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Que justiça e que paz queremos
No post anterior falamos de paz e liberdade, a paz não é a Pax Romana que significava a submissão dos vencidos, aqueles que praticam injustiças precisam desviar a vida de seu curso natural da vida dos povos, precisam mudar o humanismo transformando-o em algo perverso, transformam culturas milenares numa cultura estranha, retiram dela o que tem de mais originário e verdadeiro, desrespeitam os pobres e desamparados ao confundi-lo com desejos de poder e avareza próprios da opressão.
Poucos homens procuram desviar-se destas ciladas, com isto a ideia que uma pessoa “bem-sucedida” significa que teve sorte, foi “abençoada” ou através de estratégias soube acumular riqueza, mas também há estruturas perversas que se favorecem do poder, e muitas delas estão na estrutura de poder, por isto ele é fonte de influência.
Mas há outro caminho o da herança, ao longo da história somente os vencedores contam suas glórias, “ao Vencedor as batatas” (Robert Schwartz escreveu um livro com este título) diz o personagem Quincas Borba (figura) no romance de Machado de Assis com o mesmo nome, onde ele desenvolve a ideia do humanitas, que enxerga a guerra como uma forma de seleção dos mais aptos, assim justifica a opressão e o empobrecimento dos injustiçados.
O personagem Quincas Borba é uma espécie de filósofo ateu, que se tornou rico ao herdar os bens de um velho tio, morador de Barbacena, Estado de Minas Gerais, onde permanece um tempo nesta cidade antes de morrer.
Quem irá desfrutar da fortuna deixada por Quincas Borba será Rubião, um modesto habitante do interior de Minas Gerais, que recebe sua fortuna e decide ir viver no Rio de Janeiro, assim fala da migração do interior para as grandes cidades, não na perspectiva dos pobres que vão a busca de trabalho, mas dos ricos que vão em busca de boa vida.
Rubião vai para a cidade e tentará aplicar a filosofia do Humanitas desenvolvida por Quincas Borba e esta é na verdade o tema do livro.
Além do aspecto literário e histórico do romance, característico da época (o romance Quincas Borba foi publicado pela primeira vez em 1891), Rubião ao mesmo tempo que desfruta de uma fortuna fácil, é vítima de sua credulidade provinciana da qual seus amigos que o acolhem na “cidade grande” vão desfrutar.
O tema é universal, mesmo que pintado com cores históricas brasileiras, além das injustiças com pobres e desamparados, as artimanhas e maquinações que tiram também as posses de pessoas que por terem conquistado dinheiro fácil, não sabem como utilizá-lo bem e se perdem nas armadilhas preparadas por falsos amigos avarentos.
Assim a liberdade não pode estar condicionada a estruturas perversas e nem as formas autocráticas de poder, é preciso que ela contemple de fato a justiça dos simples e humildes, a armadilha do liberalismo está também no romance Eugenie Grandet de Balzac.
ASSIS, Machado. Quincas Borba. Rio de Janeiro, 1891. (ver o pdf da 3ª. edição)
Sociedade sem dor e a biblioteca da meia noite
Byung-Chul Han escreveu a Sociedade Paliativa, a propósito não apenas da Pandemia, mas também e sobretudo da busca de um mundo sem dor, somos capazes até de sofrimentos e grandes esforços em função do narcisismo e da estética pessoal, aquilo que Peter Sloterdijk chamou de “a sociedade de exercícios”, porém uma ascese desespiritualizada.
O romance do escritor inglês Matt Haig: A biblioteca da meia noite, fala de uma mulher de 35 anos cheia de talentos e poucas conquistas, arrependida de suas más escolhas na vida, ela se pergunta se poderia ter vivido de modo diferente, ao perder o emprego e seu gato ser atropelado decide tirar a própria vida, no estágio entre a vida e a morte encontra a Biblioteca da Meia Noite (figura ilustração da capa), com as possibilidades de vidas que podia ter vivido.
Com ajuda de uma velha amiga decide mudar para a Austrália e reatar antiga relações, assim descobre que é possível rever a vida e desfazer algo que nos arrependemos, ter esperança.
Entre os dramas iniciais de Nora destaco o trecho que ela diz: “Eu fico com dor de cabeça olhando para… celulares”, não é só ela, é muita gente, isto tira a capacidade de reflexão e do silêncio que Byung-Chul Han reivindica, aquela que pode fazer refletir sobre a vida e nossos atos.
