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Arquivo para 2020

O que esperar de 2021

31 dez

A julgar pelo ano que encerra é melhor não fazer previsões, porém estar preparado para surpresas positivas ou negativas, falamos de resiliência em 2020 e isto significa estar preparado para situações adversas, de stress e de privações, claro mantendo sempre esperanças de melhoras.

Assisti o filme O sol da meia noite e alguns pensamentos sobre um possível futuro sombrio me vieram a mente, mas agora com um toque de humanismo e até de otimismo, ele é baseado no livro Good Morning, Midnight (2016).

O livro de Lily Brooks-Dalton será publicado este ano em português pela Editora Morro Branco, que adquiriu os direitos de publicação.

Embora a crítica não elogie, no mínimo é muito boa a atuação do ator George Clooney e o diálogo entre ficção e humanismo no filme é muito bem feito, deverá ter indicações ao Oscar. 

A mistura de ficção científica com sentimentos parece inadequada, esta é uma das principais críticas, penso que em se tratando de uma crise profunda em nosso planeta é adequada esta mistura, a segunda crítica principal é o tipo de enredo, sem dúvida muito diferente, as vezes perdemos a sequência e precisamos pensar um pouco, neste ponto é curioso o sucesso no Netflix, talvez as pessoas tenham aprendido a gostar disto, reflexão é bom e nos leva a questões.

O filme me levou a pensar em 2021 pois é uma atitude resiliente, de minha parte, pensar se o pior acontecer o que eu poderei fazer de positivo para me ajudar e ajudar as pessoas.

Que venha a vacina, que iniciemos um processo de retomada da vida, porém esperamos que a nova normalidade seja mais humana, com um olhar mais empático aos que nos rodeiam, e que tenhamos mais solidariedade entre as pessoas, então a pandemia nos terá ensinado algo.

Porém é preciso mudar atitudes, comportamentos e mentalidades, não bastam gestos afirmativos de pessoas bem intencionadas e altruístas, é preciso levar mais a sério aquilo que podemos nos ajudar como humanidade, como sociedade e como pessoa.

Que venha 2021, com vacina e com muita solidariedade e se for necessário com muita resiliência.

 

2020: um ano para o qual não houve preparo

30 dez

A pandemia nos pegou de surpresa, é tanta que ainda há pessoas que não acreditam que ela está acontecendo, em números redondos são quase 82 milhões de casos de covid-19, 46 milhões de recuperados, e está chegando a quase 2 milhões de mortes no mundo todo.

A olimpíada do Japão foi adiada, se ocorrer será em escalar bem menor que as anteriores, aviões pararam depois de recordes de voos em 2019, que chegaram a ter em um único dia 230 mil voos, cidades inteiras vazias devido ao “lockdown”: Paris, Londres e outras grandes cidades europeias ficaram irreconhecíveis sem o agito diário e as economias em todo mundo se fragilizaram.

Muitos analistas anteciparam um pós-pandemia que ainda é incerto e assim como foi a pandemia imprevisível, de apocalípticos a utópicos, o que será a nova normalidade pode ainda ser indefinível.

Na política a polarização continuou, novas crises de problemas sociais antropologicamente graves como o racismo, o machismo e a xenofobia (vejam a análise de Sloterdijk no post anterior) vieram a tona, já que são problemas que sempre existiram na história humana.

Também uma palavra que defina o ano para aqueles que tem consciência deste conjunto de questões sejam resiliência, porém o uso adequado desta palavra implica num conhecimento ainda maior de seu significado: a capacidade do indivíduo lidar com problemas, adaptar-se a mudanças, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas ou alguma situação dramática.

Enquanto alguns países conseguiram reagir com resiliência, devido a cultura e as dificuldades políticas, a maioria dos países, ao menos do ocidente oscilou entre situações de restrições com fechamento de locais públicos: shoppings, bares, restaurantes e praças de espetáculos, e uma flexibilização que quase sempre levou a um aumento da covid-19.

Um ano absolutamente anormal que uma análise mais profunda só poderá ser feita a partir de algum distanciamento histórico e o que pode ocorrer depois da vacina é imprevisível.

