Arquivo para a ‘Método e Verdade Científica’ Categoria
O todo e a parte
A parte e o todo se separaram na filosofia ocidental, o método racional consagrou esta divisão.
“O mundo torna-se cada vez mais um todo. Cada parte do mundo faz, mais e mais, parte do mundo e o mundo, como um todo, está cada vez mais presente em cada uma de suas partes. Isto s verifica não apenas para as nações e povos, mas para os indivíduos. Assim como cada ponto do holograma contém a informação do todo do qual faz parte, também, doravante, cada indivíduo recebe ou consome informações e substâncias oriundas de todo o universo” (MORIN, 2006, p. 67).
Isto é para entender aquilo que no pensamento complexo de Edgar Morin chama de princípio hologramático, isto foi também o ponto de partida do pensamento de Werner Heisenberg para dar início ao pensamento quântico e que tem um livro com este nome ao contrário, “A parte e o todo”.
Também Gregório de Matos Guerra (1639-1696), um dos representantes do Barroco brasileiro, escreveu um Poema chamada “Eucaristia”, no qual diz: “Deus está todo em todo sacramento”, e como seria importante para os que creem entender isto, para entender o que viver a palavra.
A moderna física atômica lançou nova luz sobre problemas desde éticos e políticos até filosóficos e religiosos, no livro de Heisenberg logo no prefácio que é quase uma biografia escrita de forma sui generis, ele fala de diálogos com Einstein, Plank, Bohr, Dirac, Fermi, Pauli, Sommerfeld, Rutherford e vários outros colegal.
A parte e o todo têm como subtítulo: “encontros e conversas sobre física, filosofia religião e política”, o que o torna também iniciador de um “pensamento complexo e hologramático” como propôs muitos anos mais tarde Edgar Morin.
Compreender a complexa situação civilizatória que vivemos não é possível sem esta compreensão.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2006
A trindade na perspectiva antropotécnica
Toda a filosofia de Sloterdijk deve ser precedida de uma boa leitura de Heidegger, tentando simplificar o que é per-si impossível, explicamos a categoria “ser-em” que será bastante utilizada no seu discurso sobre a relação trinitária, de onde desvela a “cossubjetividade imbricada da díade Deus-alma” (Sloterdijk, p. 490), onde o “surrealismo teológico oculta-se, como mostraremos, o primeiro realismo das esferas” (idem).
Sloterdijk não usa epígrafes apenas para decorar o texto, no capítulo 8 “mais perto de mim que eu mesmo: propedêutica teológica para a teoria do interior comum”, na epígrafe explica: “… quer dizer ´ser-em´[In-sein] ?… Ser-em … significa uma constituição ontológica da existência (Dasein)” citando o § 12 de Ser e Tempo de Heidegger.
Esclarece na outra citação da epígrafe que “talvez o Em seja o reino pressentido de toda a vida (de toda moral) de Deus”, citando Robert Musil no seu livro “O homem sem qualidades”, que o é hoje o homem moderno.
Antes de penetrar na questão da trindade, explica que o amor humano “não existe de maneira nenhuma antes de se produzir” … “na perspectiva da modernidade individualista – duas solidões que se desenraizam pelo encontro” (pag. 491), e irá retornar a incidente do paraíso perdido perguntando se não foi ele “um doloroso fosso de estranhamento?” (idem).
Foi Agostinho, esclarece nas “Confissões” que levou “a dialética do reconhecimento a partir do desconhecimento” (pg. 492), em sua “obra-mestra críptica” De trinitate (em particular os livros VIII e XIV) “que tratam da acessibilidade de Deus através dos traços deixados no interior da Alma” (p. 493), e embora trace suas contradições com o discurso teológico, afirma “ele pode ser considerado como o grande lógico da intimidade da teologia ocidental” (idem).
A longa análise que vai da página 494 até a 524 em que penetra nas contradições do discurso religioso, passando por citações bíblicas, Nicolau de Cusa, o duque João da Baviera, um Cardeal erudito e não autorizado na literatura da tradição cristã, chega a um veredito final, este sim importante, que é como o dualismo platônico provocou “efeitos secundários … em doutrinas deste tipo [que] rompem também o sentido de ser-em” (pg. 524).
