Arquivo para março, 2018
A verdadeira crise e a dor
A verdadeira crise da sociedade contemporânea reside na ideia que é possível abolir a dor, o contraditório e quem sabe até a morte, por isso aboliu não só a ideia de um Deus Uno, mas qualquer possibilidade de uma cosmogonia que dê vazão ao processo vida-morte-eternidade.
Petr Sloterdijk dá a este fenômeno o nome que considero mais correto “imunologia”, a ideia que podemos ser imunes a qualquer “contágio” e alguns levam isto ao “toc” e ao vício, para ser correto com o autor dou sua definição: “Sistemas imunológicos são expectativas de danificação e violação, somatizados ou institucionalizados, que se baseiam na distinção entre o próprio e o estranho” (Sloterdijk, 2009, p. 709)
É a mais correta, a meu ver, pois toda esta busca por perfeição, imunidades, excesso de moralismo (é diferente da moral que é um ascese justa e verdadeira), fazem o homem cair num vazio sem sentido, querem então culpar os próprios artefatos que constroem pela sua infelicidade, basta uma simples análise e vemos que é outra insanidade: coisas são aquilo que nós humanos emprestamos a ela, portanto a bola da vez volta para o homem e para o Ser.
Dois amigos agnósticos apontaram para mim que creio que há um mundo sobrenatural além do natural, e que Jesus ao se tornar pão e vinho nos explica o que são os artefatos humanos, ao menos estes, bem estes dois amigos apontaram para a cruz e disseram: sem sentido.
Certo o que tem sentido é ignorar a tragédia, o homem diante da morte, “que com a vida engana” dizia Goethe, pois bem: o que é a dor, milhares de medicinas alternativas conseguiram extinguir a dor? alguém já conseguiu ressurgir dos mortos ? as respostas são evidentes.
O uso de drogas, o alcoolismo e a cegueira política/religiosa/social não são outra coisa.
Mas não é evidente, um homem-Deus que foi Jesus, diante da morte e da cruz gritar: “Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonastes?” mais paradoxal ainda pensar que ele que era Deus indagava por Deus, fato insólito em sua vida pois chamara Deus sempre de Pai.
Talvez pudesse até chamar esta crise de Jesus Abandonado, uma sociedade que quer ir a frente, mas vive retornando ao passado, a ponto que quer reviver A riqueza das nações.
Ignorarmos a tragédia no sentido grego, até Nietzsche reclamou disto, é ignorar sua saída.
SLOTERDIJK, P. Du musst Dein Leben ändern. Über Antropotechnik. Frankfurt, Suhrkamp, 2009.
A natureza e o homem: transubstanciação
Toda crise ocorre tendo um vínculo profundo da relação do homem com a natureza, e em função desta mudança, mudam as relações sociais entre os homens.
Foi assim no início com o plantio e a domesticação dos animais, que tornou possível ao homem nómade tornar-se mais sedentário, mas o tempo actual, o da modernidade, o homem perdeu a capacidade de identificar o que o liga ao animal, ao que é vivo, à natureza, paradoxalmente justamente quando a ciência e “filosofia mais falaram de “dominar a natureza”
Já a crise, no limite actual, +e incapacidade de percepção do que na natureza se diferencia dele, problemas ecológicos, de transgénicos e de bioengenharia.
O homem sendo um pedaço da natureza, e em contrapartida, a natureza produz a hominização, Teilhard Chardin afirmou que o homem é a complexificação da natureza, Edgar Morin (2005) afirma que o homem guia e segue a natureza.
A questão histórica nos leva a refletir sobre o tipo de relação que estabelecemos com a natureza, incluindo a nossa própria natureza, é o que somos como substância do universo, e o enigma eucarístico: porque Deus se fez substância: pão e vinho, nesta data cristã que relembra este último e maior milagre de Jesus.
Podemos ver nesta realidade física (a substância) a paisagem deve ser entendida como realidade física estendida como construção social? A resposta lógica é sim.
Mas num mundo constante transformação, dos costumes sociais, de artefactos e de locais indeterminados, a paisagem entre natureza e sociedade evoluiu; ela tanto já é simultaneamente natureza-objeto como natureza-sujeito, esta dicotomia evolui ?
Talvez estejamos mais pertos de entender o milagre da transubstanciação, Deus se fez artefatos do homem, dois artefatos universais: pão comida e vinho bebida.
