Arquivo para a ‘Cognição’ Categoria
Por uma filosofia do Design
Vilém Flusser foi um tcheco naturalizado brasileiro, falecido em 1991, que atuou por cerca de 20 anos como professor de filosofia, jornalista, conferencista e escritor no Brasil e depois de volta no seu país de nascimento a Republica Tcheca.
Seus livros estão sendo republicados no Brasil, incluindo todos os seus escritos, e comecei relendo O mundo Codificado – por uma filosofia do Design.
Sua obra vai além das influências que recebeu de Roland Barthes, Marshall McLuhan, pois sua filosofia é própria com elementos de fenomenologia e existencialismo.
Na introdução do livro, feita por Rafael Cardoso, é destacada sua mudança de pensamento sobre as modernas mídias que apenas viu nascer: “ao contrário da maioria dos filósofos modernos, que costumam concentrar suas análises na linguagem verbal ou nos códigos matemáticos, Flusser dedicou boa parcela de seu gigantesco poder de reflexão às imagens e aos artefatos, elaborando as bases de uma legítima filosofia do design e da comunicação.” (FLUSSER, 2017, p. 10)
Lançou perguntas profundas sobre o mundo virtual: “Se uma árvore cai no espaço virtual, e não há ninguém on-line, será que ela gera uma mensagem de aviso?” retomando a famosa questão da árvore que cai na floresta, e também “Qual a diferença entre o material e o imaterial? Podemos trocar coisas por não coisas?” (idem) e conclui com uma pergunta ainda mais fundamental: “Que destino devemos reservar para os detritos gerados por nossa frenética atividade de transformação da natureza em cultura?” (FLUSSER, 2017, p. 15)
Aproxima-se do paradigma da informação, base essencial para o conhecimento e a educação, “o fim da história parecer ser o fim de nossa capacidade coletiva de lutar contra a entropia, contra a desagregação do sentido e da forma. Se a base daquilo que entendemos por cultura reside na ação de in + formar, então não é paradoxal que o excesso de informação nos conduza à desagregação do sentido ? “ (idem)
A importância do “conceito de virtualidade talvez seja a melhor e mais elegante prova do quanto Flusser tinha razão.” (idem), e não se pode mais fugir a esta questão, o uso em diversas formas de informação, comunicação e das artes exige a abertura desta “caixa preta”, nome de um ensaio publicado no ano de 1985.
Flusser ao contrário de apocalípticos, admite que “ao menos em tese”, o que deveria transformar-se em bem estar, ““humano torna-se escravo das forças de uma outra “natureza” que ajudou a gerar artificialmente”.
Aspectos da virtualidade e de um mundo codificado são desenvolvidos de maneira única pelo autor e contribuem para um debate mais sereno sobre as novas mídias.
FLUSSER, V. O mundo codificado: por uma filosofia do design. São Paulo: Ubu editora, 2017.
O ser e a essência
Antes de verificar o que é o ente e a essência na contemporaneidade, examinemos mais de perto o seu significado em Tomás de Aquino, importante para compreender a diferença entre nominalistas e realistas no final do período medieval.
Para o filósofo medieval, a essência, que era chamada de quididade, é o inefável do que possibilita a existência, dando a uma coisa a sua constituição de Ser, este por sua vez possui uma existência como possibilidade de existir em ato, uma vez criado a matéria e a forma lhe dão realidade.
Diferentemente de Aristóteles, para o qual existe um primeiro motor que é deus, sua ontologia parte desta premissa, para Tomás de Aquino, a essência de Deus é sua existência, e atribuir-lhe algo seria negá-lo, pois não lhe falta nada, é pura perfeição e plenitude, assim o esforço de atribuir a Deus propriedades é inútil, para Tomás de Aquino ele é puro Ser.
Nele a essência, chamada de quididade é o inefável que possibilitaria a existência, então é daí onde Deus dá existência as coisas, ou preferindo um conceito teleológico, é a primeira matéria/energia/forma de onde se origina tudo, poderia se dizer em palavras mais modernas, a natureza existente em-si é uma sobre-natureza de sua essência de um Ser para-si.
