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Não há cidadania sã sem areté
A construção da sabedoria (episteme) e da virtude (o areté grego) no combate a doxa (mera opinião da verdade relativa) e aos sofistas, que apesar de sábios estavam corrompidos pelo gosto do poder, pelas paixões e pelos instintos, fizeram Sócrates, que o conhecemos a partir dos diálogos de Platão, e do próprio Platão construir um modelo novo de cidadania que precisava de educar, sair da Caverna para a luz e de organizar o conhecimento para o verdadeiro Bem.
É fato que o sentido de excelência foi adotado por autoridades do Estado, porém a sua origem etimológica continua válida e defendê-la é sim defender o bem, senão caímos no relativismo sofista, qualquer verdade e qualquer argumentação é válida, a maiêutica socrática é ainda válida e perguntar é dialogar.
Martha Nussbaum, uma das mais renomadas filósofas atuais na antiguidade clássica, apontou em seu livro A fragilidade do Bem: “… a indolência, o erro e a cegueira ética causam inúmeras tragédias”, são aspectos relevantes que os democratas devem lembrar para a defesa da democracia e o risco de que os sofistas modernos tomem o poder e manipulem as opiniões, não se tratam apenas de fake-news, posições equivocadas e autoritárias, é preciso defender valores de verdadeira cidadania, a areté (na figura, a escultura em Éfeso).
Já explicamos o sentido bíblico da rede, da pescaria e o lançar as redes, em outra passagem após retornar do mar da Galiléia Jesus e os discípulos se encontram com a multidão, e sendo o lugar deserto os apóstolos pensam em dispensar a multidão por falta de alimento, mas Jesus diz para ver o que havia de alimento e faz o conhecido milagre da multiplicação dos pães e peixes, a partir de 5 pães e 2 peixes.
É claro que a virtude cristã está além da proposta pelos gregos, estende-se a moral pessoal e a compreensão da misericórdia, porém não exclui a aretê cidadã e de domínio dos instintos e das paixões, nos dias atuais tão afloradas e atingindo mesmo os religiosos, má leitura da multiplicação dos pães e peixes que está mais relacionada a aretê cristã que a polis, pois estavam “num lugar deserto” (Mt 14,15), isto é, uma espécie de “retiro”.
A virtude da compaixão é necessária para a distribuição dos bens, o processo de concentração de riqueza se acelerou com a pandemia, sem recolher os poucos pães e peixes que restam de uma economia em crise para socorrer milhares que estão famintos, sem emprego e muitos sem esperança, esse deverá será a verdadeira nova normalidade se quisermos dias melhores, só se houver dias melhores para todos sem esquecer os milhões que perderam empregos, esperança e familiares nesta pandemia.
Sofistas modernos e a sabedoria prática
Os sofistas acreditavam na educação e no bom, porém o bom era relativo e um código de ética impediria atingir o que satisfaz os instintos e paixões humanas, enquanto que Sócrates vai elaborar a felicidade como um conjunto de virtudes (em grego aretê, que significa ao mesmo tempo excelência moral e política, hoje em campos opostos), e seu método a ironia e a maiêutica.
Os sofistas modernos podem ser vistos em três correntes, os céticos que não acreditam em verdade e pensam a felicidade como bula de remédio (a ética são apenas contra-indicações), os pragmáticos que recuperam o sentido original do “bom” para sofistas sem virtudes, e os retóricos, também a moda dos sofistas originais, numa boa oratória dizer o óbvio (e esconder os problemas e a doxa, mera opinião).
Já explicamos em outro post, que ironia não tem o sentido de hoje próximo ao ceticismo, são exatamente opostos na origem grega, vem da palavra grega eirein que significa perguntar, assim por sucessivas perguntas em uma discussão Sócrates levava seu oponente a contradições, a segunda parte de seu método é a maiêutica que é a arte de parir, então o que no fundo o método socrático queria pela ironia era levar o oponente ao perceber seus pré-conceitos obter a capacidade de refletir, e assim de parir ideias próprias que o conduzissem a verdade.