 

O novo livro de Sloterdijk

29 dez

O livro “Las epidemias políticas” de Peter Sloterdijk ainda está em andamento, porém já há citações e comentários sobre ele, onde se lê que há uma “quase perfeita sincronicidade da pandemia microbiana com a informativa, e acredita que a crise atual poderá levar “a uma consciência coletiva dentro do individualismo”, onde aparece um otimismo novo.

Um dos comentários mais lidos sobre o proto-livro é o que foi publicado em 26 de agosto de 2020 na por El Ciudadano, e que foi comentado pela revista brasileira IHU (Instituto Humanitas Unisinos).

Nele afirma que a sociedade ainda não está “em condições de olhar para além da pandemia” e prevê que pouco vai mudar pois “muitos aguardam com ansiedade o retorno à contidiana frivolidade do modo de vida consumista” e apenas com tempo e reflexões é que isto “levará a uma transformação da consciência coletiva dentro do individualismo.

O nome é porque vê os meios de comunicação como “portadores de infecções” e que a democracia atual é superficial para abrigar a troca de argumento e o diálogo, então estamos sempre “entre epidemias, estratégias e vacinas” num sentido mais amplo, onde a informação é apenas uma rede de “emoção, envenenamento e destruição do juízo público”.

A análise é precisa porque o dualismo e a polarização não tem só um lado, mas tem os dois igualmente e parece que estamos presos a esta lógica onde os argumentos pouco importam.

Aponta por exemplo sobre o discurso do ódio, o fato de que “as pessoas muitas vezes tendem a ver o outro como uma fonte de perigo não é uma consequencia da atual pandemia de coronavírus, nem é uma invenção do racismo pseudoobiológico do século XIXI, Claude-Lévy Strauss apontou, há muito tempo que uma dose de xenofobia faz parte da herança ancestral da espécie homo sapiens”.

Apesar dos sistemas que explicavam tudo terem fracassado detecta que “agora, quase nada é tão contagioso como o entusiasmo pelas ideias universalistas. Quando o universalismo fracassa, surge a crítica. Quando a crítica fracassa, surge furioso o ressentimento em massa” e conclui que é isto que leva as “epidemias da ira”, enfim nossa dificuldade de resignação e resiliência.

Faz sua síntese histórica analisando que “Na Europa, o Iluminismo começou com a afirmação de que o bom senso é a coisa mais bem distribuída no mundo. Existem muitas razões para duvidar da veracidade desta tese”, agora sabemos que seguranças e imunidades são mal distribuídas.

 

É obrigatório tomar qual vacina?

28 dez

Assim disse o STF, entretanto a fase final de teste da vacina chinesa Coronavac no Brasil somente terá o relatório divulgado dia 07 de janeiro, informou o Governo do Estado de São Paulo, já a vacina da Pfizer em colaboração com a empresa alemão BioNTech está sendo usada no Reino Unido, desde o dia 2 de dezembro e milhares de britânicos receberam a primeira dose da vacina, a empresa divulgou os dados detalhados da fase de testes que foram validados (conferidos pela comunidade científica), no Brasil a CoronaVac ainda não.

A vacina da Pfizer já está autorizada nos Estados Unidos e deverá estar na Europa Continental, a Argentina adotou a vacina russa e começará a vacinação na terça-feira (29/12).

As campanhas de vacinação contra a covid-19 começaram neste domingo na União Europeia (16 países já autorizaram no total de 27), e na Rússia a Sputnik está sendo aplicada desde 5 de dezembro, porém a fase de testes foi atropelada.

Se é verdade que há ideologização da vacina chinesa, ela tem dois lados, pois sua aprovação não está seguindo os caminhos tradicionais, se a Anvisa está desautorizada, isto sim é assunto do STF.

Desde 9 de novembro, quatro laboratórios anunciaram que suas vacinas têm eficácia elevada: Pfizer/BioNTech, Moderna, AstraZeneca/Oxford e o instituto estatal russo Gamaleya, a AstraZeneca anunciou neste fim de semana que tem um remédio para cura de doentes já infectados, claro isto ainda deverá entrar na fase de testes.