A propósito, faleceu hoje o físico Stephen Hawking, que disse sobre a criação do universo, que tão importante quanto o ato de criá-lo foi a intenção da criação,
A essência (qüididade) não sendo o inefável corresponderá a nomes e conceitos, cuja existência é concebida pelos nominalistas, ainda que ela admita a experiência como modo de “perceber” a realidade, ela estará no início deste pensamento muito ligado aos sentidos, assim mesmo hoje as substâncias, estejam estão ligadas a nomes, elas são signada, e passíveis de uma desconstrução como foi analisada por Derridá e nos posts da semana passada.
Para Tomás de Aquino há duas substâncias, onde a essência participa igualmente das duas substâncias, e a causa somente da substância composta, no ente a existência é “…. aquela substância primeira e simples por excelência, que se denomina Deus (AQUINO, 2004, p. 10)
A substância segunda (coisas abstratas) comporta o gênero e a espécie, a essência participa dos dois. A essência não participa individualmente da matéria ou da forma, encontra-se em ambas, compondo no mundo das coisas sensíveis a individuação.
Tomás de Aquino estabelece ainda dois tipos de matéria: matéria signada, que é substância primeira, particular, concreta, singular, de menor extensão, pode-se usando um exemplo moderno dizer Hidrogênio e Oxigênio, formando a água, já a matéria não signada, que é substância segunda, universal abstrata, de maior extensão, um líquido potável, porém é preciso ver uma complexidade maior, se tratamos do ser humano.
‘’É evidente que a definição de homem em geral, e a deste homem chamado Sócrates, só se diferenciam pelo signado e o não signado’’.(Idem, cap. III – 1, p. 11), assim tanto a existência do indivíduo signado quanto o Homem em sua própria natureza, é também o homem Sócrates em sua natureza particular signada, onde signada nada mais é do que colocar um signo.
AQUINO, S. Tomás, Compêndio de teologia, cap. II -3, p. 77, Col. Pensadores, SãoPaulo: Nova Cultural, 2004.
Being and essence
A separação entre verdade e realidade
A ideia na modernidade que uma verdade objetiva é diferente da realidade, por isto vai negar o realismo tomista e retomar a subjetividade nominalista, agora travestida em ideia, é uma ruptura com o ser.
Para os antigos gregos, verdade e realidade eram uma coisa só, então Martin Heidegger no ser e o tempo retoma este sentido, pelo estudo da etimologia da palavra onde a-letheia, distinta do conceito de “verdade” onde esta é um estado descritivo objetivo, onde a-letheia, significa “desvelamento” na tradução de Heidegger, pois lethe significa esquecimento, no sentido de ocultamento.
Filosofias a parte, o que isto significa é que confiamos demais na realidade objetiva enquanto critério de verdade, e quase sempre ela contém um véu da aparência, e é preciso dar-lhe sentido a partir do Ser.
A verdade, portanto, para Heidegger está no desocultamento, onde as aparências se enganam e o que é mesmo verdade se oculta em meio a palavras típicas do nominalismo, onde um bom conceito pode tentar explicar algo, mas não é a essência deste algo, é apenas sua aparência.
O que Descartes falava de suspensão do juízo sobre as coisas significa enquanto ser suspender também o seu próprio princípio egóico que só é possível na relação com o outro, suspendeu-se o juízo mas não o ego, pois não é a presença do outro que conta, mas o conceito, o nome e sua definição.
Outra palavra usada pelos gregos e importante neste contexto é a palavra phronésis, que é ao mesmo tempo harmonia e felicidade, tão forte a ponto de muitos autores afirmarem que é impossível ter phronésis em aletéia.
Por outro lado phronésis é .um conceito quase esquecido, devido a sua subjetividade, pois é menos próprio da razão, e estamos mais comprometidos com a veritas do direito romano, a verdade dos “fatos”, que nada mais é que uma narrativa, nem sempre contextual e verdadeira.
“A essência da verdade se desvelou como liberdade. Esta é o deixar-ser ek-sistente que desvela o ente. Todo comportamento aberto se movimenta no deixar-ser do ente e se relaciona com este ou aquele ente particular. A liberdade já colocou previamente o comportamento em harmonia com o ente em sua totalidade…” (HEIDEGGER. Conferências e escritos filosóficos. In Col. Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural, 1991. p. 130)
Para os modernos, verdades são fatos, para os antigos são aletéia e phronésis, é próximo ao que hoje pode-se chamar objetivo (de objetividade) e meta (de subjetividade), porém são conceitos mais completos porque estão unidos e não podem ser vistos como peças encaixadas.