A sociedade paliativa, conforme Byung-Chul Han, nada tem a ver com a medicina paliativa, explica o filósofo coreano-alemão: “Assim, cada crítica da sociedade tem de levar a cabo uma hermenêutica da dor. Caso se deixe a dor apenas a carga da medicina, deixamos escapar o seu caráter de signo” (Han, 2011).
Lembra um ditado de Ernest Jünger: “Dize tua relação com a dor, e te direi quem és!”, assim cada sofrimento social ou social deve preceder e anteceder a momentos de reflexão, ou como gosta Byung-Chul, de uma “Vida Contemplativa” outro ensaio do autor.
“A sociedade da sobrevivência perde inteiramente o sentido para a boa vida. Também o desfrute é sacrificado à saúde elevada a um fim em si mesmo” (Han, 2021, p. 34), ou seja, a própria ausência de uma “hermenêutica” da dor pode levar ao fim do sentido da vida.
Esclarece também o sentido de homo sacer e via nua de Agamben: “Sem resistência sujeitamo-nos ao o estado de exceção que reduz a vida à vida nua” (Han, 2021, p. 34).
As angústias, as solidões e as depressões não tem apenas causas sociais, mas aquilo do que alimentamos nossas almas, na passagem bíblia que o profeta Isaías vai visitar Ezequiel que está acometido de uma doença mortal (Is 1,1-6) após as súplicas de Ezequias, através da palavra de Isaías Deus liberta-o não só da doença dando-lhe mais 15 anos de vida, mas também “vou libertar-te das mãos do Rei Assíria, junto com esta cidade, que ponho sob minha proteção” (Is 1,6).
Claro a solução social não é passe de mágica, mas encaramos melhor se nossa dor é entendida.
Haig, M. A biblioteca da meia noite. Tradução: Adriana Fidalgo, RJ: Editora Record, 2020.
Han, Byung-Chul. A sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2021.
Leitura, afeto e feridas
Alberto Manguel é um escritor argentino bem conhecido nos meios universitários, tanto devido tanto a relação com Jorge Luis Borges, que conheceu na adolescência e lia livros para ele, como também como autor de vários livros antologias e romances, entre eles um livro que destaco como obrigatório é Uma história da leitura, no original A History of Reading (1996).
Homem-mundo, em 1971 morou em Paris e em Londres, em 1972 retorna a Argentina mas como editor estrangeiro da editora italiana Franco Maria Ricci, em 1976 mudou-se para o Taiti, em 1982, Alberto se mudou para Toronto, no Canadá, onde morou até 2000.
Não parou ai, mudou-se para a região de Poitou-Charentes, na França, onde comprou e reformou um mosteiro medieval junto de seu atual parceiro Craig Stephenson, uma das reformas feitas foi para acomodar sua biblioteca de 40 mil livros.
Em 2020 doou toda a biblioteca para o futuro Centro de Estudos da História da Leitura (CEHL), e passou a viver em Lisboa, é colunista da revista Geist canadense.
Uma de suas frases famosas é “a crença banal de que o tempo cura as feridas é um engano: nós nos acostumamos a elas, o que não é a mesma coisa”, porém sua frase sobre a leitura que mais parece uma forte influência de Borges para quem a biblioteca era um paraíso, é sobre a leitura:
“O amor pela leitura é algo que se aprende mas não se ensina.
Da mesma forma que ninguém nos pode obrigar a enamorar-nos, ninguém nos pode obrigar a amar um livro.
São coisas que ocorrem por razões misteriosas, mas estou convencido que há um livro que espera por cada um de nós.
Em algum lugar da biblioteca há uma página que foi escrita somente para nós”.
Também é sua a frase: “Ler sempre é um ato de poder. E é uma das razões pelas quais o leitor é temido em quase todas as sociedades”, há outras é claro, mas para isto convido meu leitor a ler: “Uma história da leitura”.
MANGUEL, A. Uma história da leitura. Tradução Pedro Maia Soares. 1a ed. São Paulo : Companhia de Bolso, 2021.
Duns Scotus e o realismo moderado
Duns Scotus é o mais típico pensamento do realismo moderado, já que unia a questão da linguagem como parte da essência do ser (como é apresentada a questão hoje) para a existência dos universais, porém sabia que também admitia o nominalismo em parte.
Foi um filósofo e teólogo do século XIII, sua principal tese teológica é que Deus existe através da questão: “se há entre os entes um ente infinito atualmente existente” (Ordinatio I, parte 1, qq. 1-2) e para ele universais como “verdade” e “bondade” existem realmente.
