Posts Tagged ‘Deus’
A má religião e as virtudes
A filosofia contemporânea oscila entre definições de ética e de moral, a moral vista como uma redução a moral dos costumes, não há nela uma profundidade de virtudes e verdadeira religiosidade.
As três virtudes teologais se perderam: fé, esperança e caridade, que devem ser “infundidas” por Deus, são confundidas com religiosidade de adivinhos e bens materiais, esperança torna-se uma espécie de pensamento positivo e sentimentos comportamentais animados por algum “coach” e caridade, alguma bondade superficial como dó, piedade e socorro social.
As chamadas virtudes cardeais são a prudência, atropelada por um mundo movido a impulsos, a justiça que tornou-se pura manipulação política, a fortaleza confundida com força física ou política e a temperança presente em raríssimas situações e pessoas, vivemos tempos da ira.
Uma rara filósofa contemporânea a tratar do tema foi Philippa Foot, falecida em 2010 com 90 anos, apesar do nome era britânica e é responsável pelo ressurgimento da “ética da virtude”.
Foot não abandonou os clássicos, mas os releu para tempos modernos, ela entendia que a moralidade deve ser entendida em termos de virtudes de caráter, ao invés de apenas entender como regras e consequências de ações.
Entre seus trabalhos ela modernizou a teoria ética de Aristóteles (Ética a Nicomaco) numa visão contemporânea do mundo, mostrando que ela pode competir com teorias populares como as éticas deontológicas e a ética utilitarista (aquela voltada aos bens, por exemplo, presente nas religiões).
Ela elaborou e discutiu o chamado dilema do Bonde (Foot, 1968, ver figura), também abordado por outros filósofos contemporânea como o badalado John Rahls, também extensivamente analisado por Judith Jarvis Thomson e mais atualmente por Peter Unger.
O dilema é simples o manobrista deve analisar o “mal-menor” onde numa linha atropelaria uma pessoa e noutra várias delas, num bonde que está descontrolado e não pode parar.
A variante de esperança é uma versão do dilema considerado por Daniel Zubiria, onde há 50% de chance do trem descarrilado salvar todas as pessoas e não optar por nenhuma das duas vias, uma argumento parecido é o de Jonah Barnaby.
O problema é interessante porque recai nas virtudes teologais necessariamente.
Sobre a fé há um único argumento possível: a oração, ela é inalienável do pensamento religioso, não se trata de exercício de retórica, de manobras lógicas e emocionais, ela deve se fundamentar exclusivamente na relação com Deus, assim é dispensável a relação utilitarista ou deontológica já que ela é teo-ontológica: “a casa de meu Pai é casa de oração” (Lc 19,46).
Philippa Foot, The Problem of Abortion and the Doctrine of the Double Effect in Virtues and Vices (Oxford: Basil Blackwell, 1978.
A diferença do Amor divino
É como no dia-a-dia pela secularização ou por descrença colocar o Amor em um patamar meramente humano, a leitura que Hannah Arendt faz de Santo Agostinho em sua tese de doutorado, permanece entre estas duas interpretações o Amor humano e o Divino.
Para analisar isto, Arendt qualquer interpreta a obra de Agostinho governada por três princípios que aparecem sem aparente contradição, ele aumentou sua rigidez dogmática de Agostinho na medida em que o cristianismo se insere em seu pensamento, esta consiste de sua da passagem do pensamento pré-teológico, filosófico, para o pensamento teológico, conforme a autora.
Assim a primeira parte da tese da autora, intitulada o “Amor como desejo: o futuro antecipado”, ela aborda o amor dentro de uma perspectiva filosófica de continuidade do pensamento helênico, em que o amor é visto como uma disposição sempre movida pela falta, por algo que não se possui, mas que se espera ter, como meio de alcançar a felicidade, assim o desejo é algo ainda não alcançado enquanto o Amor é o desejo obtido, e isto é filosófico.