Verdade é o desoculto, para Heidegger, aquilo que se mostra, atinge-se pela aletéia (o desabrigar o oculto) com phronésis (harmonia).
Desconstruir, estrutura e língua
Primeiro afirma que é melhor usar o termo no plural e justifica: “A desconstrução no singular não pode ser simplesmente apropriada por quem quer que seja ou por o que quer que seja.”, isto porque ela está vinculada ao que chamou de “ex-apropriação” (Derrida, 1991, p. 194).
Novo cuidado porque apropriação se refere a língua, tanto isto é verdade, que em sua obra de 1998: “Fidélité à plus d´um” afirmou: “se fosse arriscar uma única definição da desconstrução, eu diria simplesmente: mais de uma língua” (p. 253), isto significa estudar o fenômeno da comunicação num mundo plural e com interpretações plurais, o que o aproxima de Husserl.
Mas o problema é intra-lingua, como os Deus míticos da Babilônica bíblica chamados de falsos deuses, e nisto vemos a estratégia adotada na tradução de Husserl, que parece esquecer que é francês, afirma em uma de suas traduções do mestre da fenomenologia: “a tradução dos conceitos usuais da língua husserliana, naturalmente nos conformamos com os usos consagrados pela tradução as grandes obras de Husserl”, que está na “Introdução” da tradução de “L´origine de la géométrie” feita em 1962.
De acordo com Derrida, a tradução “when mercy seasons justice” da obra de Shakespeare O mercador de Veneza, não poderia ser traduzida como “quando le pardão tempere la justice”, como fez Vitor Hugo, mas “quando le pardon releve la justice (ou le droit)”, ou seja, “quando o perdão releva a justiça (ou o direito), isto para exemplificar o problema da tradução além das questões de estruturas e de mitologias como propõe o estruturalismo, ou seja, dentro das próprias culturas há questões que escapam as estruturas e delas retiram-se “traduções”.
Por isto se perguntará quando uma tradução é “relevante”, e o próprio termo é questionado, que na língua derridaniana (estou levando em conta seu pensamento), diz respeito à lei da economia, da possibilidade de traduzir uma palavra levando em conta o maior número de jogos de sentido possível.
Assim separar a estrutura, a forma do sentido não é senão confundir ainda mais, embora tenhamos a dívida com o estruturalismo de penetrar o estudo das culturas para compreender que o sentido no conjunto de uma é muito diferente do conteúdo de determinada situação em outra, mas falta nesta concepção a ideia da tradução interpretativa dos jogos de sentidos.
Segundo o filósofo Simon Blackburn o estruturalismo é “a crença de que os fenômenos da vida humana não são inteligíveis exceto através de suas inter-relações. Estas relações constituem uma estrutura e, ainda por trás das variações locais dos fenômenos superficiais, existem leis constantes do extrato cultural”, Roland Barthes e Jacques Derrida ao aplicarem a literatura descobriram que há variantes, que o nosso ver são fenomenológicas.
A desconstrução e a pós-estruturalismo
Há sempre no ar uma ideia de que estamos rompendo com valores tradicionais, tornando tudo “líquido” ao se desconstruir, mas isto é diferente de demolir ou de simplesmente abandonar valores que pareciam sólidos na modernidade.
A desconstrução no sentido filosófico de Jacques Derridá (1930-2004) só pode ser ligada a ideia da leitura de texto do pós-estruturalismo, e o estruturalismo está ligado a Levy Strauss, e o pós-estruturalismo utiliza as premissas básicas do próprio estruturalismo, além de Derridá pode-se citar Roland Barthes.
Desconstrução no sentido que Derridá deu ao seu pensamento, não pode ser confundido com um conceito ou um método, é justamente a ideia que a objetividade (como um método) não pode ser utilizada para fundamentar a desconstrução, o sentido que parece mais correto é o de uma “estratégia” para ler textos e interpretá-los, por isto a forte ligação com a questão da gramática (uma das principais obras de Derridá é a Gramatologia).
Diz então Derridá sobre sua estratégia (não conceito e nem método): “O que me interessava naquele momento … o que tento continuar agora sob outras vias, é a par de uma ´economia geral uma espécie de estratégica geral de desconstrução … atravessar a fase de um derrubamento [do que chama de dupla ciência] … aceitar essa necessidade é reconhecer que, numa oposição filosófica clássica, não tratamos, com uma coexistência pacífica de um vis-a-vis, com uma hierarquia violência … desconstruir a oposição é primeiro, num determinado momento, derrubar a hierarquia.” (Derridá, 1975, p. 53-54).
