Arquivo para a ‘Método e Verdade Científica’ Categoria
A crise do pensamento simplista e o complexo
A epistemologia da complexidade é um ramo da epistemologia que estuda os sistemas complexos e fenômenos emergentes associados, em alguns ambientes como na mecânica e na física construíram uma tendência a aprofundar o que até então eram apenas chamados de sistemas dinâmicos, e agora sistemas não lineares ou caóticos.
O processo de industrialização serviu de grande suporte para um desenvolvimento até então impensáveis das ciências naturais, depois a geração de tecnologias: o vapor e a combustão, depois a eletricidade, e tudo parecia mover-se numa engrenagem perfeita.
Tudo se caracterizou até um certo momento em um movimento que Edgar Morin chamou de disjuntor-e-redutor, tanto as ciências como nas artes a ideia de reduzir o que é complexo ao simples (por exemplo, buscar na menor parte da física até então, os átomos) uma realidade que aos poucos mostrou-se complexas (sub-partículas em dimensões cada vez mais microscópicas até chegar ao universo quântico).
As particularidades da física subatômica introduziram incertezas e mostrou os limites do reducionismo que estava levando a uma visão distorcida da realidade, mostrou suas incertezas e ingenuidades, a pretensão de captar uma realidade objetiva que poderia ser independente do observador, quanto o próprio observador faz parte do fenômeno.
Assim esta lógica redutora-reducionista da física ampliou-se para o universo social e pessoal, e mecanismos aparentemente simples poderiam resolver problemas que são complexos, e toda a problematização decorrente desta realidade não foi observada.
O pensamento complexo não se limita ao mundo acadêmico, ele transborda e está presente em diversos setores da sociedade, assim como o simplismo de raciocínios que não contemplam a complexidade e a diversidade da vida social.
Também no mundo espiritual (ou subjetivo como poderia pensar quando vemos os objetos foram da realidade do sujeito) este equívoco nos conduz a uma porta larga, onde os valores básicos do humanismo podem ser ignorados e a vida fragmentada.
Assim a porta por onde passam lógica simplistas e triviais conduzem a grandes e problemáticos enganos, enquanto a complexidade de um caminho socialmente justo e verdadeiro não se reduz às formas ideológicas simplistas e pouco humanas.
Passar pela porta estreita nunca será um caminho fácil, porém o único que pode conduzir a humanidade a um futuro sustentável e realmente humano, de paz, de fraternidade e de valores sociais de respeito a dignidade humana.
A ausência de equilíbrio e do Ser
Uma análise da cultura ocidental não pode ficar sem a compreensão da Ira, diversos autores analisaram a questão, Byung-Chul Han lembra que uma das primeiras palavras na Ilíada de Homero que começa assim: “Aira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades”, mas não é só.
Aristóteles define raiva como: ““um desejo, acompanhado de dor, de vingança percebida, em razão de uma desconsideração percebida em relação a um indivíduo ou seu próximo, vinda de pessoas das quais não se espera uma desconsideração” (2.2.1378a31-33) escreveu sobre Retórica, porém Peter em seu ensaio Ira e Tempo ressignifica esta visão psicanalítica que reduz o sentimento a uma mera válvula de escape para desejos não realizados e a redescobre como um conceito político do século XXI (imagem parte da capa).
Diz o autor “Enquanto a ligação entre espírito e ressentimento era estável – a exigência por justiça para o mundo – seja para além da vida terrena, seja na história que acontece – pôde se refugiar em ficções que foram aqui minuciosamente tratadas: na teologia da ira de Deus e na economia timótica mundial do comunismo” (Sloterdijk, 2021), que toma um tema polêmico.
O certo é que há ira dos dois lados, e não nelas não reside o “já” mas “não ainda” que tratou-se no post anterior, porque ambos pensamentos se acham filiados ao idealismo moderno, e esta é a critica central a Kant e ao idealismo alemão de Hegel, não apontam para uma justiça.