Ilustrada com a pintura de Juan Carrero de Miranda “A fundação da Orden da Trindade” (óleo de 1666), o autor passa a fazer a repartição “topográfica dos Três no Um”, destaca no quadro a “quase-quaternidade clássica abrange a Trindade e o Universo” (destacamos com um pequeno círculo vermelho), seria bom que a fizesse.
Dentro de sua esferologia, Sloterdijk explica que “ecos característicos da filosofia da natureza, mesmo que se trata há muito tempo, da coabitação de entidades espirituais”, assim estamos mais próximos de outras cosmovisões “animistas” do que imaginamos, numa teológica dualista.
Analisando o discurso do Pseudo-Dionísio Aeropagita, esclarece que “o páthos da diferença dos diferentesno interior do Um já era conhecido do neoplatonismo, e a “justificação mútua dos princípios das pessoas da Trindade” (pag. 130) se beneficiará dele.
Conhece bem a pericorese dos padres capadócios (São Gregório de Nissa, São Basílio e São Gergório de Nazianzeno) (pag. 540-541) além de Agostinho usado fartamente, não deixa de citar João Damasceno (pag. 538, 544-546) e cita Tomás de Aquino.
SLOTERDIJK, P. Esferas I: Bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques, São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
Clareira e iluminação
O que acontece de fato se encontramos a clareira, se por um processo de mudança de consciência, de auto-iluminação abandonamos velhas teorias e maquinações e nos “vemos”.
A resposta está no próprio Heidegger em sua principal obra Ser e tempo: “Na medida em que o ser vige a partir da alétheia, pertence a ele o emergir auto-desvelante. Nós denominamos isso a ação de auto-iluminar-se e a iluminação, a clareira” (cf. Ser e tempo)”.
Já postamos sobre a diferença entre alétheia e verdade, porém agora pode-se a partir do texto acima desvelar um pouco mais profundo, o percurso da iluminação nos conduz a uma posse que dá sentido ao que somos e do que recebemos para ser. Na iluminação há um sentido do ser e realiza um percurso ontológico e não meramente temporal ou espacial, esta ligação ao temporário oculta o sentido originário de todo espaço e tempo, de toda época e de toda relação com o mundo, está é a iluminação.
Não é definição minha, outros leitores de Heidegger fazem um raciocínio muito prático e parecido ao que é feito aqui, por exemplo, o texto de Manuel de Castro encontrado na Web, que afirma que “na iluminação o sentido de ser acontece em nós”, não é obra do acaso e há muitas outras possibilidades desta iluminação, todas as religiões por exemplo, procuram esta iluminação, os filósofos em sua maioria, acreditam tê-la encontrado, mas o que é ela de fato.
Lanço o recurso das religiões, em especial a cristã que professo, mas não deixo de imaginar que o mesmo seja possível em outras, há algo que pode ser chamado de “sementes do verbo” e que de alguma forma estão presentes nas grandes religiões, na cristã é a ação do “Espírito Santo”.
Este nodo que pode nos unir a uma iluminação, é aquele que nos “une a todos”, é aquele pensamento que Edgar Morin dizia: “é preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que une e distingue”, portanto viver em unidade com os outros diferentes.
A palavra que fala desta ação através de um dom especial do Espirito Santo que fazia a todos que ouviam compreenderem em sua própria língua (pode-se pensar numa metáfora conforme o entendimento possível de cada), diz a passagem (At 2,4-6):
Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito os inspirava. Moravam em Jerusalém judeus devotos, de todas as nações do mundo. Quando ouviram o barulho juntou-se a multidão, e todos ficaram confusos, pois cada um ouvia os discípulos falar em sua própria língua”, em algum momento da nossa história isto pode acontecer.
O que se espera é um mundo mais fraterno onde o diferente possa viver em sua dignidade e ser entendido em sua própria língua.
