O desencantamento do mundo e a esperança
A guerra é o ápice do desencantamento, mas ela se reproduz nas narrativas, nas intolerâncias e pequenas guerras do dia a dia que provocam a expulsão do Outro, principalmente quando há interpretações e visões diferentes do que são os “fatos”, mas se valem de pequenas guerras ocultas em suas narrativas e num contexto restrito onde ela é válida.
O desencantamento do mundo, agora retomado pela crise da narração de Byung-Chul Han, já foi tema de Max Weber que referiu-se ao fenômeno como um processo no qual o sujeito moderno passou a se despir de costumes e crenças baseados em tradições herdadas ou aprendidas sob os pilares fixos das religiões ou da “magia”, nada mais convergente com Han, porém é importante entender como isto penetrou na linguagem.
Para ser coerente com o tema, o capítulo final da Crise da narração (há outro em sei que é o Storyselling, mas opto pela resistência do espírito), o qual postamos anotações a semana passada, começa com a narração de Peter Nadás, de uma aldeia que se reunia ao redor de uma grande pereira selvagem, e ali contam história uns aos outros, ela forma uma comunidade narrativa “que carregam valores e normas, vinculam intimamente valores e normas” (Han, 2023, p. 121), nela a aldeia se entrega a “contemplação ritual”.
Nadás fala ao final de seu ensaio: “anda me lembro como, nas noites quentes de verão, a aldeia costumava cantar baixinho […] sob a grande pereira selvagem […] Hoje não há mais dessas árvores, e o canto da aldeia emudeceu” (Há, 2023, p. 122 citando Nadás), e “essa comunidade sem comunicação dá lugar à comunicação sem comunidade”.
Ele imagina como outros autores, cita até a Pax Eterna de Kant, porém também sua filosofia construiu a narrativa moderna, e diz como sonhou Edgar Morin e imagina um universalismo radical “uma família mundial” para além da nação e da identidade (pg. 125) e diz “a poesia eleva cada indivíduo por meio de uma conexão peculiar com todo o resto” citando Schriften Novalis, e esta comunidade narrativa rejeita a excludente narrativa da identidade.
“A ação política em sentido enfático pressupõe uma narrativa” (pg. 126) e pressupõe uma coerência narrativa, relembra Hannah Arendt “pois a ação e o discurso, cuja estreita interrelação na concepção grega de política já discutimos [neste blog também], são de fato as duas atividades que, em última instância, sempre resultam em um história, ou seja, em um processo que, por mais arbitrário e por acaso que seja em seus eventos e causas individuais, ainda assim tem coerência suficiente para poder ser narrado” (Han, 2023, p. 127), lembro em posts anteriores a ideia de Arendt também utilizada por Byung-Chul de vita activa e vita comtemplativa.
Do capítulo final aproveito o seu “Viver é narrar. Os seres humanos, como animal narrans, diferem dos animais por serem capazes de realizar novas formas de vida por meio da narração. A narração tem o poder de um novo começo” (pg. 132) que é um sinal de esperança para a humanidade em uma crise crescente.
Han, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: ed. Vozes, 2023.
Desencantamento, narração e dor
Chul Han lembra de um hábito muito conhecido em muitas sociedades que é o fato de contar histórias para as crianças dormirem, lembro que é antigo, pois são famosas As fábulas de Esopo (Grécia antiga), os contos dos Irmãos Grimm, as histórias organizadas por Charles Perrault e muitos outros, Han vai escolher uma história pouco conhecida (pelo menos aqui no Brasil) de Paul Maar do jovem Konrad que não sabia narrar e sua irmã Susanne que pede que ele conte uma história para ela dormir.
Os pais por outro lado gostavam de narrar, eram “quase viciados nisto” e quando o pai termina de contar uma história a mãe escreve R de Roland no papel e quando a mãe termina de contar história o pai escreve um O de Olivia, mas os pais percebem que Konrad não consegue narrar história e o mandam para um certa senhorita Muhse, ele chega a uma casa pequena e a senhorita que sabe que ele veio aprender a contar histórias pede que ele suba uma escada e leve um pacotinho para a irmã, mas a escada parece infinita até que encontra uma parede que se abre como uma porta.
Lá dentro está tudo escuro e vê uma coruja com voz e conversas estranhas e percebe que não tem piso e cai num longo encontrando ao final a senhorita Muhse que lhe dá outro pacote e pede que leve ao irmão dela no térreo pois não entregou o primeiro, Konrad fica confuso pois pensava ter caído para o térreo, e ele novamente cai nas “estranhas escuras” da casa e novamente chega a senhorita Muhse, que agora fuma um charuto fino, sabe que ele não entregou o pacote e lhe dá outro novamente, ele diz “não estou aqui para entregar pacotinhos, estou aqui para aprender a narrar”, ela vê que é um caso perdido, abre uma porta na parede e diz: “Boa triagem e tudo de pão” (ela sempre muda os ditados) e desta vez está de volta a casa dos pais (páginas 74 a 77).