Duns Scotus sustentava um fundamento universal nas coisas (alguns filósofos irão chamar de quididade) que era mais forte que aqueles sustentados por Tomás de Aquino, e a entidade própria da natureza comum que serve de base para a individuação (assim existem cavalos e existe o “cavalo” particular de uma raça, cor, etc.) como para a universalidade que ela se acrescenta, deixando-a como que intocada (o cavalo específico continua “cavalo” universal).
O argumento que separa o “contemplativo” do “activo” é nesta origem do pensamento, a ideia que o Universal está fora do intelecto com o mesmo modo de ser que está no intelecto e era aquilo que os escolásticos chamavam de “realistas ingênuos”, retornando a Platão, há dois mundos a saber: o mundo sensível e o mundo das ideias (eidos).
Ainda que eidos possam ser diferente do idealismo pós-kantiano, permanece no interior deste pensamento uma concepção do mundo “das ideias” diferente do mundo real, ou seja, um nominalismo radical cujas categorias de Aristóteles foram transformadas em “conceitos”.
A ideia fundamental de Platão, e não se assustem está na base do pensamento da modernidade, é que a verdade está lá fora e não no interior do homem, onde a vê por um processo de meditação ou contemplação, conforme já argumentamos Arendt (e outros interpretes da filosofia) veem o mito da caverna de modo diferente, argumentou Byung-Chul.
Não é este tipo de “parreheia” (abertura da Verdade) que Duns Scotto fala, e já falava também Agostinho de Hipona, mas sim aquela verdade que habita no interior de todo homem.
É no quinto argumento que Scotus usa Agostinho: “Se ambos vemos que é verdade o que tu dizes, e se ambos vemos que é verdade o que eu digo, onde, pergunto eu, o vemos nós? Nem eu, sem dúvida, o vejo em ti, nem tu em mim, mas vemo-lo ambos na imutável Verdade que está acima de nossas inteligências”.
Algo parecido é dito por Sócrates: “a verdade não está com os homens, mas entre os homens”.
SCOTUS, John Duns. Seleção de Textos. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
O amor na literatura ocidental
No post anterior comentamos um exemplo pouco comum na literatura que é o amor humano visto de um ponto de vista da narrativa cristã, há outros é claro, porém este pela repercussão da obra de Francine Rivers e sua recente transformação em filme (2022) e a crítica aplaudiu.
Na história podemos relembrar algumas obras que marcaram a literatura: O Banquete de Platão, A arte de amar de Ovídio e Sobre el Amor de Plutarco, destacaria no período medieval O Romance de Tristão e Isolda e Correspondências de Abelardo e Heloísa.
O estilo filosófico do Banquete onde há uma predominância de elementos mitológicos que explicam ou denotam o amor, talvez daí a ideia de amor platônico, mas que nada tem de sublime ou não carnal, o que dizem comentaristas é que há relações homoeróticas que fazem parte do diálogo entre parceiros nas relações.
Se há algo de elevado é no diálogo de Sócrates que define o chamado amor filosófico, este fora da esfera sentimental e inserido num idealismo (sempre lembro aqui que eidos para os gregos que lembrar o Ser em sua essência, e não algo que vive só na mente), é um amor que está relacionado com a beleza e o bem.
Já Ovídio (45 a.C. – 18 d.C.) não está interessado em alcançar esta ascese a um amor divinizado, procura encontrar as ferramentas necessárias para realizar um amor mais sensual num mundo carnal.
Ovídio não encerra o amor restrito a esfera conjugal, já Plutarco (45 – 120 d.C.) o vê dentro de uma instituição social e política, é um “caminho” dentro do casamento em direção à felicidade, como uma ascese do tipo que os gregos a concebiam, assim não é uma ascese espiritual.
O romance de Tristão e Isolda e as Correspondências de Abelardo e Heloísa devem ser entendidos numa realidade de domínio da filosofia cristã na Europa medieval, onde o Amor a Deus é indiscutível, mas já o amor como união de dois corpos é ainda suscetível de debates.
Este tipo de romance inserido na tradição trovadoresca, é imbuído de um elemento “cortês”, encontramos na obra de Denis de Rougemont, uma interessante descrição deste amor:
O que amam é o amor, é o próprio fato de amar. E agem como se tivessem compreendido que o que se opõe ao amor o garante e o consagra em seus corações, para exaltá-lo ao infinito no instante do obstáculo absoluto que é a morte. Tristão gosta de sentir amor, muito mais do que ama Isolda, a loura. E Isolda nada faz para retê-lo perto de si: basta-lhe um sonho apaixonado.
