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Farisaísmo e Jonas
Em que consiste a ausência de espiritualidade nos dias de hoje, mais do que a falta de Deus, diz Byung-Chul Han é o fato que tudo na vida se torna transitório, mas também as consequências de uma forte polarização na qual todos ânimos se concentram e limitam a verdadeira interioridade, a verdadeira espiritualidade fora da bolha, na alegoria explorada por Sloterdijk em Esferas I o sinal de Jonas, lembra um pouco o trecho bíblico (Lucas 11,29-30): “Esta geração é uma geração perversa: pede um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, senão o sinal de Jonas. Assim como Jonas foi um sinal para os habitantes de Nínive, assim o será também o Filho do homem para esta geração”
Sloterdijk via a falta na falta de centralidade uma díade, tanto serve para a polarização como para um policentrismo, isto é uma ausência de situar-se no mundo, lembramos que o ponto central da filosofia dele é o que significa estar no mundo, e Jonas que tenta fugir de sua missão vai parar no ventre da baleia, isto é, seu desejo de fugir do mundo e de sua missão, é a ideia de refugiar-se num puro interior do qual são vítimas aqueles que fazem uma ascese desespiritualizada, tentam não estar no mundo, que é diferente do Ser-no-mundo, categoria que Sloterdijk usa a palavra “vorhandensein”* para explicar sua polêmica sobre o humanismo com Heidegger, que usa o termo dasein para Ser no mundo.
Onde estava Jonas quando estava no mundo? Dentro da baleia. A baleia é parte da consciência de Jonas que lhe provoca a pensar no exterior a partir de um interior. Heidegger já havia pensado neste puro interior de que todos somos vítimas, um espaço radical e intrínseco, nossa habitação única e primeira por onde permeiam todas as nossas impressões, pensamentos e afetos.
O sinal de Jonas, único sinal para esta geração que busca um “sinal de Deus” é, portanto, encontrar esta interioridade mesmo estando no mundo e sujeito a suas díades (polos) ou mesmo o policentrismo (meias-verdades de diversas narrativas) sem conseguir alcançar uma verdadeira ascese, entretanto Jonas sai da baleia e vai a Nínive cumprir sua missão.
Assim, a relação com o exterior é uma constante tensão, e não há como fugir dela, não é um filtro para a verdade, mas a busca da clareira, de um espaço onde cultivamos o nosso interior, assim na visão de Sloterdijk que nos ajuda, o sinal de Jonas é sua vida interior quando estava no ventre da baleia, dentro de sua “esfera” na concepção de Sloterdijk.
Assim não é aquele que grita Senhor, Senhor nem aquele que vive de “boas intenções” exteriores apenas, é preciso viver esta tensão interioridade e ser no mundo este Ser que é.
O farisaísmo é viver de aparências exteriores que não correspondem a interioridade, mas também a interioridade “pura” é ficar no ventre da Baleia sem viver a tensão exterior.
*a tradução ao pé da letra seria: estar disponível (no caso de Jonas para a missão).
SLOTERDIJK, P. Esferas I : bolhas. Tradução José Oscar de Almeida Marques. Sáo Paulo : Estação Liberdade, 2016.
O Justo, a ira e a serenidade
Martino Bracarense, autor do século V d.C. pouco conhecido porém é um dos responsáveis pelos dias da semana no galeco-portuguesa segunda feira, terça, etc., afirmou que “A ira transforma todas as coisas do melhor e mais justo em seu contrário”, não são poucas as reflexões filosóficas, psicológicas e até poéticas sobre a ira, William Shakespeare afirmou que: “a raiva é um veneno que tomamos esperando que o outro morra” (a foto ao lado é de Andre Hunder no unsplash).
Em tempos tempestuosos para guardar a justiça e a serenidade é necessário um grande esforço de caráter e temperança pois o normal é reagir a dor do ódio com alguma forma, mesmo que dissimulada de ódio, Aristóteles afirmava: “um desejo, acompanhado de dor, de vingança percebida, em razão de uma desconsideração percebida em relação a um indivíduo ou seu próximo, vinda de pessoas das quais não se espera uma desconsideração” (Retórica de Aristóteles).
