Arquivo para novembro, 2017
A consciencia planetária e vigiar
Olhando a consciência planetária num olhar da Europa, embora seja um olhar viciado, é o olhar que aponta caminhos para o Ocidente, o filósofo Petr Sloterdijk em seu livro “Se a Europa despertar” (2002), aponta o ano zero da consciência atual como a derrota da possibilidade de um “Império do Centro” com o nazismo, segundo sua análise, numa reflexão que já dura a duas gerações.
O capítulo 6 começa com um epígrafe significativo (Sloterdijk, p. 65): “A Europa precisa hoje inventar uma forma de unidade que não é a de um império” de Jacques Le Goff, isto é, criar uma nova forma de política que não seja mais o desenvolvimento fundamentado na exploração e opressão de outros povos.
É como afirma a Bíblia no evangelho de Marcos: “É como um homem que, ao partir para o estrangeiro, deixou sua casa sob a responsabilidade de seus empregados, distribuindo a cada um sua tarefa. E mandou o porteiro ficar vigiando.” (Mc 13, 34), e se no passado se disse que o preço da liberdade é a eterna vigilância, pode-se dizer hoje que o preço da superação da crise é vigiar para que não sejam desencadeados processos que impeçam o crescimento de uma consciência planetária sobre uma cidadania mundial.
Desenvolve ao longo do livro o que chama de política de “visões”, compatível com sua origem ontológico-hermenêutica (é herdeiro e crítico do pensamento de Heidegger e conviveu com Safranski que é o melhor biógrafo deste), o que significa promover o diálogo cultural entre povos, permitindo a cultura e a ‘visão” de cada um.
Assim se a Europa despertar terá “alcançado a façanha de produzir, sob sua própria direção e em debate público, a visão pela qual deve ser conduzida e impulsionada – e então agir sobre essa visão, como se esse novo motivo autoconstituído tivesse tanto poder de liberar forças aceleradoras quanto uma velha missão muito encarnada.” (SLOTERDIK, 2002, p. 72)
A edição brasileira, não sei as outras também, termina com uma entrevista do filósofo alemão a Michael Klonovski, jornalista da revista alemã Focus, em que revela (bem antes da era Trump e também da era Obama) que a única coisa que 11 de setembro fez os americanos a “abrirem mais fogo”, e agora “eles assumem seu unilateralismo sem reservas.” (SLOTERDIJK, 2002, p. 84)
Neste sentido é preciso também vigiar e reagir ao belicismo que pode fazer a consciência planetária retroceder, mas não a diversidade que implica no surgimento de nações e afirmação de etnias, isto não é oposto a consciência planetária, uma vez que permite a cada povo viver e cultivar suas tradições culturais sem reservas.
A crise e a consciência planetária
Se o quadro parece complexo para o homem do despertar do século XXI, não se podem fatores que aguçam a consciência planetária, Morin (2003) indica 6 processos nas páginas 36 e 37 do seu livro Terra-Pátria:
“A persistência de uma ameaça nuclear global A ameaça atómica foi e continua sendo um fator de consciência planetária. O grande temor virulento de 1945-1962, anestesiado sob o equilíbrio do terror, redesperta.”, por coincidência infeliz a Coréia do Norte acaba de lançar um míssil balístico no mar do Japão, a provocação permanece.
“A formação de uma consciência ecológica planetária O objeto da ciência ecológica é cada vez mais a biosfera em seu conjunto, e isso em função da multiplicação das degradações e poluições em todos os continentes e da detecção, desde os anos 1980, de uma ameaça global à vida do planeta”, dentre as muitas contestações do governo de Trump, a mais eficaz e contundente tem sido a questão ecológica porque ameaça até mesmo acordos com a Zona do Euro e também internamente, o governador da Califórnia Jerry Brown anunciou em vídeo que um grande encontro sobre mudança climática será realizado em San Francisco em 2018, numa clara contestação ao governo americano.
