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Arquivo para agosto, 2020

Virus e mutações aórgicas

31 ago

Certamente o que somos hoje como estrutura física e DNA não foi sempre assim, também nossa relação com doenças e vírus são diferenciadas, doenças “infantis” como sarampo, caxumba e rubéola tornaram-se comuns e uma vacina tríplice tornou-se obrigatória, combatem estas doenças mais comuns, ao passo que em tribos indígenas e alguns povos podem ainda ser mortais, isto porque suas estruturas físicas são diferenciadas.

Certamente algo aconteceu com o mundo inorgânico que influenciou o físico, parece assustador, mas é trivial dizer que o mundo físico antecedeu ao orgânico, portanto em nossa origem aconteceu uma mutação aórgica.

O homem não existiu sempre, acredita-se conforme estudos científicos que o homo sapiens surgiu na África Oriental por volta de 300 mil anos atrás (Hubrin, Ben-Ncer, 2017), se espalhou primeiro para o leste do mediterrâneo 100 mil anos atrás (Khan, 2015) e 60 mil anos foi para o oeste, pode ter chegado na China cerca de 80 mil anos (Sherwell, 2015), então porque variações de pele, de estrutura física e tolerância a doenças aconteceram, certamente devido a mudanças alimentares, climáticas e também variações na estrutura física conforme a adaptação ao ambiente, isto é também aórgicas, desde a estrutura primordial do homem formada a partir do mundo físico.

Muitas pesquisas sobre vírus que afetaram nossos antepassados já foram estudados, como o Mollivirus sibericum, classificado como um “vírus gigante” porque pode ser visto em um microscópio ótico simples, além dele também o Pithovirus Sibericum foi estudado por uma equipe francesa do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, assim há uma “evolução” e transformação dos vírus e como afetaram historicamente o homens e a natureza, porque agora surgem vírus cada vez mais “fortes” e com características diferentes, também é uma mudança aórgica, porém ela pode também afetar a natureza, a parte física do planeta e assim a história.

No embate entre razão e entendimento, diversos autores trataram a questão aórgica desde a análise estética até o física, por exemplo, usaram estes temas Schiller e Hölderling e a apropriação aqui, para fazer inferências sobre o inorgânico (vírus não é um organismo) e demonstrar que a totalidade orgânica (holismo orgânico) não é prevalente sobre ao inorgânico (holismo aórgico), que supõe um regime de ataxia e desordem, assim como o holismo sistêmico, o pretenso discurso único que invadiu a sociologia, a história a moda de Dilthey (Gadamer o contesta) e a polarização atual não é senão um holismo sistêmico, idealismo e física pré-quântica.

Por esta teoria do holismo aórgico pode-se supor que não apenas a estrutura física orgânica do humano poderá se modificar, mas até mesmo a estrutura do planeta, a retração de atividades, entre elas as milhares de viagens diárias de aviões, o não uso de combustíveis fósseis já estão alterando (para melhor) a estrutura de mares e da terra, assim a própria estrutura do planeta poderá se modificar, e também a natureza como todo reagirá, pode ser uma surpresa, mas a natureza nos socorrerá.

Referências:

HUBRIN, Jacques Hublin; Ben-Ncer, Abdelouahed «Scientists discover the oldest Homo sapiens fossils at Jebel Irhoud, Morocco»Nature.  2017, acesso em: 20 de agosto de 2020. disponível em: https://phys.org/news/2017-06-scientists-oldest-homo-sapiens-fossils.html .

KHAN, Amina. Discovery of 47 teeth in Chinese cave changes picture of human migration out of Africa. Los Angeles Times, Science. 14 oct. 2015, Acesso em: 20 de Agosto de 2020, Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/virus-gigante-pre-historico-da-siberia-sera-acordado-6d2dtw1rz8yudoz53visogbti/

SHERWELL, Phillip. Ancient teeth found in China reveal early human migration out of Africa. The Telegraph, 2015. Disponível em:  The telegraph (acesso privado). 

 

 

O medo, a morte e a salvação

28 ago

A sociedade do cansaço, da busca da produtividade e do medo não é esta da pandemia, ela já existia antes deste evento sanitário, o que aconteceu agora é que, ao menos as pessoas que não perderam a sensatez, o medo da morte está presente e paira sobre toda a sociedade, e ignorar a morte não é boa atitude psicológica.