O que significa acompanhada (a ira) pela dor? Isto exige a definição de pathê que Aristóteles: “que as emoções sejam todas aquelas coisas em razão das quais as pessoas mudam seus pensamentos e discordam em relação aos seus julgamentos, sendo acompanhadas de dor e prazer, por exemplo raiva, piedade, medo e todas as outras coisas semelhantes a seus contrários”, claro não é uma definição exaustiva da ira, pois ela precisaria de elementos psicológicos, patológicos e uma análise mais aprofundada do tema.
O importante é saber que ela: escapa da justiça, produz uma intemperança e colocada em uma sequencia de ódios estruturais acaba por criando uma total ausência de serenidade, de capacidade de reflexão e no final das contas é produtora de uma grande fonte de injustiças e até mesmo psicopatologias.
Outro ponto é pensar no antídoto deste estado de ânimo, muitas vezes cultural, estrutural e produzido por aqueles que julgam defender a paz, claro que em essência estes mesmo indivíduos são eles próprios casos patológicas, porque a ira dissimulada, ou como diz o dito popular “o veneno destilado” ao contrário da medicina não é antídoto, ele é o veneno em doses continuas e progressivas.
Onde encontrar então a serenidade? A resposta é simples na esperança, aquela mesmo que espera, que respira e que medita e contempla, tema exaustivamente elaborado em Byung-Chul Han em quase todos seus ensaios, No enxame onde exorta “o respeito” como única forma de simetria, o silêncio e a contemplação em “Vita Contemplativa” e o conceito de tonalidade afetiva em sua obra “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva”, embora nunca site o termo diretamente, penso que é o que no fundo ele pretende contribuir para o pensamento contemporâneo para recuperar sua capacidade de pensar, contemplar e Ser.
Também o pensamento religioso de nosso tempo precisa recuperar mais que a serenidade, a sobriedade, porque parecem envoltos de certas embriaguez de nosso tempo, como afirma o pensamento judaico-cristão veio o vento e Deus não estava lá: “depois do terremoto houve um fogo, mas o Senhor não estava nele. E depois do fogo houve o murmúrio de uma brisa suave” (livros dos 1Reis 12) e também é famosa a tempestade de Jesus entre os apóstolo dormindo e uma tempestade acontecendo, Ele acordou e manda o mar se acalmar para espanto dos apóstolos (Marcos 4,39).
A clareira e a floresta
A ontologia é aquela visão científica onde o Ser deve estar presente, mesmo que envolto e desenvolto em torno do ente, o ente é aquilo que designa tudo aquilo que “é” ou seja refere-se ao particípio presente do verbo ser, assim Heidegger vai pensar o que é o ser do ente, enfim tudo aquilo que está relacionado ao mundo que vivemos porém nunca se esquecendo que é nele que vive o Ser.
Assim o filósofo pensou a verdade a partir da palavra grega alétheia (a- não, lethe – oculto), assim é o ato de desvelar a verdade do Ser e sua relação com o ente no tempo, a verdade é então distinta do conceito comum que a considera como um estado descritivo objetivo.
Para Heidegger entretanto, há uma diferença fundamental entre o Ser e o Ente, o Ser se refere ao fundamento da existência e dos modos de existir, enquanto o Ente corresponde à existência concreta, ou, a realidade humana, enquanto presença no mundo, assim geralmente pensamos no Ser do Ente (a cacofonia é proposital aqui) e não o Ser enquanto Ser.
O Ser enquanto Ser é esse ser-aí (o dasein sem uma tradução exata, ao meu ver, para o português), esse que “existe” sendo o único ente que ek-siste, os outros são, mas não existem (enquanto consciência, ou de modo mais atual enquanto senciência) ainda que os animais possam ter emoções e reações de afetividade.