Nela há uma ausência da dor, que antecede a com-paixão, mais que ato de misericórdia (miseri cordis, do coração), é um ato de adesão e justificação das periferias existenciais, onde a dor da justiça reside, mas como existencial também reside nos corações desiludidos e cansados.
A contemplação e o já e não ainda, que atinge tanto a esfera terrena como a divina, exige uma vita activa que é aquele do equilíbrio psicológico, familiar e social que não exclui o outro, não raramente aqueles que defendem a justiça apenas terrena ou apenas divina, não tem uma ação pró-ativa que leve ao encontro da dor, amplamente analisado na “Sociedade paliativa” de Byung-Chul Han, eliminados a dor pela transferência ao “paraíso” terreno ou divino, sem nossa com-paixão.
O equilíbrio do Ser, que se já se realiza, mas não ainda (completamente), tem algo a dizer do justo, do bem comum e da paz.
SLOTERDIJK, P. Ira e tempo. Trad. Marco Casanova. São Paulo: Estação Liberdade, 2021.
Ontologia, idealismo e a verdade
O pensamento de Heidegger deve partir da questão do Espírito em Hegel, lido por Byung-Chul em Introdução à Fenomenologia do Espírito “em termos do esquecimento do ser” (questão central de Heidegger), ele a vê como um “eu árido” que encontra “sua limitação ao ente que lhe sai ao encontro” (Han, pg. 334 citando Hegel).
Embora recupere Hegel, em parte, na epígrafe do último capítulo: “a verdade é o todo”, ele rediscute a dialética e sua metafísica no idealismo: “em relação ao “apenas ser” que o esvazia até um nome “que não nomeia mais nada”, a consciência natural … quando se dá conta do ser, assegura que ele é algo abstrato. ” (Han, pg 336).
A consciência natural (vista assim) “se demora em ´perversidades” … “ela tenta eliminar uma perversidade organizando outra, sem se lembrar da autêntica inversão” onde “a verdade da essência do ser se recolhe ao ente” (pg. 336 com citações de Heidegger), que vê nisto um passo atrás e o “já” esquecido, incompreendido (pg. 337), não aparece completamente negado, aparece na forma de “ainda não” que não é uma negação, nem uma barricada, posto “ao lado do já impede que ele se apresente” (pg. 337).
Há todo um desenvolvimento em contraste com a dialética de Hegel, mais que um tópico poderia muito bem ser um livro, porém o diálogo que trava com Derridá e Adorno no capítulo sobre o Luto e o trabalho do luto, encaminha para sua visão do todo fora da abstração dialética, diz a preocupação com a imortalidade, com matar a morte, não é secreta apenas no coração de Platão ou Hegel (pg. 384), seria a principal preocupação com o arquivo “cardiográfico” da história da filosofia, nela o filósofo “trabalha” para reverter o negativo do ser.
Este é o que vai dar base ao seu “trabalho do luto”: “ser capaz da morte como morte”, isto é, ser capaz do luto, esta “tragédia” “se distingue radicalmente do ruidoso trabalho do luto da dialética hegeliana” (Han, p. 385).
“As lágrimas liberam o sujeito de sua interioridade narcísica … elas que o “feitiço que o sujeito lança sobre a natureza” (Han, p. 394) agora citando Adorno, e o autor afirma que a “Teoria Estética é o livro das lágrimas (idem) e que ao contrário de Kant, e que “o espírito percebe, frente à natureza, menos sua própria superioridade do que sua própria naturalidade” (p. 395).
“A experiência estética abala o sujeito narcísico que se julga soberano e faz desmoronar o endurecido princípio do “eu” … a lágrima do sujeito abalado e comovido prova ser capaz de verdade” (pg. 395).