“A entrada no mundo do terceiro mundo A descolonização dos anos 1950-1960 fez surgir no proscénio do Globo 1,5 bilhão de seres humanos, até então refugados pelo Ocidente nos baixios da história”, note-se bem que Morin escreveu isto antes da crise humanitária provocada pela guerra na Síria, e a imigração africana e árabe é crescente na Europa.
“O desenvolvimento da mundialização civilizacional Esta se desenvolve, para o pior e para o melhor: para o pior, acarreta destruições culturais irremediáveis; homogeneíza e padroniza os costumes, os hábitos, o consumo, a alimentação (fastfood), a viagem, o turismo; mas essa mundialização opera também para o melhor porque produz hábitos, costumes, géneros de vida comuns através das fronteiras nacionais, étnicas, religiosas, rompendo um certo número de barreiras de incompreensões entre indivíduos ou povos”, a Europa vai mudando de feição e de costumes, enquanto os países do terceiro mundo adotam cada vez mais costumes mundializados.
“O desenvolvimento de uma mundialização cultural Enquanto a noção de civilização recobre essencialmente tudo o que é universalizável: técnicas, objetos utilitários, habilidades, modos e géneros de vida baseados no uso e consumo dessas técnicas e objetos, a noção de cultura recobre tudo o que é singular, original, próprio a uma etnia, a uma nação”, mas ao contrário do que se imaginava reapareceram nações como a Armênia e a Macedônia, diversas “antigas repúblicas soviéticas” e outras lutam para emergir: o Curdistão e a Chechênia,
Emerge um folclore planetário, como “o jazz que se ramificou em diversos estilos a partir de Nova Orleans, o tango nascido no bairro portuário de Buenos Aires, o mambo cubano, a valsa de Viena, o rock americano que por sua vez produziu variedades diferenciadas no mundo inteiro … a cítara indiana de Ravi Shankar, o flamengo andaluz, a melopeia árabe de Oum Kalsoum, o huayno dos Andes; suscitou os sincretismos da salsa, do rai, do flamengo-rock.” (Morin, 2003, pag. 39)
É inegável que a diversidade se afirmou, mas em sentido contrário a mundialização aconteceu, não só nos processos perversos econômicos, mas nos adversos da cultura.
MORIN,E. e KERN, A.B.Terra-Pátria. Traduzido do francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003.
A crise planetária e suas origens
Edgar Morin em seu livro Terra-Pátria explica que o crescimento desta era se deu na modernidade, começou com as navegações pelo globo, que fez Cristóvão Colombo chegar a América e Vasco da Gama fazer o caminho pela costa da África para as índias, mas isto foi uma forma de mudar a rota terrestre que passava pela Índia e pela China, historicamente o desprezo pelos “bárbaros civilizados”.
Escreveu Morin: “Desde os começos da era planetária, os temas do “bom selvagem” e do “homem natural” foram antídotos, muito fracos, é verdade, à arrogância e ao desprezo dos bárbaros civilizados. No século XVIII, o humanismo das Luzes atribui a todo ser humano um espírito apto à razão e lhe confere uma igualdade de direitos.” (MORIN, 2003, p. 26)
A ideia de que a Europa, primeiro Londres depois Paris, e atualmente a Alemanha, seriam as culturas mais avançadas levaram a: “ música de Beethoven, o pensamento de Marx, a mensagem de Victor Hugo e de Tolstoi se dirigem a toda a humanidade. O progresso parece ser a grande lei da evolução e da história humanas” (idem), mas será que isto envolvia de fato o globo, ou foi uma época de guerras coloniais, depois duas grandes guerras e hoje ainda um processo de desenvolvimento duvidoso.
Damos um salto e no pós-guerra, reapareceu a confiança e: “Imensas esperanças num mundo novo, de paz e de justiça, ganharam corpo com a destruição do nazismo, no esquecimento ou na ignorância de que o Exército Vermelho trazia não a libertação, mas uma outra servidão, e de que o colonialismo havia retomado sua ação na África e na Ásia.” (MORIN, 2003, p. 32).