Estes dois tipos de Amor recebem em Agostinho dois nomes: a caritas e a cupiditas, diferem no amor pelo objeto que amam, “porém, tanto o amor certo quanto o errado (caritas e cupiditas) possuem isto em comum – ânsia desejosa, quer dizer, appetitus”, escreveu a autora.
Caritas é o amor puro, verdadeiro, porque deseja a Deus, a eternidade e o futuro absoluto, enquanto a cupiditas ama o mundo, as coisas do mundo, aqui é pré-teológico, porque a caridade não é apenas um amor passageiro, ou desejo de um bem passageiro, mas do eterno.
Seja religioso ou não, estamos entre o desejo e a posse, depois que obtemos o objeto desejado em geral, e usufruindo do prazer desta posso a cupiditas passa e ficará algo eterno se nela houver a caritas, isto é um Amor Eterno, que dá uma posse eterna e então não passa.
Assim o homem que tem esta busca, deve se recolher em seu interior, e dentro de si, se isolando do mundo, penetra na “quaestio” agostiniana, o fio condutor que Arendt persegue: “pois quanto mais ele se retirava para dentro de si e recolhia a si mesmo na dispersão e da distração do mundo, mais ele se tornava uma ´uma questão para si mesmo´”, escreveu a autora.
Toda filosofia tem uma questão básica, e a de Agostinho se torna teológica: “O que eu amo, quando amo o meu Deus?” (Confissões X, 7, 11 apud Arendt p. 25), ainda que seja “no mundo”.
Assim a segunda parte de sua tese recebe o nome “e “Criatura e Criador: o passado rememorado”, no livro X de Confissões. “A memória, então, abre o caminho para um passado transmundano como a fonte original da própria noção de vida feliz” escreveu a autora sobre Agostinho.
Ao se propor ao relacionamento com Criador, o homem não se perde, e sim se encontra e isto é diferente de todo tipo de apego mundano, o deus do dinheiro, do consumo ou do desejo.
ARENDT, H. O conceito de amor em santo Agostinho. Tradução de Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
A alegria, o sacrifício e a dor
A dor faz parte da realidade humana, e assim nenhuma alegria é perene se não entende o sacrifício, na etimologia da palavra “ofício sagrado”, não é exatamente a dor, conforme descreve Byung-Chul Han em A sociedade paliativa: a dor hoje, a dor sem sentido, é a “aflição corporal” a dor se coisificou, perdeu um sentido ontológico e de certa forma “escatológico”, “a dor sem sentido é possível apenas em uma vida nua esvaziada de sentido, que não narra mais.” (Han, 2021, p. 46).
Han cita autores da literatura como Paul Valéry, para quem em seu livro o personagem Monsieur Teste “Se cala em vista da dor. A dor lhe rouba a fala” (Han, 2021, p. 43), e também Freud, para quem “a dor é um sintoma que indica um bloqueio na história de uma pessoa. O paciente, por causa de seu bloqueio, não está em condições de avançar na história” (p. 45).
É com a mística cristão Teresa d´Ávila, como uma espécie de contrafigura da dor, “nela a dor é extremamente eloquente. Com a dor começa a narrativa. A narrativa cristã verbaliza a dor e transforma também o corpo da mística em um palco … aprofunda a relação com Deus … produz intimidade, uma intensidade” (p. 44), para quem não sabe foi com sua leitura que a filósofa Edith Stein, discípula de Husserl como Heidegger, se converte ao ler Teresa cristianismo, não por acaso receberá o nome novo Teresa Benedita da Cruz.
O sacrifício é a arte de viver de modo alegre a dor, claro é equívoco pensar e desejar a dor, se ela vem porém, e algum dia virá, ela pode ressignificar como “ofício sagrado” oferecido, Byung-Chul Han escreveu sobre ele: “O sofrimento não é um sintoma, nem é um diagnóstico, mas uma experiência humana muito complexa”, só penetraram nele grandes místicos.