Capaz da verdade, do infinito e para os que creem de Deus, não um Deus dos bens passageiros e de falsa alegria, mas aquela do já, mas não ainda, aquela além da dor e da transitoriedade das coisas temporais.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Verdade, noética e o Mal
Nos prolegômenos do primeiro volume de Investigações lógicas, Husserl que havia recebido forte influência de Franz Brentano, pai da psicologia social, vê como problema o relativismo e suas bases na visão de mundo turbada, assim à relatividade da existência de um mundo não é objetiva nem subjetiva, mas “a unidade objetiva completa que corresponde ao sistema ideal de todas as verdades de fato, e dele é inseparável” (HUSSERL, 2005, p. 136).
Isto porque cada tipo de objeto tem desdobramentos próprios possíveis, por assim dizer, tem um método próprio prescritos a priori por leis de essência determinadas pelo eidos da objetividade em questão (Husserl, 2006, 309), isto quer dizer que é a essência da objetividade que pré-determina o tipo de desenvolvimento concordante que se tem da experiência dele.
Pode haver a vivência da evidência nesta experiência do objeto, e isto colabora com seu status de ente enquanto um “ser verdadeiro” (Husserl, 2006, p. 309), aquilo que Husserl chamava de “Lebenswelt”, uma lógica da vida, neste caso da vivência experimentada com o objeto.
Assim um objeto que é o “puro X” se mantém estável em meio à multiplicidade de caracteres noemáticos, que se perfilam no decorrer de uma experiência, o objeto visado no pensamento pela consciência humana, ele precede a primeira ideia intuitiva que é a noesis (pensar X).
Essa visão noética é uma síntese de identidade, conceito central para o estabelecimento do objeto “efetivo”, “verdadeiro”, a objetividade apreendida em doação evidente, numa síntese de identidade concordante, é efetivamente, escreveu Husserl:
A todo objeto “verdadeiramente existente” correspondente por princípio (no a priori da generalidade eidética incondicionada) a ideia de uma consciência possível, na qual o próprio objeto é apreensível originariamente e, além disso, em perfeita adequação. Inversamente, se essa possibilidade e garantida, objeto é o ipso verdadeiramente existente” (HUSSERL, 2006, p. 316).
As sínteses envolvidas no pensamento fenomenológica, para o estabelecimento do “ser” ou do “não-ser” dos objetos correlatos noemáticos são “intencionalidades de ordem superior”, é aquilo que Husserl retirou do pensamento neotomista de Franz Brentano, livra-se do psicologismo, do eidos que temos do bem e do mal ainda escolástica do pai da psicologia social.
A intencionalidade de doação evidente dos aspectos ainda não presentes do objeto formam um horizonte intencional, na visão de Husserl, traz por sua vez, suas potencialidades já pré-determinadas, assim são falsas as visões fáticas de guerra e paz, de demônio e do mal.
São as intencionalidades mal-formadas (no sentido que não tem uma verdade noética), a verdade enquanto “ser”, enquanto “o verdadeiro” nas leituras fáticas e idealistas, são para Husserl uma “efetividade” (Wirklichkeit) já que guarda coerência em seu núcleo.
Assim o pensamento tradicional pensa ser ortodoxo ao se referir ao outro como “mal” ou como “demônio”, quanto na verdade esconde a intencionalidade noética de seu interior.
Husserl, E. Investigações lógicas. Primeiro volume: Prolegômenos à lógica pura. Tradução de D. Ferrer. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2005.
Husserl, E Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Tradução de M. Suzuki. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006
As guerras e as narrativas
Ésquilo escritos da Grécia antiga é o autor da frase: “a verdade é a primeira vítima da guerra”, o general russo aposentado Andrey Gurulyov, falou no canal Russia-1 apontando quais seriam os alvos da Rússia, que se preparava para uma grande guerra, a Jihad islâmica é um grupo de forte influência no Irã e que prega o fim de Israel, seu discurso é teocêntrico e não geopolítico.
São apenas algumas meias-verdades sobre a guerra, claro não escapam Israel e a Ucrânia que são aliados do ocidente na luta geopolítica econômica de preservar direitos de empresas e grandes capitais, por isso os dois lados tem dificuldades de entender a paz “civilizatória”.