A AstraZeneca é a mais barata (2,50 euros/3 dólares a dose), a Moderna e a Pfizer/BioNTech tem problema de logística pois devem ser transportadas em baixas temperatura -20º.C e =70º.C.

Os especialistas afirmam que os efeitos colaterais existem, diversos informativos dão esta informação, destaco a Isto é no Brasil e no exterior a AARP Foundation, fundação que auxilia aposentados americanos.  

Apenas o Brasil (oficialmente o Estado de São Paulo e a prefeitura do Rio de Janeiro), a Indonésia e a Turquia estão comprando a vacina Coronavac, todos queremos a vacina, sem critérios científicos a polarização política mais uma vez não esclarece nada, a vacina deve ser testada e aprovada, os dados devem ser validados pela comunidade científica e pelas agencias reguladoras.  

 

Intimidade nova e mundo novo

24 dez

Na intimidade, em nossas “bolhas” que geramos nossa cultura, defendemos e promovemos nossas ideias, nossos valores e aquilo que desejamos para um mundo melhor.

O Natal de alguma forma ainda faz os homens se solidarizarem e pensarem de modo generoso no mundo futuro além da sua bolha, de seu egoísmo, e se isto se prolonga pelo ano um novo mundo pode nascer, mesmo estando numa crise pandêmica que já é também uma crise mais ampla.

As reflexões de Sloterdijk e de outros pensadores é como a interioridade tornou-se um mundo isolado, como uma “bolha”, e nela reflete o nosso estágio inicial de nossa vida no útero materno e se prolonga pela vida, a análise feita por Sloterdijk (também Bachelard o faz de outro modo, veja o post) é como a passagem bíblica do profeta Jonas no frente da baleia, que é ilustrativa deste modo de ser, de busca de uma “intimidade” de conforto.

Ao permanecer no ventre da Baleia, simbolicamente é o que buscamos como região de conforto, ou de segurança, num mundo hostil onde devemos buscar uma co-imunidade, uma defesa onde todos podem participar e usufruir de um bem-estar, estar no ventre é uma recusa deste passo.

O nascimento de Jesus para os cristãos significa o anúncio deste ventre, deste “reino”, nesses dias comemoramos a vinda através de um menino-Deus deste tempo novo de um mundo novo.

A passagem bíblica que relata o nascimento de Jesus diz que José e Maria foram para Belém, devido o censo feito pelo Império romano: “para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto, e Maria deu à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,5-7).

 

Esferologia, a intimidade e a exterioridade

23 dez

Não por acaso Sloterdijk faz um elogio rasgado a Gaston Bachelard no início de Esferas I, sua abordagem tem um diálogo profundo com A poética do espaço de Bachelard, pois tanto um como outro o tema intimidade está ligado a articulação e duas concepções: “exterioridade” e “espaço”.

O primeiro ponto é entender que a abordagem fenomenológica tem influência direta do Ser e Tempo de Heidegger, ao mesmo tempo que esboçam críticas, mesmo não tendo Heidegger se debruçado profundamente sobre o tema, está nas entrelinhas de seu trabalho.

No capítulo inicial, Sloterdijk refere-se ao humano com os chamados “blocos erráticos”, em que o espanto com o próprio “eu” no mundo seria como estes blocos que “estão ai”. Diante disto, abre-se a possibilidade da consciência fazer-se com o mundo. O reconhecimento desta condição de estar jogado aleatoriamente no mundo não se dá de forma tranquila, mas por meio do “inesperado, o rebelde e o inquietante que o extático achamento pessoal pode ser” (SLOTERDIJK, 2008, p. 16), blocos erráticos foram as formações geológicas deslocadas na última era gracial.

O primeiro volume é dedicado a questão da intimidade e Sloterdijk parte da relação mãe-bebê, estamos unidos a um outro corpo desde o momento da concepção, por um “órgão rejeitado” que é a placenta, enquanto em outras épocas ele era de alguma forma ritualizado, agora é descartado como lixo o “acompanhante originário”.

