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O que é compreender
Compreender se tornou na estrutura analítica ocidental um círculo vicioso que tende apenas a repetir aquilo que considera verdade partindo de algum aforisma histórico, o que Gadamer chama de historicismo romântico em sua crítica a Dilthey.
O esquecimento do ser ignora que o círculo hermenêutico que vai da interpretação até uma nova compreensão é a própria estrutura de um novo sentido, um sentido existência, que está no Ser.
Assim a circularidade da compreensão não é primeiramente uma exigência lógica, a partir de um método A ou B, mas o próprio desdobramento ontológico: “a reflexão hermenêutica de Heidegger tem o seu ponto alto não no fato de demonstrar que aqui prejaz um círculo, mas um círculo este tem um sentido ontológico positivo” (GADAMER, 2013, p. 355).
Heidegger (2014) em sua obra magna Ser e Tempo elaborou uma hermenêutica da facticidade a partir da analítica temporal da existência humana (Dasein), aqui facticidade é o modo de ser em seu Dasein que encontra, na existência temporal, a possibilidade de revelação, de clareira:
“A estrutura da temporalidade aparece assim como a determinação ontológica da subjetividade. Mas ela era mais que isso. A tese de Heidegger era o próprio ser é tempo” (Gadamer, 203, p. 345), eis a essência mais profunda da obra de Heidegger, que aponta para o círculo hermenêutico:
“O decisivo não é sair do círculo, mas nele penetrar de modo correto. Esse círculo do entender não é um círculo comum, em que se move um modo de conhecimento qualquer, mas é a expressão da existenciária estrutura-do-prévio do Dasein ele mesmo. O círculo não deve ser degradado em vitiosum nem ser também tolerado. Nele se abriga uma possibilidade positiva de conhecimento o mais originário, possibilidade que só pode ser verdadeiramente efetivada de modo autêntico, se a interpretação entende que sua primeira, constante e última tarefa consiste em não deixar que o ter- prévio, o ver-prévio e o conceber-prévio lhe sejam dados por ocorrências e conceitos populares” (Heidegger, 2014, p.433), mas dirigir-se as coisas mesmas.
O compreender visto assim pode parecer filosófico demais ou uma teorização sobre o pensar, não o é, pois, mesmo no esquecimento do Ser, estrutura atual de fragilidade do pensamento, este é o processo de aprendizagem que envolve desde o aprendizado da linguagem por uma criança até os mais elaborados métodos de descoberta e inovação, ou são apenas repetição de algo já feito, e assim sem a facticidade, pois é mera repetição.
GADAMER, H-G. Verdade e método Trad. Flávio Paulo Meurer, revisão da tradução de Enio Paulo Giachini. 13. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2013.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo Tradução, organização, nota prévia, anexos e notas de Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014.
Um filósofo oriental lê a “clareira”
Byung Chul-Han é um filosofo coreano-alemão que migrou para o ocidente e faz uma leitura impar da literatura ocidental, em particular o contexto das redes e das novas mídias, estudou em seu doutorado Heidegger e com isto sua “clareira”.
Explica o que é a clareira de modo simples: “A ´verdade´ de Heidegger ama se ocultar. Ela não se dispõe simplesmente. Ela tem de, primeiramente, ser ´arrancada´ do seu ´velamento´. A negatividade do ´velamento´ habita na verdade como o seu ´coração´” (Han, 2018, p. 74) e neste trecho cita a obra de Heidegger: “Sobre a questão do pensar”.
Ele penetra no que significa a informação, o grande insumo do Ser velado atual, “falta a informação, em contrapartida, o espaço interior, a interioridade que permitiria se retirar ou se velar. Nela não bate, Heidegger diria, nenhum coração” (Han, 2018, p. 74).
Esta ausência de contrapartida, é o que Chul Han chama de negatividade, é bom explicá-la bem, “uma pura positividade, uma pura exterioridade caracteriza a informação”, assim é o refletir.
Como seria então a informação da negatividade, no sentido de reflexão, é a informação “seletiva e aditiva, enquanto a verdade é exclusiva e seletiva. Diferentemente da informação, ela não produz nenhum monte [Haufen]” (Han, 2018, p. 74).