Os pais e irmãzinha estão tomando café da manhã e ele diz animado: “tenho que contar para vocês. Vocês não vão acreditar no que vivi …”, o mundo de Konrad agora é outro e agora os pais escrevem K (de Konrad) no papel que eles anotavam suas narrações.
O desencantamento do mundo é quando tudo é reduzido a causalidade, a facticidade (as narrativas de hoje dizem os fatos não mentem, mas sob uma interpretação parcial), Walter Benjamin diz que “as crianças são os últimos habitantes do mundo encantado” (pg. 79), diria não há mais no mundo “adulto”: leveza, empatia e imaginação.
“As crianças de hoje caçam informações como ovos de Páscoa digitais” (pg. 80), hoje a “falta de interioridade narrativa distingue as fotografias das imagens de recordação … as fotografias retratam o dado sem internalizá-lo … não querem dizer nada … “ e é por isto que concluo que dados podem não ser, e quase sempre não são, informações.
Mais difícil ainda é entender o que é conhecimento como vivência: “a narrativa se opõe a facticidade cronológica” (pg. 81), lembra Han lendo Marcel Proust e também Benjamin que a aura é justamente a “distância do olhar que desperta no objeto observado” (pg. 82) e lembrará também Karl Kraus citado em Benjamin: “quanto mais de perto se olha para uma palavra, mais distante ela parece estar” (pg. 83).
A memória desnarrativizada é como uma “loja de sucatas” aqui o autor lembra Paul Virilio (Informação e Apocalipse) sendo o “depósito abarrotado de todo tipo de imagens completamente desordenadas, mal preservadas e de símbolos desgastados” (pg. 84), onde se torna “amontoado de dados ou informações [que] não tem uma história. Ele não é narrativo, mas cumulativo” (pg. 84).
Termina este capítulo de forma muito agradável e sensível, depois de citar trechos das obras de Susan Sontag, Adorno e Gershom Scholem, parafraseando este último escreve: “O fogo mítico na floresta foi esquecido. Não sabemos mais fazer orações. Também não somos capazes de meditações secretas” (pg. 89) e diria aproveitando o tópico Dor do livro “Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade” (veja posts anteriores) não sabemos mais o significado da dor, do afeto e perdemos qualquer noção do “todo”.
Han, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: Vozes, 2023.
Narração, cultura digital e oralidade
Ainda no trecho sobre a Pobreza e experiência, citando Walter Benjamin escreveu Byung-Chul: “Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ´atual’. A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra a próxima guerra” (Han, 2023, pg. 37-38, citando Pobreza e Experiência de Benjamin), era o limiar da 2ª. guerra mundial.
Em que a modernidade resume a felicidade, esclarece o autor “a felicidade não é um acontecimento pontual (pg. 43), hoje “quando tudo nos lança em um frenesi da atualidade, quando estamos no meio da tempestade de contingências, somos infelizes” (pg. 44), relembra Marcel Proust “Em busca do tempo perdido” que entendeu o “resgate do passado como tarefa do narrador” (pg. 45) e a vida moderna como “uma atrofia muscular”.
Discordando de Heidegger para reafirmar sua importância contextual (também para hoje): “Ser e tempo não é uma análise atemporal da existência humana, mas um reflexo da crise temporal da modernidade” (pg. 45), “o ser-si-mesmo de Heidegger é anterior ao contexto narrativo da vida produzido posteriormente. O ser-a-i se assegura de si mesmo antes de narrar a si mesmo uma história coerente referente ao mundo da interioridade” (pg. 47) e isto explica o livro que postamos anteriormente aqui O coração de Heidegger.
Após um discurso de algumas páginas sobre as novas mídias: Phono sapiens, os selfies, o Facebook, é uma fixação do autor ainda que reconheça Benjamin anterior a isto, ainda que diga de modo correto: “eles são alinhados de forma sindética, sem nenhum nexo narrativo” (pg. 51), reconhece que sempre “A memória humana faz escolhas. Nesse aspecto, ela se diferencia de um banco de dados”, uma precisão técnica fundamental, por há quem confunda e as vezes ele também, com dados sem informação e informação sem conhecimento.
É anterior até mesmo ao surgimento da prensa de Gutenberg e pertence à cultura oral: “a narração autobiográfica pressupõe uma reflexão posterior sobre o que foi vivido, um trabalho de recordação consciente” (pg. 53) enquanto “a qualidade dos dados é melhor quanto menos consciência eles contêm” (idem), porém é preciso lembrar a busca semântica, a ligação dos dados (linked data) e o uso da Inteligência Artificial para a narração (é possivel com ética e supervisão humana) que tornem possível uma consciência além do “consciente libidinal” (idem) sem ética nem moral, sem o esquecimento do ser.