Para ele o pensamento metafísico tradicional (eu diria o idealista da modernidade o é mais profundamente) é o logocêntrico, que identifica-o por pares: identidade e diferença (seu principal argumento), razão e sensação, lógica e retórica, masculino e feminino, mas sem dúvida seu principal é a fala e escrita.
Isto é central aqui pois ele trata no fundo da oralidade (bem anterior a modernidade) e a escrita (de Gutenberg para cá), e penetra naquilo que consideramos essencial em ontologia que é a presença, mas seu argumento é diferente dos existencialistas, embora também se oponha a lógica geral como método: “A história da metafísica, como a história do Ocidente, seria uma história dessas metáforas e dessas metonímias (os diferentes nomes que utilizamos para nos referir a um centro ou fundamento estável a partir do qual possamos pensar a totalidade de uma estrutura ou mesmo a realidade em geral].” (Derridá, 1995, p. 231).
Em posições Derridá afirma que a diferância (tradução portuguesa que não é a diferença de outras traduções) é que se deve ligar a sua ideia de desconstrução “a um ponto de ruptura com Afhebung e da dialética especulativa” (Derridá, 1975, p. 56) em oposição clara a ideia na filosofia de Hegel que se pode reduzir um conceito a outro, mas sim há um jogo, a incessante alternância de primazia de um termo sobre o outro, produzindo por isto uma situação de constante indecisão.
Aqui penetra-se no discurso sobre o estruturalismo: “Por oposição ao discurso epistêmico, o discurso estrutural sobre os mitos, o discurso mitológico deve ser ele próprio mitomorfo.” (Derridá, 1971, p. 230) e sobre este discurso o próprio Levy Strauss escreveu: “será acertado considerá-lo [seu livro] como um mito: de qualquer modo, o mito da mitologia” (Lévy-Strauss apud Derridá, 1971, p. 242).
A ênfase de Derridá na textualidade e na escrita não é a ruptura com a filosofia, é antes uma compreensão mais aprofundada da viragem linguística para além dos jogos e o fato que ele seja visto tão estreitamente ligado a literatura é a penetração de sua leitura em departamento de literatura, mais específica nos Estados Unidos.
“O jogo” para Derridá “é sempre um jogo de ausência e presença, mas se quisermos pensar radicalmente, é preciso pensa-los antes da alternativa da presença e ausência; é preciso pensar o ser como presença ou ausência a partir da possibilidade do jogo, e não inversamente” (Derridá, 1971, p. 248).
A diferância assim está no “dentro” e “fora” da presença, sua desconstrução assim procura relacionar-se com a mitologia mas desmontá-la, numa perspectiva etnocêntrica, que faz prevalência do pensamento conceitual sobre o mítico, do raciocínio lógico sobre a bricolagem, que é feita pelo próprio Lévy-Strauus, pensar o mito como forma de pensamento original é reduzí-lo a episteme.
Referências:
Derridá, J. Posiçõe. Semiologia e Maerialismo. Tradução de Maria M. C. Barahona. Lisboa: Plátamo, 1975.
Derridá, Jacques. Margens da Filosofia.Campinas: Papirus, 1991.
___ A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectivas, 1971.
A antropotécnica e a ascese desespiritualizada
Para definir sua antropotécnica, Sloterdijk vai estabelecer a relação das relações dentro das religiões atuais como os mais puros procedimentos antropotécnicos:
“Se reduzimos essas “religiões” às suas características essenciais, surgem três complexos básicos dos quais cada um tem uma relação clara com a dimensão antropotécnica. Primeiro, do lado dogmático: um clube de exercícios ilusionistas, rigidamente organizado, cujos membros no decorrer do tempo estão sendo impregnados com as concepções do milieu. Em seguida, do lado psicotécnico: um roteiro de treinamento para a exploração de todas as chances na luta de sobrevivência. Observamos, por fim, o topo do movimento; podemos ver tudo, mas nenhum “fundador de religião”: na nossa frente está um inescrupuloso, radicalmente irônico, flexível para todos os lados, business-trainer” (Sloterdijk, 2009, p. 168).