Citando a Guerra do Golfo e do Kwait (1990 e 1991), mostraram que: “o desmoronamento do totalitarismo do Leste não ocultará por muito tempo os problemas de economia, de sociedade e de civilização no Oeste, não reduzirá em nada os problemas do terceiro mundo transformado em Mundo Sul, e não produzirá naturalmente uma ordem mundial pacífica.” (Morin, 2003, p. 32), mostrando uma linha de fratura no oriente médio e mundo árabe, o livro é anterior mas pode-se citar a questão da Síria e da Coreia do Norte, fraturas atuais.
Morin aporta para o futuro agora cheio de problemas: “Mas o certo é que a história mundial retomou sua marcha turbulenta, correndo a um futuro desconhecido, ao mesmo tempo em que retorna a um passado desaparecido” (Morin,2003, p. 33), chama esta fase de democleana: “em 1945, a bomba de Hiroshima fez a idade de ferro planetária entrar numa fase damocleana.” (idem).
Apontava bem antes da crise mundial de retorno ao nacionalismo nas eleições, que isto já estava em curso: “Numa dialógica tornada mundial entre as forças de integração e de desintegração culturais, civilizacionais, psíquicas, sociais, políticas, a própria economia se mundializou cada vez mais e se fragilizou cada vez mais; assim, a crise econômica surgida em 1973 de uma escassez de petróleo passa por diversos avatares sem estar realmente resolvida.” (Morin, 2003, p. 34)
E mostra o lado perverso da crise atual: “A mundialização económica unifica e divide, iguala e desiguala. Os desenvolvimentos económicos do mundo ocidental e do Leste asiático tendem a reduzir nessas regiões as desigualdades, mas a desigualdade aumenta em escala global, entre “desenvolvidos” (em que 20% da população consomem 80% dos produtos) e subdesenvolvidos.” (MORIN, 2003, p. 34)
Como dar um fundo mais panorâmico sobre a crise atual e qual seriam as respostas possíveis para esta crise ?
Referência:
MORIN,E. e KERN, A.B. Terra-Pátria. Traduzido do francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003.
Que crise é esta
Assim precisamos ir além, Edgar Morin em palestra afirmou que está além da crise da economia (não diz mas diria além da crise política), é “uma crise do pensamento, da civilização ocidental”, Mário Ferreira também faz esta distinção já que a oriental e ainda a árabe (pouco citada) são diferentes, se é que estão em crise, penso que estão.
Afirmou em sua palestra “O caminho para o futuro da humanidade” que a crise da atualidade “é a crise desta humanidade que não consegue se tornar humanidade”, e, portanto, não está “fora dela”, nos objetos e nos esquemas política, mas “dentro dela” porque os processos que são conduzidos hoje nos conduzem “a uma catástrofe futura”, no vídeo pode ser compreendido.
Afirma que a mundialização é a pior e a melhor das coisas que poderiam acontecer, pior porque produziu-se armas em escala mundial capazes de destruir o planeta e os diversos tipos de fanatismos e fundamentalismo podem nos conduzir a guerra, e é melhor porque “todos os seres humanos de todos os continentes se encontram reunidos, sem que eles saibam, reunidos em uma mesma comunidade de destino.”
Sabemos que a “economia mundial não tem nenhuma verdadeira regulamentação”, e a crescente degradação da biosfera, além da má distribuição de renda pode nos conduzir a uma crise ainda maior que a que vivemos em 2008 e que parece latente.
Es se estamos “reunidos na mesma comunidade de destino”, estamos diante da possibilidade de que “nasça um novo mundo”, e será um novo tempo que há de vir, um advento, uma nova “chegada”.
É preciso desenvolver uma sociedade em escala mundial, na qual “a internet possa desempenhar um papel especial nesta democracia”, pois não se trata de criar um mega estado mundial, mas um novo modelo de cidadania global.