Mas retornemos a felicidade que os sofistas assim como a verdade diziam não ter formulas, mas apenas maneiras de satisfazer suas paixões instintos, assim a ideia da virtude política e ética ao mesmo tempo pretendida por Sócrates era também ilusória já que era natural a paixão destinada ao poder e a posse de seus benefícios instintivos.
Platão como discípulo de Sócrates, na verdade o que se sabe de Sócrates está em Platão vai refutar o sofista Protágoras, e o diálogo vai se dar em torno da virtude se ela é ensinável ou não, e isto foi ponto fundamental para o nascimento da escola Platônica, segundo historiadores aproximadamente entre 384-383 a.C., localizados em jardins nos subúrbios de Atenas (na foto um mosaico de Pompéia, agora no Museu Arqueológico de Nápoles) .
O objetivo era educar os homens para serem cidadãos e assim combater a decadência da democracia grega provocada pela escola dos sofistas, da mera opinião e da verdade relativa, por baseia-se naquilo que vai do sensível ao inteligível, a dialética da escola platônica baseia-se nisto, onde vai ser essencial a superação da doxa, a mera opinião e a construção da epistéme, o conhecimento organizado construído em verdades universais.
A evolução dos diálogos, principalmente na República de Platão, mostra a evolução dialética (não é nem poderia ser a hegeliana por razões históricas) dos termos da episteme até se constituir em uma estrutura ética que leva a formulação de leis, porém a ética como conhecemos hoje vem da escola de um dos alunos de Platão, Aristóteles que elaborou “A ética a Nicómaco” uma concepção teleológica e eudaimonista (Eudaimonia era a felicidade para os gregos antigos), em torno de uma racionalidade prática, o que os gregos chamavam de phronesis (Frônese em português) um dos elementos da ética.
Aristóteles elabora então a sabedoria como uma virtude do pensamento prático, ou apenas sabedoria prática, o objetivo é descrever os fenômenos da ação humana através do exame dialético das opiniões, resíduo do método socrático, mas para descobrir neles princípios imutáveis, assim é possível superar a doxa e chegar ao conhecimento a episteme, pode-se descrever esta dialética como conhecer-entender-conhecer.
Mais tarde Aristóteles. um dos alunos de sua escola platônica, vai fazer seu Liceu, que essencialmente era feita caminhando, por isto chamada também de peripatécnica, mas escola tenha um gynasium para exercícios físicos, e também para socializar os conhecimentos adquiridos.
A hermenêutica filosófica de Gadamer vai reelaborar a Frônese sistematizando o círculo hermenêutico de Heidegger, criando uma filosofia hermenêutica.
Sofismas e fake-news
O sofisma é uma sabedoria usada por conveniência em alguma situação, pode ser por exemplo o politicamente correto, ou pode ser para favorecer grupos de interesses o que tem maior correspondência com a origem histórica da palavra.
Eram contemporâneos de Sócrates, que se opunha a esse saber utilitário, os sofistas eram pensadores que viajavam de cidade em cidade realizando discursos para atrair estudantes e cobravam taxas para oferecer-lhes educação, qualquer semelhança com as mídias modernas não é coincidência.
Os fake News são noticias falsas, teorias da conspiração e mitos que devido a facilidade da comunicação se espalham de maneira muito mais rápida, porém as meias verdades de sofistas que se espalham por vendedores de sabedoria e máximas sem comprovação científica e histórica também existem hoje, é só verificar o preço de alguns palestrantes que falam de tudo, até mesmo do que nunca estudaram.
Os que vendem a felicidade com fórmulas mágicas, o sucesso fácil, modelos de gestão que não consideram a crise pandêmica, embora seja verdade que muitos ganham dinheiro com ela, a felicidade está longe da camada humilde do povo, a maioria honesta terá dificuldades para colocar seus serviços e produtos no mercado, mesmo com uso do virtual, pois a realidade é que a economia está em recessão mundialmente e muitos socorros e solidariedades serão necessários.