No diálogo de Platão Teeteto, apontado com um dos primeiros na história sobre o relativismo, aparecem conjugadas as ideias de aparência, verdade e alma; a primeira exigência de Sócrates para iniciar o diálogo é que Teeteto abandone suas ideias iniciais, e ao perguntar sobre o que é conhecimento e obtendo a resposta sobre a Geometria e demais artes, Sócrates responde com ironia: “És nobre e generoso, amigo, pois te pedem algo simples e tu ofereces múltiplas e diversas coisas”.
A segunda questão é como chegar ao conhecimento, e a resposta de Teeteto é a “sensação” (ou percepção) que Sócrates indica que devemos abandonar a “familiaridade” que temos das coisas, diz no diálogo: “Parece-me que aquele que conhece algo percebe aquilo que conhece, e para dizer a coisa tal como agora ela se manifesta, o conhecimento nada mais é do que sensação.”
Assim são dois passos primários e essenciais para a verdade, a segunda resposta é um avanço sobre a primeira, pois assim os gregos as considerava: “Sobre isto todos os sábios, um atrás do outro, exceto Parmênides, devem concordar: Protágoras, Heráclito, Empédocles e, dentre os poetas, os que estão no topo de cada uma das composições, Epicarmo, na comédia, e Homero, na tragédia…”, citando os gregos até aquele período, os chamados pré-socráticos.
Assim até então, a verdade estava circunscrita a sensação, ao iniciar o diálogo sobre Protágoras chega a ideia do primeiro equivoco da verdade relativa: “O homem medida de todas as coisas não seria, ao fim e ao cabo, um homem confinado ao círculo restrito de sua experiência mais imediata e do que apenas a ele parece verdadeiro” e isto remete a aparência.
Usando esta ideia de “familiaridade” com as coisas, Platão abre uma crise na ideia dos gregos sobre conhecimento, e assim abrir um caminho novo ontológico sobre a alma, partindo de Homero “coração da alma” (194c), dificilmente haveria ocasião para erro, pois esta (a alma) prontamente faria a identificação correta da impressão atual, rompendo preconceitos.
PLATÃO. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
A justificativa de poder dos sofistas
Os sofistas eram homens inteligentes que educavam e influenciavam os jovens da Antiguidade Clássica, com uso da oratória e da retórica, a fazerem uso do discurso para justificar o poder, independentemente de aspectos morais.
Foram combatidos primeiro por Sócrates, só sabemos dele através de Platão, e depois por Platão (428 a.C. – 347 a.C.) e Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) que defendiam a educação para uma verdadeira cidadania, considerando os sofistas apenas mercenários dos poderosos.
Conforme lemos em Platão, Protágoras foi um destes sofistas, nasceu em 490 a.C. e assim pode ser considerado como primeiro sofista, outro famoso foi Hípias que teria debatido com Sócrates sobre as leis naturais e as convencionais, era versado em astronomia, matemática, pintura e poesia o que lhe dava grande “autoridade”.
Eles tem origem nos pré-socráticos: Protágoras seria discípulo de Demócrito (a frase famosa “o homem é a medida de todas as coisas”), Trasímaco principal figura no início da República de Platão, argumentava que “a justiça seria apenas a vantagem do mais forte”, e Górgias que não é considerado sofista por Sócrates, cria uma polêmica com Parmênides (o ser é e o não ser não é), segundo este “sofista” não se pode comunicar o que não é conhecido.
Duas críticas podem ser consideradas fundamentais aos sofistas, criar verdades relativas e isto tem forte relação com as narrativas modernas, e o fato que consideravam que as virtudes não eram coisas que poderiam ser ensinadas, assim dispensavam os valores morais.
Eles, entretanto, não ignoravam as questões da “alma” (o que o idealismo chama de subjetividade) no discurso de Górgias pode-se ler:
“[E]xiste uma mesma relação entre poder do discurso e disposição da alma, dispositivo das drogas e natureza dos corpos: assim como tal droga faz sair do corpo um tal humor, e que umas fazem cessar a doença, outras a vida, assim também, dentre os discursos, alguns afligem, outros encantam, fazem medo, inflamam os ouvintes, e alguns, por efeito de alguma má persuasão, drogam a alma e a enfeitiçam.”