No evangelho de Marcos (Mc 9,31), Jesus choca os discípulos ensinando em segredo, E dizia-lhes: “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, três dias após sua morte, ele ressuscitará”, e depois nega toda forma de poder humano: “quer quiser ser o primeiro seja o servo de todos” e por último ensina a simplicidade das crianças: “quem acolher uma destas crianças é a mim que acolhe”, é diferente do que pensam hoje.
Compreender a dor, a lógica invertida de poder e a simplicidade e inocência das crianças é uma lógica distante numa civilização em crise, hedonista, autoritária e cheia de malícia.
HAN, BYUNG-CHUL. A Sociedade paliativa: a dor hoje. Trad. Lucas Machado, Petrópolis: ed. Vozes, 2021.
O céu pode falar
Sloterdijk supõe o tempo que através dos tempos os homens “fizeram deuses falarem”, assim diz também da “fala” de Jesus, e diz com propriedade histórica: “Por fim, esses que foram invocados em demasia também se deram a conhecer por meio da encarnação pessoal: algumas vezes tomaram a liberdade de recorrer a corpos aparentes que iam e vinham conforme lhes aprazia.” (pg. 22), é verdade e isto significa: Não usar o nome de Deus em vão.
Mas o raciocínio histórico ajuda melhor na outra alternativa do uso de “Deus”: “ … ou se condensaram “na plenitude do tempo”, em um Filho do Homem, em um Messias salvador. Depois que Ciro II, o rei dos persas famoso por sua tolerância religiosa, permitiu aos judeus que tinham sido levados em cativeiro para a Babilônia o retorno à Palestina no ano de 539 a.C., pondo fim a um exílio de quase sessenta anos … a elite espiritual dos judeus ficou muito mais receptiva a boas-novas de cunho messiânico — o Segundo Isaías deu o tom para isso.” (pg. 22).
Diz corretamente ao chamar “panegírico” (culto a um deus abstrato) de Ciro, ele não se converteu nem mesmo abandonou suas crenças em outros deuses, como “instrumento de Deus” ele libertou um povo, lembra o autor também Marcião que cultuava “o deus desconhecido” que vai fazer Paulo chamar os gregos de um povo religioso, porém afirma que o Deus conhecido é o que o apóstolo dos gentios (Paulo) o proclama na figura de Jesus, o Redentor.
A questão da redenção apontada por Sloterdijk do ponto de vista histórico, tem seu sentido pois são momentos que “céu se abriu”, mas o vê como um espetáculo onde “O estágio mais antigo de evidência de fontes sensíveis e suprassensíveis se mostra em forma de comoção dos participantes gerada por um “espetáculo”, um rito solene, uma hecatombe fascinante.” (pg. 24) e isto se repetiu através dos tempos, com grandes oradores e grandes “midiáticos”, mas será este o Deus verdadeiro, de Agostinho como o próprio Sloterdijk o cita (De Vera religione).
Ele também tem razão ao dizer sobre alguns que se julgam com dons “divinos”: “. Em geral, partia-se do pressuposto de que havia intérpretes capazes de associar um sentido prático aos símbolos codificados” (pg. 25), mas novamente não estes falsos oráculos que buscam holofotes.
Veja uma vez que Jesus pede a cura de um surdo/mudo de nascença (Mc 7,34-36): “Olhando para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abre-te!” Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade. Jesus recomendou com insistência que não contassem a ninguém. Mas, quanto mais ele recomendava, mais eles divulgavam”, este pequeno detalhe que aparece em muitos milagres, não divulguem, ou seja, não é um espetáculo, não significa não fazer bem feito, no entanto, com sentido sagrado.
O sentido desta cura é mais profundo, além de fazer um mundo e surdo de nascença ouvir e falar, lendo trechos anteriores do evangelista Marcos encontramos a ideia absurda (presente em meios “religiosos” de hoje), usando a ideia mulher siro-fenícia cuja filha tinha um “demônio”, não é a ideia que uma doença ou alguma ocorrência ruim seja “castigo do céu”, pois é do coração do homem que saem as coisas “impuras”: maldades, cobiças, etc.