Assim falam psicólogos que trataram deste assunto relativo às crianças, é certo também que o medo pode levar ao pânico que não é saudável também, mas explicar e ajudar a sociedade a entender as limitações, até mesmo da produção da economia ajuda a todos, e o questionamento da hiperprodutividade que levou a sociedade e a natureza as portas do esgotamento é também saudável, agora porém vem a crise econômica e o que fazer com ela, novamente ser sensatos.

O poeta Hölderling escreveu “onde há medo, há salvação”, no início da pandemia pensávamos que era possível tratar a doença equilibradamente, reduzir um pouco a atividade que ajudaria a sociedade a reequilibrar-se, mas passados muitos meses o confinamento revelou-se também problemático, porém o medo da morte e uma certa cegueira de não desejar ver as consequências continua na sociedade, a morte é apenas uma fatalidade, e não uma possibilidade que leve-nos ao cuidado, o cuidado com a vida em todos os sentidos.

A salvação reside neste medo, a criança sem medo é imprudente, e o adulto muitas vezes também, não pensa e não age a favor da vida, da preservação de si e dos outros, pensa de maneira egoísta e isto não leva a salvação, leva ao morrer mais trágico que a fatalidade da morte, até mesmo morrer de medo, assim o saudável e equilibrado é tratar da morte, e aqueles que precisam manter-se ativos socialmente tomar os cuidados necessários, mas e a salvação, o reequilíbrio do humano.

Este está em jogo, aquilo que era tema antes da pandemia, agora reaparece de modo trágico e é preciso pensar na natureza, na produção e no dia-a-dia que levou a doenças como o pânico, a síndrome de Burnout e a sociedade do cansaço, para produzir felicidade não devemos caminhar para o extremo cansaço e o esgotamento da natureza e das forças produtivas.

A própria morte de Deus, que para muitos parece uma enorme tragédia, fundamentalista dizem o contrário e os fariseus que não devemos “propagar o medo”, quando Jesus avisa o tipo de morte que haveria de morrer, Pedro diz que Deus nunca permita tal coisa, e a reação de Jesus é no mínimo curiosa (Mt 16,23): “Jesus, porém voltou-se para Pedro e disse: “Vai para longe, Satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus, mas sim as coisas dos homens!”, e pouca reflexão se faz sobre esta passagem, no máximo dizer que é porque ia morrer na cruz, mas naquele momento nada se sabia ainda.

A lição da pandemia, do medo da morte e do morrer, que é o mais duro, é que não há salvação sem sofrimento, as vezes sangue derramado mesmo, o pós-pandemia deve provocar uma discussão e um pensamento muito mais sério do que já ocorreu até aqui, conservadores dizem a vida deve voltar ao normal e outros dizem: “e preciso mudar o combate a pandemia”, que houve muitos erros sim, mas o problema essencial é mudar o comportamento e as estruturas sociais desumanas.

 

A esfera primordial

27 ago

O surpreendente livro Esfera I de Peter Sloterdijk entre muitos conceitos novos, traz no capítulo 7, intitulado “O Estágio das sereias: Sobre a primeira aliança sonosférica”, da página 433 até a 470, mas as digressões são igualmente interessantes, um tratado sobre a relação original com a vida, com o Outro e com a psicologia em torno da questão.

Faz de cara uma analogia fundamental com as ciência sociais: “a psicologia pode cultivar sua pesquisa sobre os gêmeos, e as ciências sociais a perseguir sua quimera, o homo sociologicus; mas, para a ciência do homem filosoficamente reformulada, é a pesquisa dos pares e a teoria do espaço dual que são fundamentais. Até mesmo o que os filósofos recentes denominaram de existir humano não deve mais ser entendido como a saída do indivíduo solitário para um espaço aberta indeterminado, tampouco como a estadia privada do mortal no nada” (página 433-434), e aqui sua relação com a morte que tematiza-se esta semana.

Antes de falar da reciprocidade e da tensão dual entre indivíduos, faz uma pergunta essencial sobre a ressonância para desenvolver sua “aliança sonosférica”, cita Sócrates para falar da ressonância interior graças á qual “Sócrates ouve teu demônio intervir dissuasivamente em suas conversas consigo mesmo ­?” (pag. 435), mas também vai falar da reciprocidade “atenciosa, dita imaculada, que permite ao Anjo da Anunciação – que na maioria das vezes aparece do lado esquerdo – dizer o impossível aos ouvidos de Maria sem que sua resignação se transforme em recusa?” (pag. 435), e mais abaixo dirá “a escuta interior sempre se liga a uma mudança de atitude, passando de uma audição unidimensional atenta ao alarme e à distância, para uma audição do sobrevoo, apreendida de maneira polimorfa” (idem).