CASTRO, Manuel Antônio de. “O ser e a aparência”. www.travessiapoetica.blogspot.com
Dicionário de Poética e Pensamento (ufrj.br)
Dicionário de Poética e Pensamento (ufrj.br)
O habitar e a clareira
Tanto o habitar como a clareira, precedem a ideia de Ser, desde a filosofia antiga o Ser é também “morada”, porém a filosofia moderna recuperou a linguagem, evento chamado reviravolta linguística, e vale a frase de Heidegger: “A linguagem é a casa do ser” significa uma identificação ontológica entre ser e linguagem.
O que é esta “morada” significa aquilo que é o ser enquanto ser, significa retirar do ser seus adjetivos para ser o que é, por exemplo, o homem enquanto homem sem sua cor, religião, sexo, nacionalidade, idade, cultura, nada que o particularize e os separe uns dos outros, é nisto que encontramos o ser.
Por isto a definição de Heidegger de linguagem, mas num sentido amplo qualquer forma de comunicação desde um simples olhar até um longo discurso, e mesmo o uso de algum aparato para enriquecer (ou empobrecer é claro) a linguagem.
Habitar a clareira portanto exige primeiro que desvelamos o que é este Ser, e depois o ente que é o que vale para o ser, enquanto o “ser-aí” (Dasein) é aquilo que está no ser.
Isto esteve velado na história, e ainda mais na modernidade que projetou todo o ser sobre o ente, ou seja, sob sua caracterização e determinação, mas aquilo que ele é foi velado.
Górgias (485-380 a.C.) foi o primeiro na história da filosofia a negar a existência do ser, para isto teve também que negar a razão, e a existência em absoluto, “nada existe de absoluto”, assim não existem verdade, é o princípio que hoje chamamos de relativismo.
A existência e a realidade do Ser, embora velada, é a possibilidade da clareira, dela dependerá uma abertura para a transformação, para a mudança tanto na relação humana, já que está é linguagem fundamento do ser, quanto na relação com a natureza, que determina também o ser-aí.
Tudo pode tornar-se desvelado se retiramos o véu que cobre o ser, e descobrimos também a sua interioridade, que o filósofo Byung Chul Han chama de negatividade, que é sua reflexão sob aquilo que é, vendo-se como num espelho, e assim conseguir ver-se como Ser.
Um filósofo oriental lê a “clareira”
Byung Chul-Han é um filosofo coreano-alemão que migrou para o ocidente e faz uma leitura impar da literatura ocidental, em particular o contexto das redes e das novas mídias, estudou em seu doutorado Heidegger e com isto sua “clareira”.
Explica o que é a clareira de modo simples: “A ´verdade´ de Heidegger ama se ocultar. Ela não se dispõe simplesmente. Ela tem de, primeiramente, ser ´arrancada´ do seu ´velamento´. A negatividade do ´velamento´ habita na verdade como o seu ´coração´” (Han, 2018, p. 74) e neste trecho cita a obra de Heidegger: “Sobre a questão do pensar”.
Ele penetra no que significa a informação, o grande insumo do Ser velado atual, “falta a informação, em contrapartida, o espaço interior, a interioridade que permitiria se retirar ou se velar. Nela não bate, Heidegger diria, nenhum coração” (Han, 2018, p. 74).
Esta ausência de contrapartida, é o que Chul Han chama de negatividade, é bom explicá-la bem, “uma pura positividade, uma pura exterioridade caracteriza a informação”, assim é o refletir.
Como seria então a informação da negatividade, no sentido de reflexão, é a informação “seletiva e aditiva, enquanto a verdade é exclusiva e seletiva. Diferentemente da informação, ela não produz nenhum monte [Haufen]” (Han, 2018, p. 74).
Assim, não há ‘massas de verdade” e sim “massas de informação”, é a “massificação do positivo” (Han, 2018, p. 75), assim informação distingue-se do saber, e este não “está simplesmente disponível”, diria nem simplesmente porque é complexo e nem disponível porque está oculto.
