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A unidade e o terceiro incluído
A polarização, o dualismo e a ontologia binária (o ser é e o não-ser não é) estão tão presentes nas relações humanas do cotidiano que é difícil pensar numa terceira hipótese, porém a física quântica já a descreveu e mais do que seu efeito fantasmagórico (Einstein, Podolski e Rosen assim o chamaram e este efeito ficou então conhecido como EPR), há um efeito na vida real, os computadores quânticos vem aí, e seria bom que a filosofia acordasse de seu sono racional (que nada tem de líquido nem de sólido), e despertasse para uma nova realidade.
A lógica clássica aristotélica justifica a exclusão de um terceiro termo e ela prevaleceu até recentemente é ela que está na base das filosofias fundamentalistas, racistas e cientificistas, que fundamentam também o princípio do terceiro excluído que separa o “bem” do “mal” (o maniqueísmo) segundo esta lógica:
- Axioma da Identidade: “A é A”
- Axioma da Não-Contradição: “A não é não-A”
- Axioma do Terceiro Excluído: “não existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A”.
A lógica da física e também do cientificismo (não é a verdadeira ciência) estabelece isto, porém a contradição entre identidade e não-identidade é observada pela física quântica, sendo chamada de princípio da superposição quântica, cujo efeito foi estudado dentro da física chamado de “tunelamento” observando partículas qu transpõe o estado classicamente proibido.
A lógica do terceiro excluído foi primeiro enunciada pelo filósofo Stéphane Lupascu (1900 –1988), onde existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A, seu formalismo axiomático prevê que coexiste com a dinâmica da heterogeneidade (a qual pertence a matéria viva e o complexo universo), com a da homogeneidade (a qual governa a matéria física macroscópica), e assim existem diferentes “níveis de realidade”, claro toda o cientificismo fica em cheque.
Esta nova lógica (nível Q) não abole a lógica aristotélica do “sim” e do “não” (nível C), uma vez que apenas não se considera a existência de dois termos, mas além destes um terceiro (T) (veja a figura).
O primeiro a estabelecer os diferentes níveis de realidade foi Barsarab Nicolescu (1942- ), ele descreveu uma mudança de um nível de realidade para outro com leis, novas lógicas e conceitos próprios de cada nível, e assim estabeleceu o conceito da transdisciplinaridade, que também engloba a complexidade.
Esta lógica admite estabelece para a transdisciplinaridade três pilares:
- Diferentes Níveis de Realidade
- Lógica do Terceiro Termo Incluído
- Complexidade
Assim deve-se admitir, por exemplo, que entre duas pessoas existe um terceiro nível de realidade no qual nenhuma das lógicas pessoais estão submetidas e podem e devem ter uma abertura suficiente para uma nova realidade, da qual emerge um novo horizonte e uma nova percepção da verdade.
Não se trata de relativismo onde a verdade não existe, mas sim um estado de equilíbrio rigoroso, aceitar que entre os polos de uma contradição, existe uma semi- atualização e uma semi-potencialização igual para os dois pólos, este é o estado T.
Isto muda a lógica científica, alguns como o físico Fritjof Capra desenvolveram teorias científicas e até certo ponto místicas para esta nova compreensão dos “níveis de realidade”, as verdades da fé não são fundamentadas em princípios científicos, mas estes podem ajudar a que não ocorram desvios fundamentalistas e é possível encontrar processos análogos em leituras bíblicas.
Uma passagem que penso ser fundamental é a de Mateus 18,20: “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou no meio deles”, assim a verdade emerge entre os homens e não na consciência e sabedoria individual de cada homem, em termos bíblicos pode-se dizer que aqueles que de fato reúnem-se em torno da palavra e dos ensinamentos de Jesus podem ter uma iluminação especial com sua presença, a instrumentalização e manipulação do seu nome não é “presença”.
Também Sócrates afirmou que a verdade não está com os homens, mas “entre os homens” isto indica reconhecer a dignidade do Outro e respeitá-lo seja quem for.
No prazer do texto há um diálogo
No post anterior há as expressões de Barthes sobre literatura, escrita e texto, e já conceituamos a ideia de inscrição que se supõe um suporte, a escrita e o aspecto cognitivo e no texto o aspecto linguageiro, artístico e de “instalação”, e é aqui que analisa-se o seu livro “O prazer do texto”.