Assim, não há ‘massas de verdade” e sim “massas de informação”, é a “massificação do positivo” (Han, 2018, p. 75), assim informação distingue-se do saber, e este não “está simplesmente disponível”, diria nem simplesmente porque é complexo e nem disponível porque está oculto.
Porém o filósofo a confunde com experiência de vida, ao afirmar: “não raramente, uma longa experiência o antecede” (idem, p. 75), e afirma só uma face da informação: “a informação é explícita, enquanto o saber toma, frequentemente, uma forma implícita”.
Esclarecendo estes dois pontos confusos, primeiro a questão da experiência, o filósofo Platão foi o primeiro a anunciar que a sabedoria, como conhecimento da verdade não é fruto da idade, se assim fosse somente na velhice as pessoas mereceriam ser ouvidas, a outra questão é sobre a informação tácita, ela existe como conhecimento tácito, Michael Polanyi (1958), foi um dos primeiros a teoria, e Collins nos anos setenta retomou o conceito no âmbito da comunicação científica. Para esta informação tácita, Chul Han também aponta isto, é preciso “silêncio”.
A clareira mais profunda o filósofo descreve citando Michel Butor, que deu uma entrevista ao Die Ziet, em 12/07/2012, que aponta para a verdadeira causa: “A causa [disso] é uma crise de comunicação. Os novos meios de comunicação são dignos de admiração, mas eles causam um barulho infernal” (Butor apud HAN, 2018, pg. 42).
Referências:
POLANYI, M. Personal knowledge – towards a post-critical Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press, 1958.
COLLINS, H. M. The TEA set: tacit knowledge and scientific networks. Science Studies, v.4, p.165-186, 1974.
HAN, B. C. No enxame: perspectivas do digital. No Enxame: perspectivas do digital. Trad. Lucas Machado. São Paulo: Editora Vozes, 2018.
A porta larga dos equívocos modernos
Um grande número de enunciados, proposições e teorias científicas ou não emergem em meio ao período de pouca luz na cultura ocidental, crescem teorias apocalípticas e uma visão cada vez mais maniqueísta da realidade, a visão de uma lógica dualista e sem terceira hipótese.
Ao mesmo tempo descoberta como a física quântica, a holografia, e uma nova cosmovisão do universo emergem, porém há quem acredite que a terra é plana e que nunca fomos a Lua.
São demasiados problemas específicos para serem tratados, mas a filosofia de um modo geral contemporânea mais que neoliberal, este é seu aspecto pragmático econômico, ela é idealista e mesmo filosofo-youtubers que discursam sobre filosofia a seguem.
Kant é complexo, mas seu ponto central é a dicotomia entre sujeito e objeto, como elas não podem ser separadas, ao menos em termos de teoria do conhecimento, ele criou os juízos analíticos e sintéticos. Quem curamos a doença ou o doente, para Kant seria a doença, com olhar “de fora”.
O juízo analítico é aquele que o predicado está dentro do sujeito, e assim é ele que especifica sua lógica, e esta lógica vem de uma visão físico-matemática do conhecimento na modernidade.
Exemplifica usando figuras geométricas como o triângulo e o quadrado, claro este tem quatro lados, mas isto não é uma dedução e sim uma tautológica, definições circulares.
Já o juízo sintético ao contrário não pode estar contido no sujeito, assim acrescenta um raciocínio como algo completamente novo, ou seja, a novidade é o predicado.
Está muito simplificado, mas essencialmente desenvolve-se uma lógica onde Ser e Ente são coisas confusas e desmonta a possibilidade de uma ontologia, mesmo que seja parcial, e imaginava com isto jogar toda as “superstições” fora, o famoso “Sapere audi”, ousar saber.
Como a razão por si só não bastava, foi necessário introduzir a ideia do empirismo, que vinha das argumentações de David Hume (1711-1776, assim os juízos podem a priori, que já existem no sujeito, e a posteriori, adquirido experimentalmente.