Temos um problema fundamental que esta comunidade mundial nos “revela”, eu diria que se desvela, pois não será mais possível nada permanecer “velado” nem re-“velado”, que neste caso seria como alguns querem tornar o mundo “desglobalizado”, em sua palestra Morin lembra-nos dos efeitos positivos da “interdependência”, “dos intercâmbios” e de se chegar a um “mundo novo”, onde as culturas locais sobrevivam.
Explica que é possível conciliar o positivo da “globalização” o positivo das “culturas regionais”, mas é preciso um “pensamento novo” para isto, sem radicalismos.
Arte Ideal, representação e re-vel-ação
Para ver uma coisa é preciso ver além do aparente, isto é, aquilo que Rancière que já chamou (ver no post anterior) de visão dupla, que significa ver duas coisas ao mesmo tempo, não é “uma questão de trompe l´oeil* ou de efeitos especiais. É um problema de relações entre superfície de exposição das formas e superfície de inscrição das palavras” (Ranciére, 2003, p. 89) não podendo, portanto ser um jogo de ilusões, ou ainda uma pintura idealista que busca o ideal das formas sob o imediatismo da presença, aquele estilo de “natureza morta” ou de “cenas de costumes” que são comuns em muitas casas.
Esta arte que pretendeu a re-presentação ou ainda a re-velação, note-se bem a a etimologia destas palavras que dão a elas próprias um sentido mais correto, qual seja, o de renovar a presença e a outra, de renovar o véu que cobre a imagem, ver, portanto não é a “mediação das palavras que se configura o regime dos ´imediaticismos’ da presença.” (RANCIÈRE, 2003, p. 89).
O imaginário, o lúdico e o espiritual escaparam por um longo tempo dela, mas recomeçou um renascimento com Kandinski, Henri Matisse e outros mais contemporâneos Pablo Picasso, Miró, um exemplo clássico foi a Dança II de Matisse (ilustração ao lado), cuja ideia do quadro teria surgido de uma dança da roda chamada “A Sardana” do sul da França, e foi encomendado por seu patrono russo Sergei Schukin, para ser exposto no Palácio de Trubetskoy ao lado de outra obra de Matisse “A Música”.
A dança sinuosa em que o movimento se transporta para os corpos e pernas é intencional para afirmar o envolvimento das dançarinas, e esta representação em círculo tornar-se uma eterna presentação e a re-velação se transforma num desvelar, ou seja, retirar o véu do que está oculto e por isso a nudez dos corpos, que o patrono Sergei teria discordado de início, porém depois de ver o esboço teria mudado de início, ou seja, não se trata da nudez porém da significação que tem a dança que é o envolvimento harmônico das dançarinas.
O ideal da forma transforma-se em formas dos ideais, aquilo que o próprio Matisse disse procurar em sua arte: “O meu sono é realizar uma arte do equilíbrio, de pureza e serenidade”.
A perfeita interação entre estas dançarinas não é um idealismo, mas a busca da interação entre pessoas, povos e culturas, o sonho de Matisse.
O quadro A dança II parece desvelar em uma imagem o sonho do autor, os corpos interagem numa “comunhão”.
Vive-se um tempo de cegueira, não apenas no mundo da cultura e por consequência da arte, mas também a cegueira social, política e até religiosa, aquilo que José Saramago que descreve em seu “Ensaio sobre a cegueira” através de um motorista que subitamente fica cego parado em um sinal, neste o autor procura nos lembrar “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”.
A arte é uma maravilhosa forma de nos fazer enxergar e nos fazer recuperar a lucidez, a serenidade e o equilíbrio que faltam a nos dias de hoje, sem deixar de ser ousada e propositiva.
* Significa ao pé da letra “engana o olho“, porém é uma técnica para criar ilusão tridimensional.
RANCIÈRE, J. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003.
Expressionismo, cegueira e véu
Foi importante para o desenvolvimento do abstracionismo e espiritualismo de Kandinsky e Matisse, entre outros, mas representa a crise do dualismo objetividade x subjetividade.
