferir para “outro mundo” os nossos dramas permanentemente mundanos, entre eles, o que é a própria vida.
Diz numa passagem na página 123: “É possível que só uma educação esmerada, daquelas que já se vêm tornando raras, a par, talvez, do respeito mais ou menos supersticioso que nas almas timoratas a palavra escrita costuma infundir, tenha levado os leitores, embora motivos não lhes faltassem para manifestar explícitos sinais de mal contida impaciência, a não interromperem o que tão profusamente viemos relatando e a quererem que se lhes diga o que é que, entretanto, a morte andou a fazer desde a noite fatal em que anunciou o seu regresso.” (na foto uma figura do quadro de Gustav Klimt).
Depois de indagar em todo livro sobre a vida, coisa pouco comum nos dias de hoje, pois tudo que se quer é a volta a frivolidade, a normalidade do vazio, da ausência de vida, dos consumos e das falsas alegrias, o autor dirá no final do livro que a morte é a normalidade, dito assim:
“Permaneceu no quarto durante todo o dia, almoçou e jantou no hotel. Viu televisão até tarde. Depois meteu-se na cama e apagou a luz. Não dormiu. A morte nunca dorme.” (Saramago, 2005, p. 189).
E conclui que sua ironia comum em tempos que a pandemia sequer era sonhada (sua pandemia foi O Ensaio sobre a cegueira), diz sobre a morte: “(…) Não entendo nada, falar consigo é o mesmo que ter caído num labirinto sem portas, Ora aí está uma excelente definição da vida, Você não é a vida, Sou muito menos complicada que ela, (…)” (Saramago, 2005, p. 198).
Pena, pena mesmo que Saramago jamais tivesse acreditado numa vida verdadeira, esta descrença está também em toda sua obra, em especial “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991), mas ao menos não era indiferente ao tema, algo o “incomodava”.
SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005
Bem aventurança e beatitude
Embora o termo esteja associado a santidade cristã, e é também um dos seus aspectos, o termo na antiguidade clássica tinha um significado mais genérico, um estado permanente de perfeita satisfação e plenitude que somente um sábio podia alcançar, assim pensava Aristóteles, mas hoje está condicionado somente ao sentido religioso, pretende-se aqui mostrar que podem estar mais próximos do que se pensa.
O significado religioso é também o da felicidade, mas no sentido de gáudio de prazer equilibrado da alma, que só pode alcançar quem desfruta da presença de Deus, que sua plenitude poderá ser atingida somente na vida eterna, mas não significa descartar a vida terrena, “eu vim para que todos tenham vida, e vida em abundância” (Jo 10:10), assim proclama o evangelista, mas o que há de diferentes entre as duas propostas de felicidade.
Aristóteles no livro Das Causas vai dizer que o fim da beatitude é relativo ao desejo da mesma, assim a natureza última deste fim move-se principalmente pelo desejo e este é o prazer, tanto que absorve a vontade e a razão do homem a ponto de fazer desprezar outros bens.
Tanto Boécio, que a igreja também o beatificou (isto é o proclamou feliz, beato e santo), e Aristóteles trataram do tema, e a pergunta deles é o que se o prazer é mesmo o fim último da felicidade, da beatitude e que também Tomás de Aquino vai argumentar ao contrário.
O que diz Boécio é que são tristes as consequências dos prazeres, sabem-no todos os que querem lembrar-se das suas sensualidades, pois, se estas pudesse os fazer felizes, nenhuma razão haveria para que também os brutos não fossem considerados tais, e isto lembra muito os casos atuais de abusos e violências reprováveis.
Para Boécio: “A bem-aventurança é o estado perfeito da junção de todos os bens”, e assim parece que pelo dinheiro poderão se adquirir todas as coisas, porque o Filósofo, no livro V da Ética, afirma que o dinheiro se inventou para ser a fiança de tudo aquilo que o homem quisesse possuir, o que hoje pode ser traduzido como o dinheiro compra tudo.
Além disto diz também Boécio: “Mais brilham as riquezas quando são distribuídas do que quando conservadas. Por isso, a avareza torna os homens odiosos, a generosidade os torna ilustres”, e assim não se condena a riqueza, mas a sua má distribuição.
Na representação acima o quadro “O violinista alegre com um copo de vinho” (1624) de Gerard van Honthorst (1590-1656).