MORIN, E. O método II: a vida da vida. Porto Alegre: Sulina, 2005.
Marcha pelas nossas vidas
O protesto que ocorreu neste sábado pelo controle das armas de fogo nos Estados Unidos, teve participação de John Lennon e muitos cantores, mas uma participação especial chamou a atenção: a neta de Martin Luther King.
Uma criança de apenas nove anos subiu ao palco para fazer um discurso semelhante ao daquele que foi feito pelo seu avô de mãos dados com Jaclyn Corin, estudante da escola de Parkland e uma das organizadoras do evento, numa referência marcha contra o racismo em Washington em 1963, disse:
“O meu nome é Yolanda Renee King, sou neta de Martin Luther King e Coretta Scott King. O meu avô tinha um sonho, de que os seus quatro filhos não fossem julgados pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo do seu caráter. Eu tenho um sonho de que já chega, e de que este deve ser um mundo sem armas. Ponto.”
Os jovens também foram enfáticos em dizer que os adultos falharam, não deram aos jovens e crianças um mundo mais seguro e mais justo, o papa num discurso provocativo, também afirmou em Roma: “façam barulho”, e citou a resposta de Jesus Cristo aos fariseus de ontem e de sempre: “Se eles calarem, gritarão as pedras”.
O site March for Lives mostra adesões em todo mundo: Irlanda, Escócia e muitos outros países, a onda promete invadir todo o planeta até que o uso de todas armas seja limitado.
Na década de 60 foi um enfrentamento forte ao governo dos Estados Unidos por sua escalada armamentista no oriente, agora promete ser uma luta contra o armamentismo em todo mundo, ventos fortes soprando.
Aldeias Globais e Metrópoles Aldeias
Minha ainda curta experiência portuguesa já trás uma reflexão nova, uma grande cidade pode ser uma aldeia onde há algum anonimato apenas por conta de um ocidental individualismo, e há aldeias já globais, como queria McLuhan, com cidadãos globais.
A experiência de um grupo de educação a distância de Porto de Mós reflete um pouco isto, pensei encontrar alunos dispersos com olhares distantes como é quase sempre comum em São Paulo, mas encontrei alunos engajados, críticos e preocupados com a própria formação, tivemos que encerrar porque o prédio ia fechar, e nós que tínhamos ido de Lisboa precisávamos pegar o ônibus, quase perdemos.
Curioso também porque Portugal tem aldeias genuínas, não são as cidades pequenas como Porto de Mós, mas aldeias mesmo, onde as pessoas vivem de pequenas fazendas (muitas vinícolas aqui), em torno de uma vida comum mais próxima, mas seus jovens aceitam pacificamente e se intitulam como uma das alunas de Porto de Mós: “eu sou da aldeia”.
A reflexão vai então para o que perderam as cidades grandes, se tivesse que resumir diria em uma palavra relembrando Edgar Morin: “conviviabilidade”, mas penso que há algo mais profundo: a falta de sonhos, a excessiva rotulação, a preocupação equivocada com os meios de comunicação (eles ajudam as aldeias serem globais), mais principalmente uma falta de “vida vivida”.
O fato que encontra-se em Portugal, especialmente em Lisboa, uma vida de bares e cafés onde se realiza a “conviviabilidade” e uma vida de aldeias onde se está integrada a vida do mundo pelos modernos meios de comunicação, realiza uma nova fase de sociabilidade onde os valores humanos podem ser realmente vividos, mais do que pensam os teóricos da “relacionalidade” que não “convivem”.
Ainda é possível sonhar, enamorar-se, respeitar valores de ética e solidariedade, mas principalmente de vive-los, o que é essencial.
Carona para Deus e corrupção aqui não
Conforme prometido (post) comprei o livro de Ricardo Araújo Pereira, o português que anda fazendo sucesso, agora com o Reaccionário com dois cês, pulei e fui directo para duas histórias do índice: Quando Deus entrou no meu carro (pg. 76) e Corrupção não entra aqui (pg. 31).
Não gosto de leituras transversais, mas o livro de Ricardo Araújo é uma série de contos que podiam muito bem caber num blog, mas ele não ganharia dinheiro nenhum com isto, já estou imitando ele que faz ironia e piada com tudo, mas com muita criatividade.
Estes dois contos me chamaram a atenção pela proximidade com o Brasil, o primeiro conta que estavam num engarrafamento e viu Deus acenando para táxis quase lotados (deve ser de quanto era mais jovem) e pediu para os pais que não eram “crentes” darem carona para Deus.