O livro apesar de aspectos teóricos é de fato um prazer ao ser lido, há diálogo e principalmente surpresas agradáveis, como por exemplo, um espaço semiológico, uma espécie de lugar entre duas margens: “uma margem obediente, conforme, plagiária (…) o estado canônico da língua e outra móvel, vazia (…) estas duas margens enceram, são necessárias” (pag. 40).
Cede a literatura mais clássica: “de Zola, de Balzac, de Dickens, de Tolstoi) traz em si mesma uma espécie de mimese enfraquecida: não lemos tudo com a mesma intensidade de leitura; um ritmo se estabelece, desenvolto, pouco respeitoso em relação à integridade do texto” (pag. 17)
Trata em uma única linha de rupturas Proust, Balzac e Tostói, “o próprio ritmo daquilo que se lê e do que não se lê que produz o prazer dos grandes relatos: ter-se-á algumas vez lido Proust, Balzac, Guerra e Paz, palavra por palavra? (Felicidade de Proust: de uma leitura a outra, não saltamos nunca as mesmas passagens)” (pag. 18).
Recomenda como se deve fazer a verdadeira leitura: “Leiam lentamente, leiam tudo, de um romance de Zola, o livro lhes cairá das mãos; leiam depressa, por fragmentos, um texto moderno, esse texto torna-se opaco, perempto para o nosso prazer: vocês querem que ocorra alguma coisa, e não ocorre nada; pois o que ocorre à linguagem não ocorre ao discurso: o que “acorre”* , o que “se vai”, a fenda das duas margens .. “ (pag. 19).
Contrasta o texto com o teatro ou o cinema: “Na cena do texto não existe ribalta: não há por detrás do texto ninguém ativo (o escritor) nem diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e um objeto. O texto prescreve as atitudes gramaticais: é o olho indiferenciado que fala um autor excessivo (Angelus Silesius): ‘O olho com que eu vejo Deus é o mesmo olho com que ele me vê.” (pag.52).
Revela o segredo de outro livro seu: “Tradição antiga, muito antiga: o hedonismo foi repelido por quase todas as filosofias; só se encontra a reivindicação hedonista entre os marginais, Sade, Fourier; para o próprio Nietzsche, o hedonismo é um pessimismo” (pag. 74), o livro citado no post anterior que vai muito além do hedonismo.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. SP: Editora Perspectiva, 1987. (pdf)
Autores e diálogos
Li um texto de 1968 de Roland Barthes “A morte do autor” no qual ele problematiza o conceito, propondo-o como “a destruição de toda a voz, de toda origem”, ele diria também do homem (de hoje) num momento conturbado de conceitos e de acontecimentos verdadeiramente e “estranhos” que estão se construindo “barricadas nos textos”, o que dizia de seus contemporâneos (Alain Badiou e Jacques Derridá afirmaram que sem este conceito não se pensa criticamente nenhum objeto), e o que diria hoje, certamente que sua tese estava certa, e hoje mais ainda.
É sabido que Foucault deu umas alfinetadas em Barthes, mas em Sade, Fourier, Loyola elas foram devolvidas ao inserir no jogo discursivo o leitor e reformula a questão da autoria em outra dimensão: o corpo, este objeto de consumo de tantas teorias hoje, somente em Barthes encontra alguma solidez (não líquida).
Para Barthes o texto é um corpo, um objeto de prazer dotado da capacidade de penetrar na vida do leitor em fragmentos, gerando coexistências entre leitor e autor, ou textualmente:
“O prazer do texto comporta também uma volta amigável do autor. O autor que volta não é por certo aquele que foi identificado por nossas instituições (história e ensino da literatura, filosofia, discurso da Igreja); nem mesmo o herói de uma biografia ele é … é um simples plural de ‘encantos’, o lugar de alguns pormenores tênues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto descontínuo de amabilidades, em que lemos apesar de tudo a morte com muito mais certeza do que na epopéia de um destino; não é uma pessoa (civil, moral), é um corpo.” (BARTHES, 2005).