Moritz Schlick (1882-1936), que fundou a escola neologicista do Circulo de Viena, criticou a base idealista de um conhecimento a priori, afirmando que uma vez que os enunciados têm uma verdade lógica, eles não são nem analíticos nem sintéticos, tal como argumentava Kant, pois era paradoxal; e que se a verdade depende do conteúdo factual, os enunciados são, portanto a posteriori e não a priori, uma vez que os fatos devem acontecer, Schlick foi assassinado pelo nazismo.
No círculo de Viena estiveram presentes Kurt Gòdel, Karl Popper, Hans Kelsen e outros.
Uma mesma proposição pode ser conhecida por agentes cognitivos tanto a priori como a posteriori, usando o mesmo exemplo de Kant, uma criação só sabe que o quadrado tem 4 lados depois que aprende a contar, enquanto para um adulto parece “indutivo”.
Assim o conhecimento é uma relação entre agentes cognitivos e as proposições, que primitivamente não são nem a priori nem a posterior, poderão ser conhecidas por fatos.
Em 1936 Husserl escreve sobre a “Crise dsa ciências europeias e a fenomenologia transcedental”, o conhecimento estava em plena crise, em meio a II guerra mundial.
O vídeo abaixo elucida o pensamento de Kant, com comentários de Antonio Joaquim Severino;
O futuro e diálogos pouco abertos
A ideia que estamos próximos a uma grande mudança está na boca de muitos apocalípticos e de alguns teóricos e até filósofos idealistas, embora a maioria reivindique abertura e diálogo, o que pensam sobre ele não é elaborado, fazem longos discursos e tecem narrativas irreais, porém querem ouvir a própria voz.
O verdadeiro diálogo entre tradição e mudança, felizmente há neste campo muita gente fazendo isto de modo apropriado, deve propiciar ao mesmo tempo uma releitura do passado, um respeito e a compreensão do porque dos fatos aconteceram desta ou daquela forma.
Esta é a leitura desde os pré-socráticos, passando pela alta e baixa idade média, o renascimento e o iluminismo, embora cada período se possa fazer a crítica, e até ela deve ser bem feita, é fácil fazer a releitura crítica porque este tempo passou e difícil deste tempo, porque ele chegou.
Difícil principalmente do iluminismo e da modernidade, a pós-modernidade ou ainda a tardia, ou sua continuidade, ainda tem difícil leitura porque a transição não se realizou e o problema que se coloca é a dificuldade de ultrapassá-la, quase todos concordarão que a modernidade já é mais tradição do que qualquer possibilidade de uma nova “revolução” dentro do seu pensamento, embora as tentativas sejam muitas.
Nietzsche chamava este dilema de “eterno retorno”, ele já percebia em seu tempo e há quem ache que isto é novo, e em parte tinha razão pelo horizonte que via no seu tempo, mas quando o novo não nasce o pensamento tradicional padece de envelhecimento e de mesmice.
Tenta-se dar-se um ar “novo”, ou “criativo”, mas não há nada que realmente mude a realidade.
Grandes problemas socioculturais de nosso tempo, morais e até religiosos não se mudarão sem uma perspectiva nova, embora redundante dir-se-ia um “novo” novíssimo, e para que de fato não seja pura imaginação, deve-se encontrar elementos já vivos que apontam o futuro.
Três elementos novos são visíveis: um planeta mundializado, é já possível ver-se como mundo embora ainda não se respeitem culturais diferentes, um esgotamento das forças da natureza, o domínio da natureza pelo homem foi o grande modo da modernidade, e o fim da fome e da miséria no planeta, embora com recursos disponíveis para tal, não se realizou.
Claro que há muitos outros fatores, mas eles são decorrentes da falta de diálogo com o futuro, a centralização de grupos autocráticos, a ausência de uma política e cultura em rede, embora os mecanismos para isto existam, são combatidas como “alienação” e até como responsáveis por problema que existem muito antes de qualquer pensamento sobre as novas tecnologias.
As novas gerações sabem o que é novo, alguns “velhos” tentam retomar o “protagonismo”.
Morte aparente do pensamento
Se há uma esfera além da pura antropologia e do cientificismo darwinista não está apenas no pensamento religioso, mas também no pensamento que vai além do humano, este pensamento embora em crise, está presente na filosofia contemporânea.