Os sofistas modernos vão além de desconsiderar a alma, pois fazem elogio as drogas, a embriaguez e aos prazeres temporais, a educação para a cidadania e substituída por um puros ideologismos, hoje pouco pensado e organizado, são promessas vagas de um futuro melhor.
Assim a lógica do poder é invertida, o discurso do “mais forte” de Trasímaco volta a fazer sentido, a inexistência de valores morais razoáveis foi extinta em troca da felicidade momentânea e passageira, e recorre-se a retórica e a oratória para o convencimento de muitos, porém diz o verdadeiro discurso moral: “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos” (Mt 19,30) porque esta lógica leva só a destruição e a promessas vazias.
Platão. A república. Trad. E notas Maria da Rocha Pereira, 9ª. ed. Fundação Colouste Gulbenkian, Lisboa, s/d.
Construir a vida e não excluir
Tanto Nietzsche em A gaia ciência como O pós-Deus de Peter Sloterdijk, afirmaram a morte de Deus, na verdade é só uma tentativa de matar Deus, porque se não existe não se pode matá-lo e se existe é imortal, então só podemos apenas apagá-lo de nossa mente temporariamente pois voltará intuitivamente, a prova é que ateus não O ignoram.
O texto de Nietzsche é claro, mas também foi deturpado: “O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. ‘Para onde foi Deus’, gritou ele, ‘já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis?” (Nietzsche, A gaia ciência, § 125)
Assim não podendo matá-lo destroem seus valores “simbólicos” como a Santa Ceia nas olimpíadas, por exemplo, ou deturpando a história verdadeira do Deus homem: Jesus, como fez a teologia idealista de Ludwig Feuerbach que postamos recentemente, criou um “absoluto” vazio e abstrato, que não pode ser Deus pessoa trinitária.
Porém a reação ao Teocídio hegeliano, aquele de Feuerbach, em que Deus só existe na mente e assim é um algo do pensamento ideal e só com a “transcendência” idealista o alcançamos, há a reação religiosa de se fechar na “comunidade dos eleitos”, dos prediletos de Deus, os escolhidos por critérios que uma certa comunidade determina e o restante são leprosos, pecadores públicos e indignos do “reino”, má semente.
A parábola do joio e do trigo é clara, ambos nascem em um mesmo ambiente, porém uma não dá frutos, não participará da colheita do trigo e será separada como palha.
De certa forma a reação a este Deus elevado, distante dos homens “todo poderoso” não passa de uma visão do poder também mundano e temporário e de uma forma de ascese desespiritualizada, a vida de “exercícios” como preconiza Peter Sloterdijk.
A verdade espiritual é aquela em que todos são incluídos, existe unidade e respeito a todos e ninguém é visto como leproso ou má semente, isto é interpretação farisaica, porém é claro que boa semente dá bons frutos então pode-se olhar a realidade a sua volta, mas sem julgamento preconceituoso ou excludente.
Fundada no perfeccionismo e no moralismo extremado, a moral que é importante e não se deve negá-la, porém, levada ao extremo torna o “vício” muito mais próximo e passível de cair nele, ou seja, são na verdade são falsos moralistas porque não conseguem pôr em prática o que defendem, e são estes falsos exercícios que levam a uma prática de desvios e aberrações morais.
A união destes conceitos com o verdadeiro humanismo, aquele cuja inspiração é divina, não pode e não deve levar a atitudes de exclusão, de isolamento e falta de caridade.
Tudo tem que ser pensado de um modo equilibrado, da política à religiosidade, da família a vida social, da ação social à contemplação.
Sabedoria e simplicidade
Entre as várias narrativas contemporâneas, uma das mais absurdas é o elogio da ignorância como se ela fosse aliada da simplicidade e da humildade, desde o mundo “cultural” ao religioso isto é transformado em narrativas: ele não frequentou faculdades, não leu um livro, não andou entre sábios, etc. não confundir isto com a capacidade de viver com simplicidade e entre pessoas simples.