Barthes propôs em 1977 (Leçon) uma distinção dos termos: literatura, escrita e texto, que é particularmente interessante conceitualmente, a escrita tem algo que é a manuscrição uma inscrição na qual se supõe um suporte, um utensílio, em segundo lugar (embora seja apenas de caráter didático) o sentido cognitivo, pelo qual se designa a instalação e o terceiro as formas “linguageiras” dotadas de significação que tomam um sentido artístico.
Para problematizar a questão da “pluridimensionalidade” proposta por Barthes para a literatura ele inicia a chamada “crítica genética”, problematizando o aspecto enunciativo do termo, tem como objetivo reconstituir uma história do texto em estado nascente, buscando encontrar nele os segredos de fabricação da obra, e assim é explicado o que é um texto e sua relação com a literatura.
É aqui que se estabelece o diálogo pela língua, sem a compreensão da genética de um texto, pode haver solicitude ou diálogo, mas não sairia da superficialidade e nem atingiria aquele nível desejável para muitos autores contemporâneos de assumir os pré-conceitos e estabelecer novos horizontes.
Barthes faz uma valiosa reflexão acerta da escuta distinguindo-a do ato fisiológico do mecânico de “ouvir”, dando-lhe um estatuto de ato psicológico que só se define por seu objeto e por sua intenção, categoria tão cara á hermenêutica embora não seja exatamente a mesma, guarda similaridades.
autor faz uma valiosa reflexão acerca da escuta, distinguindo-a do ato fisiológico e mecânico de “ouvir”, conferindo-lhe um estatuto de ato psicológico que só se define por seu objeto e por sua intenção.
É famosa a frase de Barthes: “Toda a recusa duma linguagem é uma morte” e um interprete deste autor explicita a diferença entre ouvir e escutar: “[…] uma escuta poiética (‘bruta’, como o quer Barthes) visa não aprisionar sons de uma maneira hierarquizante, como num insípido objeto de análise fria” (El Haouli, 2002), é este aspecto de diálogos hierárquicos que dominam muitos que julgam fazê-lo mas não o fazem, apenas desejam a submissão passiva do Outro às suas categorias.
BARTHES, R. Sade, Fourier, Loyola, Paris: Seuil, 1971. [tradução: Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
EL HAOULI, Janete. Demetrio Stratos: em busca da voz-música. Londrina: Gráfica e Editora Midiograf, 2002.
Conspiração do medo ou do silêncio
A pandemia gerou uma angústia e um medo diante da morte e das preocupações sanitárias, o vírus tornou-se um medo para todas pessoas sérias, porém não falar do perigo e das possibilidades presentes e futuras desta pandemia pode ser uma “conspiração do medo” ainda maior.
Alguns autores já falavam da “conspiração do silêncio” que atingia a sociedade antes da pandemia, Böemer e Adorno são dois autores clássicos que tocaram no tema da morte, tomei consciência desta questão em minha viagem para Portugal, onde o tema é tratado de forma diametralmente oposta ao Brasil, e a pandemia trouxe de volta o tema.
Já tocamos as raízes históricas e sociológicas da tragédia grega, particularmente nos textos de Nietzsche e Hölderling (veja o post), porém agora a questão é se falamos da pandemia e causamos mais medo e pânico ou evitamos e entramos numa espécie de “conspiração do silêncio”, aquela que vai passando de geração em geração, evitar que uma criança veja a morte, não ficar comentando a doença e o morte de alguém.
O silêncio relativo a morte é mais profundo que o morrer, que é tomado como um fato natural da vida, mas que só deve ser pensado quando a hipótese de fato existe, assim não faz sentido para uma criança ou para um jovem, também para mim era um tabu porque imaginava que o ciclo biológico natural: nascer, crescer, envelhecer e morrer estava rompido, ou inter-rompido, por isso a morte parece mais “natural” que o morrer, o evento contrário ao devir, vir-a-ser.
A proximidade, quase diária com a morte, continua por outro lado com a conveniência de não afetar a “todos” porém é demasiado desumano, e isto me fez repensar mais uma vez no morrer, antes questionado para crianças e jovens, agora penso também em idosos abandonados a própria sorte e as suas comorbidades.