Ou seja, senciência é a capacidade dos seres de sentirem sensações e sentimento de forma consciente, assim podem evitar reações negativas, violentas ou temperamentais.
Assim a clareira é aquele encontro com sua própria verdade, em meio a floresta, há um espaço onde tudo se desvela e nosso verdadeiro Ser se encontra e encontra o Outro.
O ser do ente, projetado sobre as coisas apenas mundanas: dinheiro, facilidades e conquistas, encontra um espaço para sua vida ativa e contemplativa, tudo em volta se desvela, se reencanta e tem significado, não é fácil nem simples porque a floresta continua ali e continuamos a desbravá-la em busca dos “entes” e até os encontramos, mas novamente temos que ir em busca de novos porque ainda não é a clareira, é diferente do mito de Platão porque ali existe um mundo dual: o mundo das ideias e o mundo dos sentidos.
O homem moderno precisa se colocar no centro do seu Ser e ter uma relação de posse transitória com os entes, as coisas do dia-a-dia e do mundo real.
Na narrativa bíblica devemos amar sempre o Outro, até mesmo pedir e orar por aqueles que não querem nosso bem, isto nos limita de atirar sobre os entes como sendo Ser.
Narrações de uma vida futura
Muitas são as visões e até profecias sobre a policrise contemporânea, ela extrapola o pensamento e chega até a vida social, a política e as guerras em escalada preocupante, mas a pergunta é quais a razões para ter esperança, e ao mesmo tempo aquilo que Edgar Morin chamou de “resistência do espírito” , nos trechos finais de A crise da narração de Byung-Chul, ele critica a política atual: “as narrativas políticas oferecem a perspectiva de uma nova ordem das coisas, pintam mundos possíveis … nós nos arrastamos de uma crise para a outra. A política é reduzida à solução de problemas. Hoje falta-nos justamente narrativas futuras que nos dão esperanças.” (Han, 2023, p. 132).
A solução de problemas pontuais e emergenciais são são a solução da crise, as “obras” podem ser visíveis e trazer popularidade aos governantes, mas deveriam ter tanto a perspectiva de longo prazo quanto noção que são as soluções de curto prazo implantadas com parcimônia que encaminham para respostas duradoras, sustentáveis e eficazes e conclui Byung-Chul: “toda ação que transforma o mundo pressupõe uma narração” (idem) e assim poucos são os casos de respostas imediatas que sejam de fato duradouras e eficientes.
Há uma narração bastante conhecida que uma jovem pergunta ao senhor que plantava tâmaras “por que o senhor perde tempo plantando o que não vai colher “, o senhor virou e respondeu: se todos pensassem como você, ninguém colheria tâmaras.
A ideia que as coisas podem ser rápidas e simples está no storytelling atual: como emagrecer sem esforço, como aprender este ou aquele trabalho complexo em poucas lições, como falar de maneira clara e simples de um problema com solução complexa e muitas outras formulas “mágicas” que pouco tem de imaginação e encantamento, são narrativas que visam venda e consumo de facilidades e de produtos cuja eficácia é questionável.
A primeira ideia então entender soluções a médio e longo prazo, segundo é desconfiar de soluções fáceis que não sejam duradouras e terceiro admitir que um problema complexo
necessita de uma narração mais demorada e de escuta silenciosa de diversas vozes e diversos ouvintes capazes de ouvir com paciência.
A um ditado bíblico que diz que o Reino de Deus é como um grão de mostarda (uma das menores sementes), você a planta, em anos ela cresce e vira uma árvore frondosa e só depende de sua própria natureza e de um tempo de espera.
Diz Byung-Chul Han em seu parágrafo final: “no mundo do storytelling, tudo é reduzido ao consumo. Isso nos cega para narrações, outros modos de vida, outras percepções e realidades” (p. 132-133).
Han, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: ed. Vozes, 2023.