Ele apontará a partir disto (como fez com o profeta Jonas) procurar caminhos não explorados pela filosofia atual, “a relação, a conexão, a flutuação num dentro de-algo e num com-algo, o estar contido num entre” (SLOTERDIJK, 2016) e por isto sua esferologia é sua obra essencial.

Destaco a obra de Bachelard porque para ele há uma perspectiva que considero mais ampla, a de descrever que a experiência íntima além da experiência com o outro, com a totalidade do mundo.

É assim também em Bachelard uma contraposição a Heidegger, onde afirma: “De nosso ponto de vista, do ponto de vista de um fenomenólogo que vive das origens, a metafísica consciente que se situa no momento em que o ser é ‘jogado no mundo’ é uma metafísica de segunda posição” (BACHELARD, 1993, p. 27)

Enquanto Sloterdijk é o útero o “espaço” primordial, o local do bem-estar, para Bachelard é a casa, o lugar paradigmático do bem-estar e da proteção.

Se entendermos interioridade como o lugar em que conjugamos estas duas sensações: o útero que é a casa primordial, e a casa que é o espaço no mundo onde co-habitamos com outros seres, não apenas humanos é claro, podemos conjugar interioridade e intimidade, e temos um novo horizonte não apenas metafísico, mas humano, divino e entre estas duas conjugações: o útero original, a casa comum e o destino final que a interioridade provê.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes,1993.

SLOTERDIJK, P. O Estranhamento do Mundo. Trad Ana Nolasco. Lisboa: Relógio d’Água, 2008           

SLOTERDIJK, P. Esferas I: bolhas. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.

 

Esferologia e Jonas

22 dez

A retomada do profeta Jonas dentro da esferologia de Peter Sloterdijk, deve ao conceito de intimidade que o explora bem como a concebemos, um reduto pessoal, seguro e composto por um único material particular, essa intimidade especifica não deve existe, ele usará duas expressões “díade” e pela “divalência”, depois as conjugará com uma expressão musical bicorde, onde não há uma nota dominante.

Parece que o sentido judaico de Jonas, aquele que rejeitou sua missão e foi para o ventre da baleia pouco teria de ver com isto, apenas com a intimidade, com o reduto onde caiu recusando sua “missão”, porém pensada como uma díade, a relação de dois ou mais onde não há centro, e a divalência, diferente da ambivalência onde valem iguais, há forças contrárias em relação diádica.

Não apenas nos fenômenos humanos, mas todo tipo de relação tem forças diádicas, relações intrapessoais também seriam este emaranhado de consciência entre o interno, o externo, o pessoal, o coletivo, ou se preferimos as relações idealistas, o subjetivo e o intersubjetivo.

Voltemos agora ao tema para pensar sobre Jonas, o profeta e a baleia. Ser profeta significa revelar a vontade de Deus para seu povo, assim a díade entre o divino e o humano é dita entre o homem/ santo, como homem não daria conta de sua tarefa, afinal era preciso ter santidade e habitar o divino, mas nem só santo seria o suficiente, pois é preciso ser homem para conhecer as perdições e ocupar a terra, no caso de Jonas pregar a conversão ao povo de Nínive, os assírios eram terríveis.

Aqui entra a baleia, estando nela reconhece o poder de seu Deus, reza, se arrepende e é “vomitado” em terra firme, saindo perto da cidade que devia profetizar antes de sua desobediência, mas ao ser vomitado volta para cumprir a vontade de deus e seu papel de profeta.

Aqui entram as notas bicordes, o final triunfante, não é nem a estrutura de homem, nem a de profeta que vence, é um lugar de homem/profeta, a estrutura relacional já está toda aí, bem diante de nós se quisermos dissecá-la, cumprirá a missão, mesmo não a desejando.

Para os cristãos é a importância da missão, mas para Sloterdijk é mais transcendente ainda (mesmo não tendo o menor tique religioso), é responder a sua pergunta essencial da esferologia: onde estamos quando estamos no mundo, Jonas é fundamental por isto, no ventre da baleia com medo de nosso destino, então precisamos ser vomitados para entender as nossas tarefas.