Destacaria entre os romances modernos entre os mais característicos: Eugénie Glandet de Honoré de Balzac, Madame Bovary de Gustave Flaubert e Anna Karenina de Leon Tolstoi, enquanto Eugénie Grandet mostra a realidade do interesse material em torno do romance, Madame Bovary vai mostrar a falta de lucidez, o excesso e egoísmo humano, Anna Karenina mostra as cores trágicas da infidelidade dela com o marido Vronsky, porém há outros dois casamentos: um casamento feliz (Levin e Kitty) e outro que apenas se suportam (Stiva e Dolly).
ROUGEMONT, Denis de. A História do Amor no Ocidente. Trad.: Paulo Brendi e Ethel Brandi Cachapuz. São Paulo: Ediouro, 2003. 2ª Edição reformada.
Amor de Redenção
O livro foi inspirado na narrativa bíblica do profeta Oseias, uma mulher, Angel, que se considerava arruinada, sem chance de salvação, descrente do amor humano, descobre o amor inabalável de Deus, mas o contexto é a corrida do ouro na Califórnia de 1850.
A época é aquela que os homens vendiam a própria alma por um punhado de ouro e as mulheres vendiam o próprio corpo por um lugar para dormir.
Angel vendida como prostituta desde criança, odeia os homens que a usaram e é invadida por desprezo e medo de si mesma, até que conhece Michael Hosea, um homem que busca o divino em todas as coisas, e acredita que tem um chamado de Deus para se casar com Angel.
Amor de redenção é um clássico atemporal, romântico, épico ou trágico, é uma história capaz de transformar o sentimento humano num amor incondicional, redentor e absoluto que está ao alcance de todos os que ainda pensam num amor verdadeiro, duradouro e profundo.
Mas Angel vítima de sua história, como muitos são hoje da ideologia erótica e de desprezo a verdadeira felicidade, foge e volta para a escuridão, para longe do amor resiliente do marido, do novo que é sua cura definitiva de um mundo de sombras e desprezo pela vida.
O livro de Francine Rivers, longe de ser apenas uma ficção cristã, é um apelo ao amor humano de fato, aquele capaz de preencher o vazio de almas que não aceitam o passageiro, o uso do corpo como mera mercadoria ou “instrumento” de prazer, onde é possível encontrar paz e felicidade, claro com todas as tribulações naturais da vida: contas, acidentes e envelhecer, etc.
O livro foi transformado em filme em 2022, com roteiro e direção de D. J. Caruso, tendo no elenco: Abigail Cowen, Famke Janssen e Logan Marshall-Green.
RIVERS, F. Amor de redenção (Redeeming Love), trad. Alyda Sauer, R.J.: Verus; 14ª edição, 2021.
A ira e a tranquilidade da alma
O estóico Sêneca não escreveu apenas da Ira
também da Tranquilidade da alma, pode-se encontrar uma edição atual com seu outro livro “a tranquilidade da alma”, não significa ausência de inquietude, de dor ou de erros.
Escreve no seu livro I, ainda sobre a Ira: “Assim, alguns sábios disseram que a ira é uma breve insânia. Ela é igualmente desenfreada, alheia ao decoro, esquecida de laços afetivos, persistente e aferrada ao que começou, fechada à razão e aos conselhos, incitada por motivos vãos, inábil em discernir o justo e o verdadeiro, muito similar a algo que desaba e se espedaça por cima daquilo que esmagou.” (Sêneca, 2014, p 91).
Embora possamos esconder sentimentos a Ira nos desnuda, mostra-se mesmo na aparência a ferocidade animal, uma vez que seu “controle” argumentado por alguns autores é incerto: “Mas para comprovares a insanidade dos que estão em poder da ira, observa a própria aparência deles, pois assim como são sintomas claros dos loucos o aspecto audaz e ameaçador, o semblante sinistro, a face enviesada, o passo apressado, as mãos inquietas, a cor mudada, os suspiros sucessivos…” (Seneca, 2014, p. 91).
Não ignora que outras paixões também possam nos desnudar: “Não ignoro que também as demais paixões são dificilmente ocultadas; que a luxúria, o medo e a audácia dão sinais de si e podem ser pressentidos.” (p. 92), mas também estas se afloram em meio a ira generalizada.