O Efatá dito para cura de um surdo-mudo de nascença é porque não é uma doença comum, alguém cuja vida e sistema cognitivo não foram ensinados a ouvir e falar, o fez imediatamente, o que é bem complexo, é mudar a mente.
Tempos sombrios, é preciso que surdos ouçam e mudos falem, pois há quem queira calar.
SLOTERDIJK, P. Fazendo o céu falar: sobre teopoesia. Trad. Nélio Schneider. 1a. ed. – São Paulo: Estação Liberdade, 2024.
O universo foi criado
Seja válida ou não a hipótese da criação do universo pelo Big Bang (existe a hipótese do multiverso) em algum momento ele a-pareceu, é muito cara a categoria do dasein estar aí de Heidegger, mas isto é essencialmente o humano do Ser.
Sloterdijk vai entrar neste mérito escrevendo: “Trezentos anos após a morte do homem que foi venerado por seus seguidores como o Messias que chegara, o Concílio de Niceia estabeleceu o dogma de que o Senhor Jesus Cristo seria Deus de Deus e luz de luz, verdadeiro Deus do verdadeiro Deus, gerado e não criado — o que quer que isso signifique.” (pg. 31), se o nome de Deus incomoda (e faz sentido), a criação não o ser-aí foi criado.
As fotos recentes do telescópio James Webb intrigam cientistas porque aparentemente não houve uma criação lenta, galáxias inteiras complexas parecem estar já no início do Big-Bang, e a força que as movimento parece ser algo realmente extraordinário, impensada pela ciência.
Como dissemos no post anterior, além de Jesus, para Sloterdijk também Sócrates e Sêneca devem ser examinados, e são próximos historicamente, escreveu: “O que na linguagem comum se chama “vir a ser humano” designa, descontadas as extrapolações, um estado de coisas que o filósofo romano Sêneca (1-65 a.C), em parte contemporâneo de Jesus (4 a.C-30 d.C), durante algum tempo mentor do jovem Nero [vejam] e, mais tarde, forçado por ele ao suicídio, patenteou na seguinte sentença: sine missione nascimur — com o sentido de: nascemos com a perspectiva segura de morrer” (pgs. 31-32).
Assim, poderia se separar o mortal do importante, mas Sloterdijk pensa diferente e escreve: “A leviandade cotidiana é uma máscara do fantasma atemporal da indestrutibilidade; o pregador na Palestina e o filósofo em Roma tiram essa máscara para testemunhar que existe algo indestrutível que não é de natureza leviana e fantasmática.” (pg. 33), por isso sua descrença com algo “indestrutível”, e a diferença do pregador messiânico da Palestina é “ressuscitou”.
Para ele Jesus se distinguiu no falar: “mas talvez também apenas uma façon de parler [modo de falar] para “eu” —, veio ao mundo, como ele próprio foi levado a dizer, para assinar seu ensinamento com sua vida.” (pg. 33), mas sua vida era de outro modo como alguém que veio de outra realidade e a conhece.
Assim está preso a ver as realidades humanas como “ex machina”: “O homem que chamara a si mesmo de “Filho do homem” falou elementos essenciais de sua mensagem do alto da cruz, na qual ele terminou como deus fixus ad machinam [deus preso à máquina]” (pg. 33), mas não é, vai examinar os escritos de Inácio de Loyola (fundador dos jesuítas) e de Hegel, mas fica preso a noção de absoluto de Hegel, porque este não chega a admitir o universo complexo que agora vemos através do James Webb.
SLOTERDIJK, P. Fazendo o céu falar: sobre teopoesia. Tradução Nélio Schneider. – 1. ed. – São Paulo : Estação Liberdade, 2024.