Porém o filósofo a confunde com experiência de vida, ao afirmar: “não raramente, uma longa experiência o antecede” (idem, p. 75), e afirma só uma face da informação: “a informação é explícita, enquanto o saber toma, frequentemente, uma forma implícita”.
Esclarecendo estes dois pontos confusos, primeiro a questão da experiência, o filósofo Platão foi o primeiro a anunciar que a sabedoria, como conhecimento da verdade não é fruto da idade, se assim fosse somente na velhice as pessoas mereceriam ser ouvidas, a outra questão é sobre a informação tácita, ela existe como conhecimento tácito, Michael Polanyi (1958), foi um dos primeiros a teoria, e Collins nos anos setenta retomou o conceito no âmbito da comunicação científica. Para esta informação tácita, Chul Han também aponta isto, é preciso “silêncio”.
A clareira mais profunda o filósofo descreve citando Michel Butor, que deu uma entrevista ao Die Ziet, em 12/07/2012, que aponta para a verdadeira causa: “A causa [disso] é uma crise de comunicação. Os novos meios de comunicação são dignos de admiração, mas eles causam um barulho infernal” (Butor apud HAN, 2018, pg. 42).
Referências:
POLANYI, M. Personal knowledge – towards a post-critical Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press, 1958.
COLLINS, H. M. The TEA set: tacit knowledge and scientific networks. Science Studies, v.4, p.165-186, 1974.
HAN, B. C. No enxame: perspectivas do digital. No Enxame: perspectivas do digital. Trad. Lucas Machado. São Paulo: Editora Vozes, 2018.
A relação entre amizade e amor
Philia traduzida do grego, romanizado vira filia, mesma raiz de filhos, filiação e afiliação, onde o a aqui não é negação mais inclusão, no sentido de pertencer, afiliado a uma instituição, por exemplo.
Nesta raiz grega se encaixam tanto amor como amizade, filo-sophia, amor ou amizade a sabedoria, entretanto o amor poderá ser também (já fizemos um post) como a amizade do tipo eros ou ágape, que neste caso supera a amizade.
Amizade pode crescer e se tornar um amor agápico, isto é, capaz de criar confiança e acima de qualquer interesse, e neste caso amizade e amor se complementam e se ampliam.
Em termos humanos, culturais e espirituais é o que favorece o bom desempenho e a saúde mental de uma pessoa, assim a desconfiança e a inimizade que podem chegar ao ódio é causa de muitas guerras, pois o interesse econômico, político ou social sem laços verdadeiros não é outra coisa.
Não há como romper uma espiral de ódio quando ela cresce, muitas guerras e regimes totalitários são prova disto, e a raiz está em cada célula social onde a amizade e o amor deixaram de existir.
De outro lado quando estes laços crescem e se espalham em rede, tudo torna-se saudável e há um ciclo virtuoso onde os melhores valores humanos e sociais aparecem: solidariedade, fraternidade e aquilo que chamamos de amor agápico, que vai além de qualquer interesse, é uma “amisticia”.
O pensador romano Cícero tem um texto exatamente com este nome e diz no texto: “Este é o primeiro preceito da amizade: pedir aos amigos só aquilo que é honesto, e fazer por eles apenas aquilo que é honesto”, assim esta é a origem de uma sociedade que se pretende feliz e pacífica.
A questão da Identidade e sua atualidade
A questão é tão fundamental que percorre a filosofia desde Parmênides, onde “o mesmo, pois, tanto é aprender (pensar) como também ser” (apud Heidegger, 1973) e para ele pensar e ser são pensados como o mesmo, ou seja, a identidade faz parte do ser, porém isto tem muito a ver com o momento atual.
Quando apelando a questões de identidade separamo-nos de pessoas de diferentes raças, credos ou gêneros não estamos senão tentando fortalecer aquilo que é um falso conceito de identidade porque tanto nega o próprio Ser, como tentativas de fortalecer determinado grupo sob uma pretensa identidade e negar aqueles que pouco tem a ver com a pertença aquele grupo ou raça.
