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Agora os horrores da guerra
A retirada de Kiev longe de ser pacífica e encaminhar para uma cessar-fogo parece ter colocado mais gasolina numa guerra que aos poucos retoma os horrores e a barbárie da 2ª. guerra mundial.
As fotos e os fatos de Butcha, um dos distritos em torno de Kiev revela cenas de mortes de civis com crueldade e genocídio, dirigentes de toda Europa já se pronunciaram, e o próprio presidente da Ucrania Zelensky foi verificar em loco as valas comuns e civis mortos com as mãos amarradas, além de casos de estupros delatados.
Enquanto agências internacionais falam em 280 corpos, a Ucrânia afirma ter encontrado 410 corpos de civis, em valas comuns ou abandonados nas ruas, muitos com as mãos amarradas, enquanto a Rússia nega estas atrocidades, o porta-voz do Kremlin Dmitry Peskov disse que houve “falsificação de vídeo”, no entanto não apresentou nenhuma evidência para comprovar.
Seguem acusações dos biolaboratórios na Ucrânia, também sem provas, se verdadeiro também são condenáveis, mas não servem para justificar a morte brutal de civis que deixa a guerra em outro patamar, onde os acordos ficam mais difíceis e distantes.
Há uma nova ordem mundial, ou pelo menos uma tentativa de implantá-la, os polos econômicos e políticos se deslocaram e uma grave crise econômica e alimentar se aproxima, como enfrentá-la?
Será preciso rever valores, se a barbárie não nos despertar as esperanças ficam mais difíceis, a própria pandemia já deveria ter nos alertado para uma nova onda de solidariedade e de preocupação, não se trata apenas de um vírus, mas de atitudes que seriam esperadas das lideranças e da população, quantas pequenas guerras ainda subsistem sem abertura ao diálogo.
Se em si já é horrorosa esta guerra e a pandemia, mais horrorosas são as atitudes de indiferença e descaso, até mesmo torcidas que se organizam ou que desprezam a desgraça que ocorre ao lado.
Que os horrores da guerra sirvam ao menos para despertar um humanismo sincero, a preocupação e a responsabilidade pelo Outro, o respeito mútuo e o diálogo, ou caminhamos para uma realidade ainda pior a qual não fizemos nada para tentar evitar, ou fizemos pouco.
Paz, paz e esperança, é o grito de quem olha com amor pela humanidade e para o Outro.
Erro e procura da verdade
A frase do escritor russo Mikhail Saltykov-Tcherdrine, que escreveu sobre o pseudônimo M. Nepanov (escreveu Contradições) sobre o erro: “quem nunca procurou a verdade com certeza nunca errou”, bem melhor que o adágio popular: “só não erra quem nunca tenta”, porque mesmo que seja de modo inocente sempre se tenta algo.
Completa este pensamento sua frase: “Há épocas em que a sociedade, tomada de pânico, se desvia da ciência e procura a salvação na ignorância”, algo que parece típico de nosso tempo: de início ignorar a pandemia e as vacinas, depois ignorar os perigos que dela decorrem e por fim tentar conviver como se a doença seja algo natural, e os remédios é vacinar quatro, cinco, … vezes, e esperamos que as cepas realmente sejam mais brandas.
Insensatez e frivolidade parecem ser reações a uma crise que se aprofunda, além da guerra, uma alta de preços e escassez de alimentos se avizinha, sim o que ocorre por enquanto parece contornável e quando não o for mais, o que seria sábio fazer, parece que poucos se preocupam.
Escolhi falar de um desconhecido autor literário do século XIX, ele não viveu o período da União Soviética, para atestar a ignorância de punir a cultura, a ciência e os esportes da Rússia, como uma punição de uma guerra, sem dúvida injusta, mas da qual também o povo russo é vítima.
Mesmo vendo os horrores acontecendo na Ucrânia, não podemos ignorar os horrores do Ocidente e a escalada bélica que poderá ter num futuro próximo outros capítulos tão dolorosos quanto os atuais, é uma escalada que parece não ter retorno.
Não se pode ignorar os erros da segunda guerra, os erros do período pós-guerra, as inúmeras intervenções no Oriente, na Ásia e na África que causaram guerras e mortes igualmente condenáveis.