Sem citar a cultura oral, mas o trecho lembra ela: “se tudo o que foi vivenciado estiver presente sem distância, ou seja, estiver disponível, a recordação reaparece” (pg. 56) e acrescenta: “uma reprodução sem falhas da vivência não é uma narrativa, mas um relatório ou registro” (ibidem) e lembra que quem quiser narrar ou recordar “precisa ser capaz de esquecer ou deixar escapar muita coisa” (pg. 57) e não pode estar falando de outra coisa que não seja a cultura escrita, pois a oral é capaz de esquecer detalhes porém vai sempre recordar o que é vivido e através dela lembrar o essencial e lembrar a tradição.
Lembrar os mestres das culturas, seus ensinamentos e vivencias não é outra coisa senão a cultura oral, a cultura escrita é um “banco de dados”, uma memória sem reflexão.
Sem citar a cultura oral, mas o trecho lembra ela: “se tudo o que foi vivenciado estiver presente sem distância, ou seja, estiver disponível, a recordação reaparece” (pg. 56) e acrescenta: “uma reprodução sem falhas da vivência não é uma narrativa, mas um relatório ou registro” (ibidem) e lembra que quem quiser narrar ou recordar “precisa ser capaz de esquecer ou deixar escapar muita coisa” (pg. 57) e não pode estar falando de outra coisa que não seja a cultura escrita, pois a oral é capaz de esquecer detalhes porém vai sempre recordar o que é vivido e através dela lembrar o essencial e lembrar a tradição.
Lembrar os mestres das culturas, seus ensinamentos e vivencias não é outra coisa senão a cultura oral, a cultura escrita é um “banco de dados”, uma memória sem reflexão.
HAN, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: Vozes, 2023.
Experiência, narrativas e visão de futuro
No capítulo que Byung-Chul Han trata da pobreza da experiência da modernidade, lembrando que não se trata apenas da vida digital pois é anterior a ela, ele conta a fábula de um homem no leito de morte que conta aos seus filhos que há um tesouro escondido em seu vinhedo (pg. 31), e depois de cavarem muito finalmente entendem que as vinhas daquelas terras produziam que qualquer outra (Han, 2023, pg. 31), em um detalhe importante explica que “é característico da experiência que ela possa ser narrada de uma geração para a outra” e isto é o que se perdeu na narrativa do storytelling.
A narração pressupõe tradição e continuidade (Han, pg. 34) e é ela que “cria um contínuo histórico” enquanto a pobreza de experiência é “animado pelo páthos do novo” que “generaliza a nova barbárie e a transforma no princípio do novo: A essa estirpe de construtores pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia numa única certeza – penso, logo existo – e dela partiu” (pags. 34 e 35).
Lembra Paul Scheerbart que em seu ensaio Arquitetura de vidro “fala da beleza que surgiria na Terra se o vidro fosse usado em todos os lugares” (pg. 38) e curiosamente a arquitetura moderna está cheia desta “metáfora” (lembro aqui também a arquitetura do plástico de Jeff Koon com seu ballon Vênus de plástico do livro de Han A salvação do belo), agora o vidro: “um mundo cheio de edifícios de vidros brilhantes, coloridos e suspensos, [onde] as pessoas seriam mais felizes” (pg. 38), e elas conferem uma aura especial como um meio para o futuro, porém conforme explica Han: “o futuro é uma aparição de algo longínquo” (pag. 39) que só o presente não pode conferir, isto é um ‘sentimento de iniciante”, que não fica na superfície e que concebe uma “forma de vida diferente”.
A exausta modernidade tardia é alheia ao “sentimento de iniciante” (pag. 40), “não professamos nada”, estamos “confortáveis” à conveniência e ao like (idem), “as informações fragmentam o tempo … reduzido a uma faixa estreita das coisas atuais”, acrescentaria que não temos leitura, conhecimento e reflexão sobre as coisas anteriores e que fizeram a história da cultura e do próprio conhecimento, não este reduzido a fração cartesiana da razão.
Estamos numa cultura de “solução de problemas … na forma de um tempo compactado” (pag. 41), porém o autor não deixa escapar uma visão de futuro: “ a vida é mais do que a solução de problemas … aqueles que só solucionam problemas já não possuem futuro … a narração desvela o futuro, somente ela nos dá esperança” (pag. 41).
A narração está presente no fundo de diversas culturas das religiosas às sociais e políticas, os povos as construíram mais que seus governantes e imperadores que a elas sucumbiram, Napoleão não deixou uma França imperial, mas resignada, Bismark e Hitler não deixaram uma Alemanha soberba, mas sábia onde a filosofia encontrou raízes, a submissão colonial das Américas e da África, do Oriente onde ainda há lapsos de colonialismo, deixaram povos mais resilientes e em busca de sua própria narração, há vida debaixo do pó que ditadores e colonizadores nos quiseram reduzir, também lembro as culturas orientais e ocidentais de narração religiosa, não são menos importantes, as sustentam.