O que há entre a tragédia e o idealismo
O grande tema durante a pandemia, que atrai multidões é a felicidade, não por acaso, já que a felicidade estava em tudo o que está fechado agora: o shopping, o cinema, as casas de orgias e bebedeiras, o simples êxtase de estar em uma multidão frenética por algum motivo frívolo, afinal é a frivolidade que todos almejam que volte, não haverá nada de grandeza em penetrar na tragédia de uma pandemia, é preciso encontrar os culpados e puni-los por banirem a vida frívola e nos colocarem todos em tensão constante, em medo e longe do simples desfrute.
Nietzsche escreveu sobre O nascimento da tragédia, e culpava Empédocles por sua morte, porém foi Hölderling que vai escrever sobre a Morte de Empédocles, foi ele antes de Nietzsche que rediscutiu a tragédia, e o trágico da tragédia, num diálogo com o idealismo alemão e foi quando cunhou a sua frase mais famosa: “onde há medo há salvação”, quase na mesma linha que escreveu Cassius Clay que tornou-se Mohammed Ali: “é a ausência de fé que faz as pessoas temerem desafios”.
A pandemia não é outra coisa senão o fato de entender os limites do humano, a persistência da tragédia em nossas vidas e destinos, e a fatalidade da morte, aqueles que nunca pensaram nela são aquelas que mais a temem agora, nunca ela este tão próxima de todos, mas a tragédia é o mal, ou a falsa venda de felicidade fácil, é nela que se fiam os charlatães da filosofia, da fé e até mesmo da ciência sem “rótulo”.
A Morte de Empédocles, peça inacabada, onde Hölderlin trabalhava de 1797 até 1799, em seus textos poéticos deste período, onde pensava sobre a essência do trágico é marcado por um grande antagonismo, mas sobretudo a unificação do antagonismo com a contradição, onde deixa claro que o tema deveria ser “a verdadeira tragédia moderna”, talvez não durante as duas guerras também trágicas as enfrentamos, mas agora numa pandemia sem fim.
Em sua análise Empédocles odeia a civilização, é inimigo mortal da limitada existência humana, não suporta viver submetido ao tempo, sofre por não ser um deus, por não estar em intima união com o todo, e, por uma necessidade que decorre de seu ser mais profundo, decido morrer jogando-se no vulcão.
É menos mentiroso que os verdadeiros de formulas simplórias para a felicidade, porém trágico que queira ser ele próprio deus e que seria mais “nobre” que admitir um Deus, morto não pela tragédia, mas pelo idealismo alemão, afinal de Fichte a Schelling, a grande expressão que transgride o limite imposto por Kant ao conhecimento humano, ao considerar toda intuição, aquela que sensível aos objetos, torna-se intuição intelectual e intuição artística, sendo capaz de dar um conhecimento imediato ao absoluto, de possibilidade revelações que se dirigem ao todo.
Assim no ensaio “fundamento para Empédocles” diz que a tragédia é a expressão da “unidade íntima mais profunda” que se expõe por oposições reais, a ideia não só deve muito a análise de Schelling, que define a tragédia grega como apresentação conciliadora das contradições da razão, mas antecipa a visão hegeliana do poema trágico como apresentação da “tragédia que o absoluto encena eternamente consigo mesmo”, mas o absoluto aqui é vago, ideal.
No “fundamento para Empédocles”, Hölderling expõe como se dá a oposição harmoniosa entre arte e natureza, apresentando o processo pelo qual a natureza torna-se mais orgânica e o homem, mais aórgico, mais universal.
O conceito de aórgico aqui é fundamento, e a leitura aqui é de Françoise Dastur “Hölderlin, tragédia e modernidade” onde a define como “é a natureza desprovida de organicidade em sua unicidade infinita. O orgânico é a arte, que supõe, pelo contrário, organização e, portanto, oposição das partes”.
A na relação aórgica que pode-se encontrar a pandemia, o culpado é em última instância o vírus, o controle do vírus é questionável até que se tenha a vacina, fomos favoráveis ao isolamento social e em certos momentos do #LockDown, porém é na natureza desprovida de organicidade, um vírus que até então era estranho ao homem que alterou-o e se hominizou colocando o processo civilizatório em cheque, e a natureza parece revidar o que lhe propôs a humanidade.
Hölderlin, Friedrich; Curioni, Marise Moassab. A morte de Empédocles. SP: Iluminuras, 2000.