Para um jovem torcedor do Benfica, deus era Eusébio e o conto vai por ai afora, ele falando da emoção que guardou por muitos anos do carro do pai que depois comprou e depois fez os filhos sentarem no banco que havia sentado ”deus”, quer dizer Eusébio, celebre jogador da selecção portuguesa dos anos 60, a semelhança com o Brasil dispensa comentários.
O segundo conto, pois li nesta ordem, conta um caso de corrupção que envolveu a Alemanha, ele explicando que o executivo deste caso foi punido na Alemanha, apesar do corruptor aqui ter se negado a entrar na história, seriam a compra de dois submarinos, e diz ironicamente, que “em Portugal as pessoas não tem a decência de participar na dança da corrupção”, e novamente o paralelo com o Brasil é evidente, inclusive no caso da “eficácia alemã”, pensei que só o brasil pensava no 7 x 1, existe a versão portuguesa disto.
Não sei quanta coisa mais herdamos deles, mas que há uma semelhança paternal, sem dúvida há, está tudo com dois cês porque começo a aceitar a paternidade portuguesa, expliquei aos portugueses a minha rejeição, mas devia ter ficado quieto e aceitado o paternal afecto.
Soltem Barrabás
Lideres solidários em todo mundo são presos ou podem ser presos em qualquer momento, se alguma coincidência existe com a história de algum pais não é mero acaso, mas vejo que Portugal conseguiu algo novo que é um presidente de Centro-Direita e um governo que é uma união das esquerdas.
Conversando com os novos amigos aqui em Lisboa, primeiro descubro uma alma de poetas ainda viva, um povo que ainda sonha e que tem uma preocupação séria com o Brasil.
Será que teríamos algum ponto de diálogo no Brasil, encontra-lo será difícil, mas não impossível, é preciso homens capazes disto e com moral para isto.
Estamos caminhando para a semana santa em que o martírio de um Deus é relembrado, mas será que foi suficientemente para aprendermos alguma lição, ao menos acreditar nesta lição?
Creio que ainda não lê-se na passagem bíblica de Marcos 15,10-11: “Ele bem sabia que os sumos sacerdotes haviam entregado Jesus por inveja. Porém, os sumos sacerdotes instigaram a multidão para que Pilatos lhes soltasse Barrabás.”
Lá há uma contradição entre a libertação de um povo e a da vida eterna, aqui não.
Nossa situação é parecida ou semelhante, creio que não precisamos soltar Jesus e amá-lo na medida que nos amou (amai-vos uns aos outros COMO eu vos amei) e também amar a sofrida alma brasileira que pede um líder como Barrabás, soltá-lo é também tirá-lo de seu abandono, é soltar um grito como o de Jesus:
“Eloi, Eloi, lamá sabactâni? Que quer dizer:
— “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Marcos 15,34)
A imagem acima foi encontrada em uma mesa de madeira pelo jovem Simon Chorley, de 35 anos, que a comprou numa loja de antiguidades.
Por uma filosofia do Design
Vilém Flusser foi um tcheco naturalizado brasileiro, falecido em 1991, que atuou por cerca de 20 anos como professor de filosofia, jornalista, conferencista e escritor no Brasil e depois de volta no seu país de nascimento a Republica Tcheca.
Seus livros estão sendo republicados no Brasil, incluindo todos os seus escritos, e comecei relendo O mundo Codificado – por uma filosofia do Design.
Sua obra vai além das influências que recebeu de Roland Barthes, Marshall McLuhan, pois sua filosofia é própria com elementos de fenomenologia e existencialismo.