Esse olhar para “coisas diferentes” e reconhecer nelas alguma co-pertinência (a pertença é só mais uma forma de dar identidade a um grupo ou raça isolada), devemos manifestar diferentemente o que deve ser apontado como mesmidade, ou seja, co-pernitência de grupos com cultura diversa.
O sentido lógico de pensar desta identidade é forte e tem presença em diversas culturas tanto porque os grupos querem se fortalecer através desta “identidade”, quanto seguem uma lógica binária e dualista onde A não pode ser B, ou são iguais e são o mesmo, ou são diferentes e são contraditórios, já apontamos em outros textos o terceiro incluído de Nicolescu Barsarab, na lógica.
Porém na onto-lógica o Ser é e pode não-Ser, onde existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A, que até mesmo na realidade física já foi comprovado pela física quântica, o problema para a filosofia dualista é que isto envolve a complexidade.
Há um segundo modo de ver a questão dentro do pensar (noein) onde o mesmo é apresentado como Ser, como foi dito no início, nele duas coisas supostamente distintas, vêm-se uma na outra como co-pertinência, o que tornou possível algumas interpretações problemáticas na modernidade.
Heidegger aponta para ela, primeiro citando Parmênides e depois desenvolvendo “algo absoluta- mente diverso daquilo que ordinariamente conhecemos como a doutrina da metafísica, na qual a identidade faz parte do ser” (HEIDEGGER, 1973).
O que Heidegger faz é inverter a frase de Hegel: “a identidade faz parte do Ser”, para “(…) a unidade da identidade constitui um traço fundamental do ser do ente. Em toda parte, onde quer que mantenhamos relação com qualquer tipo de ente, somos interpelados pela identidade” (HEIDEGGER, 1973).
Indo ao fundo da filosofia moderna, onde Hegel é digno representante, pode-se dizer que há um deslocamento do Ser (sein) para o Ser-aí (Dasein) e talvez a complexidade encontre aí um ponto de apoio para os que desejam explicações simplistas, pode-se dizer há no ser um deslocamento
Porém é mais complexo, pois envolve aspecto existenciais como a “mundanidade”, a “facticidade” e a “linguagem”, sem eles caímos nas explicações simplista que só fortalecem a identidade como fator de diferença e exclusão do Outro, daquele que não é do meu círculo e caminhamos a intolerância.
HEIDEGGER, M. O princípio de identidade. In. Col. Os Pensadores. Trad. Ernildo Stein, Rio de Janeiro: Abril, 1973.
Uma epistemologia e escatologia incompletas
Aquilo que a fenomenologia e a filosofia ontológica procura está no centro da crise científica e do pensamento que vive o ocidente, e cujo epicentro é europeu, no dizer iluminado de Peter Sloterdijk a Europa se recente de não ser mais o centro como no período colonial (chama-a de Império do Centro) e procura outras formas de colonialismo para levar o idealismo avante, aquilo que na literatura tem-se chamado de epistemicídio.
Ao negar as culturas originárias de outros povos, pensa estar encontrando a própria difusa entre o barbarismo e a antiguidade clássica, tenta um novo renascentismo explorando de maneira difusa a cultura grega clássica.
No plano religioso o desastre é maior, Slavov Zizek escreveu recentemente sobre o conceito religioso em Hegel, e este último dos pensadores que tentar reavivar o marxismo clássico, reelaborou a religião hegeliana, mas que já era presente em Feuerbach e o próprio Marx criticou, no fundo é uma teologia atéia, uma escatologia morta.
Morta porque este é na verdade o grande equívoco da escatologia idealista, não há transcendente para ela sem a separação de sujeito e objeto, precisa negar a substancialidade para afirmar sua “subjetividade” onde o sujeito precisa sempre estar morto, nega o ser-para-a-morte mote de Heidegger, mas afirma a morte em vida (e isto não é o epoché fenomenológico).
Toda forma de cultura originária, é obvio que inclui aquelas culturas não-cristãs, tem uma origem (o próprio nome o diz), a vida e o fim escatológico, que não é para onde se caminha, e neste ponto esta teologia incompleta tergiversa sobre o que de fato é a morte, em tempos de pandemia poder-se-ia dizer que a doença que pode matar, e aqui é idêntica aos negacionistas.