A “conspiração do silêncio” é aquela atenuação do morrer, tentando afastar o medo do sofrimento, a degeneração, a solidão e o abandono, a ideia é tornar o homem privado de sua “morte” conforme dizem alguns autores (Carvalho, 1994), usando do homem privado de sua morte, de sua humanidade (14,15), com eufemismos ou alusões a falsas situações (viajou, está com a vovó, etc.) para mantê-la distante do mundo dos vivos e da fatalidade do morrer.
É cruel pensar no morrer, mas mais cruel não falar e não citar que muitos estão morrendo, que é possível que menos pessoas morram, e que além da prevenção, todos devemos sonhar com remédios que possam nos separar desta noite de sofrimento que envolve toda a humanidade, falar dele é solidarizar-se.
Adorno Y. Conversando com a criança sobre a morte. Campinas (SP): Psy, 1994; 20 p. 12. Araújo PVR, Vieira MJ. As atitudes do homem frente a morte e o morrer. Texto & Contexto, Florianópolis (SC) 2001 set/dez; 10(3): 101-17.
Böemer MR. A morte e o morrer. São Paulo: Cortêz; 1986.
Carvalho MMMJ, coordenadora. Introdução à Psiconcologia. Campinas (SP): Psy II; 1994.
Mistério não é ignorância
Histórias de culturas, de tradições culturais que envolvem o imaginário, e o próprio imaginário são envoltos em mistérios, mas não se deve confundi-los com ignorância ou superstições, é isto que pode-se ler no livro do quase centenário Edgar Morin “Conhecimento, Ignorância e Mistério”. le-se aí muito sobre o conhecimento, algo sobre a ignorância e o essencial sobre o mistério, a dosagem de Morin é perfeita e um bom remédio para o pandêmico.
Ele prepara um livro para a pandemia, mas como sempre se antecipa à história espero ler e acredito que ele é um dos poucos que pode falar sobre o novo nomrla ou o pós-pandêmico justamente porque enfatizou numa de suas conferências que a crise sanitária nos pegou de surpresa e nos colocou de joelhos.
Além de livros planetários como “Terra Pátria”, sobre epistemologia “O Método” em seis volumes, é um dos raros que se arriscou a trilhar novos caminhos em nossos dilemas globais através de “Para Sair do século 20” e “Diante do Abismo”, porém neste livro de 2018, o seu salto é sobre o mistério sem escorregar pelos caminhos fáceis da crendice e da ignorância, questiona tanto o fetiche da razão como o determinismo materialista, entre suas diversas obras estão os Estudos Transdisciplinares feito num no Centro destes estudos em Paris com o filósofo, importante para o mundo digital Michel Serres, recentemente falecido, e proclama que podemos com a disciplinaridade e com a excessiva especialização caminhar para um novo “obscurantismo”.
Separa claramente a ignorância do mistério, para ele ““Só podemos apreender o real por meio das representações e interpretações. A realidade do mundo exterior é uma realidade humanizada: não a conhecemos diretamente, mas por meio do nosso espírito humano, traduzida/reconstruída não só pelas nossas percepções, como também pela nossa linguagem, nossas teorias ou filosofias, nossas culturas e sociedades”, e o mistério é para ele equacionado pela transdisciplinaridade como “a contradição a que chega todo conhecimento aprofundado não é erro, mas última verdade concebível”.
Valoriza o mistério como caminho de descoberta e conhecimento: “O conhecimento complexo é o caminho necessário para chegar ao incognoscível. Caso contrário, continuamos ignorantes da nossa ignorância. O mistério em nada desvaloriza o conhecimento que a ele conduz.”
Chama o nosso meio atual como tendo uma “cultura do cancelamento”, uma meia-sola mais rancorosa nas velhas patrulhas ideológicas, e elas parecem agora recrudescer com o retorno da polarização ideológico, que no pós guerra criou uma tensão constante em toda humanidade.
Que lembra quando as crianças tapam os ouvidos e emitem cantilenas miméticas (ele chama de guturais) para não ouvir interlocutores que as contradizem (se você nunca fica sabendo que pode estar errado, estará certo para sempre), assim a polarização e radicalização parece vir da educação berçária.