Passa ao largo os textos de Ulisses da Odisséia (já fizemos num post a comparação histórica com o Ulisses de James Joyce), vai varrer as falas e músicas, passando por ícones, livros sagrados, textos de patriarcas, hinos e clássicos” nos quais “reconhecemos potenciais culturais que sobreviveram” (pag. 436), certamente de onde retirou também o seu “estágio de sereias” do título do capítulo, fará uma justa e longa análise da Odisseia como “ressonância” desenvolvendo alguns dos seus Cantos.

O ponto central, é o ponto que considera crucial para o fundamento “da reciprocidade dos indivíduos às mensagens de seus semelhantes, alcançamos agora a região dos mais sutis jogos de ressonância” (pag. 462), para dizer que ali reside o que é sua ressonância original, e afirma que o que “denominamos de alma é, em seu núcleo mais sensível, um sistema de ressonância exercitado durante a comunicação audiovocal da esfera pré-natal mãe-criança” (pag. 462), ali se desenvolve a relação primordial com o Outro.

“Quando a futura mãe fala para o interior, ela adentra a cena primitiva da comunicação livre com o Outro interior” (idem), onde “o brilho da voz da mãe, bem antes que reapareça em seus olhos, prepara a criança para sua recepção no mundo; é somente escutando a saudação mais íntima que ela pode concordar com a insuperável vantagem de ser ela própria” (idem), é esta intimidade “em seu primeiro exercício, é uma relação de transferência” (idem), e “seu modelo não é o aprendido pela aliança simétrica dos gêmeos, os indivíduos de opiniões idênticas … mas pela comunhão inexoravelmente assimétrica entre a voz materna e o ouvido fetal” (pag. 463).  (na imagem de Anita Flatzer, Ulcherrima, de Human Time Anatomy. fotografado do Museu Federal de Anatomia Patológica, Viena) (no livro página 467).

Assim a busca do gêmeo, das opiniões simétricas ou mesmo idênticas não é uma relação nem como o mundo íntimo que já envolve a relação com o Outro, nem com o mundo externo diferente, assimétrico e até mesmo hostil, é uma relação “desde sempre  fora-de-si-em-si: a voz que saúde, ao se dirigir para esse co-ouvinte íntimo” (pag. 463), mesmo sendo Sloteridjk um pensador para o qual as religiões sequer existem, diria que é um texto de alta espiritualidade.

Afirma, neste ponto que considero praticamente central sobre o “ouvir o outro”, que ao falar da relação fetal primordial, a vê como aquela onde “não há, nesta relação nenhum traço de narcisismo, nenhum gozo ilegítimo de si próprio por um enganoso curto-circuito na relação consigo mesmo.  O que distingue essa relação é uma entrega quase ilimitada de um ao outro, bem como o fato de que as duas fontes de estímulo se cruzam quase sem nenhuma fissura” (pag. 463).

A relação de guerra, da quase exclusão do Outro, são os reflexos de um individualismo extremado, do gozo a custa do Outro, e até mesmo de sua vida, o que a pandemia poderia levar a todos a uma defesa intransigente da vida parece estar colocada em outro extremo, a eliminação do Outro, do diferente e do frágil.

SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: bolhas (José Oscar de Almeida Marques, Trad.). São Paulo: Estação Liberdade, 2016.

 

Conspiração do medo ou do silêncio

26 ago

A pandemia gerou uma angústia e um medo diante da morte e das preocupações sanitárias, o vírus tornou-se um medo para todas pessoas sérias, porém não falar do perigo e das possibilidades presentes e futuras desta pandemia pode ser uma “conspiração do medo” ainda maior.

Alguns autores já falavam da “conspiração do silêncio” que atingia a sociedade antes da pandemia, Böemer e Adorno são dois autores clássicos que tocaram no tema da morte, tomei consciência desta questão em minha viagem para Portugal, onde o tema é tratado de forma diametralmente oposta ao Brasil, e a pandemia trouxe de volta o tema.

Já tocamos as raízes históricas e sociológicas da tragédia grega, particularmente nos textos de Nietzsche e Hölderling (veja o post), porém agora a questão é se falamos da pandemia e causamos mais medo e pânico ou evitamos e entramos numa espécie de “conspiração do silêncio”, aquela que vai passando de geração em geração, evitar que uma criança veja a morte, não ficar comentando a doença e o morte de alguém.