Por isto mesmo que apele para a fenomenologia será incompleta, levará os que as incorporam a exaustão, ao desprezo pela vida, que até mesmo no sentido religioso é algo profundamente sagrado, sua “biós”, sua substancialidade, para ser claro para os idealistas, sua objetividade, caem no abstracionismo teórico.
A única substancialidade desta escatologia incompleta é negar a religião para torna-la idealista e pedir o que é desumano, aquilo que em termos bíblicos chama de “colocam fardos pesados nos ombros dos outros” e que eles próprios se recusam a carregar, em tempos de pandemia nem entram e nem deixam os outros entrarem.
O exame final será substancial: “eu tive fome e me destes de comer, eu tive sede e me deste de beber …” e não será questionado se elaborou uma boa epistemologia ou teologia, aquela que fez do colonialismo o terror das culturas originárias.
Crise civilizatória e morte
Retomando o pensamento de Pablo Picasso que o pior perda da vida não é morrer, mas morrer enquanto vivemos é a que melhor explica o estado civilizatório, mesmo os que devem a fraternidade, o diálogo, o planeta como casa comum parecem sem esperança e por isso cansados, não aquele da Sociedade do Cansaço que é parte uma crise, mas aquele de quem deixou de encontrar o que une, o positivo e o verdadeiro na vida.
Dir-se da pós-verdade, o sofisma é pré-socrático, e a mentira pública também já foi veiculada por jornais e meios televisivos, conforme o lado político que tomam, no fundo todos acabam concordando que se não está do lado politicamente correto, não é verdade, então ficamos no relativismo e no dualismo, mesmo aos que pregam contra, Edgar Morin tem razão é uma crise do pensamento, e Peter Sloterdijk também “não é um tempo favorável ao pensamento”, é mais fácil tomar um lado, embora hajam erros e acertos em vários lados, porque não são apenas dois.
Vi no Instagram que dois vídeos muito populares são de uma jovem artista que faz fantoches com esqueletos, pássaros e figuras fúnebres e outro de uma menina cujo cabelo foi decorado como um cemitério (figura acima), é uma triste realidade os pós-góticos parecem dominar a fantasia juvenil.
Em reportagem a BBC do dia 31 de outubro, o banqueiro dos pobres Muhammad Yunus declarou: “Precisamos redesenhar o sistema garantindo uma nova economia de três zeros: zero pobreza, zero desemprego e zero emissões líquidas de carbono. E sabemos como fazer. O problema é que somos muito preguiçosos e estamos muito confortáveis no sistema que temos, não queremos sair da nossa zona de conforto”, é um novo pensar pode não dar certo, mas sem dúvida as pessoas, os pobres e o planeta precisa de respostas, as velhas criam mais polarização e equívocos, além de pós-verdades, neste caso com um novo sentido, do ponto de vista ideológico elas foram verdades um dia, hoje são pós-verdadeiras.
Há situações e penso que o próprio planeta poderá reagir, uma reação aórgica, o inorgânico sobre o orgânico, afinal viemos do pó, de alguma reação química e com certeza se não mudarmos a rota iremos voltar ao pó, não aquela fatalidade da vida, a morte pessoal física, mas o morrer em vida.
A pergunta que fica é se esta reação do inorgânico planeta poderia mudar algo no orgânico humano, a sua mente, o seu ser, para algo melhor.
Aflição e angústia
Os que leram atentos O Ser e o tempo, sabem que uma das respostas importantes de Heidegger é o aquilo que deve ser lido em Kierkgaard e que está ligado a raiz filosófica de seu pensamento, e isto está ligado a angústia e discorremos aqui o que a diferencia da aflição que é a angústia pessoal e ligada ao problema do mal.