Não é só o meio natural que precisa de biodiversidade, o meio cultural e a democracia também precisa, como afirma Morin na verdade “dependem da biodiversidade”, estamos dispostos a conviver com o que é diferente ou desejamos eliminá-lo, a resposta dada em escala global é assustadora, está sim não é mistério para ignorância e desprezo pelo Outro.
MORIN, Edgar. Conhecimento, Ignorância, Mistério. 1ª. edição. BR: Bertrand do Brasil, 2020.
Para vocês quem é A verdade ?
O certo é que a verdade é quem e não o que porque o que será só um objeto e esta verdade só poderia ser estabelecida por uma relação dual: do sujeito com o objeto o qual ele interpreta, é por isto que caímos no relativismo ou na pura doxa, a opinião, a verdade só pode ser estabelecida na relação om o Outro, na filosofia socrática, a verdade não está com os homens, mas está entre eles, na sua relacionalidade.
Porém o estabelecimento desta verdade requer o desvelamento ontológico, não é simples porque embora seja intrínseco ao ser, o que ocorre a partir do idealismo é um grande velamento do ser, somente a partir de Heidegger vai se pensar este desvelamento, mas ainda permanecemos na noite do pensamento e da cultura.
O ser na relação com os objetos, que é também intrínseca do ser, ele é substância material, a hylé grega, da qual surgiu o hilemorfismo (teoria que agrega hylé e morphé) segundo a qual todos os seres corpóreos são compostos por matéria e forma, que a partir da escolástica é pensada como substância.
As consequencias desta verdade ontológica tem impacto na antropologia filosófica, a que estuda como o homem pode compreender-se, assim um sentido metafísico é recuperado e pode-se discutir o homem também num sentido escatológico, de onde vem e para onde irá, ou teleológico como prefere a literatura convencional.
Filósofos como Bernar Groethuysen afirmou que “a reflexão sobre nós próprios, reflexão sempre renovada que o homem faz para chegar a compreender-se”, já Landsberg dirá de outra forma: ”explicação conceitual da ideia do homem a partir da concepção que este tem de si mesmo em determinada fase de sua existência”, mas a pergunta cabe a todos e para você quem ou o que (para a pergunta não ser direcional) é a verdade ?.
Se a pergunta é hilemórfica, o homem veio do pó e ao pó retornará, mas há uma resposta aórgica, especial para nossos dias, a sua forma ou estrutura poderá mudar e assim haverá uma mudança, aquilo que Fritjof Capra chamou de reinvenção do homem, e que eu pensando como cristão, uma mudança em sua alma.
Após uma longa convivência com os discípulos é a pergunta que também Jesus vai fazer aos seus discípulos (Mt, 16:13-14): “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem “ Eles responderam: “alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias, outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas”, porém quem é hoje para nós, não para os não crentes, mesmo para cristãos ainda parece ser um personagem enigmático, milagreiro, histórico, político ou era mesmo Deus ?.
A verdade pode parecer simples demais, não ter uma lógica profunda intrincada, não ser ligada a nenhuma forma de poder ou política temporal, mas e se for Ele a verdade ? quanta coisa mudaria na vida do planeta, como mudaria nossa visão da pandemia, da distribuição dos bens e da solidariedade ?
Aos que não creem e se for mesmo Verdade, poderia ser uma grande resposta em tempos de pandemia e de dificuldades sociais, mas a pergunta d´Ele próprio para nós está aí, teríamos coragem de responde-la a todos os homens ?.
A verdade é lógica, ontológica ou poder
Os sofistas diziam que o homem é a medida das coisas (Protágoras), não para afirmar qualquer princípio ontológico, apenas para reafirmar o status quo vigente que em última instância é o poder, usavam para isto a arte da persuasão (Górgias) e por último afirmavam a conveniência do mais forte (Trasímaco), quase todos aparecem nos diálogos de Platão, através dos diálogos de Sócrates) e cuja preocupação era contestá-los para afirmar a democracia da polis.
Depois vivemos vários séculos organizando as leis até fazer a passagem da cidade-estado grega para os burgos pós-idade média, onde o liberalismo vai crescer até tornar-se o Estado moderno, criando o conceito de nação e o contrato social que rege determinado povo.