Experiência, narrativas e visão de futuro
No capítulo que Byung-Chul Han trata da pobreza da experiência da modernidade, lembrando que não se trata apenas da vida digital pois é anterior a ela, ele conta a fábula de um homem no leito de morte que conta aos seus filhos que há um tesouro escondido em seu vinhedo (pg. 31), e depois de cavarem muito finalmente entendem que as vinhas daquelas terras produziam que qualquer outra (Han, 2023, pg. 31), em um detalhe importante explica que “é característico da experiência que ela possa ser narrada de uma geração para a outra” e isto é o que se perdeu na narrativa do storytelling.
A narração pressupõe tradição e continuidade (Han, pg. 34) e é ela que “cria um contínuo histórico” enquanto a pobreza de experiência é “animado pelo páthos do novo” que “generaliza a nova barbárie e a transforma no princípio do novo: A essa estirpe de construtores pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia numa única certeza – penso, logo existo – e dela partiu” (pags. 34 e 35).
Lembra Paul Scheerbart que em seu ensaio Arquitetura de vidro “fala da beleza que surgiria na Terra se o vidro fosse usado em todos os lugares” (pg. 38) e curiosamente a arquitetura moderna está cheia desta “metáfora” (lembro aqui também a arquitetura do plástico de Jeff Koon com seu ballon Vênus de plástico do livro de Han A salvação do belo), agora o vidro: “um mundo cheio de edifícios de vidros brilhantes, coloridos e suspensos, [onde] as pessoas seriam mais felizes” (pg. 38), e elas conferem uma aura especial como um meio para o futuro, porém conforme explica Han: “o futuro é uma aparição de algo longínquo” (pag. 39) que só o presente não pode conferir, isto é um ‘sentimento de iniciante”, que não fica na superfície e que concebe uma “forma de vida diferente”.
A exausta modernidade tardia é alheia ao “sentimento de iniciante” (pag. 40), “não professamos nada”, estamos “confortáveis” à conveniência e ao like (idem), “as informações fragmentam o tempo … reduzido a uma faixa estreita das coisas atuais”, acrescentaria que não temos leitura, conhecimento e reflexão sobre as coisas anteriores e que fizeram a história da cultura e do próprio conhecimento, não este reduzido a fração cartesiana da razão.
Estamos numa cultura de “solução de problemas … na forma de um tempo compactado” (pag. 41), porém o autor não deixa escapar uma visão de futuro: “ a vida é mais do que a solução de problemas … aqueles que só solucionam problemas já não possuem futuro … a narração desvela o futuro, somente ela nos dá esperança” (pag. 41).
A narração está presente no fundo de diversas culturas das religiosas às sociais e políticas, os povos as construíram mais que seus governantes e imperadores que a elas sucumbiram, Napoleão não deixou uma França imperial, mas resignada, Bismark e Hitler não deixaram uma Alemanha soberba, mas sábia onde a filosofia encontrou raízes, a submissão colonial das Américas e da África, do Oriente onde ainda há lapsos de colonialismo, deixaram povos mais resilientes e em busca de sua própria narração, há vida debaixo do pó que ditadores e colonizadores nos quiseram reduzir, também lembro as culturas orientais e ocidentais de narração religiosa, não são menos importantes, as sustentam.
Claro há neste meio também storytelling, falsos profetas e “pastores” que buscam a escravização religiosa, porém o ensinamento bíblico e oriental é diferente e sendo uma narração não pode ser confundido com leitura estereotipadas e segmentadas, também elas sofreram com o cartesianismo e idealismo, quando estes “religiosos falsos” que exigem uma “narrativa moderna” e que dê conta do storytelling atual.
Já naquele tempo indagavam Jesus sobre a existência da vida eterna, Ele lembra a passagem da sarça ardente em que Moisés falara diretamente com Deus (Mc 1,26): “Quanto ao fato da ressurreição dos mortos, não lestes, no livro de Moisés, na passagem da sarça ardente, como Deus lhe falou: ‘Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó’?” e ao contrário de negar a narração antiga reafirma que ela é parte da tradição e que ali já se escrevia uma nova realidade.