A análise histórica da teopoesia
Ninguém se converterá lendo Sloterdijk, ele chama o termo religião de “nefasto”, mas o termo não a cultura a qual procura aprofundar, sobre o termo afirma: “… sobretudo desde que Tertuliano inverteu, em seu Apologeticum (197), as expressões “superstição (superstitio)” e “religião (religio)” contra o uso linguístico romano: ele chamou de superstição a religio tradicional dos romanos, ao passo que o cristianismo deveria se chamar “a verdadeira religião do verdadeiro deus”. Desse modo, ele produziu o modelo para o tratado agostiniano De vera religione [Da religião verdadeira] (390), que marcou época, mediante o qual o cristianismo se apropriou definitivamente do conceito romano” (pg. 20) e seu raciocínio e visão histórica é bem mais precisa que aquela que quer parecer que Constantino criou uma “religião”.
Histórico porque a influência sobre Agostinho dos neoplatônicos, em especial de Plotino, é não apenas razoável, mas forte o suficientemente para aquilo que vai escrever, não na Vera religione, mas em suas Confissões que é praticamente seu testamento e modelo de sua conversão, Agostinho deixa o maniqueísmo (dois polos opostos em disputa) para descobrir o Uno (categoria de Plotino), a religião do Amor, que valeu uma tese de doutorado de Hannah Arendt.
Entretanto não se nega a ação política da religião, Sloterdijk escreve citando Eneida de Vírgilio: “Nenhum imperialismo ascende sem que tenham sido interpretadas as posições atuais das constelações no céu temporal, tanto no caso de detentores do poder quanto de aspirantes a ele. Somam-se a elas conselhos do submundo: “Tu regere imperio populos, Romane, memento.” (pg. 26 citando Virgílio).
Ele está falando de comunidades culturais e cita Constantino: “a integração simbólica ou “religiosa” e emocional de unidades maiores: de etnias, cidades, impérios e comunidades cultuais supraétnicas — sendo que estas últimas também podiam assumir um caráter metapolítico, ou melhor, antipolítico, como ficou claro no caso de comunidades cristãs dos séculos pré-constantiniano” (pg. 25-26), quando cristãos eram perseguidos e isto é história.
A igreja já se estrutura nesta época: “Os bispos (episcopoi: supervisores) eram, em essência, algo como praefecti (comandantes, procuradores) em trajes religiosos; suas dioceses (em grego: dioikesis, administração) se assemelhavam aos anteriores distritos imperiais após a nova subdivisão feita por Dioclécio em torno do ano 300; sobretudo através delas, o princípio da hierarquia chegou à organização eclesial em formação …” (pg. 26), assim Constantino ano 313 quando coloca a religião católica como religião “oficial” [por influencia da mãe Helena] pouco ou quase nada influenciou sua estrutura.
De fato na herança judaica, já havia consagrado muitos rituais: “O princípio mediológico apò mechanès theós, aliás, deus ex machina, próprio da técnica cênica ou então da dramaturgia religiosa, de fato já estava em uso em vários rituais do Oriente Próximo muito antes de surgir no teatro ateniense” (pg. 28), assim este “deus ex machina” já estava presente no judaísmo. (Na figura acima a representação de Medeia de Euripedes do deus ex machina).
O autor reconhece a virada religiosa de Jesus: “O homem-deus, que se chamou de “Filho do homem” inspirado em fontes persas e judaicas — possivelmente um título messiânico, mas talvez também apenas uma façon de parler [modo de falar] para “eu” —, veio ao mundo, como ele próprio foi levado a dizer, para assinar seu ensinamento com sua vida” (pg. 32), embora o compare com Sócrates e Sêneca que tinham “convicções irrenunciáveis”.
SLOTERDIJK, P. Fazendo o céu falar : sobre teopoesia. tradução Nélio Schneider. – 1a. ed. São Paulo : Estação Liberdade, 2024.