Peter Sloterdijk escreveu A morte aparente do pensar: sobre a filosofia e a ciência como uma vida de exercícios, seu tema geral sobre a sociedade contemporânea como “uma vida de exercícios”.
O livro é o resultado de várias palestras proferidas em 2009 chamada de Palestras “unseld”, no Fórum Scientiarum da Universidade de Tübingen cujo tema era “A antropologia nas discussões da ciência”, e o autor propõe duas formas de antropotécnica, a de curto alcance (Tens de mudar sua via) e uma de longo alcance chamada Selbstverbesserung (aprimoramento do sim).
Há uma releitura de Kant e Cassirer devido a um excesso ontológico, que compensa o “déficit biológico”, explico melhor, o ser que procura transcender a uma realidade biológica deficiente, de tal forma que o seu “exercício de vida” geral novos problemas, teorias filosóficas e científicas.
Vendo que a exposição e práticas na história usual das ideias tornaram possível a existência de uma improvável ciência e filosofia, ele elabora uma genealogia do “homo teórico”, o “puro observador”.
Analisa as condições que surge no Ocidente a atitude teórica em geral, e a ciência em particular, onde vê o que ele denominará “o assassinato de um morto aparente” (p. 14), ampliará a noção husserliana do epoché, colocar entre parêntesis toda exterioridade e juízo, e amplia este conceito.
O método genealógico proposto capaz de reelaborar a origem do produto das ciências, implica o que Nietzsche adotou como atitude de suspeita: “Será que o homo teórico realmente vem de um berço tão alto quanto ele garante-se desde os primeiros dias? Ou é melhor um bastardo que quer impressionar com títulos falsos? ” (p.57), a provocação tem um caminho anterior já trilhado.
Ira e Tempo (2006), refere-se ao produto do fracasso no espaço da polís), psicológico (para uma disposição psíquica de se distanciar do meio), sociológica (por uma pedagogia de formação do indivíduo) e meio-teórico (o resultado de uma cultura escrita que predispõe a distância de um texto, que por sua vez mantém a distância do tempo da vida.
Todo este arcabouço e para dizer que estamos diante de dilemas extremamente duros para o homem, para o pensamento e para o próprio processo civilizatória, é além e aquém da pandemia, a irrupção do real em Marx e nos neohegelianos, o perspectivismo nietzschiano, a consciência de classe em Lukács, a trajetória de Heidegger, a revolução ética nas ciências naturais depois de Hiroshima e Nagasaki, o compromisso existencialista, o conhecimento em Scheler, Kuhn e Foucault, a desmistificação do isolamento em pesquisa científica de Latour e CTS (Ciência, tecnologia e Sociedade) (pags. 121-129).
SLOTERDIJK, P. Muerte aparente en el pensar. Sobre la filosofía y la ciencia como ejercicio. Siruela. Barcelona, 2013.
As meditações cartesianas e a fenomenologia
Um pequeno livro de Edmund Husserl, que foi uma compilação de uma conferência em Paris, foi o opúsculo Meditações Cartesianas, onde faz cinco aportes e é a partir daí que dá origem a uma formulação consistente da fenomenologia.
O caminho de um Ego Transcendental, diferente da transcendência idealista em direção ao objeto, é uma direção ao Outro, ou outros eu´s, uma superação do estatuto do transcendente ligado ao objeto, assim descreve Husserl: “…. imediatamente se torna patente que o alcance de uma tal teoria é muito maior do que parece à primeira vista, dado que ela também conjuntamente funda uma teoria transcendental do mundo objetivo …” (HUSSERL, 2010, p. 134).
Ao admitir e se relacionar com a subjetividade alheia (um outro alter ego) tanto os objetos da cultura como o mundo compartilhado, cria uma intersubjetividade (HUSSERL, 2010, p. 134-35), agora do fenômeno transcendental “mundo” é retirada uma camada de sentido que possa ser remetida à constituição intersubjetiva.
A crítica da experiência feita por Husserl no início das Meditações, leva a primazia da experiência Imanente (apodítica do cogito, preso a lógica) enquanto a experiência transcendente (o mundo exterior e os outros incluídos) não se reduzindo a experiência transcendental em direção ao objeto.