Para a visão epistemológica moderna, a verdade está ligada ao objeto (a coisa em si) e isto o torna relativa, pois está submetida ao espaço, ao tempo e às categorias, este conceito vem de Aristóteles, mas foi sobre ele que o pensamento da idade média se dividiu entre nominalistas e realistas, mas para ambos e também para Descartes que vai estabelecer a res-extensa (matéria), a res-cogitans (coisa pensante) e a res divina (coisa pensante perfeita, infinita).
É Kant que faz a ligação da coisa pensante sobre o objeto tornando-se relativa, pois tal verdade é ao sujeito cognoscente tendo então uma face subjetiva, própria do sujeito, para ele a “coisa em si” (o objeto) transforma-se em “a coisa em mim” (sujeita a subjetividade).
Isto significa que diante do objeto, a consciência desenvolve o trabalho na produção da verdade de acordo com o espaço em que esse objeto está ocupando, o tempo que ele está situado e em que categoria se encaixa, trata-se então de categorizar e organizar os objetos em torno de conceitos.
Não é difícil entender que isto cria uma estrutura lógica que vai num primeiro instante criar uma lógica positivista e mais tarde um empirismo lógico, ou um neologicismo, em ambas correntes qualquer aspecto metafísico é negado, assim a lógica não é mais função de uma construção argumentativa, mas de um cálculo de proposições que segue uma estrutura lógica, em última instância é também o que justifica o poder e suas maquinações.
Retornamos as narrativas sofistas, a ideia de que é o poder que diz o que é verdade, então trata-se de conquistá-lo muitas vezes numa lógica na qual os fins justificam os meios, assim justifica-se a corrupção, a ausência de virtudes morais e até mesmo a morte.
A verdade ontológica parecia ter sucumbido, mas foi a hermenêutica e a fenomenologia as raízes que recuperam a ontologia moderna, Franz Brentano vai usar uma subcategoria do conceito ontológico de consciência, ao elevar a intencionalidade a uma categoria superior e torná-la “fenômeno mental”.
Husserl aluno de Brentano, vai recriar a intencionalidade e retirá-la do aspecto psicológico ainda com resquício empirista, e vai dizer que só tem sentido chamar de consciência, a “consciência de algo”, isto significa que não existe consciência da coisa-em-si, mas a intencionalidade na consciência de algo.
A intencionalidade distingue a propriedade do fenómeno mental: ser necessariamente dirigido para um objeto, seja real ou imaginário. É neste sentido, e na fenomenologia de Husserl, que este termo é usado na filosofia contemporânea, também por Heidegger, mas que vai recuperar e transformar a ideia do Ser.
Entretanto é necessário lembrar que Heidegger em O meu caminho na fenomenologia, deveu-se a leitura em 1907 da dissertação de Brentano escrita em 1862: “Da múltipla significação do ser em Aristóteles” (Brentano, 1862) e isto significou uma retomada do caminho de seu mestre Edmund Husserl.
Heidegger ao contrário de Brentano nega a caracterização fundamental do ser como substância, uma vez que, Brentano ainda estava ligado à tradição interpretativa medieval, desconsiderando a dimensão do papel na linguagem, por isto dirá com propriedade que é uma “questão nova” o seu Dasein.
O ser-verdadeiro (a verdade ontológica) como ser-descobridor [Wahrsein (Wahrheit) besagt entdeckend-sein] é o modo de aparição da aletheia, é o que Heidegger dá o nome de desvelar, pegando-o ao pé da letra (mas traduzido, o que já é uma interpretação):
“O enunciado é verdadeiro significa: ele descobre o ente em si mesmo. Ele enuncia, indica, “deixa ver” (apophansis) o ente em seu ser e estar descoberto. O ser-verdadeiro (verdade) do enunciado deve ser entendido no sentido de ser-descobridor.” (HEIDEGGER, 2009, p. 289)
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. 4ª ed. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: São Paulo, 2009.
Depois da chuva e a pandemia
O filme de um assistente de Akira Kurosawa, Tadashi Koizumi, tem este nome “Depois da chuva” (Ame Agaru, 1999) era um roteiro de Kurosawa que Tadashi herdou, o primeiro ponto que pode-se destacar neste filme é a relação homem/natureza que limita a ação humana e ficam presos no meio de um caminho esperando a chuva passar, como muitos outros tem também um samurai, mas ele vai ter ali que realizar uma tarefa que não é muito digna de um samurai, arrumar dinheiro para as pessoas que ficam ali poderem comer, esta é minha analogia com a pandemia, ali do tempo em que todos ficam presos na casa, analogia que faço com o isolamento social.