A teopoesia de Sloterdijk
Um dos maiores filósofos contemporâneos, de enorme influência em Byung-Chul Han, Sloterdijk está longe de ser um cristão ou algum tipo de religioso, mas é sábio o suficiente para saber a enorme influencia da religião na cultura através dos séculos e no nosso tempo.
De que céu está falando então, esclarece: “O céu de que se fala não é um objeto passível de percepção visual. No entanto, desde tempos imemoriais, ao olhar para o alto se impunham representações em forma de imagem acompanhadas de fenômenos vocais: a tenda, a caverna, a abóbada; na tenda ressoam as vozes do cotidiano, as paredes das cavernas repercutem antigas cantorias de magia, na cúpula reverberam as cantilenas em honra do Senhor nas alturas” (pg. 11), esclarece o autor na sua observação preliminar.
Deuses mitológicos, o autor a partir do papiro de Greenfield (século X a.C.), onde se vê: “Detalhe do papiro de Greenfield (século X antes da nossa era): “A deusa do céu, Nut, curva-se sobre o deus da terra, Geb (deitado), e do deus do ar, Shu (ajoelhado). Representação egípcia de céu e terra” (foto, Wikipedia Commons, pg. 12).
Porém não é também um ensaio mitológico, escreve: “O que se pretende, no que se segue, é falar de céus comunicativos, luminosos e que convidam a arrebatamentos, porque, correspondendo à incumbência do esclarecimento poetológico, eles constituem zonas de origem comum de deuses, versos e aprazimentos”.
Faz uma curiosa metáfora com Mt 13,34, trecho tão caro aos cristãos que diz: “Tudo isso Jesus falava em parábolas às multidões. Nada lhes falava sem usar parábolas, para se cumprir o que foi dito pelo profeta: ‘Abrirei a boca para falar em parábolas; vou proclamar coisas escondidas desde a criação do mundo'” (Mt 13,34-35), era necessário porque falava de céus “comunicativos, luminosos”.
Em sua metáfora diz Sloterdijk: “Deus ex machina, deus ex cathedra e sem parábolas nada lhes dizia” (sobre a realidade divina), e aqui o filósofo indaga o mundo contemporâneo, que idolatra esses deuses contemporâneos ex machina e ex cathedra.
Vai relembrar a teopoesias na boca de Homero, que tinha “deuses falantes”, mas também lembra a passagem em que Zeus repreende “as manifestações voluntariosas de sua filha Atena”, e diz a ela: “Minha filha, que palavra te escapou da barreira dos dentes?”(pg. 15).
É claro, não falamos como cristãos de deuses mitológicos, lembra a semiótica cristã onde os sinais são importantes: “zona de sinais cresce paralelamente à arte de interpretação. O fato de não estar acessível a todos se explica por sua natureza semiesotérica: Jesus já censurou seus discípulos por não entenderem os “sinais do tempo” (semaîa tòn kairòn).” (pg. 25).
Não se trata de delírio nem de falsidades grosseiras sobre eventos escatológicos, se eles existem somente são portadores destes “sinais” verdadeiros oráculos e profetas, ou para usar o termo de Sloterdijk: teopoetas que dizem coisas do céu, como poesia e clareza, ainda que usem parábolas pela dificuldade de expressá-las na linguagem e realidade cotidiana.
Os sinais dos tempos, sombrios como as guerras e vivos como aqueles que resistem com o espírito da esperança e da paz, não fazem da tragédia como os gregos um sinal de vingança ou de intolerância, mas de ver além daquilo que a realidade crua e nua parece mostrar.
Sloterdijk, P. Fazendo o céu falar: sobre a teopoesia, Trad. Nélio Schneider, Estação Liberdade, 2024.
A guerra e a ilusão do poder
Seja qual a forma que definimos com poder, e isto não exclui o empoderamento dos fracos, é sempre uma forma de dominação de um ser sobre o outro, haveria então alguma forma de equilíbrio, ou no dizer da filosofia, alguma forma de simetria ou horizontalidade ?