O silêncio relativo a morte é mais profundo que o morrer, que é tomado como um fato natural da vida, mas que só deve ser pensado quando a hipótese de fato existe, assim não faz sentido para uma criança ou para um jovem, também para mim era um tabu porque imaginava que o ciclo biológico natural: nascer, crescer, envelhecer e morrer estava rompido, ou inter-rompido, por isso a morte parece mais “natural” que o morrer, o evento contrário ao devir, vir-a-ser.

A proximidade, quase diária com a morte, continua por outro lado com a conveniência de não afetar a “todos” porém é demasiado desumano, e isto me fez repensar mais uma vez no morrer, antes questionado para crianças e jovens, agora penso também em idosos abandonados a própria sorte e as suas comorbidades.

A “conspiração do silêncio” é aquela atenuação do morrer, tentando afastar o medo do sofrimento, a degeneração, a solidão e o abandono, a ideia é tornar o homem privado de sua “morte” conforme dizem alguns autores (Carvalho, 1994),  usando do homem privado de sua morte, de sua humanidade (14,15), com eufemismos ou alusões a falsas situações (viajou, está com a vovó, etc.) para mantê-la distante do mundo dos vivos e da fatalidade do morrer.

É cruel pensar no morrer, mas mais cruel não falar e não citar que muitos estão morrendo, que é possível que menos pessoas morram, e que além da prevenção, todos devemos sonhar com remédios que possam nos separar desta noite de sofrimento que envolve toda a humanidade, falar dele é solidarizar-se.

 

Adorno Y. Conversando com a criança sobre a morte. Campinas (SP): Psy, 1994; 20 p. 12. Araújo PVR, Vieira MJ. As atitudes do homem frente a morte e o morrer. Texto & Contexto, Florianópolis (SC) 2001 set/dez; 10(3): 101-17.

Böemer MR. A morte e o morrer. São Paulo: Cortêz; 1986.

Carvalho MMMJ, coordenadora. Introdução à Psiconcologia. Campinas (SP): Psy II; 1994.

 

Mistério não é ignorância

25 ago

Histórias de culturas, de tradições culturais que envolvem o imaginário, e o próprio imaginário são envoltos em mistérios, mas não se deve confundi-los com ignorância ou superstições, é isto que pode-se ler no livro do quase centenário Edgar Morin “Conhecimento, Ignorância e Mistério”. le-se aí muito sobre o conhecimento, algo sobre a ignorância e o essencial sobre o mistério, a dosagem de Morin é perfeita e um bom remédio para o pandêmico.

Ele prepara um livro para a pandemia, mas como sempre se antecipa à história espero ler e acredito que ele é um dos poucos que pode falar sobre o novo nomrla ou o pós-pandêmico justamente porque enfatizou numa de suas conferências que a crise sanitária nos pegou de surpresa e nos colocou de joelhos.

Além de livros planetários como “Terra Pátria”, sobre epistemologia “O Método” em seis volumes, é um dos raros que se arriscou a trilhar novos caminhos em nossos dilemas globais através de “Para Sair do século 20” e “Diante do Abismo”, porém neste livro de 2018, o seu salto é sobre o mistério sem escorregar pelos caminhos fáceis da crendice e da ignorância, questiona tanto o fetiche da razão como o determinismo materialista, entre suas diversas obras estão os Estudos Transdisciplinares feito num no Centro destes estudos em Paris com o filósofo, importante para o mundo digital Michel Serres, recentemente falecido, e proclama que podemos com a disciplinaridade e com a excessiva especialização caminhar para um novo “obscurantismo”.

Separa claramente a ignorância do mistério, para ele ““Só podemos apreender o real por meio das representações e interpretações. A realidade do mundo exterior é uma realidade humanizada: não a conhecemos diretamente, mas por meio do nosso espírito humano, traduzida/reconstruída não só pelas nossas percepções, como também pela nossa linguagem, nossas teorias ou filosofias, nossas culturas e sociedades”, e o mistério é para ele equacionado pela transdisciplinaridade como “a contradição a que chega todo conhecimento aprofundado não é erro, mas última verdade concebível”.

Valoriza o mistério como caminho de descoberta e conhecimento: “O conhecimento complexo é o caminho necessário para chegar ao incognoscível. Caso contrário, continuamos ignorantes da nossa ignorância. O mistério em nada desvaloriza o conhecimento que a ele conduz.”