Uma pandemia com muitos focos
Embora os grandes centros, São Paulo e Rio de Janeiro em especial, registrem quedas de número de infectados e de mortes, a pandemia se interiorizou e chega agora ao mais interior do país, que inclui pequenas cidades pobres, aldeias indígenas e regiões de pouco acesso sanitário.
O gráfico geral mostra uma estabilização em torno das 1200 mortes diárias, mas nem significa o controle da doença, nem qualquer indicativo de queda, já que a expansão para o interior e áreas carentes podem causar novas explosões, isto aliada a uma política de abre e fecha sem critério.
Apresentamos o gráfico geral acima apenas para indicar um gráfico geral, pois a política sob a responsabilidade dos governos regionais e prefeitos (foi determinada pelo STF) não permite dizer que haja uma política nacional de combate, embora as secretarias regionais de saúde se comuniquem e os governos façam leis estaduais, como a que obriga o uso de máscaras, havendo algum controle regional.
Um outro assunto polêmico é o uso de medicamentos, a hidroxicloquina, a polêmica inicial, e agora azitromicina, ivermectina e nitazoxanida não são recomendadas por critérios médicos, os medicamentos no fundo são ministrados caso a caso, por exemplo, para quadros infecciosos, sintomas depressivos ou os problemas respiratórios que são agudos, mas cada paciente pode ter ou não quadro que impeçam o uso de determinado medicamento.
No plano internacional algumas medidas sobre a debilidade econômica começam a ser pensadas, como socorrer os desempregados, como articular planos de ação conjunta entre países, que o grande bom exemplo é o da zona do euro.
As medidas preventivas devem continuar por longo tempo, que prefiro chamar de distanciamento social, porque a flexibilização já é crescente e pouco controlável, usar máscaras, manter uma certa distância em transportes, caminhadas mesmo considerando que são feitas em áreas arejadas são necessárias e fazem parte da chamada nova normalidade, basta ver os países saíram do pico.
No plano social medidas devem ser pensadas não apenas nacionalmente, mas mundialmente porque também as tensões de mercados podem se agravar e este enfrentamentos podem piorar as crises internas de cada país.
A crise cultural e a pandemia
A segunda grande cegueira da crise do ocidente é a cultura, o livro Qualquer Coisa Serve de Theodore Dalrymple, pseudônimo de Anthony Daniels, psiquiatra inglês que tratou de presos perigosos, é uma antologia de contos escritos de 2006 a 2009, e chamou seus estudos de declinologia (veja o vídeo abaixo) porém no livro citado há belas passagens de como ler uma cultura.
Desde os primórdios da cultura humana, a descoberta da Caverna de Chauvet (datada de 32 mil a.C.) prova isto, o homem constrói e registra sua cultura, e aqui um paralelo com o #StayAtHome esta é feita numa caverna, provavelmente local de encontro e proteção de famílias.
Pode parecer demasiado o termo usado por Peter Sloterdijk, mas a domesticação humana não é outra coisa que não a estruturação da vida “doméstica”, e também a origem grega da palavra oikos-nomicus (já fizemos um post) significa oikos – casa.
Acrescentamos aqui o diálogo de socrático de Xenofonte, que se refere ao termo como ser um bom cavalheiro, o Kalokagathos (bom em belo, em grego), que é assim referência a cultura.
Byung Chul Han, que escreveu a Salvação do Belo, onde critica a cultura do liso e em particular a de Jeff Koon e suas esculturas de “baloons” (figura) que muito ou nada dizem, o desejo de uma total imunidade, sem procurar a co-imunidade, conceito de seu mestre Sloterdijk, que pode ser aplicado a pandemia atual.
Um artigo duro, mesmo para mim como apreciador de Byung Chul Han, sobre a atual crise pandêmica, publicado no El País, afirma que: “parece que a Ásia controla melhor a epidemia do que a Europa”, cita os dados de 20 de março quando a epidemia ainda não tinha atingido o auge na Europa e dá como razão a estrutura disciplinada e ancestral do oriente.
Mais cedo do que nós eles apostaram no Big Data afirma o autor, e “suspeitam que o big data pode ter um enorme potencial para se defender da pandemia” diz no artigo de El País, porém alerta que isto pode caminhar para uma ditadura digital, como na China e isto não é mudança.