Claro há neste meio também storytelling, falsos profetas e “pastores” que buscam a escravização religiosa, porém o ensinamento bíblico e oriental é diferente e sendo uma narração não pode ser confundido com leitura estereotipadas e segmentadas, também elas sofreram com o cartesianismo e idealismo, quando estes “religiosos falsos” que exigem uma “narrativa moderna” e que dê conta do storytelling atual.
Já naquele tempo indagavam Jesus sobre a existência da vida eterna, Ele lembra a passagem da sarça ardente em que Moisés falara diretamente com Deus (Mc 1,26): “Quanto ao fato da ressurreição dos mortos, não lestes, no livro de Moisés, na passagem da sarça ardente, como Deus lhe falou: ‘Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó’?” e ao contrário de negar a narração antiga reafirma que ela é parte da tradição e que ali já se escrevia uma nova realidade.
HAN, B.C. A crise da narração, trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis: Vozes, 2023.
Violência, manipulação e resistência
Edgar Morin pediu em entrevista que diante de uma situação de policrise enfrentemos ela com uma resistência do espírito, a força de caráter, de oposição ao ódio e de oposição a pequenos atos desonestos, mas o mais difícil é a resistência espiritual as narrativas que vão da política a religiosidade.
Esclarecendo como fizemos no post anterior, que ao usar Walter Benjamim que faleceu na década de 40, o que ele citava era sobre a imprensa preocupada com notícias quentes e nem sempre em pensar e digerir com profundidade a “lentidão” como propõe Byung-Chul Han os fatos da realidades, afirma Byung-Chul: “A digitalização põe em movimento o processo que Benjamin, devido à sua época, não podia prever … associa a informação com a imprensa. Á imprensa é um meio de comunicação que segue à narração e ao romance” (Han, pg. 27), lembrando que é a visão romântica que inicia um processo de morte da narração.
Já havíamos citado em posts anterior Karl Kraus (1874-1936), poeta e jornalista austríaco forte opositor da 1ª. guerra mundial, um espírito de resistência da época, alertava as ideias em ebulição nacionalista e militarista, da qual a imprensa era parceira, e via na guerra uma manifestação da loucura coletiva da humanidade.
Em época de vazio espiritual é muito comum o espirito bélico e passional crescer, não faltam espíritos exaltados e sem nenhuma reflexão em todas mídias, a ordem é promover a desordem, a moral é promover o imoral, desta loucura se alimentam espíritos bélicos e doentios, precisam da loucura coletiva para sua loucura da guerra prosperar.
Em um período ainda anterior, o regime da informação [desordenada] afirmava George Büchner (1813-1837), citando por Byung-Chul: “somos marionetes, cujos fios são puxados por poderes desconhecidos; não somos nada, nada nós mesmos” (Han, 2023, pg. 29), agora “os poderes estão se tornando mais sutis e invisíveis,, de modo que não temos mais consciência dele. Nós até confundimos isso com liberdade” (Idem).
A pobreza da experiência da narração, também apontada por Benjamim e citada por Han: “que foi feito de tudo isso ? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas ?” (Han, 2023, pg. 31), é certo não há neutralidade, mas entre duas forças bélicas é possível um poder de resistência que as denunciem.
É como na leitura bíblica os fariseus que querem colocar Jesus em posição favorável ao império romano, para vê-lo como traidor, ou em oposição para enunciá-lo como rebelde.
Em leitura bíblica, dai a Cesar o que é de Cesar (Mc 12,16-17): “ Eles levaram a moeda, e Jesus perguntou: “De quem é a figura e a inscrição que estão nessa moeda?” Eles responderam: “De César”. Então Jesus disse: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. E eles ficaram admirados com Jesus, pois não era um ato aliado e sim mostrar de que lado está o poder e de que lado estão os homens pacíficos e que querem de fato o bem comum de todos.
Depois de inúmeras alianças com os fariseus, no ano 70 d.C. o império Romano destruiu o segundo templo judaico e cuja reconstrução sonham até o dia de hoje, ambos perderam, também o império romano caiu no ano de 476 ao líder germano Odoacro (na foto os visigodos saqueando Roma), os bárbaros já haviam minado o poder político, financeiro e militar do Império.
HAN, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
Narrativas, guerras e perigos
Em um dos recentes ensaios de Byung-Chul Han, ao mesmo tempo que o autor lembra Hyppolyte de Villemessant, fundador do jornal francês Fígaro e de Walter Benjamin ensaísta e filósofo que faleceu na década de 40, o autor não deixa de associar a narrativa moderna associada as novas mídias, ao storytelling chamando de storyselling (produto para venda).
Assim ao invés de provocar uma reflexão sobre os grandes problemas da atualidade, entre eles a escalada das guerras, mas o problema é antigo: “o leitor do jornal moderno pula de uma notícia para à outra, em vezes de deixar seu olhar vaguear à distância, e demorar-se ali. O olhar longo, lento e demorado se perdeu” (Han, 2023, p. 17), ou seja, não há reflexão.