Chama o nosso meio atual como tendo uma “cultura do cancelamento”, uma meia-sola mais rancorosa nas velhas patrulhas ideológicas, e elas parecem agora recrudescer com o retorno da polarização ideológico, que no pós guerra criou uma tensão constante em toda humanidade.

 Que lembra quando as crianças tapam os ouvidos e emitem cantilenas miméticas (ele chama de guturais) para não ouvir interlocutores que as contradizem (se você nunca fica sabendo que pode estar errado, estará certo para sempre), assim a polarização e radicalização parece vir da educação berçária.

Não é só o meio natural que precisa de biodiversidade, o meio cultural e a democracia também precisa, como afirma Morin na verdade “dependem da biodiversidade”, estamos dispostos a conviver com o que é diferente ou desejamos eliminá-lo, a resposta dada em escala global é assustadora, está sim não é mistério para ignorância e desprezo pelo Outro.

MORIN, Edgar. Conhecimento, Ignorância, Mistério. 1ª. edição. BR: Bertrand do Brasil, 2020.

 

Porque é difícil uma vacina este ano

24 ago

Há três fases para que uma vacina seja liberada, no Brasil o órgão responsável pela avaliação e aprovação de solicitações para realização de pesquisas clínicas com fins de registro e de pedidos de registro de produtos imunobiológicos desenvolvidos na indústria farmacêutica é feito pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), há comitês de ética que acompanham as etapas dos estudos, os Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) e/ou da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), então há critérios e cuidados que são observados.

Na fase 1, são selecionados pequenos grupos de voluntários, normalmente adultos saudáveis, são avaliados para a verificação da segurança e determinação do tipo de resposta imune provocada pela vacina, na fase 2, há a inclusão de um maior número de indivíduos e o produto é administrado em indivíduos representativos da população com menores proteções imunológicas (crianças, adolescentes, idosos e pessoas com imunologia comprometida), já na terceira fase é preciso aplicar numa grande quantidade de indivíduos e garantir o mínimo possível de reações adversas e contra-indicações, nesta etapa o número de voluntários deve ser grande.

A empresa só vai solicitar o registro de produtos com estudos na fase 3 em andamento, assim os dados das etapas 1 e 2 devem estar consolidados e sua eficiência demonstrada com alta eficiência terapêutica e/ou preventiva, e não exista terapia alternativa comparável aquele estágio da doença, aqui entra em cena o jogo dos interesses econômicos que podem ser levados para o campo político e até mesmo de disputa de mercados, porém é de se esperar que no caso da Covid-19 haja alguma ética neste processo.

Há 26 vacinas em estágio avançado, mas as quatro vacinas com potencial uso no Brasil são de quatro técnicas diferentes:  o vetor viral é a técnica de Oxford e AstraZeneca que tem colaboração da FioCruz brasileira, a do laboratório chinês Sinovac tem participação do Instituto Butantan, a BioNTech – Wytech/Pfizer tem laboratórios privados no Brasil e anunciou que poderia estar pronta em Outubro, e, a Janssen Pharmaceuticals (Johnson & Johnson) adota a técnica do vetor de adenovírus (veja as técnicas e colaborações na figura).

A Sinovac com a técnica de vírus inativado poderá estar pronta para o ano que vem, a Janssen não fez grandes anúncios ainda, mas sabe-se que irá para a terceira fase, e a mais promissora que é a de Oxford está na fase 3, mas não deverá estar disponível até na melhor das hipóteses em dezembro.

De acordo com a Anvisa, o prazo para a manifestação sobre a vacina é de até 60 dias, embora a Anvisa tenha acelerado o processo de pedidos para medicamentos e vacinas no caso da Covid-19 instituiu um Comitê de Avaliação de Estudos Clínicos, Registro e pós-registro de Medicamentos, que inclui vacinas.

Assim ainda que o pedido esteja encaminhado em Outubro o provável de sua aprovação é para dezembro, até iniciar a produção e colocar a disposição dos órgãos de saúde deverão estar pronta para início da vacinação em meados de janeiro, antes disto cuidado, prevenção e manter as esperanças.

Enquanto isto estamos, no Brasil, paralisados num patamar de mil mortes diárias.

 

Para vocês quem é A verdade ?

21 ago

O certo é que a verdade é quem e não o que porque o que será só um objeto e esta verdade só poderia ser estabelecida por uma relação dual: do sujeito com o objeto o qual ele interpreta, é por isto que caímos no relativismo ou na pura doxa, a opinião, a verdade só pode ser estabelecida na relação om o Outro, na filosofia socrática, a verdade não está com os homens, mas está entre eles, na sua relacionalidade.