Na introdução do livro, feita por Rafael Cardoso, é destacada sua mudança de pensamento sobre as modernas mídias que apenas viu nascer: “ao contrário da maioria dos filósofos modernos, que costumam concentrar suas análises na linguagem verbal ou nos códigos matemáticos, Flusser dedicou boa parcela de seu gigantesco poder de reflexão às imagens e aos artefatos, elaborando as bases de uma legítima filosofia do design e da comunicação.” (FLUSSER, 2017, p. 10)
Lançou perguntas profundas sobre o mundo virtual: “Se uma árvore cai no espaço virtual, e não há ninguém on-line, será que ela gera uma mensagem de aviso?” retomando a famosa questão da árvore que cai na floresta, e também “Qual a diferença entre o material e o imaterial? Podemos trocar coisas por não coisas?” (idem) e conclui com uma pergunta ainda mais fundamental: “Que destino devemos reservar para os detritos gerados por nossa frenética atividade de transformação da natureza em cultura?” (FLUSSER, 2017, p. 15)
Aproxima-se do paradigma da informação, base essencial para o conhecimento e a educação, “o fim da história parecer ser o fim de nossa capacidade coletiva de lutar contra a entropia, contra a desagregação do sentido e da forma. Se a base daquilo que entendemos por cultura reside na ação de in + formar, então não é paradoxal que o excesso de informação nos conduza à desagregação do sentido ? “ (idem)
A importância do “conceito de virtualidade talvez seja a melhor e mais elegante prova do quanto Flusser tinha razão.” (idem), e não se pode mais fugir a esta questão, o uso em diversas formas de informação, comunicação e das artes exige a abertura desta “caixa preta”, nome de um ensaio publicado no ano de 1985.
Flusser ao contrário de apocalípticos, admite que “ao menos em tese”, o que deveria transformar-se em bem estar, ““humano torna-se escravo das forças de uma outra “natureza” que ajudou a gerar artificialmente”.
Aspectos da virtualidade e de um mundo codificado são desenvolvidos de maneira única pelo autor e contribuem para um debate mais sereno sobre as novas mídias.
FLUSSER, V. O mundo codificado: por uma filosofia do design. São Paulo: Ubu editora, 2017.
Portugal atual
Em sua quarta década de democracia, Portugal tem um dos governos mais populares Marcelo Rebelo de Souza, professor catedrático em Direito na Universidade de Lisboa, grande comunicador que ficou popular por seus comentários políticos no canal televisivo TVI, onde era líder de audiência.
Rebelo teve na eleição de 2015, com 52% dos votos vencendo em todos os 18 distritos continentais e nas duas regiões de administração autônoma.
Embora líder do Partido Social Democrata (PSD) de inclinação conservadora, ele é de uma ala mais a esquerda de seu partido, sendo preocupado com os quase um terço da população pobre, um desastre em um país europeu.
É importante destacar que em Portugal o voto não é obrigatório e dos quase 10 milhões de eleitores, votaram apenas 4,7 milhões de eleitores, ou seja quase a metade.
O regime político atual em Portugal é conhecido como uma república democrática semipresidencialista com quatro órgãos de soberania: o presidente da república, a assembleia da república, o governo e os tribunais.
Como o governo de centro-direita não tinha maioria para formar o governo, um grande bloco de esquerda foi formado e assumiu o governo, chamado pelos portugueses de “gerigonça”, aos poucos vão aparecendo resultados otimistas.
Foi formado um governo com Antonio Costa a frente, a promessa diante da grave crise financeira foi a de recuperar o déficit social português e acelerar o crescimento, sem comprometer o equilíbrio econômico-financeiro,
A defesa da saúde pública, com a contratação de mais 1.100 médicos, 170 técnicos de laboratório e 1.900 enfermeiros; o crescimento de 6,9%, nos gastos na Educação, com o acréscimo de mais de 3.000 professores à rede de escolas públicas; a redução do desemprego para 9% contra 12,7% em 2015.
A receita para o Brasil não será a mesma, lá com dificuldades consegue dialogar, aqui seria impensável um presidente de centro-esquerda com um governo (aqui uma coalisão de ministérios) de esquerda.
Portugal revisto por um brasileiro
Devíamos estudar mais Portugal devido sua influência na cultura brasileira, mas sabemos os fatos que influenciaram o Brasil: sua dependência da Inglaterra, a busca de “um caminho para as índias”, embora a história possa ser bem diferente e a nossa dependência/independência de Portugal feito por D. Pedro I.
O pouco que sei, Portugal foi marcada pela presença dos Romanos ao longo de mais de 600 anos finalmente pelos Mouros durante cerca de 800 anos, história compartilhada com a Espanha ao longo destes mais de mil anos.
Portugal foi reconhecido como um reino independente em 1143 pelo Rei Afonso I e, com a ajuda dos militares cristãos e foi feito o Tratado de Zamora, celebrado entre D. Afonso VII de Leão e Castela (a Espanha de então) e D. Afonso Henriques que era primo de Afonso VII de Leão e Castela, no mapa de 1150 era ainda menor que hoje (foto).