É, pois, o próprio Heidegger quem Kierkegaard separando-o em ensinamentos ditos “edificantes” que seriam mais importantes do que os “teóricos”, exceto em um caso que é o da angústia, em seu tratado O conceito de angústia, e que o filósofo da floresta faz questão de dizer que “do ponto de vista ontológico” permanece ainda “inteiramente tributário de Hegel e da filosofia antiga vista através deste”. (HEIDEGGER, 2012, p. 651, n. 6).
O que Heidegger viu neste livro de 1844, cuja autoria é atribuída a Vigilius Haufniensis, pseudônimo kierkegaardiano que se traduz como “Vigia de Copenhague”, já que Kierkegaard era dinamarquês e sua primeira intenção é retornar a sabedoria socrática, que para ele se conjugava entre o saber contemplativo (theoría) com o saber prático (phrónesis), a maneira da antiguidade grega.
Apesar dele ter chamado Sócrates de “filósofo prático, justamente queria centrar o penso da “angústia” na vivência do que era refletido pela alma e isto significou uma aproximação da psicologia, era “a doutrina do espírito subjetivo” (Kierkegaard, 2010, p. 25), era um dos ramos da Filosofia, e de uma filosofia realmente dialética no sentido grego-socrático já que a filosofia moderna se fixou no dualismo kantiano tese x antítese com uma improvável síntese
O filósofo usa a expressão “pecado hereditário”, usada pelo autor ao longo da obra, mas como aquela que correspondo o que os teólogos, por ele chamados de “dogmáticos”, denominam como de pecado original, nomenclatura a parte, é o aspecto que aproxima o seu tema da angústia daquela aflição “de alma”, que pode ter o contorno filosófico e psicológico, mas que é no fundo aquela aflição de quem se sente fora de um centro, de uma perspectiva clara de superação da angústia.
Nela não há o sentido portanto de pecado original, nem da noção de pecado, mas se confunde como tal como a sua possibilidade enquanto ideia, ou seja, uma categoria conceitual capaz de nos ajudar a pensar sobre algum mal praticado, e o que levaria a este “mal” é o conceito de liberdade para muitos pensadores.
O que conduz o existir a um modo singular, a um modo de agir de tal forma ? É aí que as noções de liberdade e de angústia emergem enquanto “conceitos” convergem para esta “angústia”, mas sem ter um locus, nem na Estética, nem na Metafísica e sequer na Psicologia, assim o autor não o diz, mas há algo de aflito e de trágico neste caminhar nesta “angústia”.
Paul Ricoeur refletindo sobre estas expressões de Kierkegaard, estabelece que o mal é “o que há de mais oposto ao sistema”, justamente porque é absurdo e escandaloso, irracional e incompreensível, situado à margem da moral e da razão, lembra Ricoeur (1996, p. 16), referindo-se às reflexões kierkegaardianas, o mal é “o que há de mais oposto ao sistema”, justamente porque é absurdo e escandaloso, irracional e incompreensível, situado à margem da moral e da razão.
Ricoeur diferencia assim o mal estrutural (já fizemos um post), ligado a angústia e o pecado e o livre-arbítrio ligado a decisões pessoais perante a angústia.
O ponto que considero essencial no pensamento de Kierkegaard sobre este aspecto existencial é que “só o que atravessou a angústia da possibilidade, só este está plenamente formado para não se angustiar, não porque se esquive dos horrores da vida, mas porque esses sempre ficam fracos em comparação com os da possibilidade” (Kierkegaard, 2010, p. 165-166), é aqui que a aflição pode encontrar o seu oposto e podemos entender que há uma fonte de consolo nela.
Assim angústia e aflição não são propriamente maldições ou estados pecaminosos ou doenças da “alma” ou dos pensamentos, são fases de ruptura ou transição para outras fases mais maduras quanto esta etapa envolve reflexão e superação.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. (Multilíngues de Filosofia Unicamp). JOLIVET, Régis. As doutrinas existencialistas: de Kierkegaard a Sartre. Porto: Tavares Martins, 1957.
KIERKEGAARD, Sören. O conceito de angústia: uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário de Vigilius Haufniensis. Tradução e notas Álvaro Luiz Montenegro Valls. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.