Husserl usa também o conceito de solipsismo que é a ideia que que só existe o ato de pensar e o próprio eu, veja que neste raciocínio a própria existência do objeto é postar em dúvida o que é resolvido pela experiência, neste caso há um solipsismo gnosiológico onde os outros entes (seres humanos e objetos) só existem na mente e não na consciência.
A doutrina fenomenológica fundamenta-se que o mundo objetivo da ciência está voltado a experiência e no pensamento pré-reflexivo e pré-científico porque está ligado a subjetividade, para modificar esta relação de ser no mundo, incorporando o mundo da vida (Lebenswelt) de onde surge a necessidade de uma antropologia filosófica e uma epistemologia que responda estas a este desafio.
Como consequência deste pensamento surgiu a ontologia fenomenológica como uma possibilidade clara no próprio projeto de Husserl, embora não tenha aprovado num primeiro momento o trabalho de Heidegger.
Outra possibilidade de uma hermenêutica filosófica como foi elaborada por Hans-Georg Gadamer também estava ali desenhada e o círculo hermenêutico já estava em projeto no pensamento de Heidegger.
HUSSERL, E. Meditações cartesianas e conferências de Paris. Tradução de P. M. S. Alves. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2010.
O esgotamento do humanismo e co-imunidade
Quando Peter Sloterdijk proferiu sua palestra “regras para o parque humano” em 17 de julho de 1999 num colóquio dedicado a Heidegger e Lévinas, no castelo de Elmau na Baviera, apesar de ter na platéia Teólogos a reação maior foi dos meios de comunicação, ao afirmar o surgimento de uma “antropotécnica” e manipulações genéticas, os ecos foram ouvidos na França e também no Brasil onde foi publicada uma reportagem no Caderno Mais da Folha de São Paulo.
O que o filósofo alerta, em sua linguagem rica em metáforas para tornar sua intrincada filosofia mais clara, afirmava que o trabalho de domesticação humana havia fracassado, em resumo, esta era sua resposta à Carta sobre o Humanismo de Heidegger, e a sua palestra se tornaria um livro de grande repercussão.
Depois vieram outras polêmicas, sobre a ecologia por exemplo, afirmou que “oscilaremos entre um estado de desperdício maníaco e de parcimônia depressiva”, em palestra intitulada “sobre a fúria de titãs no século 21” ou seja, entre duas forças opostas: o minimalismo e o maximalismo, o que chama de frivolidade de nossos atos.
Falou também na referida palestra, sobre a decadência do conceito da ética: “antigamente … vinha de um sentimento de obrigação, de virtude. A responsabilidade só se torna uma categoria importante quando as pessoas fazem coisas cujas consequências não conseguem controlar” e alerta que o termo responsabilidade é novo em filosofia, também nas ciências humanas.
Em resposta em uma entrevista ao jornal El País, o filósofo criador do conceito de co-imunidade, afirmou que a situação atual exigirá “a necessidade de uma prática mais profunda do mutualismo, ou seja, a proteção mútua generalizada, como digo em Você Tem que Mudar a Sua Vida”, livro sem tradução para o português.
Além desta necessidade, o que o conjunto da situação atual que revela um desequilíbrio global da natureza ao social, indica que fatores externos e inorgânicos (de alguma forma a natureza vai reagir) poderá acelerar o processo de mutualismo, como o vírus nos fez repensar a imunidade, talvez algum efeito aórgico poderá acontecer.
O humanismo está preso a frivolidade do pensamento idealista.
João Damasceno e a pericorese
Mesmo aos que não creem o conceito de pericorese é importante porque torna a ideia de relação algo mais substancial, embora já se admita que o homem é um ser relacional, a relação está cheia de dualismos e interpretações não trinitárias (no caso dos cristãos) e pode levar a indiferença.
Depois de resolvido o dogma trinitário pelos padres capadócios, que explicaram que Deus é Uno e Trino, são pessoas (hipóstase) e mantem a unidade (ousia), Damasceno vai se debruçar sobre a relação entre as três pessoas e cria um termo usado também na filosofia: pericorese, a interpenetração nas relações, isto é a possibilidade de ouvir o Outro não apenas por respeito, que já seria um passo, mas tentando penetrar e entender as razões de seu pensamento.