Não ignora a visão de Aristóteles, como supõe alguns autores apressados: “Para sermos nocivos, todos somos poderosos. A definição de Aristóteles não se afasta muito da nossa. Pois ele afirma que a ira é o desejo de devolver uma dor. Encontrar a diferença entre essa definição e a nossa exigiria longa explanação” (p. 94), portanto também sabe que há diferenças.
Sem sair por um altruísmo exagerado, sabe que somos irascíveis, passíveis de alguma ira, porém explica-a assim: “Explicou-se suficientemente o que é a ira. Em que ela difere da irascibilidade fica evidente: como o ébrio difere de quem está embriagado, e o medroso, de quem está com medo” (p. 95), assim há o iracundo, que pode por vezes não estar irado.
Examina se a ira é nossa natureza, e assim de certa forma necessária, por exemplo para a correção, diferencia-a: “Mas este sem a ira, com base na razão, pois ele não é nocivo, mas medica sob a aparência de ser nocivo” (p. 97), é assim médico que cura, não como vingar-se.
Mas será que algumas vezes ela foi útil? Lembra que “O início de certas coisas está em nosso poder, seus estágios ulteriores nos arrebatam com sua força e não permitem regresso” (p. 98) e este também é causa de injustiças que desperta novas iras e novas fúrias, então não cura.
O sol de Brian Wildsmith é poderoso, mas benevolente (o desenho acima).
Sêneca. Sobre a ira. Sobre a tranquilidade da alma diálogo, transl. José Eduardo S. Lohner, 1a ed. São Paulo, Brazil: Penguin Classics, Companhia das Letras, 2014 (pdf).
Corações que contemplam, amam
Apesar de escrever romances amorosos no sentido sentimental romântico, a primeira olha que folheei de Nicholas Sparks, que faz muito sucesso com o público americano, tendo traduções de seus livros em mais de 50 línguas, o primeiro contato foi por interesse pelo tema.
Trata-se de Corações em Silêncio, de 2016 da editora Asa, conta a história de Taylor McAden, bombeiro voluntário que na vida pessoal apesar de amores intensos, são de pouca duração e não gosta de assumir riscos.
Numa situação inusitada ele precisa ajudar a encontrar um garoto quando o carro de Denise Holton despista, Taylor a salva e dali nasce mais uma rápida relação, porém outra situação terrível ocorre, depois de recuperar os sentidos pergunta por seu filho que tem dificuldade de aprendizagem e estava no carro com ela.
Uma busca se inicia e Taylor se vê diante de uma situação que realmente tem que amar.
Não há como fazer contemplação ou meditação sem silêncio, não só do ambiente como também da alma, de nossos valores e pré-conceitos estabelecidos.
Silêncio, meditação, contemplação muitas vezes são causadas por situações inesperadas mais de dor do que de amor, mas também de amor, nestas situações temos que tomar alguma decisão corajosa diante da vida, dos compromissos e da relação com o Outro.
O silêncio e a descoberta de um valor verdadeiro do amor o levou a uma ação além daquela que poderia justificar a Taylor como seu “trabalho”, ainda que fosse um trabalho voluntário.
A passagem bíblica que pode inspirar esta meditação e contemplação é aquela que os discípulos que iam para o vilarejo de Emaús e “escutam” Jesus, que só depois vão entender que era o mestre e pedem a Ele (Lc 24,29 ): “Fique conosco, pois a noite já vem; o dia já está quase findando”. Então, ele entrou para ficar com eles”.
A noite é simbólica no sentido de momentos escuros e difíceis de nossa vida, que exigem meditação, silêncio para poder escutar “aquela voz” da sabedoria e do bom senso.
SPARKS, Nicholas. The Rescue. New York: Warner, 2000. (versão brasileira Editora Asa, 2016).
A frieza: da essência para a aparência
Empatia, paciência, amor verdadeiro e sentimentos verdadeiros parecem distantes, corpos enfeitados, maquiados e tatuados, mentes distantes e frias, vazias e de pouca ideias inspiradas.
Li no livro “A menina que roubava livros” (The book Thief, 2005): “talvez esse seja um castigo justo para aqueles que não possuem coração: só perceber isso quando não pode mais voltar atrás”, é uma frase dura, porém foi importante para analisar o meu contexto social, pessoal e de amizades.
Minha inspiração para ler, escrever e procurar dentro de instituições, ambientes e mídias sociais algo inteligente, inspirado e doce, produtivo onde possa encontrar caminhos diferentes do que vejo e sinto a minha volta, me fez entender e admirar o livro de Markus Zusak, pelo menos que lembro da edição de 2013, ela procurava um refúgio, um escape para a situação contextual.