É preciso reconhecer os erros, é preciso um doloroso perdão do período colonial, ainda em curso, e é preciso permitir aos povos que vivam sua cultura, seus ideais, como desenvolveu Raymond Aron (Guerra e Paz entre as nações) e em segurança, o autor cita Clausewitz em seu livro: “A “guerra é um ato de violência, e não há limites à manifestação desta violência” (Aron, p. 69).
É um momento difícil em que apenas apontamos aos outros nossos erros, sem olhar para os próprios.
A batalha de Kiev
Com um exército e forças militares desproporcionais era possível de imaginar que a batalha dos russos em Kiev duraria pouco, mas revezes no ar e em terra, um tempo hostil de final de inverno e o heroísmo do povo ucraniano não estavam na conta de Putin.
Irpin (foto antes da guerra) é o último distrito antes de Kiev, as forças ucranianas informaram no dia de ontem que haviam retomado o distrito, assim as tropas russas ficam mais longes, há relatos que a tropa russa estaria em grande parte enferma devido o frio e desgaste de um mês em campo de batalha e com a moral muito baixa.
Assim como na segunda guerra a batalha de São Petersburgo (Leningrado na época) foi desastrosa para os nazistas, a batalha de Kiev onde foram enviadas grande parte das forças de combate (o famoso comboio de dezenas de quilômetros de extensão), e o apoio aéreo da temida aviação militar russa parecem ter encontrado uma resistência inesperada.
Acontecem nestes dias várias rodadas de negociação para a paz, neste momento é tão desejável para a Rússia quanto para a Ucrânia, que nas primeiras rodadas se via em posição de desvantagem com os fortes ataques e avanços russos, agora embora siga a sangrenta batalha de Mariupol e os ataques aéreos que parecem ser o último recurso dos russos, há um relativo “equilíbrio” militar, porém as vidas de inocentes civis continuam a ser sacrificadas.
Também Putin parece ter perdido muitos generais, não se sabe se só em combate ou porque se opuseram aos planos expansionistas de Putin, também a força militar russa começa a ser questionada quanto a sua real capacidade.
Permanece o medo do que é possível acontecer no caso de uma derrota humilhante na Ucrânia, a sangria econômica causada pelas sanções de empresas do ocidente e de uma reação intempestiva ou apelativa de usar armas letais nucleares ou outras proibidas por convenções internacionais.
Resta a esperança que as rodadas de negociação da paz destes dias possam dar frutos, Zelensky aceita a ideia de neutralidade e desarmamento de armas atômicas, talvez também uma redução em seu exército, porém a Rússia tem pretensões em relação aos territórios “tomados” além do Donbass (Donetsk e Lugansk) também Mariupol que é uma cidade tipicamente ucraniana.
A pressão interna em Putin pode também ajudar, porém seu temperamento parece ser bélico e acredita que pode ir além com suas pretensões, a esperança é que o bom senso prevaleça.
A paz desejável
A paz entre os povos deve vir a partir de uma profunda reflexão sobre as diferenças e a tolerância entre valores que são extremamente diversos e que não significam necessariamente a impossibilidade da paz, e quanto há cicatrizes antigas é preciso cuidado ao evita-las, elas existem porque alguma paz foi estabelecida sem que a dignidade dos povos fosse respeitada.
Edgard Morin em seu recente ensaio “A beira do abismo” (já foi feito um post aqui), diz “um dos aspectos da tragédia é que não podemos fazer uso da fraqueza nem da força separadamente e que estamos obrigados a navegar entre as duas de maneira incerta”.
Raymond Aron escreveu “Paz e guerra entre as nações” (Martins-Fontes, 2018) elabora um pensamento sobre isto, refletindo que cada povo deve ser fiel ao seu ideal como nação, não ignorar uma história conflituosa, e, pensar e agir com determinação de fazer que a ausência de guerra se prolongue até o momento em que uma paz seja possível e durável, imaginando que esse dia chegará.
É preciso sobretudo perdão entre povos e nações que viveram conflitos, como foi o caso da Alemanha, Itália e Japão, que estiveram na segunda guerra e conseguiram superar as próprias cicatrizes e manter firme os ideais como nações fortes, que hoje são.