Foi João Damasceno (675-749) ou de Damasco foi um padre Sirio, que estudo direito e musica e na teologia estudou relação de pericorese ou a relação trinitária, o termo emerge propondo a articulação entre a unidade e a comunhão na Trindade, parece simples dizer isto, mas difícil de entender e praticar, pois a maioria das relações excluem o Outro que é diferente, seja ele de cor, raça, credo ou cultura, muito a frente do seu tempo João Damasceno era amigo dos sarracenos, mas tarde a igreja católica o tornou santo.
No seu percurso teológico histórico procurou buscar algo que explicasse a relação, que estive de acordo com aquilo que as escrituras diziam de Deus e sua relevância na história: a articulação entre o conceito de Deus que é trino e uno, mas sendo cada um, uma pessoa singular (prosopon) e Deus, João estruturou a via intra-trinitária, a partir do conceito grego de pessoa: hipóstase.
Na palavra grega significa hypo, o que é sub, debaixo, e stasis, o que está sub-posto, como se fosse um suporte, porém como relação divina este conceito devia ser ampliado e explicado.
O termo pericorese emerge nesta Teologia Patrística, como a articulação entre unidade e comunhão da Trindade, mas indo além, assim o Pai é uno no Filho e o Filho uno no Pai, e ambos unos no Espírito Santo, assim há uma interprenetração, é mais que pura relação, é Ser no Outro.
O problema de algumas interpretações religiosas é a relação estática dos três, que é a relação dualista que vem da filosofia idealista, onde sujeito e objeto estão separados e são relacionais por um tipo de transcendência, que na verdade nada tem a ver com o mistério Divino nem é religiosa.
O mistério divino tem a ver com o período Pascal, morte e ressurreição numa relação trinitária, na filosofia há algo semelhante que é a epoché, a suspensão de conceitos (ou juízos religiosos) porém colocados entre parênteses, gera assim uma abertura que permite a relação, e como resultado que cada pessoa é compreendida, ela não perde sua identidade e é capaz de entender o Outro.
Numa ascese espiritual mais profunda é o esforço de entender e amar o Outro que é diferente, que não é meu espelho, não tem os meus conceitos e juízos, não classifica o mundo como eu, a grande tragédia de nossos dias é a falta de pericorese, e assim de relações trinitárias.
Penso que a pandemia nos mostra isto, mesmo tendo uma grande dor que mata a todos e que sensibiliza muita gente, que abre o coração para olhar o sofrimento do outro, há aqueles que se fecham em grupos, ideias e esquemas para não olhar a dor, a fome e o desespero que a pandemia gerou, ou acordamos juntos ou perecemos juntos, ficar na nossa trincheira é não relacional.
LockDown e frivolidade
Enquanto o vírus se expande e começa a chegar mais no interior do Brasil e em muitos lugares a vida continua “normal”, enquanto a Europa tenta aos poucos voltar a nova normalidade, isto é, voltar ao comércio e o consumismo e a vida agitada anterior, que Sloterdijk chama de frivolidade (El país).
São dois cenários, o caso brasileiro enquanto alguns apostam que a curva chegou no platô, os novos dados apontam para uma expansão ainda maior do vírus, apostar que podemos conter a grave situação pandêmica com medidas pouco radicais vai se mostrando ineficiente.
A razão da pressão para abertura do comércio, mais que econômica, é claro que ela atinge a economia de todo o planeta, o motivo real na cabeça de muitas pessoas é voltar ao dia a dia de um elevado stress, de correria e de consumismo para aqueles que dispõe de recursos para isto.
Atingimos, no Brasil, o patamar de 10 mil mortes, tanto na vida pessoal quanto na vida social, se chegamos a uma gravidade de uma doença ou tomamos medidas radicais ou assistimos ao total agravamento da doença, no caso social, a expansão virótica e o agravamento da pandemia.
Na reflexão de Sloterdijk, que escreveu ao meu ver, dois livros emblemáticos Esferas e Crítica da Razão Cínica, ele apresenta dois conceitos-chave que são a coimunidade e a antropotécnica.