HAN, B.C. A crise da narração, trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: Vozes, 2023.
O tudo, o todo e o divino
Após desenvolver assuntos delicados e polêmicos como a dor, a espera no sentido próprio de esperança mesmo, que Byung-Chul usa o termo filosófico da “contenção” , termina seu livro, que pode-se dizer seu primeiro escrito filosófico, ainda que tenha feito sua tese de doutorado em Heidegger, com aquilo que deve ser o mais polêmico para a filosofia de hoje: o todo.
Ao final do século XIX e início do XX, a física, a ciência e a filosofia que pareciam plenas de seus “saberes” tomam uma invertida, a viragem linguística, mas há outra em curso que é mais profunda ainda: a revanche do sagrado, depois de levarem a humanidade a duas guerras, ao trabalho exaustivo da “sociedade do Cansaço” (em inglês ficou traduzido como Sociedade do Burnout), a arrogância idealista quer proclamar a morte de Deus, o tudo ou o todo é o que, as ultimas pesquisas do James Webb parecem estar sem respostas.
Até mesmo a teoria do Big Bang está em causa, a flecha do tempo pode não estar correta, ou seja o tempo pode ser uma abstração humana, galáxias vistas nos confins do universo não coincidem com a física do Modelo Padrão (neste caso da Cosmologia) e mostram que o conceito precisa ser revisto, mas deixemos isto para os físicos e cosmólogos, o nosso maior dilema ainda é: “o que somos e de onde viemos”, traduzido em linguagem filosófico: o que é o ser, e que é o Ser do ente (ou proveniente das partículas e poeira cósmica).
Isto está expresso na Teoria do tudo, nome do filme, baseado no livro da esposa de Stephen Hawking, Jane Hawking, intitulado: “Travelling to Infinity: My Life with Stephen”.
Por um tempo esquecemos este dilema, tratado desde o início desta série de posts sobre a leitura do “coração de Heidegger” por Byung-Chul Han, não apenas o sono antropológico preconizado por Foucault, mas o sono idealista da razão de nosso tempo, aquele que provocou um esquecimento do ser.
O início do capítulo é uma provocação, acredito, ao citar Hegel na epígrafe: “A verdade é o todo”, já que Heidegger e sua releitura de Han eles retornam aquela “virada” em que “a verdade da essência do ser se recolhe ao ente” (pg. 337), onde a própria consciência já é em si “a inquietação de distinguir-se entre o conhecimento natural e conhecimento real” (pg. 340), ela na experiência dialética da dor: “o trabalhador dialético é um sofredor. Ele percorre um calvário, estafa-se no poder do Absoluto, e o faz precisamente para viver” (pg. 346), o destaque em viver é do autor.
“Quem ainda hoje fala do todo levanta suspeitas” (pg. 455) é a frase inicial do capítulo final, mas o idealismo jamais abandonou a noção abstrata do Absoluto, porque é um imperativo de qualquer teoria traçar contornos onde a verdade seja válida, por isto a frase da epígrafe do capítulo final, penso, mas “no coração de Heidegger bate pela totalidade desde o início” (pg. 455), ela a expressa em seu pathos pelo tudo: “O que foi dito talvez indique que o presente trabalho pretender ser filosófico, na medida em que foi empreendido a serviço da totalidade última” (pg. 456), mas em contraste como o hegeliano, “o todo heideggeriano não capitaliza a morte do particular” (pg. 457), se quisermos retornar a física vale a pena reler de Werner Heisenberg: “A parte e o todo”, onde vemos os limiares da física quântica moderna, onde há vários traços de filosofia bem delineada.
Compreendendo a dor, a contenção e a angústia e na identidade na diferença (já postamos que não é a differance idealista), o todo heideggeriano não é um lugar de nascimento, não é um lugar de origem, mas um lugar de nascimento” (pg. 459), uma “casa não metafísica como espaço de morada” (pg. 459), diríamos morada o Ser, pleno e divinizado.