Sobre a cultura atual autor afirma “hoje não só se volta o polido ao belo, mas também o feio” na obra A Salvação do Belo (pag. 19), esperamos que o flagelo do vírus nos comova os coração e nos faça ir da descoberta da interdependência, como diz Morin, para a solidariedade.
Porém esta solidariedade exercida em conjunto, numa co-imunidade, necessita de um novo conceito do doméstico, da religação, além da conexão digital e do “isolamento” social.
Uma aula de “decliniologia”, com Theodore Dalrymple
O sentido da dor e da Cruz
A morte nos causa dor, medo e até mesmo desespero; diante de uma pandemia ela revela aspectos de tragédia, ansiedade e apreensão, e tudo que podemos fazer para evitar uma dor maior fazemos, mas alguns vão além e se preocupam e se doam para reduzir a dor alheia.
Este é um significado humano, porém o divino vai além que significa ser capaz de doar a própria vida, ou pô-la em risco por amor ao Outro, só neste limite é que entendemos de fato o significado.
Teilhard de Chardin depois de admitir que a cruz significa uma “evasão para fora deste mundo” (p. 114), vai nos explicar que é justamente ela (no caso presente o medo da morte pela pandemia, “que exatamente o caminho do esforço humano, sobrenaturalmente retificado e prolongado. Por termos compreendido plenamente o sentido da Cruz, já nos não arriscamos a pensar que a vida é triste e feia. Simplesmente tornámo-nos mais atentos à sua indizível seriedade” (pag. 115).
Por isso pensamos nos dias felizes que podíamos andar livremente e saborear os ares da cidade, ver as praias agora proibidas de serem frequentadas, os almoços alegres em família, mas é por esta perda que olhamos agora com outros olhos cuja cegueira não podia permitir.
Como seria belo um domingo de Páscoa com toda família, ou simplesmente sair para ver dias alegres de outono no hemisfério sul ou início de primavera no hemisfério norte, mas é esta dor e esta terrível pandemia que nos faz “trocar os óculos”, também no aspecto espiritual.
Assim ressalta Chardin: “ a cruz não é uma coisa in-humana, mas super-humana. Vemos bem que a origem da Humanidade atual a Cruz estava erguida à frente da estrada que leva aos mais altos cumes da criação”, teremos que repensar a vida caseira e a social depois desta pandemia.
Convida-nos Chardin ao mistério: “aproximemo-nos mais. E reconheceremos o Serafim inflamado do Alverne (foto), aquela cuja paixão e cuja compaixão são “incendium mentis”*. Para o cristão, não se trata de desaparecer na sombra da Cruz, mas de subir na luz da Cruz” (pag. 116).
Aproveitar esta noite da pandemia para por luz na “noite da cultura”, na “noite de Deus” e na “noite dos sentidos” que parecia fazer-nos suprimir toda sensibilidade à vida humana e ao Outro.
Vivamos bem estas três “noites” para alcançar uma Páscoa (passagem) para toda humanidade.
*incendium mentis – David Grummet diz que em Chardin é “fogo do amor divino em nossa alma”.
Chardin, T. O meio divino. Lisboa: Editorial Presença, s/d.
A tragédia e as artes
Não estou falando aqui da tragédia no sentido vulgar, mas enquanto categoria artística que não só é importante para compreender as artes e o belo grego, como é reivindicada como uma nova ideia de tragédia “como propuseram Hölderlin, Hegel ou Nietzsche.” (Ranciére, 2009, p. 25).
Assim como Byung Chul Han em “A salvação do belo” vai problematizar o dualismo entre contemplação e ação, típicos da filosofia moderna que separa sujeito de objeto, Rancière penetra mais fundo ao propor sua “revolução estética”, afirmando que o que há é a “abolição de um conjunto ordenado de relação entre o visível e o dizível, o saber e a ação, a atividade e a passividade” (Ranciére, 2009, p. 25).
Disse isto ao analisar o Édipo da “revolução psicanalítica” que invalide “aqueles de Corneille e de Voltaire e que pretenda reatar – para além da tragédia à francesa, bem como da racionalização aristotélica da ação trágica – como o pensamento trágico de Sófocles” (idem, p. 25), na figura acima uma interpretação da pintora Marie Spartali Stillman (1844–1927) de Antígona.