A resposta de Byung-Chul Han no livro No enxame parece direta e simples: o respeito, toda as outras formas supõem alguma hierarquia ou assimetria de poder.
É triste observar que muitas filosofias e espiritualidades contemporâneas também apontem para formas de poder: seja mais, seja o primeiro, como conquistar coisas a frente dos outros e milhares de formas “mágicas” para iludir e enganar gente inocente que embarca nestas falsas promessas.
Somos seres finitos e limitados, o equilíbrio e a vida social dependem de todos, e os ódios e as guerras são a manifestação mais cruel de formas de desequilíbrios e de assimetrias.
O igualitarismo é também uma ilusão, somos diferentes e com diferentes aptidões e isto não nos prejudica, a complementaridade humana nos ajuda a realizar diferentes tarefas e em diferentes contextos, alguns com mais talento e outros com mais dificuldades, porém não é preciso descartar ninguém, a vida social é composta pelo conjunto de ações individuais.
Porém o conjunto de valores e estímulos que temos interiormente dependem de uma ascese humana e espiritual, não um altruísmo idealista, mas um bom sendo de respeito e dignidade da qual todos somos portadores.
A sociedade moderna, desde o iluminismo e o idealismo resolveu que estes fatores “subjetivos” (na verdade é a interioridade humana, real e imaginária) deveriam ser descartados, e o resultado é uma sociedade violenta, sem equilíbrio e que depende da força bruta para equilibrar-se, nisto o Estado e a força policial acabam tendo um papel preponderante.
É rato optar-se pela não violência, pelo respeito ao diferente e aos valores morais, tudo isto parece duro e parece cerceador da liberdade, mas é a garantia de equilíbrio e serenidade.
Na bíblia, os discípulos diziam ao mestre Jesus: “suas palavras são duras” (João 6,60) e Ele respondia: “isto vos escandaliza”, “o Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada” e alguns decidiram não caminhar mais com Ele, o que pomos na mente é que encaminha nossa vida.
O que é Amor afinal
Num mundo polarizado e agora a beira de guerras regionais e que podem escalar, falar de amor parece algo inócuo e sem reflexo na realidade, mas há boas obras produzidas pela humanidade.
Paul Ricoeur escreveu e já postamos algumas vezes sobre isto o Le socius e le prochain (O sócio e o próximo), separando interesses do amor ao próximo verdadeiro.
Porém a obra de Hannah Arendt ainda que não seja definitiva quanto ao amor, o próprio orientador Karl Jaspers manifestou isto sobre seu doutorado “O conceito de amor em Santo Agostinho” (edição portuguesa Instituto Piaget, 1996) desenvolveu e se apropriou de algumas categorias fundamentais sobre o tema, não estamos falando de amor erótico nem do familiar.
Segundo o autor George McKenna, em resenha de sua tese, Arendt teria tentado incluir em sua “A condição humana” uma revisão, porém não fica muito claro no livro de Arendt, que apesar disto ele tem bom desenvolvimento.
Se pode também manifestar expressão deste amor na literatura grega antiga, como o amor ágape, aquele que se diferencia do eros e do philia nesta literatura, do ponto de vista cristão o melhor desenvolvimento feito é de fato o de Santo Agostinho.
Primeiro porque ele separou este conceito do maniqueísmo bem x mal, dualismo ainda presente em quase toda filosofia ocidental devido ao idealismo e ao puritanismo, depois porque foi de fato arrebatado ao descobrir o amor divino, escreveu: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava fora!” (Confissões de Santo Agostinho).
Depois o homem deve amar o seu próximo como criação de Deus: […] o homem ama o mundo como criação de Deus; no mundo a criatura ama o mundo tal como Deus ama. Esta é a realização de uma autonegação em que todo mundo, incluindo você mesmo, simultaneamente recupera sua importância dada por Deus. Esta realização é o amor ao próximo (ARENDT, 1996, p. 93).