Não é sinal dos tempos, não é “geracional” é apenas desinteresse pela verdadeira ascese, por um crescimento interior e exterior que deem a sua natureza humana aquele algo mais que é a única coisa capaz de tirar de depressões, angústias, ansiedades e outras doenças atuais.
O homem sábio é observador, e observa não apenas as cenas cotidianas, aquelas que vivem diversos tipos de pessoas, em especial as mais simples, mas também aquele que procura na história da humanidade aqueles ápices de momentos civilizatórios que nos fizeram mais gente, mais humanos e mais solidários, há muitos exemplos, autores e pessoas que nos deram isto.
Postamos ontem sobre água fresca e comida quente, mas em várias regionalidades isto tem contornos e aspectos culturais interessantes, por exemplo, em muitos países não há o café da manhã, me contava um africano, em Portugal há o pequeno almoço que é um café da manhã simples, e no Brasil que se chama café da manhã é na verdade um pequeno almoço.
O que ler além é claro de sua crença pessoal, ler a Bíblia, o Alcorão, os Vedas ou aquilo que é sagrado ou culturalmente lido em uma determinada cultura, o livro vermelho na China por exemplo, o segundo livro mais lido no Brasil é O pequeno príncipe, embora O alquimista de Paulo Coelho seja o 5º. no mundo, mas Ilíada e Odisseia ainda são pouco lidos, Rei Lear e Otelo de William Shakespeare cada vez menos conhecidos.
Claro sabedoria não significa cultura literária, mas longe dela torna-se também narrativa no sentido que desconhece a história cultural, o modelo moderno do romance está presente em toda a cultura ocidental, e Honoré de Balzac e Gustave Flaubert são representantes para gostos distintos, mas até mesmo para uma crítica social deveriam ser lidos.
Alguém pode lançar o argumento filosófico, é toda uma cultura eurocêntrica, verdade, porém foi incorporada nos pensamentos cotidianos, o nacionalismo através das cores nacionais está em todo o mundo, a liberdade de expressão, como dizia o romântico Vitor Hugo (de Os miseráveis, foto): “Nem regra, nem modelos” é uma expressão também de individualismo e heroísmo pessoal, porém histórico.
Fizemos vários posts sobre o ser, a interioridade e o complemento da Vida Contemplativa com a Vida Ativa (Hannah Arendt e Byung-Chul Han em especial), sobre a metodologia do círculo hermenêutico onde devemos ouvir o texto (e também os diálogos) para fusão de horizontes e ainda o desastre da nossa cultura ocidental e a necessidade de resistência do espírito.
Desvelar e futuro
Grande parte das perspectivas de futuro que não estão dentro do avanço civilizatório, além de incluir guerras e hostilidades, valem-se de revelações, cuja etimologia da palavra vem de re-velar, que significa tirar o véu e recolocar outro, assim via de regra são obscuras.
Não se trata apenas no plano religioso também na filosofia á o des-velar, onde o último grande oráculo e profeta foi João Batista, afinal ele que anunciou a maior de todas profecias: o nascimento de Jesus, não significa é claro que neste campo não hajam novidades, Deus é sempre novo e criativo.
A palavra desvelar na filosofia vem da busca da verdade, Heidegger e outros filósofos retomam a partir da a-letéia (a é não e lethe – esquecer), para modificar o conceito do que é verdade no Ser e Tempo (escrito em 1927), afirma no parágrafo 44 que entende desvelamento como um evento que retira os entes do velamento.
Uma prévia compreensão que liberta uma orientação do homem aos objetos (a questão da subjetividade x objetividade) favorece a interpretação (Auslegung), ou seja, a articulação com o que fora previamente compreendido, e assim o refaz na perspectiva de novos horizontes.