E também sua totalidade mundana, não é contaminada pelo clima do pensamento pós-moderno, nele pode-se notar a total falta: “de odor, paisagem ou natureza” (pg. 460), “com a história do ser Heidegger escreve certa metanarrativa”, mas não se pode negar que “o pensamento de Heidegger também possui traços metafísicos” (pg. 461), sua filosofia “não são jogos de linguagem [como Derridá], nem discursos”. (pg. 463), para ele existe o ser da linguagem, “os jogos de linguagem seria um fenômeno óntico” (pg. 463).
Desenvolvemos a questão da voz (post), mas Han pergunta: em que tonalidade afetiva o pensamento de hoje coloca essa voz”, pergunto não é ela uma resposta para a verdade que habita no interior de todo homem?, segui-la não é aceitar a dor (não a resignação), a diferença (não a differance), a angústia e a disputa fora do conflito político e de guerra (ver pag. 465).
Existe aquela voz interior, aos que sabem fazer o vazio, o silêncio e o epoché, existe o Ser que é o Todo e que habita em nós, mas é preciso passar pela dor, pela angústia, pela renúncia e aceitar a diferença.
HAN, Byung-Chul. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
O coração, a dor e a verdade
O pensamento de Heidegger deve partir da questão do Espírito em Hegel, lido por Byung-Chul em Introdução à Fenomenologia do Espírito “em termos do esquecimento do ser”, ele a vê como um “eu árido” que encontra “sua limitação ao ente que lhe sai ao encontro” (Han, pg. 334 citando Hegel).
Embora recupere Hegel, em parte, na epígrafe do último capítulo: “a verdade é o todo”, ele rediscute a dialética e sua metafísica no idealismo: “em relação ao “apenas ser” que o esvazia até um nome “que não nomeia mais nada”, a consciência natural … quando se dá conta do ser, assegura que ele é algo abstrato. ” (Han, 2023, pg 336).
A consciência natural (vista assim) “se demora em ´perversidades” … “ela tenta eliminar uma perversidade organizando outra, sem se lembrar da autêntica inversão” onde “a verdade da essência do ser se recolhe ao ente” (pg. 336 com citações de Heidegger), que vê nisto um passo atrás e o “já” esquecido, incompreendido (pg. 337), não aparece completamente negado, aparece na forma de “ainda não” que não é uma negação, nem uma barricada, posto “ao lado do já impede que ele se apresente” (pg. 337).
Há todo um desenvolvimento em contraste com a dialética de Hegel, mais que um tópico poderia muito bem ser um livro, porém o diálogo que trava com Derridá e Adorno no capítulo sobre o Luto e o trabalho do luto, encaminha para sua visão do todo fora da abstração dialética, diz a preocupação com a imortalidade, com matar a morte, não é secreta apenas no coração de Platão ou Hegel (pg. 384), seria a principal preocupação com o arquivo “cardiográfico” da história da filosofia, nela o filósofo “trabalha” para reverter o negativo do ser.
Este é o que vai dar base ao seu “trabalho do luto”: “ser capaz da morte como morte”, isto é, ser capaz do luto, esta “tragédia” “se distingue radicalmente do ruidoso trabalho do luto da dialética hegeliana” (Han, p. 385).
“As lágrimas liberam o sujeito de sua interioridade narcísica … elas que o “feitiço que o sujeito lança sobre a natureza” (Han, p. 394) agora citando Adorno, e o autor afirma que a “Teoria Estética é o livro das lágrimas (idem) e que ao contrário de Kant, e que “o espírito percebe, frente à natureza, menos sua própria superioridade do que sua própria naturalidade” (p. 395).
“A experiência estética abala o sujeito narcísico que se julga soberano e faz desmoronar o endurecido princípio do “eu” … a lágrima do sujeito abalado e comovido prova ser capaz de verdade” (pg. 395).