O que é preciso dizer é que a notícia fácil, o sucesso fácil e explicações pouco profundas não são muitas vezes verdadeiras, os que buscam facilidades e simplismo caem nesta armadilha, mas isto aconteceu em toda história, Karl Kraus reclamava nos anos 20 que a imprensa construía uma guerra e ela aconteceu, podemos estar construindo outra, e o fermento da crise e das dificuldades humanas vai auxiliar esta guerra acontecer.
Mesmo que desejamos a paz, espalhar noticias falsas é criar radicalizações, estopim para pequenas guerras que polarizadas se tornam grandes guerras, há pessoas bem intencionadas que fazem isto, denúncias infundadas e meias verdades estão aí, assim na origem de um fake-news está um sofisma, muitas vezes construído por gente inteligente que não devia favorecer a ignorância.
Ditadores sabem que a ignorância os favorece, mas também aqueles que sabem o horror das ditaduras e das guerras podem favorece-las com meias verdades, para facilitar a exposição de um posição social, cultural (inclui-se aqui a religiosa) e política é mais fácil atirar uma meia-verdade, todos desta ou daquela posição são corruptos, fascistas ou comunistas, porém isto é início de uma pequena guerra.
A verdade custa um preço pessoal muitas vezes caro, mas favorece a que lá na frente a guerra não seja feita por motivo injusto, por uma pedra ou um tiro atirado que atinja um inocente, as nossas pequenas “guerras” diárias contra a diversidade de opinião, não são diálogos e não favorecem a paz, no pós-pandemia precisarem de muitas solidariedade e a boa vontade de todos para superar as dificuldades, não há felicidade nem paz fácil.
Como viver a crise e o platô estável
Edgar Morin e Patrick Viveret escreveram em 2010 “Como viver em tempo de crise” (edição em português da Bertrand de 2013), e certamente não pensavam numa pandemia, porém já viam um horizonte difícil para humanidade, e certamente este horizonte foi agravado.
Assim filósofos e outros tipos de visionários que tentam ver um futuro tranquilo não tem um fundamento, ou até podem ter, mas baseados em filosofias e pensamentos já superados, a pandemia exigirá ainda mais dos grandes estrategistas e pensadores humanitários.
Na página 37 do livro mostra os sintomas da crise: “Wall Street conhece apenas dois sentimentos, a euforia e o pânico”, mesmo sem saber é assim que pensam os que prometem “felicidade”, mas é falsa e a ela se seguirá a depressão, uma análise mais sensata pode preparar o desafio que vem.
O platô estável chegou, em termos de mortes pois os dados de infecção são imprecisos, mostram estes picos, agora caminhando para um platô estável não só no Brasil, mas no mundo como um todo, isto porque o ciclo de infecção chegou a todo planeta, e no Brasil a todo país.
O ciclo pode ser realimentado porque não como isolar polos de infecção, mesmo países sem novos ciclos poderão ser afetados, mas observe-se que Nova Zelândia e Taiwan são ilhas, então com o isolamento por mar, são mais controláveis, porém o comércio também pode afetar estes países.
Edgar Morin e seu colaborador citam no livro “três mutações” importantes na crise e que valem para a situação social da pandemia, pois elas representam o mundo antigo, o mundo “estados-nação, da sociedade industrial, de uma organização segmentada (veja os conflitos EUA x China) … o desafio ecológico coloca a pergunta sobre o que vamos fazer com nosso planeta?” (pag. 57).
A revolução industrial colocou a vida num modo de viver frenético, “a sociedade industrial clássica se organizava em torno do sésamo clássico ´o que você faz da sua vida?´”, e que continua a ser uma pergunta que nos interroga a todos, o recém lançado em português “Tens de mudar sua vida” de Peter Sloterdijk coloca isto em torno da antropotécnica, trazendo ao debate a questão técnica.
Ambos apontam para a dupla face da crise: perigo e oportunidade, com respostas diferentes, no entanto o que devemos pensar indicam Morin e Viveret: “o que faremos do planeta, com nossa espécie e com nossa vida” (pagina 54), e dá uma resposta universal e possível: “na esfera de desenvolvimento da ordem do ser, mais que de um crescimento na ordem do ter” (pag. 55), enquanto Sloterdijk indaga se o humanismo não morreu.