Assim trata-se de criar uma narrativa favorável a esta ou aquela visão ideológica, pouco importa a lógica e a humanidade, mesmo diante de tragédias estamos mais ocupados (não todos felizmente) em criar uma narrativa para justificar determinada posição do que para defender um princípio humanitário, há esta ou aquela guerra, mas todas matam inocentes, todas como disse Eduardo Galeano escondem desejos de poder e de exploração sobre a nação a ser dominada, mas grandes impérios sucumbiram apesar de toda a prepotência e genocídios.
O recrudescimento da guerra da Ucrânia, as ameaças ao último reduto de refugiados palestinos, as constantes ameaças a Taiwan, além de incursões na África e agora até a América do Sul, a Venezuela volta a ameaçar a Guiana com intenso movimento de tropas e as provocações entre os EUA e o Irã incendiam espíritos bélicos e até pessoas boas, mas inocentes, embarcam nestas narrativas, não há outro interesse nas guerras: saques, mortes de inocentes e desumanidades.
Os encontros entre nações no Brasil, na Europa e as tentativas de sensibilizar governos para os perigos desta escalada bélica não faltam no mundo todo, porém esbarram em narrativas parciais e partidárias, poucos são as mentes que se sensibilizam para o perigo grave e civilizatório desta escalada, em todo mundo o armamento é a única resposta que parece tocar os governantes, e assim crescem as narrativas de “atos heroicos” de fatos bélicos em todo mundo que deviam envergonham aqueles que invocam princípios humanitários, sendo a ONU as guerras e problemas ambientais levaram a fome mais de 700 milhões de pessoas.
Até mesmo para uma narração bíblica ou histórica, onde pretende-se construir um “todo” narrativo, há uma chamada para o humanitarismo, ao Caim matar o irmão Abel, a pergunta divina é “onde está teu irmão?” (Genesis 4,9) e a narração sugerida por Byung-Chul Han é a do rei egípcio Psammenit que foi capturado pelo rei persa Cambises, e após a derrota faz o rei se humilhar ao ver sua filha transformada em escrava e o filho sendo levado para ser executado (Han, pg. 21), porém o rei egípcio só sentirá ao ver um servo idoso e frágil entre os prisioneiros e “bateu em sua cabeça com os punhos e expressou profunda tristeza” (pg. 22), assim a narração, diz Han, “dispensa qualquer explicação” (Han, pg. 22).
Se formos capazes de reflexões longas, lentas e demoradas não é difícil entender o perigo da escalada das guerras, das pessoas simples como o serviço de Psammenit que sofrem e morrem por questões que mal compreendem direito, e que as narrativas não explicam, apenas tentam justificar o injustificável: a morte, a pilhéria e a mentira.
Como afirmar o filósofo Morin, é preciso uma resistência do espírito, estamos aos poucos perdendo o sentido de amor, esperança e solidariedade e se lermos e investigarmos as notícias e fatos das guerras veremos que não houve nada nelas que não fossem grandes genocídios, roubos e situações de fome e miséria, é preciso resistir ao ódio e a violência.
HAN, B.C. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
A narrativa e seu ocaso
O pensamento moderno carece de um modelo para o Todo, diria que carece até mesmo de um pensamento sistemática, Peter Sloterdijk chega a afirmar que não é um tempo próprio para o pensar, é um tempo de trendings ditadas por hashtags, Stories, blogs e reels (mecanismos de difusão em massa com uso da mídia social).
Byung-Chul Han afirma que apesar do “uso inflacionário de narrativas revela uma crise da narrativa”, paradoxal, porém “há um vácuo narrativa que se manifesta como um vazio de sentido e como desorientação” (Han, pg. 9), antes as narrações nos ancoravam: “nos atribuíam um lugar e transformavam o ser-no-mundo em um estar-em-casa, dando à vida significado, apoio e orientação, isto é a própria vida era um narrar …” (idem, pg. 9), é ao mesmo tempo a desterritorialização e o desenraizamento.
Porém o próprio Byung-Chul deixa escapar, através da leitura de O narrador de Walter Benjamin (falecido em 1940) que isto é anterior as novas mídias, cita-o como “o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre os acontecimentos próximos” (Han, p. 17 citando-o), o leitor pula de uma notícia a outra, não se demora ali, “o olhar longo, lento e demorado se perdeu. “(pg. 17).
Ainda citando Walter Benjamin, diferencia a informação mais claramente o que é conhecimento: “a informação só tem valor no instante em que é nova. Ela só vive nesse instante, precisa entregar-se inteiramente a ele e, sem perda de tempo, tem que se explicar nele” (Han, pg. 18), curiosamente um pensamento anterior a década de 40.