O protagonista do filme é um personagem do tipo “jidai-geki” (os filme que tem inspiração na história do Japão), poderia ser também um filme sobre o “outono de um samurai”, há outro filme de roteiro feito por herdeiros de Kurosawa chamado “Rapsódia em Agosto” (1991), neste o diretor foi Kiyoko Mura.
Esta cosmovisão de não conceber o homem separado da natureza, em tempos que a ecologia era ainda tema marginal, agora com a redescoberta da natureza temos uma interessante analogia a ser feita, a natureza nos limitou atrás de um vírus, e ontem assistimos picos de temperaturas baixas no sul do continente americano, as temperaturas tem ficado 20ºC abaixo de zero em Rio Grande (Terra do fogo), de acordo com os dados do Serviço Meteorológico Nacional (SMN) da Argentina.
Já nos EUA onde é verão, o recorde de temperatura alta foi no “vale da morte”, 54,4ºC um recorde muito próximo da maior temperatura já registrada na região que foi de 56,9ºC em 1913, segundo o Serviço Nacional de Meteorologia (NWS) americano, a natureza dá seus sinais de reação a ação ecológica pandêmica de séculos.
Voltando a chuva no meio de uma mata por onde passam pessoas pobres, num certo momento o samurai se vê na condição de ajudar aquelas pessoas devido o longo período que estão isolados, e ao sair depara-se com um assassino que o samurai vai impedir um duelo que poderia terminar em morte, e por isto o senhor feudal dono daquelas terras decide emprega-lo como mestre espadachim, resta um escrúpulo que é aceitar dinheiro, o que é desonroso para o samurai.
O Samurai decide fazê-lo por um fim nobre que é ter alimento para aqueles pessoas que estão retiradas ali quase todas pobres por estarem fazendo aquele caminho pelo meio da mata, quando foram impedidos de prosseguir pela chuva.
Se a mensagem naquele tempo foi pouca apreciada, hoje com a situação econômica que teremos depois da pandemia, a mensagem é nobre e social.
Abaixo um link para ver o filme:
https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=1mR0KV-c9EY
A pandemia e a doxa
A mera opinião sobre temas tão complexos quanto o tratamento da pandemia expôs o mundo da mera opinião ou da “doxa” como os gregos chamavam aquilo que era oposto a episteme, ou o conhecimento organizado e sistematizado.
O número de soluções curiosas no combate ao vírus é enorme: usar limão até ozônio, os remédios que são efetivos para outras doenças como o uso da cloroquina para malária, usos de chás e águas quentes, determinadas frutas e legumes, a FioCruz que acompanha o desenvolvimento da vacina de Oxford fez uma pesquisa, que dá como 73% falsas as notícias sobre curas do coronavírus no Whatsapp, em sua grande maioria são receitas caseiras sem efeito nenhum sobre a doença.
Toda a vida no tempo de Platão (428/427 a.C. – 348/347 a.C.) acontecia em torno da polis, onde já haviam então o cidadão da polis, o político, porém ainda dominavam os sofistas, que buscavam apenas argumentos para favorecer o poder, sem se preocupar com a justiça e a verdade.
No livro República de Platão o termo episteme, que antes suportava a possibilidade de ter habilidade para algo, agora adquire o conteúdo de saber pleno de certeza, um saber evidente que é ligado a realidade do Eidos (a Ideia para os antigos), com isto episteme é conhecimento verdadeiro e totalmente oposto a doxa, reduzida a simples opinião.
É na relação entre epistemologia e ética, que é possível considerar a ação sob um ponto de vista da doxa, embora não signifique um fundamento deste tipo de saber ético em Platão, pois ele aparecerá com Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), em especial no seu livro “Ética a Nicômaco”.
O problema da determinação destes conceitos ligando-os a questões éticas aparecem nos primeiros diálogos até a República, que se mantém depois no diálogos sobre as Leis, tornando possível abordar esta questão em diálogos posteriores.