O homem pode amar ao próximo como criação ao realizar o retorno à sua origem: “É apenas onde eu pude ter certeza do meu próprio ser que eu posso amar meu vizinho em seu ser verdadeiro, que é em sua criação (createdness).” (ARENDT, 1996, p. 95)
Neste tipo de amor, o homem ama a essência divina que existe em si, no outro, no mundo, o homem “ama Deus neles” (ARENDT, 1996, 95).
Também a leitura bíblica sintetiza a lei e os profetas cristãos assim (Mt 22, 38-40): “Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’. Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos”.
O amor contém todas as virtudes: não se envaidece e não se encoleriza, sabe ver onde se encontram os verdadeiros sinais de felicidade, equilíbrio e esperança, mesmo num mundo conturbado.
ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Chicago: University of Chicago Press, 1996.
O coração e a fé
O coração é um órgão vital, irriga o sangue em todo o organismo chegando a todas as células do corpo humano, quando falamos de crenças (elas estão ocultas também em objetos do conhecimento humano, acreditamos que uma coisa é de certa “forma”) não falamos apenas da fé.
Byung-Chul Han ao fazer sua análise partindo dos autores clássicos da filosofia ocidental, aborda uma perspectiva daquilo que vai chamar de “tonalidade afetiva”, se concentrando de modo principal em Heidegger.
Seu livro, diferente de outros que são só ensaios, tem “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” (Ed. Vozes, 2023), seu primeiro livro a meu ver, com análise nova, humana e a até mesmo espiritual do cerne da filosofia ocidental.
Parte de um conceito caro a civilização judaico-cristã, que é o da circuncisão, porém da circuncisão do coração e não do órgão falido (a pele presa no início do pênis), é preciso lembrar que embora órgão masculino ele é emblema do poder, da autoridade e do desejo, foi culturalmente numa cultura bélica.
A parte de sua visão com sua visão oriental e que tem um sentido espiritual para toda a sua questão filosófica, Han vai desenvolver que é a circuncisão do coração, aquela que modula e rege o afeto, a circuncisão tem um sentido diferente do que é comumente falado, a polêmica entre cristãos e judeus no início da era cristã, é a circuncisão do coração.
A circuncisão é o ato de retirar a pele do órgão sexual masculino, porém mesmo no sentido bíblico já era a do coração, em Deuteronômio se lê: “Circuncidai, pois, o prepúcio do vosso coração, e nãos mais endureçais a vossa cerviz” (Dt 10,6), citando na epígrafe do primeiro capítulo do livro: “Circuncisão do coração” (Han, 2023, p. 7).
Assim, “esta circuncisão liberta o coração da interioridade subjetiva” (Han, 2023, p. 11), e há uma conclusão preliminar surpreendente em Heidegger: “O coração de Heidegger, por outro lado [confronta com Derrida], escuta uma só voz, segue a tonalidade e gravidade do “uno, o único que unifica” (Han, 2023, p. 14-15), para ele é um “ouvido do seu coração” e assim há algo forte de espiritual nisto.
É ali que o ser humano encontra sua essência: “permanece sintonizado com aquilo a partir de onde sua essência é determinada. Na determinação sintonizadora o homem é afetado e chamado por uma voz que soa tanto mais pura quanto mais silenciosamente ela ressoa através do sonante” (Han, 2023, p. 15) citando literalmente Heidegger.
Não dirá que é a fé, e revela a influência budista de seu pensamento, único elo, a meu ver, do autor com o idealismo, pois no budismo há uma elevação apenas pessoal, não há uma Pessoa do outro lado, que ressoa através do sonante, aquela voz do Espirito Santo.
A discordância de Derridá e Heidegger, esclarece o autor: “A ´polifonia´ que Derrida opõe à totalidade não exclui a tonalidade” (pg. 16) diríamos se estes autores Han, Derrida e Heidegger fossem cristãos, que Heidegger e Han seriam monoteístas e Derrida seria politeísta, porém é claro que esta “voz sonante” não é a de Deus, mas do interior.
Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.