Capaz da verdade, do infinito e para os que creem de Deus, não um Deus dos bens passageiros e de falsa alegria, mas aquela do já, mas não ainda, aquela além da dor e da transitoriedade das coisas temporais.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Resistência do espírito: superar a angústia
Apesar de ser escrito bem antes da crise atual, a leitura de Byung-Chul de Heidegger mostra um extraordinário conhecimento da atualidade e prova que de fato esta crise nasceu de uma profunda crise do pensamento, o capítulo central sobre “O coração de Heidegger” aponta para angústia e terror, falando antecipadamente da policrise atual.
Começa por aquilo é o foco central atual: “um princípio básico da economia é a segurança” (pg. 257), e como não poderia deixar de ser vai ao coração do pensamento atual que é o idealismo e seu ideólogo poli-ideológico Hegel, citando Bataille: “Hegel imagino, tocou o extremo. Ele ainda era jovem e pensava estar ficando louco. Eu até imagino que inventou o sistema para escapar. […] Por fim, Hegel regressa ao abismo visto para anulá-lo. O sistema é a anulação” (Bataille, apud Han, pg. 258).
“O sujeito hegeliano anseia pela posição de poder do autor consciente, que não é perturbado por nenhuma incerteza, nem ameaçado por nenhum destino” (pg. 260), a ideia de esperança e resistência espiritual (seu espírito é o gosto pelo poder), “não se curva pela presença rígida e indeclinável”, “a negatividade é bem-vinda como fermento da verdade” (pg. 261) e assim trata-se mais de destruí-la do que afirma-lo como esperança e visão de futuro.
Nele o negativo se articula como o “sentimento de violência” (Han citando Hegel), que arrasta a consciência de uma morte para a outra (Han, 261), e a guerra é inevitável.
Não foram os donos do poder e sua articulação imperial que criaram sentimentos de guerra, a ideia de violência está inerente ao pensamento idealista, nela a “ interioridade subjetiva, que lhe sugere um conhecimento absoluto” (pg. 260), Hegel encontra a salvação no sistema, “mata” a “suplica insistente” e torna-se o “homem moderno” (pg. 261).
Aparentemente o “sujeito não tem medo”, “o enigma dá lugar a regra” assim não há lugar para o mistério, para o divino e para a vida eterna, estar no mundo significa estar sobre as regras da violência, da indiferença e da morte.
A resistência da esperança é estar na convivência com a realidade idealista, tendo uma ascese verdadeira que almeja a alegria verdadeira.
Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Pré-ocupação e pré-conceitos
Não se trata de jogar com as palavras, elas tem o sentido claro sem o hífen, questões que ocupam nossa mente e se tornam desafiadoras, e os preconceitos quando estimulados social e estruturalmente colocam pessoas, indivíduos, etnias e povos em descrédito.
Porém há outro sentido para aqueles que se preocupam com a saúde mental e a saúde social onde seja possível conviver com a diferença, com o Outro e com o contraditório, trata-se de uma saúde espiritual, no sentido de fazer uma resistência do espírito a um ambiente hostil.
O objetivo de deixar uma pessoa em descrédito através do preconceito, não pode ser confundido com a intolerância e o desamor do pré-conceito presente na estrutura do pensamento dualista: subjeito x objeto, natural x cultural, corpo x mente, nela residem boa parte da resistência ao diálogo e a abertura ao Outro diferente.
Alguns autores consideram que o preconceito como discriminação (Erving Goffman por exemplo), são mais relevantes do que o próprio estereótipo feito sobre determinados indivíduos, porém também estes autores entendem que existem características anti- dogmáticas que podem articular a relação existe entre preconceito, estigma e discriminação (o próprio Goffman faz isto).
A partir da perspectiva que o pré-conceito é interente ao homem e à sua percepção de verdade (Gadamer, 1997) o modo de conceber e entender próprio da realidade acerca de um determinado fenômenos, deve passar primeiro por um pré-entendimento ou pré-conceito deste mesmo fenômeno, ou seja, dificilmente vamos a realidade sem nenhum conceito a respeito dela, para isto é preciso um epoché fenomenológico, diz a boa fenomenologia.