Um bom exemplo do expressionismo é o quadro O Grito, do norueguês Edvard Munch, que data de 1893, podemos compará-lo a cegueira, ou mesmo o velamento sobre o real, a objetividade, o próprio Munch escreveu sobre seu quadro: “Estava andando pela estrada com dois amigos / O sol se pondo com um céu vermelho sangue / Senti uma brisa de melancolia e parei / Paralisado, morto de cansaço … meus amigos continuaram andando – eu continuei parado / tremendo de ansiedade, senti o tremendo Grito da natureza”, quem acredita que estes sentimentos fossem contemporâneos acertaram, porém o são desde o século XIX.
É a cegueira idealista/realista, pode-se com uso de uma metáfora que é o desvelamento, a retirada de um véu que nos apresenta a dor e também da retirada do caminho de tudo o que não permite iluminá-lo, eis o novo tempo de um “advento”, algo que está por vir.
Arte, autonomia e ver
O que permanece velado na arte recente e que está presente no discurso de Hegel e mais ainda na aparente ruptura com a saída do “plano” para as formas tridimensionais do “polido” é ainda uma arte idealista daquilo que Hegel chamou de “autonomia” e que devido ao este idealismo, Rancière chamou de “autonomização”.
Esclarece Rancière que é a autonomização: “um desses elementos, a ´ruptura dos fios de representação´que os atavam à reprodução de um modo de vida repetitivo. É a substituição desses objetos pela luz de sua aparição. A partir daí, o que acontece é uma epifania do visível, uma autonomia da presença pictural.” (RANCIÈRE, 2003, p. 87)
É em última instância esta autonomização a famosa “arte pela arte” ou no sentido oposto a “utilitarismo da arte”, mas ambas não podem negar nem o aspecto específico da arte e sua ligação com as palavras nem a sua utilidade “tão útil quanto o útil” diria o escritor Vitor Hugo, mas trata-se de aceitar a emancipação do espectador pela “interação”.
Ver em arte escreve Rancière: “quer se trate de uma Descida da cruz ou um Quadrado branco sobre fundo branco, significa ver duas coisas de uma só vez” (Rancière, 2003, p. 87), que é uma relação entre: “a exposição das formas e superfície de inscrição das palavras.” (idem), onde as presenças são “dois regimes do trançado de palavras e formas.” (ibidem)
Para entender o problema da visão Rancière lança mão do quadro de Gauguin Camponesas no campo, há um “primeiro quadro: camponesas num quadro olham os lutadores ao longe” (Ranciére, 2003, p. 95), a presença e a maneira como estão vestidas mostram que é outra coisa então surge um segundo quadro: “devem estar numa igreja” (idem), para dar sentido o lugar deveria ser menos grotesco e a pintura realista e regionalista não é encontrada, então há um terceiro quadro: “O espetáculo que ele representa não tem um lugar real. É puramente ideal. As camponesas não veem uma cena realista de pregação e luta. Elas veem – e nós vemos – a Voz do pregador, isto é, a palavra do Verbo que passa por essa voz. Essa voz fala de combate lendário de Jacó com o Anjo, da materialidade terrestre com a idealidade celestial.” (Ibidem)
Assim desse modo afirma Rancière, a descrição é uma substituição, a palavra pela imagem, e as substitui “por outra ´palavra viva´, a palavra das escrituras.” (RANCIÈRE, 2003,P. 96)
Faz ainda uma ligação com os quadros de Kandinsky, escrevendo: “No espaço da visibilidade que seu texto constrói o quadro de Gauguin já é um quadro como os que Kandinsky pintará e que justificará: uma superfície em que linhas e cores se tornam sinais mais expressivos obedecendo a coerção única da ´necessidade interior´ ” (Rancière, 2003, p. 97), e já explicamos anteriormente não se trata nem de subjetivismo puro pois faz uma ligação com tanto com o pensamento interior quanto ao pensamento sobre a descrição no quadro.
O importante é a simbiose entre a imagem, as palavras e a visão decorrente de um “desvelar” da imagem que pode ser traduzida em palavras.