É preciso que se comportem como o filho pródigo que ao retornar a casa, neste caso ao próprio território e as raízes saudáveis de seus povos, conseguiram reerguer as nações sob um manto novo de pacifismo, tolerância e desenvolvimento de suas nações.
Também é preciso que as nações conflitantes estejam abertas a este recomeço, na parábola bíblica, o irmão mais velho não entende que o pai faça festa ao irmão que gastou todo dinheiro da herança desperdiçando em coisas fúteis e passageiras, e agora retorna a casa, em termos da guerra o retorno ao seu próprio território.
Assim nem é a Pax Romana, de submeter os povos vencidos, nem a Pax eterna do ideal liberal, que não levou a uma paz duradoura e sim a duas guerras mundiais.
A paz possível
A pax romana significava a submissão dos povos dominados ao império romano e o fim da resistência, o que na verdade não é paz porque não há o fim da opressão de um povo e isto significa que de alguma forma irá persistir algo tipo de revolta que vai explodir em nova guerra.
Assim é necessário algum tipo de reconciliação em que ambas as partes não se sintam que a sua digna existência como povo ou nação, um povo dentro de limites territoriais e políticos, possa ir em frente gozando da liberdade de expressar seus costumes e valores.
O cessar-fogo é o fim, ainda que temporário, das hostilidades, é ele que abre caminho para um possível diálogo ou reconciliação, onde concessões serão analisadas de ambas as partes, quando não há uma possibilidade clara deste diálogo, a única forma de estabelecer a paz é uma terceira força que entra no conflito sem o desejo de hostilizar nenhuma das partes, mas detê-las.
O problema é complexo, porque numa polarização extrema não há uma força confiável de paz, e é muito difícil que os dois lados beligerantes a aceite, e isto pode não apenas alimentar mais ainda a guerra como pode acelerar um processo de torná-la extensiva a outros países fora do conflito.
Por razões humanitárias, mesmo que este risco exista, é a única paz possível, correndo o risco de extrapolar a guerra para fora de seus limites, no entanto colocá–la nos limites se torna imperativo quando há um risco de hostilidades tão amplas que possam afetar os mais caros princípios humanos.
A atual escalada que nos coloca a beira deste abismo é o caso, porque o risco de uma onda ainda maior de violência fora dos limites dos três países em conflito (a Bielorrússia está em guerra) não é só uma possibilidade, a Polônia começa a se envolver e as fronteiras da OTAN como a se preparar.
A ONU não tem força política suficiente para ser esta força, é preciso criar um bloco de certa forma “neutro” (numa guerra isto é quase impossível) que possa colocar forças militares enviadas para a região do conflito e força um cessar-fogo, esta é a paz possível.
A paz desejável é um acordo entre as partes conflitantes, isto parece a cada dia mais distante.
Nem a peste nem a guerra nos alertam
Veio a pandemia era esperada uma grande solidariedade global, um recolhimento nos faria ir um pouco além do nosso próprio ego, rever muitas coisas, incluindo o nosso dia a dia sempre corrido e muitas vezes sem sentido.
A guerra deveria nos alertar para a brutalidade, a crueldade e o massacre que ela proporciona e nos tornar menos bélicos e mais empáticos no cotidiano e solidário com os inocentes que são os primeiros a morrer diante da brutalidade.
Gerações que viveram a guerra contaram e escreveram sobre seus horrores, incluindo as guerras contemporâneas da Coréia e do Vietnã, e muitas na África, é bom não esquecê-las, porém a grande revolução na década de 60 eram os hippies criticando o consumismo, a geração paz e amor, inspirada em Ghandi e em vários místicos, porém hoje algo insensível está no ar: a justificativa da crueldade que é paradoxal.
Paradoxal porque a justificativa é o contrário do que é feito: a paz, a libertação, o fim da opressão e outros slongans que são mera propaganda, pois o que se faz é visivelmente contrário ao que se prega, e isto está em todos os âmbitos sociais, da cultura ao pensamento bélico.
O secretário geral da ONU António Guterrez em pronunciamento pediu o fim da guerra “absurda” citando a conquista cidade a cidade feito na Ucrânia e o massacre em Mariupol, onde 100 mil pessoas tentavam sair e são impedidas, é como se fosse um campo de concentração sem muros.