Me pergunto se esta situação sobre a tensão de uma possível guerra em larga escala é diferente, vejo muita hipocrisia e manipulações no ar, enquanto inocentes morrem numa guerra estúpida, outros se preparam para um confronto ainda maior que aos poucos se espalha por todo globo.
Lembro de uma passagem bíblica (Tessalonicenses 1,5:3) quando disserem: “Há paz e segurança, então lhes sobrevirá repentina destruição, como as dores de parto àquela que está grávida, e de modo nenhum escaparão”, mas para os apressados lembro que está escrito que isto não significará o fim.
Faltam esforços sinceros pela paz, espíritos armados não podem promover paz alguma, querem aliados para seu poder temporal, falta uma mensagem atemporal, além os interesses imediatos.
Assim caminham os corações, e já chegaram as escolas e ao cotidiano da vida mais simples e fugaz via uma dona de casa de uma cidade pequena exaltada no supermercado falando contra aquele tal político que pôs tudo a perder e uma criança que chorava por uma situação política que nem bem entendia.
Não se apaga fogo com gasolina, diz a sabedoria popular, porém a poesia não está mais no ar, não há canções que falam de amor puro, só interesses imediatos de pulsão erótica, numa sociedade que na verdade vive “A agonia do Eros”, um livro profundo de Byung Chul Han.
Não é determinada cantora popular que fala contra o ensino e a boa educação, a sociedade ecoa estes hinos e quase não há como fazer sucesso sem apelos emocionais e passionais fora do tom.
O desmanche da visão humana como Ser e sua transformação na visão utilitária do Ter teve uma origem histórica no pensamento ocidental e agora penetra e tenta destruir o seu significado.
ZUSAK, Markus. A menina que roubava livros. Trad. Vera Ribeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.
Entre a morte e a não morte
Recuperado o conceito de uma vida bem vivida, que é aquela que pode ser examinada e deve-se vive-la até o fim, há outra questão que são os hiatos da vida ou o que chamei de intermitentes da morte, em referência ao que Saramago descreveu em “As Intermitência da morte”, veja o post.
Se lá postamos sobre os intermitentes, aqui queremos falar da não morte, para abordar a não vida, o exercício de Saramago é pensar num país ou lugar fictício onde durante alguns dias não se fosse noticiada nenhuma morte, e vai mais além pensando em uma situação na qual as pessoas pudessem saber antecipadamente da morte, depois de algumas reflexões, pensa:
“Em teoria parecia uma boa ideia, mas a prática não tardaria a demonstrar que não o era tanto. Imagine-se uma pessoa, dessas que gozam de uma esplêndida saúde, dessas que nunca tiveram uma dor de cabeça, optimistas por princípio e por claras e objectivas razões, e que, uma manhã, saindo de casa para o trabalho, encontra na rua o prestimoso carteiro da sua área, que lhe diz, Ainda bem que o vejo, senhor fulano, trago aqui uma carta para si, e imediatamente vê aparecer nas mãos dele um sobrescrito de cor violeta a que talvez ainda não desse especial atenção …” (p.123) e recebe uma notícia antecipada de sua morte.
Pensa poderá evitar pisar numa casca de banana, não receber a carta, jogá-la fora, mas alguém a trará de volta educadamente julgando tê-la esquecido, enfim no ápice do conto encontra-a fatal.
Se no post anterior não ficou claro os “intermitentes” aqui a carta é esta personificação, a morte tornada Ser não apenas aponta para um discurso alegórico, mas pode-se vê-la como ela é.
Então escreve: “Morte onde esteve a tua vitória, sabendo, no entanto, que não receberá resposta, porque a morte nunca responde. e não é porque não queira, é só porque não sabe o que há de dizer diante da maior dor humana” (pgs. 123-124).
O discurso pode parecer estranho, mas só quem o acompanha consegue entender que a sua pura personificação traz a compreensão de que existe algo além da vida e não apenas a finitude, isto é o que incomoda Saramago, porém não cede até chegar ao seu oposto que é aceita-la como fatal.
A carta personificação da morte e a narrativa se fundem, este é um elemento essencial para entender o conto de Saramago, embora não se refira a ela ao dizer no apartamento do violoncelista: “Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-Se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos se escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorai não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua.” (p. 152).
Ainda que seja, ao meu modo de ver pelo avesso da vida, Saramago refaz o sensível e o finito.
SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.