O livro apesar da defasagem história é muito atual, e aponta para questão do além pandemia.
MORIN, E.; VIVERET, P. Como viver em tempo de crise? Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2013.
O mal e a crise do humanismo
O idealismo continua a defender seu ideário de Estado, de Ética (moral e virtudes são outras coisas, por exemplo, acabar com as corrupções), agora defender as nações, um Estado mais forte (esquerda e direita no fundo desejam isto) e por isto pode-se falar do zoon politikon, o animal político de Aristóteles, é preciso então entender o que é o animal político.
Há duas condições que pode não tornar-se político: ser degredado (diríamos hoje excluído) ou ser sobre-humano (ou divino, assim de ordem superior as leis e regras humanas).
Esta é a primeira premissa para entender “Regras para o Parque Humano – uma resposta à Carta de Heidegger sobre o Humanismo”, não se trata por tanto de ver o homem como “bicho” do zoológico, mas como animal “natural” porém que seu humanismo encontra-se em cheque.
A polêmica que seguiu-se a sua palestra no castelo de Elmau, na Baviera, significava que a tentativa (desde as escolas de Platão e Aristóteles) de programar a história e o humanismo por meio de uma engenharia social faliu, outro tema importante é a questão da “domesticação”.
A domesticação também não é nova, o filósofo recebeu de uma influência direta de Nietzsche, e Foucault também tratou o tema, sua proposta na Conferência que depois virou livro, era a de inverter a prioridade de Heidegger da dimensão ontológica sobre a ôntica (Sloterdijk, 1999,).
A polêmica causa é porque o filósofo se perguntou se não passaríamos da fatalidade “do nascimento ao nascimento escolhido e seleção pré-natal” (Sloterdijk, 2000) que foi o ponto principal da polêmica tentando mostrar isto as ideias nazistas e fascistas do período da guerra.
As questões de manipulação genética, que na Alemanha sofreram restrições rigorosas até 2002 e a liderança da Escola de Frankfurt por Haberrmas foram o pano de fundo desta polêmica, porém o fundamental que é o humanismo de Heidegger e Levinas, tema da conferência de Elmau é um aspecto principal, esquecido por muitos comentaristas, pois o humanismo está mesmo em crise.
Quanto a resposta de Sloterdijk, ele próprio retorna ao tema de em Esferas I de forma diferente ao falar de manifestação aórgica, o inorgânico sobre o orgânico, afinal o homem veio da Terra até mesmo pela metáfora bíblica, assim do inorgânico barro Deus “soprou” as narinas e introduziu o espírito, gostem ou não, o tema é metafísico e não religioso, e se algo aórgico acontecer.
Hora não será a primeira vez na história, o homem veio depois dos céus, da terra e das águas, novamente também nas diversas cosmogonias (mesmo não cristãs) e também a própria terra já teve outras manifestações, como a que eliminou os dinossauros, porque uma nova não pode ocorrer, e ela nos ajudar a enfrentar a crise de época (ou civilizatória) que enfrentamos.
O tempo é diferente do nosso, o cometa volta depois de 6.800 anos a nos visitar, nem registro dele tínhamos, e quando voltar depois de outros 6.800 anos o que encontra, só Deus sabe, afinal neowise significa “agora”.
SLOTERDIJK, P. Regras para o Parque Humano – resposta a Carta sobre o Humanismo de Heidegger, São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
A pandemia mudou a consciência humanitária ?
Em seu livro Ciência com consciência, Edgar Morin lançou a pergunta: “A aventura científica nos conduz à catástrofe ou a um mundo melhor?”, substituímos saberes espirituais e populares e, entretanto, não conseguimos evitar guerra, combatemos uma pandemia, mas e nossa relação humanitária irá melhorar? Quis acreditar que sim, mas parece que não.
Chegamos no Brasil ao prolongamento do Platô, que anunciamos desde o início de maio (post), mas só agora as grandes mídias e as organizações mundiais a reconhecem, e não deve cair até que o platô se estenda por todo território nacional, o que já está acontecendo, vai até o final de julho.