O nome Portugal veio do condado Portucalense, nascido entre os rios Minho e Douro, quem conhece isto já sabe bastante,
A estabilização as fronteiras em 1297 tornou Portugal o país europeu com as fronteiras mais antigas, também formou nos anos posteriores o primeiro Império global da história, com posses na África, na América do Sul, na Ásia e Oceania.
Uma crise de sucessão em 1580, resultou uma União Ibérica com a Espanha devido principalmente a ofensiva holandesa (inclusive no Brasil), período em que o reino perdeu muito de seu status e riqueza, somente volta a ser independente em 1640 com a dinástica de Bragança, muito conhecida dos brasileiros, mas foi o período em que perdeu sua maior colônia, o Brasil.
Novamente depois deste período deixamos de conhecer a história de Portugal, por motivos óbvios, mas em 1820 os portugueses aprovaram sua primeira constituição,
Em 1926 Portugal teve um golpe de estado iniciando uma ditadura, a partir de 1961 iniciou uma série de guerras coloniais que terminaram em 1974 (revolução dos cravos), quando um governo militar terminou o período salazarista, em 1975 todas posses na África tornaram-se independentes. O ditador faleceu em 1970, mas Marcelo Caetano continuou seu regime até 1974.
A constituição e 1976 definiu Portugal como uma república semipresidencialista, e em 1986 começou a modernização e a inserção do país no espaço europeu com a inserção na Comunidade Econômica Europeia (CEE).
A história recente de Portugal, sua grave crise e a aliança que governa hoje, já falamos em outro post da “gerigonça” veremos depois.
Antropologia e ontologia
Esta é uma relação escondida em muitos textos do pensamento contemporâneo, ora nos debruçamos sobre a história deste Ser-no-mundo (já usamos outra tradução como pre-sença), ora mergulhamos no lado “oculto” do Ser.
Algumas leituras de Paul Ricoeur são importantes para aclarar esta questão, a leitura por exemplo de Tempo e Narrativa, encontramos a passagem: contudo, reconhece uma dimensão antropológica das categorias ontológico-existenciais de Ser e Tempo. Segundo afirma, a análise de Heidegger precisa “ter uma certa consistência no plano de uma antropologia filosófica para exercer a função de abertura ontológica que lhe é assinalada.” (Ricoeur, 1994, p. 97).
Claro o aspecto essencial da Obra de Heidegger é a questão do Ser, para ele esquecida pela metafísica tradicional pelo fato da ontologia ter-se convertido em uma ontologia da substância, aquela que vê tudo como a primazia da “coisa”.
Mas sua obra não está deslocada ou esquecida da dimensão antropológica, esta consistência é construída conforme explica Ricoeur, por sua analítica existencial “está antes de toda psicologia, antropologia e, sobretudo, biologia.” (Heidegger, 1995, p. 81)1.
Mas não se trata de uma abertura de um a priori ao modo idealista, não é uma simples “construção apriorístíca” (Heidegger, 1995, p. 87), isto é, desvinculada de qualquer “empiria” ou aspecto prático, que a desvinculada de sua objetividade.
Assim com um método correto, toda a pesquisa científica e a pesquisa ontológica podem até convergir, esta última tendendo sempre para uma maior “purificação” e transparência do que se descobriu onticamente, fazendo aquilo que Husserl chamou de “retornar a coisa em si” que não é senão abandonar a especulação e entrar no aspecto da relação com o conhecimento, que é dar ao mundo caráter inteligível.
A investigação que segue uma “fixação dos setores dos objetos”, e só o faz a partir da abertura originária ao modo de ser dos entes pela qual a experiência sensória do mundo é responsável, mas nenhuma pesquisa responsável deixará de apresentar questões que são “subjetivas” dos dados empíricos, por isso inseparável deles.
Se o questionamento científico aborda uma determinada região dos entes, ele entra numa região seja além do horizonte da experiência original: o horizonte da relação fundamental do ente investigado e com o mundo questionado de sua relação.
No plano antropológico isto é essencial, coletar dados de uma cultura, sem penetrar no “ser” dela é fazer uma abstração objetual, desconhecer aspectos subjetivos dela.
Heidegger, M. Ser e Tempo (parte I). Petrópolis: Vozes, 1995.
Ricoeur, P. Tempo e Narrativa (tomo I). São Paulo: Papirus, 1994.