Diz o filósofo ironicamente: “os únicos corpos que são localizados sem dualidade no mundo são os dos mortos” (Esferas I), e pergunta a mim e ao leitor é: Onde você está agora? A resposta para isto não é um simples GPS, mas sim é a sua consciência a única ferramenta que você possui disponível para perceber o seu entorno e articular uma resposta mais sensata e que diga algo sobre estar aí.

 

O Natal da pandemia

21 dez

Será um Natal mais silencioso, apesar de grupos que insistem em fazer concentrações e festas com muitas pessoas, será mais próprio da criança que nasceu num humilde estábulo na cidade de Belém, a foto ao lado mostra a iluminação deste ano na cidade.

Aquela criança foi contata entre os homens, estava na lógica divina e humana porque o censo foi feito por ordem do império romano, assim Ele esteve (para quem crê está) entre nós, aquilo que as profecias do antigo testamento chamavam de Emanuel (Deus conosco).

A pandemia nos isolou em família, e a tendência para quem entende que a prevenção é necessária será reunir em pequenos grupos, talvez com menos barulho, a maioria das festas de passagem de ano já estão canceladas, fogos e comemorações serão sóbrias.

A espera da vacina, a maioria ainda está na fase de testes, é bom que se diga, e ainda há controvérsias sobre efeitos colaterais, são importantes de serem conhecidos, a bula é necessária como qualquer outro remédio, onde se apresentam contraindicações.

Não há espera que não cause alguma ansiedade, porém em se tratando de saúde é preciso não pular nenhuma etapa, as vacinas não estão aprovadas porque não concluíram a fase de testes, mesmo na Inglaterra onde a vacina Pfizer foi autorizada, não será concluída a etapa de vacinação até o Natal como pretendia o governo.

Há notícias da própria OMS sobre mutações no vírus, é preciso verificar se estas mutações não afetam a gravidade, os cientistas britânicos chamaram a variação encontrada no sul da Inglaterra de “VUI-202012/01”, que inclui uma mutação genética na proteína “espiga”, conforme notícias de vários informativos online citando a agência Reuters.

A espera do Natal tornou-se diferente também porque não vemos muitos amigos e parentes a anos, e neste período, as pessoas retornam aos entes queridos na medida do possível, e ao menos um contato online será possível, eles se tornarão mais significativos.

 

Noogenese: matris in gremio

18 dez

Na digressão 10 de Esferas I, peter Sloterdijk faz uma relação da concepção de Maria (o nome Conceito vem de concepção) com a tragédia, e um texto que certamente é do conhecimento do filósofo é a interpretação que Hörderlin faz da tragédia grega Édipo Rei de Sófocles, onde usa o termo aórgico para a busca de Épico para saber quem é, quando mais busca a consciência menos consciente torna-se em direção a tragédia.

A tragédia é que o pai Laio, havia ouvido do oráculo de Delfos, que o filho o mataria e se casaria com a mãe Jocasta, o rei o entrega a um pastor pobre para mata-lo, mas o pastor o cria e depois ele vai parar nas mãos de Políbio, rei de Corinto que o cria como filho, mas a tragédia se cumpre e depois Édipo mata o rei Laio que era seu verdadeiro pai e desposa Jocasta ao tomar consciência da verdade cega-se, a tragédia tem mais detalhes, aqui é só para entender o aórgico.

Sloterdijk inverte esta história para falar da mariologia cristã, em sua digressão 10 Matris in gremio (colo ou regaço da mãe), onde após analisar o texto De humanitae conditionis in miseria de Lotário de Segni (1160-1216) que viria a tornar-se o papa Inocencio III, que afirma que o líquido que se alimentaria a criança é o mesmo da menstruação que seria interrompida com a gravidez.

Sloterdijk, afirma que “não há dúvida que Jesus, mesmo in gremio, deve ter sido provido de um diferente plano alimentar” (Sloterdijk, 2016, p. 557), e vai usar a Questio 31 do terceiro livro da Summa Teológica de Tomás de Aquino, porém é importante é sua “concepção”.

