Vida interior e filosofia
Quando era criança a quaresma era um momento solene de abaixar o som, moderar o apetite, fazer silêncio, a gente ficava envolto neste clima e, religião a parte, era um momento de vida interior.
Vida interior é um tema importante, até o fundamentalista político Leonardo Boff concorda (veja seu artigo), talvez em momento de tanta turbulência não custe relembrar a importância desta vida.
Li no livro Paul Ricoeur: “A memória, a história, o esquecimento” (2007) no tópico “Memória Pessoal, Memória Coletiva” importante para nossos dias, o capítulo I. A tradição do Olhar interior, para muitos pouco teria a ver com memória coletiva, mas esta passa pelo pessoal.
Ricoeur faz uma releitura de Santo Agostinho, onde ele afirma: “Foi dito com Aristóteles, diz-se de novo mais enfaticamente com Santo Agostinho, a memória é passado, e esse passado é o de minhas impressões; neste sentido, esse passado é meu passado” (Ricoeur, 2007, pg. 107).
Somos desmemoriados, alguns culpam a internet, mas é falta de análise histórica, este fenômeno do homem contemporâneo é secular e anterior a internet, é fruto da falta de narrativa, dentro ou fora da cultura midiática, falta de um espaço para o “silêncio”, a escuta interior do “ser”.
Sua relação com a vida coletiva é assim expressa por Ricoeur, depois de dizer que o criador desta vida interior no ocidente foi Agostinho de Hipona, afirma: “a novidade dessa descoberta- criação é realçada pelo contraste com a problemática grega, e depois latina, do indivíduo e da polis, que primeiro ocupou o lugar e será progressivamente partilhado entre a filosofia política e a dialética da memória desdobrada, considerada aqui” (Ricoeur, 2007, pg. 108).
Mas Agostinho teve as limitações do seu tempo, conforme Ricoeur: “Contudo, se Agostinho conhece o homem interior, ele não conhece a equação entre a identidade, o si e a memória” (Ricoeur, 2007, pg. 108) e aqui os modernos é que disseram algo.
Ricoeur fará depois a relação desta interioridade com a modernidade, passando por Kant e Husserl, mas se detendo em dois pilares singulares, o de John Locke, relacionado ao empirismo e à dicotomia natureza x cultura, e Husserl, pai da fenomenologia moderna, mas que na questão da “interioridade” trata-a no livro Lições para uma fenomenologia da consciência íntima do tempo, estes veremos depois.
O que podemos tirar de Agostinho, diz Ricoeur: “Pode-se dizer dele que inventou a interioridade sobre o fundo da experiência cristã de conversão” (Ricoeur, 2007, pg. 108), que prefiro traduzir em metanóia, no sentido de mudança de mentalidade e não apenas arrependimento.