Ranciére vai discorrer nas páginas seguintes de seu capítulo sobre a “revolução estética” sobre a psicanálise dizendo que ela é “inventada nesse ponto em que a filosofia e medicina se colocam reciprocamente em causa para fazer do pensamento uma questão de doença e da doença uma questão do pensamento” (Ranciére, 2009, p. 25).
Grande parte das neo-terapias modernas (chamo de psicanálise exotérica) vai por aí, como se o problema do pensamento idealista fosse “doença” e grande parte do sofrimento humano pudesse ser resolvido como “pensamento” transformando-o em doença.
Isso acontece por má relação com o pensamento da tradição, a modernidade tardia não é senão a má leitura do racionalismo e do idealismo, ou a leitura atrasada do empirismo, o pensamento da ação o “activo” de Hanna Arendt, expresso em Byung Chul Han, é também parte do pensamento da tradição que Ranciére vai identificar no “regime representativo uma potência absoluta do fazer” (Ranciére, 2009, p. 27).
Identifica claramente este regime no discurso de Baumgarten sobre “claridade confusa” (ver post anterior): “no regime estético, essa identidade de um saber e um não-saber, de um agir e de um padecer, que … constitui-se no próprio modo de ser da arte” (idem, p. 27), claro esta é a arte da tradição.
E assim afirma, que a revolução estética já havia se iniciado com Vico, em sua Ciência Nova, que contra Aristóteles e a tradição representativa, embora Rancière saiba que o problema dele não era a teoria da arte, mas o problema teológico-poético da “sabedoria dos egípcios” nos hieróglifos.
Que lugar ocupa a estética em nosso tempo
Imaginava que seria difícil até mesmo impossível abordar o tema, já que dele se ocupam críticos da arte de diversos tipos, psicanalistas freudianos e muito raramente alguém com nosso de estética de fato, no sentido do belo grego, ou da contemplação de que fala Byung Chull Han (que critica a cultura idealista do “liso”).
Encontrei num pequeno texto de Jacques Rancière, cada vez me encontro mais com este autor que conheci sua obra quase por acaso (A emancipação do espectador), ao referir-se ao tema como o inconsciente estético, mas ele próprio explica logo no início fora do aspecto psicológico do tema.
Encontro logo no início do livro: “estética não se ocupa da ciência ou da disciplina que se ocupa da arte. Estética designa um modo de pensamento que se ocupa das coisas da arte” (Rancière, 2009, p. 11) e isto já bastaria, mas complementa seu pensamento e que elas procuram: “dizer em que elas consistem enquanto coisas do pensamento.” (Rancière, 2009, p. 12)
É um achado, mas não poderia ser de modo diferente em dialogar com a “tradição” kantiana, segue logo o complemento que se segue dizendo que arte enquanto pensamento é uma referência recente e refere-se tanto a obra Genealogia da arte de Baumgarten de 1790 quanto a crítica da Faculdade de Julgar de Kant.
De Baumgarten bastaria a simples referência em sua obra onde refere-se a união dos objetos que “devem ser pensados de modo belo com as causas e efeitos, à medida que esta união deve ser conhecida sensitivamente através do análogo da Razão” (Baumgarten, 1933, p. 127) e assim tanto ele quanto Kant estabelecerão um “pensamento confuso” sobre a definição da estética.
Dirá Rancière que ambos ao chamarem de pensamento confuso ou de sensível heterogêneo de Kant, ambos farão da arte “não mais que um conhecimento menor, mas um conhecimento daquilo que não se pensa” (Rancière, 2009, p. 13) e a nota do autor vai uni-la ao iluminismo e liberalismo.
Não há referência explícita ao pensamento de Nietzsche sobre a arte, mas ao discorrer sobre Édipo, a tragédia grega mais típica e Nietzsche defende o papel desta na arte, diz sobre o uso freudiano desta tragédia como “universal”, que ela ao mesmo tempo engloba três aspectos: “uma tendência geral do psiquismo humano, um material ficcional determinado e um esquema dramático considerado exemplar.” (Rancière, 2009, p. 15).
Claro isto é apenas introdutório, o que Ranciére quer explicar é que não se trata de subjetivo ou de “conhecimento confuso”, mas de “união paradoxal de doença e de medicina que se trata, de união paradoxal das duas” (p. 26) em uma referência a “O nascimento da tragédia” de Nietzsche, aquilo que o idealismo como pensamento e o romantismo como “estética” quiserem negar.