A citação que faz de Tomás de Aquino é importante (a leitura do filósofo é diferente, claro), pois ela explica a noogenese, e também a gênese da ligação dos dois corações:

“… pois, pela ação do Espírito Santo, esse sangue é recolhido do regaço da Virgem e conformado em feto. E por isso se diz que o corpo de Cristo foi formado pelo sangue mais casto e puro da virgem” (Aquino, Suma Teológica III, 31, 5, 3, SP: Loyola, 2001-2002).

No texto bíblico, Maria embora prometida a José, ele ainda não a desposara, diz o texto bíblico: “Maria perguntou ao anjo: “Como acontecerá isso, se eu não conheço homem algum?” (Lc 1,34), e recebe a resposta que será pela ação do espírito, sob a sombra do poder do Altíssimo.

E assim nasceu a ideia de Maria ter sido levada ao céu, mas também é o nascimento 11 séculos antes de ser aceito, o dogma de sua Imaculada Concepção (que por uso popular tornou-se Conceição), assim “é a própria matriz de Deus que ofereceu miraculosamente ao escultor o material de sua escultura, e a Deus o material para tornar-se homem …” (Damasceno apud Sloterdijk, 2016, p. 558), que assim pré-anuncia a ação aórgica de Maria com Jesus e Deus-Pai, como uma pericorese in extremis (na foto, também usada por Sloterdijk, Virgem com Abertura, final do século XIV, Museu de Cluny em Paris), citada por Sloterdijk. 

SLOTERDIJK, P. Esferas I: bolhas. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.

 

Dois corações e uma nova relação

17 dez

A sagacidade de Peter Sloterdijk penetra na mística católica pós-reforma, “particularmente sob a influência mística do Sagrado Coração de Jesus, Marguerite Marie Alacoque (1647-1690). um vasto movimento de culto, que também acabou por impor concessões litúrgicas e formulações doutrinárias” (pag. 115).

Vai destacar a obra do padre oratoriano e missionário popular João Eudes (1601-1980) “nascido na Normandia, que entrou nos anais católicos como fundador de um culto de grande força litúrgica, o culto de dois corações” (pg. 116), o Imaculado Coração de Maria e o Sagrado Coração de Jesus.

Ao contrário de muitas interpretações, este filósofo ateu, além de manter a atualidade do tema, desde ao fundamento deste tipo de mística, é “uma luta contra a vida exterior, não católica, separada de algo que não está no interior de Deus” (pag. 116).

Segundo Eudes a vida dos santos era sustentada numa “contínua suspensão da bolsa amniótica do Absoluto” (a citação é de Sloterdijk), porém o importante é destacar o típico engajamento de Maria, que consiste segundo o filósofo “no fato de ter criado um céu cardíaco bipolar, no qual o coração do Filho podia fundir-se em uma união mística com o coração da mãe” (pag. 116), algo com o tema do post anterior, mas em qualidade muito superior.

Retirada a manifestação ateística do “bipolar”, pode-se dizer que estes corações em profunda relação não é uma espiritualidade antiga, algo de senhoras que usam a fita vermelha em dias festivos do Apostolado do Sagrado Coração de Jesus, mas sim aquilo que o padre Eudes elaborou no período pós-reforma e que o filósofo chama de “o baldaquim do duplo coração do Filho e da Mãe … uma família intercordial, metafisicamente ampliada” (idem, p. 116).

Esta relação destes corações, interpretado no coração da natureza, ardendo em colabora que toca o coração radiante de amor do mundo superior na obra de Jacob Böhme (Obras Teosóficas, 1682), na foto ilustrada na página 117 do livro, a relação mais ampla aparece nas páginas finais na digressão 10 “Matris in grêmio” (no colo da mãe), descrita como um “capricho mariológico”.

A ideia da criança no ventre de Maria, toma uma figura divina (do Deus Pai), aquilo que os ortodoxos e católicos chamam de Teotokos (mãe de Deus) (na foto o ícone de G. Gashev) que para evangélicos é uma heresia, porém o que significam para este momento de crise pandêmica, e de uma anterior crise civilizatória  ?

SLOTERDIJK, P. Esferas I, trad. José Oscar de Almeida Marques, São Paulo: Estação Memória, 2016.