Vendo também a Scientologia e o movimento olímpico como religiões, ele usa o conceito de habitus, mas sem deixar de criticar o desenvolvimento feito tanto por Pierre Bourdieu como por Marx, resolvendo o problema de como a base ou a “infraestrutura” social se refletiria na “superestrutura” ou como a concepção geral da sociedade consegue penetrar o indivíduo de forma duradoura, eis o seu habitus feito como um procedimento antropotécnico.
Para atualizar e historicisar seu conceito ele recorre ao conceito de habitus em Tomás de Aquino e de hexis em Aristóteles, que “…descreve um processo aparentemente mecânico sob os aspectos da inércia da superação para explicar a encarnação do espiritual. Eles identificam o homem como aquele animal que pode o que deve, se alguém se importou em tempo com suas habilidades.” (idem, p. 289).
Segundo o autor ao apresentar sua própria teoria do desenvolvimento cultural, a própria humanidade, apesar do fato de encontrarmos costumes e tradições diferentes em cada momento da sua história, não seguiu o roteiro conservador da identidade, por isto esta questão é falsa, embora seja referencia para muitos autores contemporâneos.
A conclusão sobre esta ascese desespiritualizada é treinamento, deixar-se operar: deixar-se-informar, deixar-se-divertir, deixar-se-servir, deixar-se-curar, deixar-se-transportar, e se este é, para o autor, o ser-aí, sua contraposição não é a negatividade geral, mas deveria ser o epoché geral, o deixar-se esvaziar, pode haver o ser-aí-não-ser que poderia se complementar como onto-antropotécnica, a luz do habitus social, fazendo uma releitura das condições antropotécnicas atuais e capaz de criticá-las, seria um ser esvaziado total, um não-ser-aí que é também ser.
SLOTERDIJK, P. Du musst Dein Leben ändern. Über Antropotechnik. Frankfurt, Suhrkamp, 2009.
A crise e as cinzas
A crise econômica, política e social é mundial, mas a brasileira tem mais cara de quarta-feira de cinzas do que de carnaval, mas é possível sobre-viver nesta crise ?
Um livro sugestivo e profundo é o livro em parceria de Edgar Morin e Patrick Viveret: Como viver em tempo de crise? (Bertrand Brasil, 2013) que sugerem no livro “Arrisco a hipótese que talvez tenhamos chegado a um momento de ruptura” (pag. 22), mas qual ruptura ?
Relembra Ortega y Gasset “não sabemos o que acontece, e é justamente o que acontece”, diz isto sobre a dificuldade de se relacionar fatos, a revolução digital, o ressurgimento de nações (armênio, curdos, croatas entre muitos outros), o grande saltos dos tigres asiáticos, enfim uma gama grande de relações novas, e agora novas tensões e guerras na África.
Os pragmáticos, que desconhecem a complexidade, querem ser práticos, ignoram a teoria ou repetem apenas um único autor, a ilusão de uma teoria “universal”, o que precisamos afirma Morin e Viveret: “o presente, o real não é aquilo que parece estável … é preciso estar aberto para o incerto, para o inesperado.” (p. 25).
Mas indagam os autores: “qual seria então, a boa notícia? Uma conscientização da amplitude, da complexidade, dando conta de um novo começo. Estamos em um período de crise planetária e não sabemos o que sairá disso; aquilo que der conta da possibilidade de transcender esta crise será uma boa notícia.” (p. 27).
Viveret escreve no capítulo “O que faremos de nossas vidas”, afirmando que devemos sair positivamente preservando o melhor”, mas paradoxalmente “mantendo a lucidez de que nelas existe o pior” (p. 44), parece que não dá uma solução definitiva, mas podemos reencontrar o melhor das “sociedades e civilizações tradicionais”, sendo preciso conhecer estas civilizações.
Saliente o autor que é “preciso reapropriar-se democrática e semanticamente das palavras ´valor´e ´riqueza´cuja raiz reich (em alemão) remete ao poder criador.” (p. 60 e 61).
Relembra também Karl Polanyi, em seu livro “A grande transformação”, “analisa as economias de mercado, que são legítimas, para as sociedades de mercado, que são perigosas, ou seja, o momento em que a mercantilização invade o conjunto do universo social.” (p. 61).
O autor nos dá como remédio sair da dupla infernal “excitação/depressão”, para ir em direção a outra dupla: “intensidade/serenidade” (p. 76).
Finalizam o livro com a frase: “é preciso crescer em humanidade”, este é o desafio atual, para renascermos das cinzas.