Pintura plana, palavra e pensamento
Esclarece Rancière: “a superfície reivindicada como meio (médium) próprio da pura pintura é, na verdade, outro meio (médium)” (Rancière, 2003), assim pode-se entender que mídia não é outra coisa senão médium, ou o que algumas áreas do conhecimento chamam de suporte, mas mídia ou médium são palavras mais atuais e remetem às “novas mídias”.
Sua crítica a Greenberg é porque seu formalismo “deseja fazer coincidir meio (médium) e material, o espiritualismo de Kandinsky, que faz dele um meio (milieu) espiritual, são duas maneiras de interpretar essa desfiguração. A pintura é plana à medida que as palavras mudam sua função de relação a ela.” (RANCIÉRE, 2003, pag. 88)
Rancière dará a ela uma ordem representativa, que conforme afirma servem de “modelo ou de norma”, é algo novo, pois se a palavra carece de subjetividade a pintura parece carecer de objetividade, ainda que esta separação seja idealista, ela existe e é quase uma norma na modernidade.
Desenvolve seu raciocínio: “como poemas, como história profana ou sagrada, elas desenhavam o arranjo que a composição do quadro devia traduzir.” (RANCIÉRE, idem)
Aqui se liga a palavra: “Jonathan Richardson recomendava ao pintor escrever a história do quadro primeiro, para saber se valia a pena pintá-lo” (idem), então aí está feita a ligação.
Explica que a crítica estética que emerge da época romântica não é normativa, não admite dizer o que o quadro deveria ser, diz só o que o pintor fez, é a ideia absoluta realizada.
Porém o equívoco é “articular de forma diversa a relação do dizível como o visível, a relação do quadro com aquilo que ele não é. É reformular de outra maneira o como do ut pictura poesis, o como pelo qual a arte é visível, pelo qual sua prática coincide com olhar e depende de um pensamento.” (RANCIÉRE, 2003, ibidem)
E diria quase conclui: “a arte não desapareceu. Mudou de lugar e de função” (idem), ou seja, não se pode negar sua relação com o pensamento e com o olhar, no qual todos estão de acordo, mas não estão de acordo que o “olhar depende do pensamento” e este depende de modelos e normas, em última instância de ideais e ideologias.
Pode ver nos quadros de Kandinsky (Dama em Moscou e Mancha Negra I) onde plasmam a ideia do filósofo Steiner sobre a “ação paralela” ou a visão dupla, onde vemos um drama material em meio a rua, em outro plano, o espiritual, uma mancha negra que parecer viajar em nosso campo de visão, e também uma aura sobre uma mulher que sugere uma forma de pensamento feito na cor rosa, os quadros são ambos de 1912 e foram feitos de forma consecutiva.
Nem ponto, nem plano e nem polida
O ponto de partida é então o fractal, onde não há dimensões 0 (ponto), 1, 2 ou 3 (tridimensional), e a crítica ao plano começa aí mas ir desde dispositivos on-off (liga – desligada), passando pelos sentidos até chegar a realidade aumentada e a realidade projetada: o holográfico e o virtual.
A análise feita por Jacques Rancière em O destino das imagens, que parte da ideia que palavra e pintura se invertem onde: “a potência as palavras não é mais o modelo que representação deve ter como norma.” (RANCIÉRE, 2003, p. 86)
Retomando as análises clássicas de Hegel “pioneira nesse trabalho de redescrição que, diante das obras de Gerard Dou, Teniers e Adrian Brouwer, como das obras de Rubens e Rembrandt, ao longo de todo período romântico, elaborou uma visibilidade de uma pintura ´plana´(grifo do autor), de uma pintura ´autônoma´ … os verdadeiros quadros desprezados por Hegel, não é o que vemos de início.” (Rancière, 2003, p. 87), que proporciona a “ruptura dos ´fios de representação´ que atavam a reprodução de um modelo de vida repetitivo“ e acrescentaria ´idealista´ (RANCIÉRE, 2003, idem).