Muitas reflexões surgiram sobre melhorar as relações em família, e muitas melhoraram, diminuir o ritmo acelerado da vida moderna, até diminuiu, mas poucas pessoas parecem dispostas a um novo estilo de vida, a um “novo normal”, a maioria quer voltar a vida anterior: festas, consumo e vícios.
É claro a pandemia apenas acelerou o que já estava em curso, famílias com dificuldades, com a forçada convivência diária pioraram, mas aquelas que não encontravam tempo, agora tem tempo, ajudar as tarefas diárias, mudar a lógica dos relacionamentos polarizados e encontrar o Outro.
Fizemos várias postagens na semana que passou sobre o bem, indicando que sua fragilidade (a filósofa Martha Nussbaum escreveu um livro sobre isto no pensamento na filosofia clássica), mas a fragilidade do bem é diferente da frivolidade, não é nem fútil nem superficial.
Tanto ainda é possível mudar a tendência da pandemia por uma maior consciência e cuidados com a pandemia, como também é possível (antes que seja tarde) a consciência dos problemas sociais e que são de fundo humanitários, respeito aos direitos, a diversidade de opiniões, raças e credos, etc.
Imaginamos que poderia ser mais curto o ciclo da pandemia, e também que o vírus se atenuaria ou outras falsas visões sobre uma pandemia, antes mesmo há quem acredite que ela não exista, no entanto o problema humanitário de fundo é o mais grave e para ele a consciência deve atentar.
Vale a máxima da fenomenologia não existe consciência num sentido abstrato, embora o “mal simbólico” possa criar bolhas nas quais alguns grupos sobrevivem, este é o perigo de uma consciência abstrata não fenomênica, a consciência a pandemia pode nos ajudar a melhorar a nossa percepção e sensibilidade do problema humanitário, que já é epocal (transição de épocas) e poderá tornar-se civilizatório, como riscos de uma desumanização ainda mais grave.
É possível uma mudança que comece a partir de cada atitude, de cada ação pessoal sobre os grandes problemas e cada um deles exige uma consciência fenomenológica, isto é, a dirigindo a interação a aquele problema com seus contornos, limitações e fragilidades.
Podemos inverter a curva humanitária, mas o tempo urge e a pandemia o acelerou.
O mal estrutural e simbólico
Estando claro que não se trata da luta do bem contra o mal, mas a ausência do bem ou a banalidade do mal, existe então uma noite no ocidente que não pode ser desvelada se ficamos na superficialidade ou na “frivolidade” como apontam alguns autores, o bem é frágil, mas não frívolo.
Para entender o problema do “mal simbólico” tratado por Paul Ricoeur, deve-se olhar suas bases na fenomenologia eidética de Husserl e na filosofia existencialista de Gabriel Marcel, sua busca é o que dá sentido à liberdade (a visão moderna do livre-arbítrio) e a relação de reciprocidade entre a experiência voluntária e involuntária humana, isto é essencial para entender o mal simbólico.
A aparição original da questão da consciência (de algo) vem da ligação que Franz Brentano faz ao retomar a subcategoria intencionalidade, que rompia a identificação cartesiana entre consciência e autoconsciência, onde intencionalidade revela-se primeiro voltada ao exterior e assim está projetada para fora com orientações objetivas que vão desde a percepção e imaginação até a vontade, a afetividade e a apreensão de valores (destaca-se a empatia).
O que é voluntário e involuntário depende desta “grande tese”, enquanto Husserl operava na consciência à análise da percepção e dos atos “representativos”, Ricoeur alargou para as esferas do afeto e da vontade.
Assim o que é voluntário está na alternância entre o impulso vibrante da emoção e o ponto de vista do hábito, enquanto o involuntário “absoluto” (simbólico ou estrutural) fica sob aquilo que chamou de caráter (não no sentido moral, mas no de “característica”).