Vai adentrar ao conceito de informação, tão caro em certas áreas como a Ciência da Informação, dizendo que ela [hoje] é “o meio do repórter, que vasculha o mundo em busca de novidades” (pg. 19), não há a necessária distância do fato que o digere e o torna conhecimento, “as informações retidas, isto é, as explicações evitadas, aumentam a tensão narrativa” (pg. 19).
A crise da narrativa, assim não se deve as novas mídias que as potencializaram, mas ao fato “de que o mundo está inundado de informações. O espírito da narração está sendo sufocado pela enxurrada de informações” (pg. 20), mas o que é então a narração ? Han citando Walter Benjamin invoca Heródoto, narrando a derrota do rei egípcio Psamenit ao rei persa Cambises, após sua derrota.
O rei persa humilha-o fazendo ver a filha tornando-se criada e o filho sendo executado, mas o rei Egípcio permaneceu imóvel olhando para o chão, porém quando viu seus escravos como prisioneiros, “bateu em sua cabeça com os punhos e expressou profunda tristeza” (pg. 22), pois ao se lamentar pelos servos “destroem a tensão narrativa” (pg. 22).
Cita que para Benjamin, o primeiro sinal do declínio da narração é o surgimento do romance no início da época moderna (pg. 23), com sua condição de experiência e sabedoria a narração sabe aconselhar “sobre a vida” (pg. 24), a comunidade narrativa é uma “comunidade de ouvintes atentos” (pg. 25), há nela uma escuta cuidadosa.
As narrativas políticas e ideológicas modernas estão atrás de fatos curiosos, pitorescos e picantes, não há nela nada de sabedoria, move o público pelo impacto e pela pressa da informação “quente” e resumida, não há narração, não há escuta atenta e quando há é pelo êxtase ou pelo espetáculo promovido, é retirada do contexto de uma narração.
Aqueles que ainda existem em legalismos e moralismo, contraditoriamente com o cotidiano que vivem, presente na narrativa religiosa moderna, deveriam lembrar de fatos como o não julgamento da mulher adultera (que devia ser apedrejada pelo costume judaico da época) e Jesus “não a julga” (João 8,3), o testemunho do pecador que senta-se ao fundo enquanto o fariseu senta-se a frente e se sente orgulhoso porque “porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros” (Lucas 18,11-13), e ainda o desafio de Jesus ao curar um homem da mão seca em dia de sábado (Mc 2,4): “E perguntou-lhes: “É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer?” Mas eles nada disseram”, a narrativa bíblica sempre faz deste distanciamento um modo de pensar e repensar valores, não é o maniqueísmo e o moralismo moderno.
Também são narrações as históricas de piratas e as histórias impressionantes dos Vikings, anteriores ao período das navegações e do mercantilismo e ainda dos paraísos fiscais em ilhas espalhadas por todo o globo, com a complacência de “estados legais e morais”, onde se depositam o dinheiro público roubado das nações e dos próprios povos por políticos.
Han, Byung-Chul. A crise da narração, trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
De que é composto o universo e qual sua origem
Os filósofos gregos do século 6 a.C. acreditavam que os quatro elementos de toda natureza eram: fogo, terra, água e ar, Pitágoras propôs uma escola praticamente religiosa que tudo eram números enquanto Demócrito propôs o átomo e que eles teriam formas arredondadas, lisas, irregulares e lisos podendo formas uma infinidade de elementos, mas até o final da idade média se acreditava que o fogo eram composto de uma destas partículas: o fogisto, devemos a tabela química a Dimitri Mendelev que em 1869 organizou os seus elementos químicos, antes o alquimista Henning Brand descobriu que o fósforo aquecido com resíduos de urina provocava chamas e Antoine Lavoisier em 1789 organizou alguns elementos em simples, metálicos, não metálicos e não metálicos.
A física padrão atual estabeleceu 7 elementos: neutrinos, elétron, quarks, fóton, gráviton, glúon e bóson de força fraca, mas há um mundo quântico mais misterioso o das supercordas, parece assustador ou usando a palavra dos físicos fantasmagórico (Einstein a usou a primeira vez ao perceber que há um terceiro estado na física quântica em que o elemento nem é nem não é, chamado mais tarde de Terceiro Incluído).
A teoria do universo mais convincente até recentemente era a do Big-Bang e um universo em expansão, a entropia, Stephen Hawking foi seu grande teórico, embora esta teoria já existisse antes, e propôs assim uma “flecha do tempo” em seu livro mais famoso uma “Uma breve história do tempo” (1988), porém as descobertas do James Webb colocaram em cheque ao encontraram nos confins do universo galáxias e corpos celestes que não deveriam estar lá, agora até mesmo a flecha do tempo é questionada.
O importante ao olhar para o universo é entender de onde veio tudo e se este todo e a vida inteligente, que por enquanto só encontramos em nosso planeta terra, teve um início e mais importante que isto teve uma intenção.