Porém o estabelecimento desta verdade requer o desvelamento ontológico, não é simples porque embora seja intrínseco ao ser, o que ocorre a partir do idealismo é um grande velamento do ser, somente a partir de Heidegger vai se pensar este desvelamento, mas ainda permanecemos na noite do pensamento e da cultura.

O ser na relação com os objetos, que é também intrínseca do ser, ele é substância material, a hylé grega, da qual surgiu o hilemorfismo (teoria que agrega hylé e morphé) segundo a qual todos os seres corpóreos são compostos por matéria e forma, que a partir da escolástica é pensada como substância.

As consequencias desta verdade ontológica tem impacto na antropologia filosófica, a que estuda como o homem pode compreender-se, assim um sentido metafísico é recuperado e pode-se discutir o homem também num sentido escatológico, de onde vem e para onde irá, ou teleológico como prefere a literatura convencional.

Filósofos como Bernar Groethuysen afirmou que “a reflexão sobre nós próprios, reflexão sempre renovada que o homem faz para chegar a compreender-se”, já Landsberg dirá de outra forma: ”explicação conceitual da ideia do homem a partir da concepção que este tem de si mesmo em determinada fase de sua existência”, mas a pergunta cabe a todos e para você quem ou o que (para a pergunta não ser direcional) é a verdade ?.

Se a pergunta é hilemórfica, o homem veio do pó e ao pó retornará, mas há uma resposta aórgica, especial para nossos dias, a sua forma ou estrutura poderá mudar e assim haverá uma mudança, aquilo que Fritjof Capra chamou de reinvenção do homem, e que eu pensando como cristão, uma mudança em sua alma.

Após uma longa convivência com os discípulos é a pergunta que também Jesus vai fazer aos seus discípulos (Mt, 16:13-14): “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem “ Eles responderam: “alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias, outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas”, porém quem é hoje para nós, não para os não crentes, mesmo para cristãos ainda parece ser um personagem enigmático, milagreiro, histórico, político ou era mesmo Deus ?.

A verdade pode parecer simples demais, não ter uma lógica profunda intrincada, não ser ligada a nenhuma forma de poder ou política temporal, mas e se for Ele a verdade ? quanta coisa mudaria na vida do planeta, como mudaria nossa visão da pandemia, da distribuição dos bens e da solidariedade ?

Aos que não creem e se for mesmo Verdade, poderia ser uma grande resposta em tempos de pandemia e de dificuldades sociais, mas a pergunta d´Ele próprio para nós está aí, teríamos coragem de responde-la a todos os homens ?.

 

A verdade é lógica, ontológica ou poder

20 ago

Os sofistas diziam que o homem é a medida das coisas (Protágoras), não para afirmar qualquer princípio ontológico, apenas para reafirmar o status quo vigente que em última instância é o poder, usavam para isto a arte da persuasão (Górgias) e por último afirmavam a conveniência do mais forte (Trasímaco), quase todos aparecem nos diálogos de Platão, através dos diálogos de Sócrates) e cuja preocupação era contestá-los para afirmar a democracia da polis.

Depois vivemos vários séculos organizando as leis até fazer a passagem da cidade-estado grega para os burgos pós-idade média, onde o liberalismo vai crescer até tornar-se o Estado moderno, criando o conceito de nação e o contrato social que rege determinado povo.

Para a visão epistemológica moderna, a verdade está ligada ao objeto (a coisa em si) e isto o torna relativa, pois está submetida ao espaço, ao tempo e às categorias, este conceito vem de Aristóteles, mas foi sobre ele que o pensamento da idade média se dividiu entre nominalistas e realistas, mas para ambos e também para Descartes que vai estabelecer a res-extensa (matéria), a res-cogitans (coisa pensante) e a res divina (coisa pensante perfeita, infinita).

É Kant que faz a ligação da coisa pensante sobre o objeto tornando-se relativa, pois tal verdade é ao sujeito cognoscente tendo então uma face subjetiva, própria do sujeito, para ele a “coisa em si” (o objeto) transforma-se em “a coisa em mim” (sujeita a subjetividade).

Isto significa que diante do objeto, a consciência desenvolve o trabalho na produção da verdade de acordo com o espaço em que esse objeto está ocupando, o tempo que ele está situado e em que categoria se encaixa, trata-se então de categorizar e organizar os objetos em torno de conceitos.