Ainda sobre o mal
Não completamos o nosso raciocínio sobre o mal, duas análises ainda podem ser feitas, e se desejamos comentar Kant três análises: Kant, Paul Ricoeur e Gadamer.
Serei breve com Kant (1724-1804), embora seja necessária uma análise mais profunda indo até Hegel, o ponto central de seu pensamento nesta questão, é que o mal quanto à origem é insondável, mas para ele existe o “conceito” (idealista claro) de mal radical, e assim seria a escolha entre uma máxima boa ou má, a partir do qual todas as outras derivam.
Paul Ricoeur afirma que ele (Kant) explica a liberdade pelo mal e o mal pela liberdade, num raciocínio tautológico portanto, Ricoeur vai procurar em fonte originárias, ou seja, o resgate do conceito de mal deve vir fundamentado em fontes originárias, a partir delas encontramos a origem existencial do mal, e assim ela está nos símbolos e nos mitos.
Interessa-nos por questão de colocar a técnica e tecnologia (estudo e desenvolvimento da técnica) em questão, analisar os passos originários antropológicos, por isso a questão que os grupos nômades de 200 mil anos atrás de homo sapiens fazem migração e incursões em novos territórios em grupos é significado, porque revela intensão de expansão e de “ocupação”.
De forma embrionário este raciocínio está escrito também em Paul Ricouer, o autor fala da influência em seu pensamento de Jean Nabert da frase lapidar de Spinoza “desejo de ser e esforço para existir”, e que exerceu influência decisiva no pensamento de Ricoeur (RICOEUR, 1995, p. 23)
Ricoeur chama de “pequena ética” sua visão do mal como aquela que o sujeito se descobre envolvido, está com um mal-ser, um mal-substância, um mal-fazer que resulta do uso de modo equivocado de sua liberdade, ainda há nele um resto de maniqueísmo.
Só daí que ele vai para o mal simbólico (nome de sua obra principal no tema), num caminho do simbólico ao mitológico, e daí para os textos, implica no conceito de mal ligado a cultura.
Ainda que não sejam conclusivos, são raciocínios importantes para se entender o que a cultura contemporânea chama de “mal”.
RICOEUR, P. Da Metafísica á Moral. Trad.: Sílvia Menezes. Lisboa – Portugal: Instituto Piaget, 1995.
Diálogos e criatividades
David Bohm é um dos raros autores a abordar com profundidade a questão da criatividade, e seu texto começa com um discurso absolutamente novo, aos menos para quem percorrer os caminhos da dialogia e da hermenêutica como eu, discordando da ideia que diálogo é dois logos, afirma o autor:
“um significado mais profundo para ela [a palavra diálogo] logos significa “a palavra” ou melhor “o significado da palavra”. E dia significa “através de”– não significando dois ou duplo -. Um diálogo pode se dar com qualquer número de pessoas, não apenas entre duas. Até mesmo uma pessoa sozinha, pode ter um sentido de diálogo consigo mesma, se o espírito do diálogo estiver presente.”
Dirá mais ainda no prefácio: “E o significado compartilhado assim criado, é a “cola” ou o “cimento” que mantêm as pessoas e a sociedade unidas”, é realmente interessante uma vez que rompe com o sentido quase inerente a palavra que é um “logos dual”, uma não abertura.
Quase que como uma conclusão, coloca em questão o inverso que seria a discussão:“Contraste isto com a palavra “discussão”, que tem a mesma raiz de percussão e concussão. Elas têm um significado de partir as coisas.”, encontro aqui um “diálogo” com a fenomenologia, pois está quer voltar as coisas por elas mesmas, faz sentido, dividimo-las em partes, não só duas mas inúmeras, um grande problema da modernidade: a fragmentação.
Afirma um dos mais profundos dualismos de nosso tempo, aquele entre ciência e religião: “Supõe-se que a ciência seja dedicada a descobrir os fatos e a verdade e que a religião seja dedicada a outro tipo de verdade e ao amor, mas o interesse próprio das pessoas e as pressuposições “assumem o comando” ”, claro não fala unilateralmente, mas de ambas.
Embora muitos afirmem não julgarem as pessoas, afirma o autor o que estamos fazendo: “parece que alguma coisa está acontecendo: parece que os pressupostos e as opiniões funcionam como programa de computador na mente das pessoas. E esses programas assumem o comando contra melhor das intenções. É como se eles produzissem suas próprias intenções “, os que criticam o mundo “lógico” da cibercultura, agem no dia a dia numa lógica como robôs sem criatividade alguma.