Digo isto antes da pré-ocupação, porque em geral grande parte dos fenômenos naturais e existenciais passam por um filtro preconceituoso, no sentido de pré-entendimento, e assim o nó e o véu sobre a realidade fica estabelecido, é preciso uma atitude para ir a frente, deixando que a ocupação (e não seu pré estabelecimento) adquira o lugar certo no devido tempo.
A esperança (e para quem crê é a fé) entra nesse vácuo entre os dois estágios, a pré-ocupação que pode estar envolta de pré-conceitos da realidade, e a verdade estabelecida pelo fenômeno em si, alguns pensarão o fato, mas o fenômeno ou a coisa em si, é própria e o fato depende sempre de uma narrativa sujeita ao pré-conceito.
Resumindo, não se preocupe antes da hora, deixe que o fenômeno e a realidade fale por si na hora exata de sua “ocupação” ou em termos ontológicos de sua “presença”, seu da-sein.
GADAMER, H.G. Verdade e método. Tradução Flávio Paulo Meurer. 3ª. ed. Petrópolis (RJ): Vozes . 1997.
Física quântica, terceiro oculto e espiritualidade
Nicolescu Barsarab além de formular a teoria do terceiro incluído, fundamentando pela física quântica que o princípio de Aristóteles do terceiro excluído, existe A ou não-A sendo excludentes, entretanto a física quântica já havia revelado um terceiro estado T, como uma combinação entre os estado de “existência” e “não-existência” como um estado físico, este Ser existente ou não como terceiro estado permite falar de uma Ontologia Transdisciplinar.
Sucintamente, Nicolescu (2002) desenvolveu é que em vez de uma realidade esperando para ser descoberta usando o método científico, existem múltiplos níveis de Realidade (ele coloca Realidade em maiúscula e usa a letra T para transdisciplinaridade) organizados em dois níveis.
Um nível diz respeito à Realidade Subjetiva (TD-Sujeito), assim chamada porque trata da fluxo interno de perspectivas e consciência. Incluem-se psicologia e filosofia individual, família, comunidade, sociedade, história e ideologias políticas. O outro nível diz respeito à Realidade objetiva (TD-Object), assim chamado porque trata do fluxo externo de informações, fatos, estatísticas e evidências empíricas.
Os exemplos incluem economia (negócios e direito), tecnologia, ciência e medicina, ecologia e meio ambiente, planetário (mundial e global) e cósmico e universo (Nicolescu, 2002, 2016).
Cada nível de Realidade é diferente, mas “cada nível é o que é porque todos os níveis existem no mesmo nível”, a existência de um único nível de realidade, o fechamento disciplinar do conhecimento, também Edgar Morin alerta para isto, cria um novo tipo de obscurantismo, do fechamento disciplinar em áreas de conhecimento.
Diz Carta da Transdisciplinaridade de Arrábida no seu preâmbulo: “Considerando que a ruptura contemporânea entre um saber cada vez mais cumulativo e um ser interior cada vez mais empobrecido leva à ascensão de um novo obscurantismo, cujas conseqüências, no plano individual e social, são incalculáveis”, e diz no seu artigo terceiro: “A transdisciplinaridade é complementar à abordagem disciplinar; ela faz emergir novos dados a partir da confrontação das disciplinas que os articulam entre si; oferece-nos uma nova visão da natureza da realidade” (Arrábida, 2014).
A abertura para o sujeito, não se trata apenas da subjetividade idealista, é a própria abertura ao Ser e o que a Ontologia Transdisciplinar propõe é vê-lo na complexidade que se desvela.
Nicolescu, B. Manifesto of transdisciplinarity. New York, NY: SUNY Press, 2002.
Nicolescu, B. The Hidden Third [W. Garvin, Trans.]. New York, NY: Quantum Prose, 2016.
Freitas, L., Morin, E., Nicolescu, B. Portugal, Convento da Arrábida, 6 de novembro de 1994.