O “fiat lux” bíblico parece concordar tanto com a teoria do Big Bang, antes dos átomos haveriam ondas ou “cordas” criadas nos primeiros 10−44 segundos (tempo de Planck) e depois criados os elementos subatômicos, no caso das cordas, tudo é formado inicialmente por cordas unidimensionais que se dividiriam em cordas “abertas” (lineares e cordas “fechadas” (em força de laço), vibrando em diferentes frequências que dariam origem não apenas aos 7 elementos, mas também as moléculas iniciadoras da vida.
Seja como for existiu um momento inicial, e a forma deste “ente” deve ter sido precedida por um “ser” criador, o paleontológico e teólogo cristão Teilhard Chardin propôs que todo universo seria corpo deste supremo “Ser” do “ente”, assim ele deveria ter uma realidade divina e outra material (humana), assim propôs que o universo é cristocêntrico.
Do nada não é possível ter surgido o Tudo, e se há uma forma original do Todo, de algum “elemento” o mundo físico é composto, assim há um “Corpus” deste Todo, com a diferença que Ele é criador e todo o resto criado, mas criado com algum substrato do seu próprio Supremo Ser, claro a teoria para isto é mais elaborada, mas a sua compreensão é simples, somos parte de um corpo, de um conjunto que se comunica, a ideia da individuação do universo não é plausível, porque lá no início éramos uma coisa só: um pequeno corpúsculo cósmico, um conjunto de cordas vibrantes (poderíamos pensar até mesmo num coro fazendo uma música), porém houve uma momento de criação e um Ser o criou a partir de si mesmo.
O tudo, o todo e o divino
Após desenvolver assuntos delicados e polêmicos como a dor, a espera no sentido próprio de esperança mesmo, que Byung-Chul usa o termo filosófico da “contenção” , termina seu livro, que pode-se dizer seu primeiro escrito filosófico, ainda que tenha feito sua tese de doutorado em Heidegger, com aquilo que deve ser o mais polêmico para a filosofia de hoje: o todo.
Ao final do século XIX e início do XX, a física, a ciência e a filosofia que pareciam plenas de seus “saberes” tomam uma invertida, a viragem linguística, mas há outra em curso que é mais profunda ainda: a revanche do sagrado, depois de levarem a humanidade a duas guerras, ao trabalho exaustivo da “sociedade do Cansaço” (em inglês ficou traduzido como Sociedade do Burnout), a arrogância idealista quer proclamar a morte de Deus, o tudo ou o todo é o que, as ultimas pesquisas do James Webb parecem estar sem respostas.
Até mesmo a teoria do Big Bang está em causa, a flecha do tempo pode não estar correta, ou seja o tempo pode ser uma abstração humana, galáxias vistas nos confins do universo não coincidem com a física do Modelo Padrão (neste caso da Cosmologia) e mostram que o conceito precisa ser revisto, mas deixemos isto para os físicos e cosmólogos, o nosso maior dilema ainda é: “o que somos e de onde viemos”, traduzido em linguagem filosófico: o que é o ser, e que é o Ser do ente (ou proveniente das partículas e poeira cósmica).
Isto está expresso na Teoria do tudo, nome do filme, baseado no livro da esposa de Stephen Hawking, Jane Hawking, intitulado: “Travelling to Infinity: My Life with Stephen”.
Por um tempo esquecemos este dilema, tratado desde o início desta série de posts sobre a leitura do “coração de Heidegger” por Byung-Chul Han, não apenas o sono antropológico preconizado por Foucault, mas o sono idealista da razão de nosso tempo, aquele que provocou um esquecimento do ser.
O início do capítulo é uma provocação, acredito, ao citar Hegel na epígrafe: “A verdade é o todo”, já que Heidegger e sua releitura de Han eles retornam aquela “virada” em que “a verdade da essência do ser se recolhe ao ente” (pg. 337), onde a própria consciência já é em si “a inquietação de distinguir-se entre o conhecimento natural e conhecimento real” (pg. 340), ela na experiência dialética da dor: “o trabalhador dialético é um sofredor. Ele percorre um calvário, estafa-se no poder do Absoluto, e o faz precisamente para viver” (pg. 346), o destaque em viver é do autor.
“Quem ainda hoje fala do todo levanta suspeitas” (pg. 455) é a frase inicial do capítulo final, mas o idealismo jamais abandonou a noção abstrata do Absoluto, porque é um imperativo de qualquer teoria traçar contornos onde a verdade seja válida, por isto a frase da epígrafe do capítulo final, penso, mas “no coração de Heidegger bate pela totalidade desde o início” (pg. 455), ela a expressa em seu pathos pelo tudo: “O que foi dito talvez indique que o presente trabalho pretender ser filosófico, na medida em que foi empreendido a serviço da totalidade última” (pg. 456), mas em contraste como o hegeliano, “o todo heideggeriano não capitaliza a morte do particular” (pg. 457), se quisermos retornar a física vale a pena reler de Werner Heisenberg: “A parte e o todo”, onde vemos os limiares da física quântica moderna, onde há vários traços de filosofia bem delineada.