Não é difícil entender que isto cria uma estrutura lógica que vai num primeiro instante criar uma lógica positivista e mais tarde um empirismo lógico, ou um neologicismo, em ambas correntes qualquer aspecto metafísico é negado, assim a lógica não é mais função de uma construção argumentativa, mas de um cálculo de proposições que segue uma estrutura lógica, em última instância é também o que justifica o poder e suas maquinações.

Retornamos as narrativas sofistas, a ideia de que é o poder que diz o que é verdade, então trata-se de conquistá-lo muitas vezes numa lógica na qual os fins justificam os meios, assim justifica-se a corrupção, a ausência de virtudes morais e até mesmo a morte.

A verdade ontológica parecia ter sucumbido, mas foi a hermenêutica e a fenomenologia as raízes que recuperam a ontologia moderna, Franz Brentano vai usar uma subcategoria do conceito ontológico de consciência, ao elevar a intencionalidade a uma categoria superior e torná-la “fenômeno mental”.  

Husserl aluno de Brentano, vai recriar a intencionalidade e retirá-la do aspecto psicológico ainda com resquício empirista, e vai dizer que só tem sentido chamar de consciência, a “consciência de algo”, isto significa que não existe consciência da coisa-em-si, mas a intencionalidade na consciência de algo.

A intencionalidade distingue a propriedade do fenómeno mental: ser necessariamente dirigido para um objeto, seja real ou imaginário. É neste sentido, e na fenomenologia de Husserl, que este termo é usado na filosofia contemporânea, também por Heidegger, mas que vai recuperar e transformar a ideia do Ser.

Entretanto é necessário lembrar que Heidegger em O meu caminho na fenomenologia, deveu-se a leitura em 1907 da dissertação de Brentano escrita em 1862: “Da múltipla significação do ser em Aristóteles” (Brentano, 1862) e isto significou uma retomada do caminho de seu mestre Edmund Husserl.

Heidegger ao contrário de Brentano nega a caracterização fundamental do ser como substância, uma vez que, Brentano ainda estava ligado à tradição interpretativa medieval, desconsiderando a dimensão do papel na linguagem, por isto dirá com propriedade que é uma “questão nova” o seu Dasein.

O ser-verdadeiro (a verdade ontológica) como ser-descobridor [Wahrsein (Wahrheit) besagt entdeckend-sein] é o modo de aparição da aletheia, é o que Heidegger dá o nome de desvelar, pegando-o ao pé da letra (mas traduzido, o que já é uma interpretação):

“O enunciado é verdadeiro significa: ele descobre o ente em si mesmo. Ele enuncia, indica, “deixa ver” (apophansis) o ente em seu ser e estar descoberto. O ser-verdadeiro (verdade) do enunciado deve ser entendido no sentido de ser-descobridor.” (HEIDEGGER, 2009, p. 289)

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. 4ª ed. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: São Paulo, 2009.

 

Depois da chuva e a pandemia

19 ago

O filme de um assistente de Akira Kurosawa, Tadashi Koizumi, tem este nome “Depois da chuva” (Ame Agaru, 1999) era um roteiro de Kurosawa que Tadashi herdou, o primeiro ponto que pode-se destacar neste filme é a relação homem/natureza que limita a ação humana e ficam presos no meio de um caminho esperando a chuva passar, como muitos outros tem também um samurai, mas ele vai ter ali que realizar uma tarefa que não é muito digna de um samurai, arrumar dinheiro para as pessoas que ficam ali poderem comer, esta é minha analogia com a pandemia, ali do tempo em que todos ficam presos na casa, analogia que faço com o isolamento social.

O protagonista do filme é um personagem do tipo “jidai-geki” (os filme que tem inspiração na história do Japão), poderia ser também um filme sobre o “outono de um samurai”, há outro filme de roteiro feito por herdeiros de Kurosawa chamado “Rapsódia em Agosto” (1991), neste o diretor foi Kiyoko Mura.

Esta cosmovisão de não conceber o homem separado da natureza, em tempos que a ecologia era ainda tema marginal, agora com a redescoberta da natureza temos uma interessante analogia a ser feita, a natureza nos limitou atrás de um vírus, e ontem assistimos picos de temperaturas baixas no sul do continente americano, as temperaturas tem ficado 20ºC abaixo de zero em Rio Grande (Terra do fogo), de acordo com os dados do Serviço Meteorológico Nacional (SMN) da Argentina.