Rancière, J. O inconsciente estético. trad. Monica Costa Netto. São Paulo: ed. 34, 2009.
A complexidade, o infinito e Deus
Exceto áreas como a arte e setores da astrofísica o restante da pesquisa científica é prisioneiro de suas próprias metodologias, destina “a manter o equilíbrio do discurso pelo banimento da contradição e da errância; controlava ou guiava todos os desenvolvimentos do pensamento, mas ela própria se colocava à evidencia como impossível de resolver.” (Morin, 2008, pgs. 80-81).
Não significa é evidente destruir o equilíbrio e a racionalidade do pensamento humano, mas deixá-lo penetrar: num sentido do que há de mais simples, de mais elementar, de mais ´infantil’: mudar as bases de partida do raciocínio, as relações associativas, e repulsivas entre alguns conceitos iniciais, mas de que dependem toda a estrutura do raciocínio e todos os desenvolvimentos discursivos possíveis. E isto é, bem entendido o mais difícil.” (Morin, 2008, p. 82).
Assim partimos da ideia “infantil” do infinito, mas que é a grande complexidade também científica do pensamento moderno, a imensidão do universo que é 96% massa e energia escura é ainda misteriosa, mas pode nos ajudar e por fim a ideia que neste infinito há mais do que uma energia, há um Ser vivo que precede o próprio universo pode ser outra “ideia infantil” e generosa: Deus.
A escatologia que decorre destes dois fundamentais um universo misterioso e um Ser que precede a tudo (na escatologia cristão é um Deus trinitário, que é também o ‘homem divino’ Jesus), podem nos dar um diálogo novo no qual o que pensamos sobre matéria, espírito e ciência pode mudar.
A relação essencial de Deus, através de Jesus com o mundo tem como ponto crucial a substituição da metáfora do cordeiro que Abraão matou em lugar do filho (a origem de cordeiro de Deus vem daí), e está manifesta pelo evangelista João sobre João Batista (Jo, 1,29) que viu Jesus se aproximar e disse: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”, disse muito antes da morte de Jesus.
O quadro de Josefa d´Obidos que já postamos aqui em virtude da construção de uma instalação com um holograma, está representado acima.
A lista do essencial
Carregamos demasiados fardos, não apenas as malas, sacolas, até mesmo livros e afazeres em excesso, porque o mundo contemporâneo tem dificuldade de elaborar a lista do essencial.
Cuidar dos pequenos afazeres domésticos, não os deixando só por conta dos outros, levar o trabalho a sério e ter tempo para descanso, tratando também daquilo que pode nos tirar do stress e da ansiedade da vida cotidiana, ter tempo para os familiares e para meditar, contemplar ou mesmo apenas pensar.
Os quadros, pinturas e música barrocos parecem falar de um mundo parado, calmo demais para meu gosto diriam alguns, mas os aspectos de flores, “bodegons” e natureza morta indicam uma outra coisa que se tem dificuldade de perceber nos dias de hoje: fluxo de energia.
Não é a energia da força, mas a da alma e do espírito, aquela que de fato pode nos colocar no essencial diante de uma vida tão atribulada, cheia de conflitos e de valores contraditórios, até mesmo que os apregoa tem dificuldade de viver, é o fluxo do dia-a-dia, que não é fluxo de vida, de energia se pode dizer da arte barroca.
Alguma forma de espiritualidade e de bem estar interior é responsável pela harmonia e vida no exterior, ainda que o cotidiano nos empurre no sentido contrário, é preciso ter a capacidade de “sair do convencional” para estabelecer a lista do essencial.
Ao receber o pedido dos apóstolos para ensiná-los a rezar, poderíamos pensar em meditar ou mesmo apenas pensar para pessoas que não tem referencial religioso, pode-se para todos indicar o Pai Nosso, aquele que está nos “céus” não distante, mas contemplativo e no Ser.
Que seja santo o seu nome, em termos atuais, que seja sempre presente a meditação e a contemplação, venha o teu reino de paz e harmonia, senão exterior para o qual lutamos, ao menos o interior para enfrentar as dificuldades conjunturais.
E por último trabalhemos para o pão de cada dia, sem procurar o excesso e o consumismo, que sejamos capazes de perdoar e ser perdoados para ir além do conflito do dia-a-dia.
E livra-nos do mal da guerra, da destruição da natureza e de todos os males sociais.