Platão usa os conceitos de nous (República VI 511d4) e noesis (República VI 511e1), a doxa está no mundo da realidade sensível, enquanto a episteme está no conhecimento dianoético (dianoia, é a forma de pensar menos elevado que a noesis) que tem por objetos os noeta, mas são inferiores a dialética (República VII 533d).
Aristóteles vai negar a existência de eide (pensamento puro) em termos platônicos, assim sua episteme vai designar para ele o conhecimento das causas necessárias (está desenvolvido nos primeiros analíticos) e consiste de na demonstração (apodeixis) e na sensação (aisthesis) tornam-se necessárias para a episteme.
Para não complicar muito, os gregos foram, é na Metafísica (E 1, 1025b-1026a) que o termo episteme vai designar uma organização sistemática dos conhecimentos racionais, chegando assim a apontar para o conhecimento teorético, em sua oposição ao conhecimento prático e poiético (Ética a Nicômaco VI 3, 1139b14-36).
Seja qual for a forma de conhecimento sistemático, a ciência tem seus caminhos e negá-los é colocar toda a humanidade a prova, nem receitas caseiras, nem vacinas sem as condições de testes são aceitáveis, é preciso prudência já pagamos um preço demasiado pelas mortes na pandemia, que a cura seja para eliminar as possibilidades de reinfecção e efeitos colaterais, é a dose do veneno que faz o remédio, porém o inverso é verdadeiro também.
A mãe do Senhor e a tragédia grega
A tragédia grega Édipo Rei foi analisada pelo poeta Hölderlin, onde usa o termo aórgico para a busca que Édipo faz para saber que é, uma vez que fora doado a um pastor pelo pai Laio para cria-lo, para evitar a tragédia prevista pelo oráculo de Delfos, e para completar a tragédia Édipo acaba por desposar a própria mãe.
O termo aórgico aqui é usado para entender a corrupção da natureza humana, e pode ter um sentido novo a cada nova tragédia humana, é o sentido de Hölderlin ao dizer que “onde há medo há salvação”, devemos temer não só a pandemia que já é um desastre, mas o que pode vir de desumano e aórgico após esta tragédia.
Não faltam apocalípticos, no entanto o interessante seria pensar o além da tragédia e inverter o papel de Jocasta para uma mãe que defende e quer seus filhos são e salvos, e assim numa reinvenção humana olhássemos não para Eva da criação humana, mas para Maria que deu à luz ao divino filho.
Não é só o preconceito religioso que desvia deste sentido profundo da fecundidade e da maternidade humana, é a relevância do papel da mulher ao segundo plano, a a análise de Hölderlin envolve os paradoxos que comumente constituem o trágico, como o humano e o divino, e a tarefa poética da modernidade como uma tarefa possível para toda e qualquer poesia, assim seu plano cultural não pode eliminar o trágico, mas deve também incluir o divino.
É esta misoginia do humano ao divino que nega todo e qualquer papel da mulher, Maria deveria ser tema apenas religioso, mas também o divino ligado ao trágico, a Pietá ainda que lembrada e revisitada por tantos autores, esconde o papel da mãe desolada diante do filho desfalecido, também Salvador Dali em seu quadro Christus Hypercubus coloca uma figura feminina ao pés do quadridimensional Christus, inspirada em sua esposa.
Aos cristão ignora-se a passagem bíblica do evangelista Lucas (Lc 1,43): “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar “, e o Senhor neste caso não é apenas o filho divino-humano que nascerá de Maria, mas também o Deus Senhor de Maria e Isabel, que diz isto “cheia do Espírito Santo” (Lc 1,41), assim a relação é trinitária e aórgica, afinal o acontecimento natalino está envolto do mistério das leis do universo que sobre ela agiram.
Em meio a pandemia seria extraordinário se a mesma mãe da Pietá estive com a humanidade em seu colo (matris in gremio) e pudesse numa inspiração trágica e divina socorrer a humanidade que desfalece e vê um futuro cada vez mais sombrio a frente, os mistério de Medjugorje e Garabandal (aparições misteriosas) podem não ser apenas fantasias de crianças (hoje todos adultos), mas a própria revelação divina sobre o trágico humano, quem dera seja verdade, onde há medo, há salvação.