Já nos EUA onde é verão, o recorde de temperatura alta foi no “vale da morte”, 54,4ºC um recorde muito próximo da maior temperatura já registrada na região que foi de 56,9ºC em 1913, segundo o Serviço Nacional de Meteorologia (NWS) americano, a natureza dá seus sinais de reação a ação ecológica pandêmica de séculos.

Voltando a chuva no meio de uma mata por onde passam pessoas pobres, num certo momento o samurai se vê na condição de ajudar aquelas pessoas devido o longo período que estão isolados, e ao sair depara-se com um assassino que o samurai vai impedir um duelo que poderia terminar em morte, e por isto o senhor feudal dono daquelas terras decide emprega-lo como mestre espadachim, resta um escrúpulo que é aceitar dinheiro, o que é desonroso para o samurai.

O Samurai decide fazê-lo por um fim nobre que é ter alimento para aqueles pessoas que estão retiradas ali quase todas pobres por estarem fazendo aquele caminho pelo meio da mata, quando foram impedidos de prosseguir pela chuva.

Se a mensagem naquele tempo foi pouca apreciada, hoje com a situação econômica que teremos depois da pandemia, a mensagem é nobre e social.

Abaixo um link para ver o filme:

https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=1mR0KV-c9EY

 

A pandemia e a doxa

18 ago

A mera opinião sobre temas tão complexos quanto o tratamento da pandemia expôs o mundo da mera opinião ou da “doxa” como os gregos chamavam aquilo que era oposto a episteme, ou o conhecimento organizado e sistematizado.

O número de soluções curiosas no combate ao vírus é enorme: usar limão até ozônio, os remédios que são efetivos para outras doenças como o uso da cloroquina para malária, usos de chás e águas quentes, determinadas frutas e legumes, a FioCruz que acompanha o desenvolvimento da vacina de Oxford fez uma pesquisa, que dá como 73% falsas as notícias sobre curas do coronavírus no Whatsapp, em sua grande maioria são receitas caseiras sem efeito nenhum sobre a doença.

Toda a vida no tempo de Platão (428/427 a.C. – 348/347 a.C.) acontecia em torno da polis, onde já haviam então o cidadão da polis, o político, porém ainda dominavam os sofistas, que buscavam apenas argumentos para favorecer o poder, sem se preocupar com a justiça e a verdade.

No livro República de Platão o termo episteme, que antes suportava a possibilidade de ter habilidade para algo, agora adquire o conteúdo de saber pleno de certeza, um saber evidente que é ligado a realidade do Eidos (a Ideia para os antigos), com isto episteme é conhecimento verdadeiro e totalmente oposto a doxa, reduzida a simples opinião.

É na relação entre epistemologia e ética, que é possível considerar a ação sob um ponto de vista da doxa, embora não signifique um fundamento deste tipo de saber ético em Platão, pois ele aparecerá com Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), em especial no seu livro “Ética a Nicômaco”.

O problema da determinação destes conceitos ligando-os a questões éticas aparecem nos primeiros diálogos até a República, que se mantém depois no diálogos sobre as Leis, tornando possível abordar esta questão em diálogos posteriores.

Platão usa os conceitos de nous (República VI 511d4) e noesis (República VI 511e1), a doxa está no mundo da realidade sensível, enquanto a episteme está no conhecimento dianoético (dianoia, é a forma de pensar menos elevado que a noesis) que tem por objetos os noeta, mas são inferiores a dialética (República VII 533d).

Aristóteles vai negar a existência de eide (pensamento puro) em termos platônicos, assim sua episteme vai designar para ele o conhecimento das causas necessárias (está desenvolvido nos primeiros analíticos) e consiste de na demonstração (apodeixis) e na sensação (aisthesis) tornam-se necessárias para a episteme.

Para não complicar muito, os gregos foram, é na Metafísica (E 1, 1025b-1026a) que o termo episteme vai designar uma organização sistemática dos conhecimentos racionais, chegando assim a apontar para o conhecimento teorético, em sua oposição ao conhecimento prático e poiético (Ética a Nicômaco VI 3, 1139b14-36).

Seja qual for a forma de conhecimento sistemático, a ciência tem seus caminhos e negá-los é colocar toda a humanidade a prova, nem receitas caseiras, nem vacinas sem as condições de testes são aceitáveis, é preciso prudência já pagamos um preço demasiado pelas mortes na pandemia, que a cura seja para eliminar as possibilidades de reinfecção e efeitos colaterais, é a dose do veneno que faz o remédio, porém o inverso é verdadeiro também.