Tal como ocorre com a informação que pode ser tácita ou explicita, o autor explica o nosso pensamento cotidiano onde: “Tácito significa algo não falado, algo que não pode ser descrito por palavras – tal como o conhecimento tácito exigido para se andar de bicicleta”, diz-se que não se desaprende a andar de bicicleta, mas e quanto ao pensamento se for um vício ?
Se nós tivermos uma situação de pensamento implícito construída, o autor chama isto de coerente (considero de certa forma relativo), o que teríamos com o passar do tempo seria: “em um grupo que tenha mantido diálogo por um bom tempo, de forma que as pessoas tenham se feito conhecer umas as outras – iremos ter um movimento coerente de pensamento, um movimento coerente de comunicação.”
É só o começo do livro, mas é impossível falar em criatividade sem antes falar de diálogo.
BOHM, David. Sobre criatividade, São Paulo: UNESP, 2011.
O que ler no ano novo
Um dos livros na minha pilha de novas leitura é Sapiens – uma breve história da humanidade, de Yuval Noah Harari, a edição original em inglês é de 2015, mas a edição em português que chega ao Brasil, pela editora de Porto Alegre LP & M, é de 2017 com tradução de Janaína Marcoantonio, só folheie até agora, mas já sinto o peso do livro como desde o capítulo inicial A revolução cognitiva, com o tópico um animal insignificante, até a Revolução Científica, com o primeiro tópico: a descoberta da ignorância.
Já pontuamos em diversos posts sobre a descoberta da Caverna de Chauvet, o livro abre A revolução cognitiva com uma mão humana nesta caverna de 30 mil anos atrás (foto ao lado), uma pintura o primeiro capítulo que já comecei a ler.
Quem quiser fazer um contraponto, um livro clássico (meu irmão me indicou) é o livro de H.G. Wells, ele recua até os primórdios do universo. Publicado em 1922, Uma breve história do mundo é um panorama sobre o planeta e a humanidade, desde o surgimento dos seres vivos, passando pela origem dos povos, das religiões, as grandes navegações, as guerras, a Revolução Industrial até chegar à Primeira Guerra Mundial, o livro é de 1922, e curiosamente também é da LP & M, as versões que se encontram a venda.
Vou para Portugal o ano que vem, ao menos quero ir (sim é a grana), lançado em novembro o livro de Ricardo Araújo Pereira: “Reaccionário com dois cês”, fala da onda conservadora em Portugal, mas acredito que deva falar também da Europa e do mundo todo, seu livro “A doença, o sofrimento e a morte entram num Bar” foi um pleno sucesso com 40 mil exemplares vendidos, este novo não deverá ser diferente.
Um livro que já li e vou reler, é a “Sociedade do Cansaço” do coreano-alemão Byung-Chul Han, num prisma totalmente novo ele traça o perfil de uma sociedade que não consegue por mais bens que produza levar o ser humano a uma maior felicidade e fala de uma ausência de sentido da vida, o final que a crítica não gosto é muito bom, vale a pena ler.
Falando em felicidade de Augusto Cury, mas desta vez com vários autores, o homem mais feliz da História – vários autores, não sei se ele vai comentar outros autores ou se vai inclui-los em sua reflexão, mas isto pouco importa, parece que o já consagrado autor chegou a maturidade na busca de um discurso coletivo, já está entre os mais vendidos no Brasil.
Entre estes quatro não há uma sequência, mas diria assim para os mais preocupados com a política, e eles tem razão, começaria pelo português Ricardo Araújo Pereira, e terminaria com Augusto Cury, para os preguiçosos terminaria com o Sapiens – uma breve história da humanidade, porque ele é denso e grande também, tem 448 páginas sem contar o índice.
Os preguiçosos podem ainda começar pelo livro do Byung-Chul que são apenas 128 páginas em formato pequeno (este que dá quase meio A4).
Claro que existem muitas outras leituras, mas se ler 4 livros por ano, no fim da vida será um pensador, vivendo em média 70 anos e descontados os 14 da adolescência, ainda que possamos ler livros infantis e para jovens, 56×4 = 224 livros, com certeza será um intelectual, tenham certeza que muitos doutores não leram isto a vida toda.