Compreendendo a dor, a contenção e a angústia e na identidade na diferença (já postamos que não é a differance idealista), o todo heideggeriano não é um lugar de nascimento, não é um lugar de origem, mas um lugar de nascimento” (pg. 459), uma “casa não metafísica como espaço de morada” (pg. 459), diríamos morada o Ser, pleno e divinizado.
E também sua totalidade mundana, não é contaminada pelo clima do pensamento pós-moderno, nele pode-se notar a total falta: “de odor, paisagem ou natureza” (pg. 460), “com a história do ser Heidegger escreve certa metanarrativa”, mas não se pode negar que “o pensamento de Heidegger também possui traços metafísicos” (pg. 461), sua filosofia “não são jogos de linguagem [como Derridá], nem discursos”. (pg. 463), para ele existe o ser da linguagem, “os jogos de linguagem seria um fenômeno óntico” (pg. 463).
Desenvolvemos a questão da voz (post), mas Han pergunta: em que tonalidade afetiva o pensamento de hoje coloca essa voz”, pergunto não é ela uma resposta para a verdade que habita no interior de todo homem?, segui-la não é aceitar a dor (não a resignação), a diferença (não a differance), a angústia e a disputa fora do conflito político e de guerra (ver pag. 465).
Existe aquela voz interior, aos que sabem fazer o vazio, o silêncio e o epoché, existe o Ser que é o Todo e que habita em nós, mas é preciso passar pela dor, pela angústia, pela renúncia e aceitar a diferença.
HAN, Byung-Chul. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Renuncia, economia e alegria
Byung-Chul teoriza que apesar da diferença entre Derridá e Heidegger (veja nosso post anterior) há uma afinidade estrutural na visão de luto dos dois, está caracteriza pela renuncia da autonomia do sujeito em Derrida: “Por mais narcisista que nossa especulação subjetiva siga sendo, ela não pode mais se fechar a esse olhar, diante do qual nós mesmos nos mostramos no momento em que o convertemos em nosso luto ou podemos desistir dele [faire de lui notre dueil], fazendo nosso luto, fazendo de nós mesmos o luto por nós mesmos, quero dizer, luto pela perda de nossa autonomia, por tudo que nos fez a nós mesmos a medida de nós mesmos” (Han, p. 430 citando o texto de Derridá “Krafter der Trauer”, fortalecedor da dor), isto é, ambos tem em comum uma visão de renuncia a autonomia do sujeito, o “eu” do idealismo.
Aqui o importante é não deixar o luto trabalhar (lembremos o conceito já visto nos posts do “luto do trabalho”) ele é substituído em Derridá por um jogo do luto: “contudo quanto mais alegre a alegria tanto mais pura a tristeza que nela dorme. Quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria …” (Han, pg. 430-431), mas o luto de Heidegger, explica Han, não mata a morte, tentar mata-la resulta em algo ainda pior: “o querer ressuscitar, ultrapassar violenta e ativamente o limite da morte só os arrastaria (os deuses) para uma proximidade falsa e não divina e traria a morte em vez nossa vida” (Han, pg. 431-432 citando Heidegger).
Heidegger explica que é “não é um sintoma que posa ser eliminado pela contabilidade psicoeconômica. Ele não tem um traço deficitário que implique o trabalho (de luto).”.
Este “retirado” ou “poupado” para o qual bate o coração “santo e enlutado” de Heidegger não é submetido à economia, este “poupado” não se pode gastar nem capitalizar, é portanto aquele que está e caracteriza a renúncia, Han não exemplifica, mas podemos pensar em ajuda humanitária em desastres e guerras, já que vai caracterizar a identidade de renúncia e agradecimento como concebível fora da economia, usando termos heideggerianos “suportar pesarosamente a necessidade de renunciar” e promete a “impensável doação”.
Diz uma frase profunda e sábia de Heidegger, a renúncia é a “forma mais elevada de posse”, parece contrário, mas só temos de fato aquilo que podemos dar pois do contrário é mercadoria de troca, e mais ainda renúncia se torna agradecimento e “dever de agradecimento”, esta dor aumenta aprofundando se torna alegria: “quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria que nela repousa”. (pg. 433), mas não se torna nem sublimação, que nos obriga “trabalhar”, pois é a “inibição de todo rendimento” e a “consciência do vazio e da pobreza do mundo”.
Elogio da miséria alguém poderia pensar, não é um elogio a alegria moderada e contínua, diferente da euforia e êxtase que é seguida de depressão, “a falta do divino acarreta o luto, remonta a um obstinado esquecimento do ser, no qual Heidegger inscreve o divino” (Han, p. 433-434), mas certamente não é ainda o divino bíblico, mas cerca-o.
A recompensa e a alegria do Divino inscrito no ser, é aquela que renuncia e doa, mas sabe que haverá recompensa de receber cem vezes mais não em bens, mas em alegria.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.