Mas haverá o movimento contrário e “Greenberg opõe a ingenuidade do programa antirrepresentativo de Kandinsky a ideia de que o importante não é o abandono da figuração, mas a conquista da superfície.” (RANCIÈRE, 2003, ibidem).
O que o francês Henri Matisse (1869-1954) e o russo Wassily Kandinsky (1866-1944) exploraram são mais do que cores, formas e novas superfícies (como os fractais) há algo da mistura “espiritual” na Composição VII e o Caracol de Matisse (nas figuras acima).
Governança, talentos e religião
O conceito de governança é, portanto aquele que se estende a um grupo maior que uma burocracia ou tecnocracia de Estado, não se trata apenas de saber investir, olhar os interesses e fazer “o desenvolvimento”, mas principalmente render o muito ou o pouco que se tem.
Já se vai um bom tempo em que o desenvolvimento não significa necessariamente uma melhoria das condições de vida e da distribuição de renda da maioria da população, mas isto agora deve ser pensado em escala mundial, pois não há mais crise ou desenvolvimento isolado, porém é preciso dizer uma lição básica de economia: não se distribui o que não se tem, e ao mesmo tempo aumentar a fatia do bolo que se distribui.
Já se colocou nos posts anteriores a questão do assistencialismo, ressalva feita a regiões de vulnerabilidade e que não são poucas no planeta, no entanto é preciso produzir para que se poder distribuir e não o contrário se distribui que assim se produz, basta ver as regiões pobres do planeta onde a economia não anda.
Embora o raciocínio que uns tem mais e por isso outros tem menos tenha um fundamento de política econômica, não se pode pensar que seja possível distribuir o que não se tem, seria o mesmo que vender ilusões como fazem jogos de azar e os populismos de diversos tipos, volto a dizer, há a questão da vulnerabilidade e isto é sério.
A equação que deve ser feita, isto mostram os países com boa distribuição de renda é como colocar a economia e o que se produz nos lugares corretos, e conforme já indicamos anteriormente também não há um “manual de boas práticas” ou de “boa gestão”, é preciso gerenciar o que se tem de modo a torna-lo produtivo.
Uma parábola bíblica explica bem isto (Mt 25, 20-27), quando um patrão distribui talentos entre seus empregados dando 1 a um, 2 a outro e 5 a um terceiro, ao voltar se depara com a seguinte situação: “O empregado que havia recebido cinco talentos entregou-lhe mais cinco, dizendo: ‘Senhor, tu me entregaste cinco talentos. Aqui estão mais cinco, que lucrei’. O patrão lhe disse: ‘Muito bem, servo bom e fiel! Como foste fiel na administração de tão pouco, eu te confiarei muito mais. Vem participar da minha alegria!’
Chegou também o que havia recebido dois talentos, e disse: ‘Senhor, tu me entregaste dois talentos. Aqui estão mais dois que lucrei’. O patrão lhe disse: ‘Muito bem, servo bom e fiel! Como foste fiel na administração de tão pouco, eu te confiarei muito mais. Vem participar da minha alegria!’
Por fim, chegou àquele que havia recebido um talento, e disse: ‘Senhor, sei que és um homem severo, pois colhes onde não plantaste e ceifas onde não semeaste. Por isso, fiquei com medo e escondi o teu talento no chão. Aqui tens o que te pertence’.
O patrão lhe respondeu: ‘Servo mau e preguiçoso! Tu sabias que eu colho onde não plantei e ceifo onde não semeei? Então, “devias ter depositado meu dinheiro no banco, para que, ao voltar, eu recebesse com juros o que me pertence’”.
Parece uma lógica perversa, até mesmo financeira, mas não é, para não se enterrar talentos é preciso fazer “render” o que se tem, aplicá-lo para haver uma economia de multiplicação dos pães e de superação da miséria, é claro todos sabemos, há gente que interpreta esta parábola para o enriquecimento de alguns poucos, não é o que está dito.