O ponto de apoio que tem na filosofia existencialista de Gabriel Marcel, sem abandona a “análise eidética” é a problemática de um sujeito capaz de distanciar de desejos e poderes, dono de suas ações (e assim voluntárias) e servo das necessidades do inconsciente, o caráter, zona não revelada na consciência real e na vida, embora pareça fica fora das competência do concreto, do histórico, ou do que chama de ocasião, é o reino empírico da vontade, vista em três momentos.
A primeira é a decisão humana resultado de um projeto para o mundo (aquilo que Heidegger mudará para visão de mundo), a ação comporta tanto a dimensão de um projeto com os outros no mundo, como pessoal ou subjetiva, entretanto não as separada e chama-as de corpo, e o corpo é visto tanto como voluntário quanto involuntário, mas há um “consentimento”.
Assim Ricoeur mostra os exageros do idealismo, e torna o “hábito” de tal forma a habitá-lo e torná-lo habitável, e o que o autor aponta que o homem pode falhar (sua obra O homem falível, da década de 60), e a culpa constituída e à consciência dela são expressas nos símbolos da cultura.
Afirma importância da linguagem mítica para tratar esta simbólica, assim a parábola do joio e do trigo (Mt 13,24-29), que afirma que a semente “boa” do trigo floresce junto com o joio (que deverá depois ser descartado), há três situações: a semente que cresce, a que é sufocada pelo joio (simbolismo do mal) e a que cai entre as pedras e não tem raízes (o caráter de Ricoeur seria isto).
RICOEUR, Paul. A simbólica do mal (H. Barros & G. Marcelo, Trad.). Lisboa: Edições 70, 2013 (Original publicado em 1960).
O razão e o mal
Para demonstrar duas verdades, Agostinho de Hipona escreveu longas páginas no seu livro “Sobre o Livre-Arbítrio”, praticamente todo o livro II (do capítulo 3 ao 17), onde conclui que todos os bens procedem de Deus, inclusive o livre-arbítrio, e questiona se este bem deveria ser dado ao homem.
Tanto Agostinho (De Trinitate) como Boécio (Opuscula) defenderam a cooperação entre fé e razão, porém será na Alta Idade Média que Tomás de Aquino e também Duns Scotto, em correntes diferentes (realista e nominalista) defenderão que o uso da razão é complemento da fé.
Enquanto Tomás de Aquino vai defender a distinção entre Ser e essência, Scotus vai elaborar a lei da analogia, que afirma que não podemos conceber o que é ser algo sem conceber este algo existindo realmente, assim uma coisa que existe (si est) é o que ela é (qui est).
O importante tanto em Tomás de Aquino quanto em Duns Scotto é a complementaridade entre fé e razão, assim a ideia que Descartes, Kant, Leibniz e Hobbes sejam herdeiras dele é muito simplista, o que vai acontecer é a substituição dos argumentos da fé, por argumentos racionais, o fato que sejam importantes, isto deve ser estudado a partir dos aspectos ontológicos.
Assim, o argumento ontológico foi retomado por Franz Brentano, incorretamente chamado de neo tomista, pois apenas retoma uma sub categoria do “ser” que é a consciência, a hermenêutica e a fenomenologia que é retomada a partir dele, e terá desenvolvimento em Husserl, Heidegger e Gadamer é uma filosofia ontológica, tendo em comum a questão metafísica do Ser.
Hanna Arendt e Paul Ricoeur que vem destas correntes retomam a questão do “mal”, mas as questões da razão e toda a literatura moderna é analisada (Descartes, Kant e Hegel).
A questão do Mal na História
Um filósofo hermeneuta Jan Patocka, é citado por Ricoeur, ainda que não seja diretamente ligada ao mal, pode dar origem socrática da questão da questão do mal: “A perda de ´sentido´não é a queda no ´não-sentido´, mas o acesso à qualidade do sentido implicada na própria busca. Jan Patocka reencontra, assim o tema socrático do ´cuidado da alma’ e da ‘vida examinada’ “ (Ricoeur, 1999, p. 16), está no prefácio do livro de Jan Patocka “Ensaio heréticos sobre história da filosofia”, sem tradução para o português.