O discurso, no sentido correto da narração é posterior e consiste em uma atividade básica do que é humano, ligar-se e conviver com os outros, dá ao homem uma compreensão comum e além da fala e das opiniões compartilhadas, cria uma fusão dos horizontes, uma narração.
Já postamos aqui a questão da Crise da Narração, em especial o livro de Byung- Chul Han, assim o homem projetado sobre objetos e ações cria narrativas e não consegue claramente desvelar a realidade, é preciso usando uma metáfora, trocar os óculos.
Assim se há verdades revelações elas estão ocultas para os futurólogos atuais, elas revelam muito mais uma angústia com o futuro que propriamente um desvelar do futuro.
Na passagem bíblica que Jesus tem dificuldade de se desvelar para os seus contemporâneos, encontra dificuldades até mesmo entre os mais próximos e membros da família (Mc 6,4), por assim dizer os religiosos mais próximos dele no seu tempo e algo parecido ocorre atualmente.
GIACOIA JUNIOR, O. Heidegger Urgente. Introdução a um Novo Pensar. 1ª edição. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
Visões liquidas
Analisando a visão “romântica” de William Dilthey (1833-1911) acerca da história, Hans-Georg Gadamer (1900-2002) enfatiza primeiro seu acerto que “o que chamamos de sentido da vida se constitui, muitas antes de toda objetivação científica, no interior de uma visão natural da vida sobre si mesma” (GADAMER, 2006, p. 31).
Porém vai criticar Dilthey, que “toda expressão de vida implica um saber que a forma a partir de seu interior”, e retomando a análise a partir de Hegel questiona sua visão de espírito objetivo, se o “meio ético em que ele vive e o qual compartilha com os outros constitui algo de “sólido” que lhe permite orientar-se a despeito das contingencias um tanto vagas de seus élans subjetivos” (Gadamer, 2006, p. 32), o destaque do sólido foi feito pelo autor.
O autor lembra de Dilthey o seu “Investigar as formas sólidas” (um dos temas da Coletânea de escritos), que implica que tanto a contemplação como a reflexão “implica sempre em experiência prática”, então contesta Gadamer: “aos olhos de Dilthey, a objetividade do conhecimento científico, não menos do que a reflexão meditativa da filosofia, seja um desdobramento das tendências naturais da vida” (GADAMER, 2006, pp. 32).
Na mesma coletânea, lembra Gadamer, Dilthey dizia que “nossa tarefa … será explicar como os valores relativos de uma época podem adquirir uma dimensão de algum modo absoluta” e apesar de ser uma preocupação com o absoluto, o caminho entre o relativismo e a totalidade é bem outro, uma vez que “ser conscientemente um ser condicionado” de Dilthey não é uma crítica explícita ao idealismo.
Toda esta filosofia diz Gadamer parte de certo intelectualismo diria, de visionário “líquido” e aponta para uma “motivação intelectualista da objeção ao relativismo, intelectualismo incompatível não só com a implicação última de sua filosofia de vida, mas, também com o ponto de partida por ele escolhido, ou seja, a imanência do saber á vida mesma” (GADAMER, 2006, p. 36).
Esclarece o ponto de vista de Dilthey “que exige que sua filosofia se estenda a todos os domínios em que a “consciência, por meio de uma atitude reflexiva e dubitativa, encontre-se liberta do domínio de dogmas autoritários e aspire a um saber verdadeiro” ‘ (Gadamer, 2006, p. 34) fazendo citações do próprio Dilthey entre aspas, de sua Coletânea de Escritos.
As questões do espírito na filosofia hegeliana permaneceram sempre no conceito vago do absoluto, e jamais compreendeu a questão da contemplação, de um saber além, a sua transcendência é aquela que vai do sujeito ao objeto sem qualquer plano divino ou superior.
Este foi o dilema de Tomé fazer a experiência, embora tenha convivido com Jesus após sua morte não consegue manter sua convicção precisando tocar nas chagas do mestre.
GADAMER, H-G. O problema da consciência histórica. Trad. Paulo Cesar Duque Estrada. RJ: Rio de Janeiro: FGV, 2006.