O primeiro conceito de coimunidade significa que podemos estabelecer um compromisso individual voltado à proteção mútua, que marcaria uma nova maneira mundial de enfrentar os problemas e o conceito de antropotécnica significa entender que as técnicas, neste caso e é o principal conceito usado por Sloterdijk, a biotecnologia, ou seja, o que inclui a manipulação genética.
Quando lançado gerou muita polêmica na Europa, devido a manipulação de genes por exemplo, porém agora que as principais pesquisas de defesa do coronavirus mostram a importância do uso de anticorpos para a produção da vacina, e a primeira coisa foi a foi a sequenciação genética.
O agravamento da crise brasileira exigirá um confinamento mais sério, ou veremos os números extrapolarem e o Sistema de Saúde já praticamente esgotado.
O confinamento é necessário e a volta a frivolidade deve ser repensada como forma não apenas de evitar uma crise econômica maior, mas principalmente a distribuição de bens mais justa.
A importância do legado de Droysen
Afirmamos na semana anterior (ver o post) que tanto a perspectiva do helenismo de Droysen (ele cunhou o termo) quanto a perspectiva do verdadeiro significado da história sua eram mais amplas, muito antes das críticas de Gadamer ao historicismo “romântico”, este autor que foi aluno de Hegel, já o tinha feito e com muita propriedade pois além de aluno, penetrou neste conceito do qual Hegel é fundador na filosofia moderna.
Johann Gustav Droysen (1808-1884) questionava o princípio da historicidade, e, muito antes do seu tempo questionou os historiadores sobre os fundamentos “científicos” de um certo perspectivismo e relativismo, assim como também indiretamente questionava Dilthey na tentativa de usar a história para fundamentar as Ciências do Espírito.
Droysen em seu Compêndio sobre a História (Grundriss der Historik) que não era adequado à História, tendo esta a pretensão de ser ciência, tomar seu método emprestado de outra perspectiva do conhecimento, que é a ciência natural, mesmo que como “exemplo”.
A solução por ele apresentada, parecida a de Gadamer, sintetizável na noção metodológica de Compreensão Investigativa (forschendes Verstehen), visava dar a História a possibilidade de uma ciência autônoma, assim para ele existe algo que precede ao dualismo explicação x compreensão, que é a história, o que chamamos na semana passada de “forma” do pensar.
A sua obra Compêndio da Historia (Grundiss der Historik) de 1857/1858 está disponível em versão espanhola (1983) e versão italiana (1989), ainda ser versão em português.
É de interesse particular, pelo menos o foi para mim, o capítulo 3 que trata do problema hermenêutico da compreensão, que dá uma noção da aplicabilidade do seu método.
A ligação que podemos e devemos fazer com a questão moral, do tópico anterior, pode ser encontrada na página 386 de seu trabalho Teologia dela Storia (tradução italiana):
“… nós temos a necessidade de um Kant, que examinasse criticamente não a matéria histórica, mas o movimento teórico e prático diante e no interior da história, e que demonstrasse, a exemplo de qualquer coisa análoga a lei moral, um imperativo categoria da história, a fonte viva da qual jorra a vida histórica da humanidade. ” (DROYSEN, 1966, p. 386).
Droysen observa naquilo que chama de “Sistemática” três tipos de comunidades éticas: “as comunidades naturais”, “as comunidades ideais” e “as comunidades práticas” (figura acima), e a elas relaciona da história, dito assim: “a nossa sistemática resultou da noção de que o mundo história é o mundo ético, mas enquanto concebido sob um determinado ponto de vista; porque o mundo ético pode ser considerado sob outros pontos de visa …” (Droysen, 1994, p. 413).
O seu devir, portanto, está longe da dialética hegeliana, mas ao mesmo tempo dialoga com ela.
DROYSEN, J. G. Teologia dela Storia. Prefazione ala Storia dell´Ellenismo II – 1843. In: Istorica. Lezioni sula Encilopedia e Metodologia dela storia. Trad.: I. Milano – Napoli: Emery, 1966.
_______. Istorica. Lezioni di enciclopédia e metodologia dela storia. Trad. Silvia Caianiello. Napoli: Guida, 1994.