Platão elaborou o Sumo bem, que na verdade é a elaboração de uma ética, o Bom e Belo devem ser buscados pelo sujeito moral para harmonizar-se interiormente, e ter consciência do Bem, neste sentido que que pode ser pensado o cuidado da alma e a vida examinada de Sócrates.
Aristotéles elabora sua famosa Ética a Nicômaco, onde explora a ideia de busca da virtude, assim o homem natural não é bom, é pela pratica das virtudes que ele torna-se bom, mas tanto em Platão como em Aristóteles esta virtude tem o sentido social, embora se confunda com o moral, não o é.
O sentido de Mal moral, no sentido de vícios da alma, está elaborado em Agostinho de Hipona, no livro VII intitulado “A ideia de Deus e a Origem do mal”, o mal é a ágape desordenada (diferente da filosofia do eros e da filia), assim é na ausência da escolha de coisas superiores para escolha das inferiores (este é o sentido mais profundo do ágape), que aderimos aos vícios, e desarmonizamos.
Embora o tema possa ser encontrado em vários autores medievais, como Tomás de Aquino e Duns Scotto, o sentido de mal é aprofundado no sentido teísta e o filosófico fica ligado a Ética de Platão, permanecendo a ideia da virtude, trabalhada em torno da Ética de Aristóteles, escreveu Tomás de Aquino: “A virtude designa certa perfeição da potência“, (Suma Teológica, Iª seção, IIª parte, q. 55 a.1).
Na modernidade é Paul Ricoeur que retoma a questão no seu livro “A simbólica do mal”, porém é na delicada passagem do Renascimento a Modernidade que é aprofundada e confundida a distância entre o mal moral e o ético, como se fossem o mesmo, deixando a virtude de ser pensada.
RICOEUR, P. Prefácio a PATOCKA, J. – Essais hérétiques sur la philosophie de l’histoire. Trad. Erika Abrams, Lagrasse: Verdier, 1999.
Olhar sem ver, ouvir sem entender
A pressa, a vida agitada, a ansiedade nos tornaram insensíveis no dia a dia, no plano social reina a teimosa, onde o terceiro incluído não tem vez, segue a lógica do Verdade e Falso, que é válida para o mundo dos equipamentos digitais, mas não deveria ser na lógica do pensamento humano.
O terceiro incluído de Barsarab e Stefan Lupascu, está também nos princípios quânticos e aos poucos vai chegando aos dispositivos físicos digitais (agora quânticos), e já se realizaram algumas experiências avançadas de teletransporte (veja o artigo), que expande o conceito para o espaço, pode-se ir de A para B, sem passar pelo terceiro intermediário, que introduz a descontinuidade.
Mas a lógica social, humana e política continua binária, maniqueísta e leva paulatinamente a um confronto num momento que as forças sociais deveriam se unir pelo inimigo comum que é o vírus e as consequenciais que ele trará socialmente, lembramos que da gripe espanhola seguiu-se as duas guerras, apesar de inúmeros avisos de pensadores e filósofos sensatos, a místicos.
Como diz Morin (veja a palestra) parece que caminhamos como sonâmbulos às escuras, o processo que poderia corresponder a uma solidariedade mundial caminha ao contrário, queremos incluir mas excluímos, amamos só os iguais, o conhecimento tornou-se obscuro.
Seguem as palavras bíblicas, como está em Isaias (6: 9): “Havereis de ouvir, sem nada entender, havereis de olhar, sem nada ver … porque o coração deste povo se tornou insensível”, e mesmo em tempos de dificuldades mundiais parece que a insensatez perdura.
Diz o evangelista Mateus sobre seu tempo, mas que também serve para o momento atual (Mt 13: 16-17) Felizes sois vós, porque vossos olhos veem e vossos ouvidos ouvem. Em verdade vos digo, muitos profetas e justos desejaram ver o que vedes, e não viram, desejaram ouvir o que ouvis, e não ouviram”, mas pode-se ainda abrir o ouvido e mudar a rota.
É tempo de conscientização mais profunda para quem deseja mudanças, e de ouvir de modo mais atendo os sinais dos tempos para os que creem e sabem o reino de Deus na terra há de vir.