Kiev tinha parques, igrejas e locais de passeio que são o oposto da imagem da guerra (na foto o parque Kalynovka próximo a Kiev).
A guerra econômica travada através de sanções do ocidente terá graves consequências de abastecimento, não apenas de combustível que já vinha sofrendo no mercado mesmo antes da guerra, mas a escassez de alimentos pode levar ao terceiro ponto da crise civilizatória: a fome.
Sempre é possível retomar o diálogo, a negociação, impedir a proliferação da indústria da guerra, que movimenta bilhões de dólares em um mercado perverso e que vai em escalada crescente no meio de uma guerra, isso sem falar no perigo nuclear que é realidade global.
Devemos cultivar a empatia e a solidariedade, a esperança e principalmente o amor que rompa a cadeia de ódio que circunda todo o planeta, comecemos nós no dia a dia a depor as armas.
A beira do abismo
É o novo ensaio do centenário filósofo e educador Edgar Morin, lúcido como sempre e sensato diz que uma Ucrânia neutra seria aceito por todos e não deixa de condenar a barbárie e o risco de uma guerra planetária.
Em seu artigo Morin relembra a crise dos mísseis russos em Cuba, em 1962, no qual o mundo este também a beira de uma catástrofe atômica, estava na época hospitalizado em Nova York e um amigo (Stanley Plastrik) lhe informava todos os dias o risco de uma bomba cair na cidade, até que Krushchov aceitou retirar os mísseis de Cuba.
Vê a crise atual como a mesma incerteza do amanhã, agora com mísseis apontados para as principais capitais da Europa, e relembra do perigo de acordos e questões mais resolvidas que dão trégua, mas não eliminam a possibilidade de pais, já postamos aqui sobre isto na II Guerra Mundial.
Morin relembra seu artigo escrito em 3 de maio de 2015, portanto após o acordo de Minsk de 2014, que “seria desejável que François Hollande, Laurent Fabius e Manuel Walls tomassem consciência do impiedoso aumento dos perigos e propusessem um plano de paz coerente de uma Ucrânia federalista, traço de união entre Oeste e Leste. Não estamos mais no tempo de buscar o melhor, estamos no tempo em que se torna necessário evitar o pior”, escreveu na época.
Houve uma crescente evolução da OTAN na Europa, mas também a reconstrução da Rússia como uma superpotência militar estabelecendo suas zonas de influência na Síria e na África, além da sangrenta reintegração da Chechênia por duas guerras (1994-1996 e 1999-2001) e também a intervenção militar na Geórgia (2008) depois a crescente e atual pressão sobre a Ucrânia.
Será que Putin vai parar aí, uma trégua de guerra na Ucrânia pode demonstrar os reais objetivos de Putin que parecem ir além, Suécia, Finlândia e Noruega já se movimentam desconfiadas.
Afirma Morin que não resta dúvida que a heróica resistência do presidente Zelenski, de seu governo, do povo ucraniano surpreendeu Putin e “provocou nossa admiração”, abro aspas pois há uma tentativa de desconstruir Zelenski que é judeu como um neonazista, porém a guerra se prolongou além da conta do Kremlin .
Morin defende as sanções econômicas, lembrando que elas também atingem quem as pratica, mas ressalta que “pessoalmente, sou contrário a sanções que atinjam a cultura, a música, o teatro, as artes” e agora até mesmo a ciência, recentemente artigos científicos russos foram retirados de repositórios, não se trata de dizer que ciência é neutra pois não é, mas visa o progresso humano.
Faz uma bela reflexão ao afirmar: “Um dos aspectos da tragédia é que não podemos fazer uso da fraqueza nem da força separadamente e que estamos obrigados a navegar entre as duas de maneira incerta”, lembro apenas que o fraco pode redimir o forte e vice-versa, enfim um acordo.
Que seja possível evitar um desastre nuclear não apenas pela guerra, mas há usinas nucleares na região (na foto a cidade abandonada Pripyat de Chernobyl).
Que mal fizeram?
Em meio a Pandemia e uma guerra que embora esteja numa região vai se tornando planetária, pelas medidas e posicionamentos, como agora a do tribunal de Haia, que pede um cessar-fogo imediato.
O argumento ideológico não justifica atos de barbárie nem a direita nem a esquerda, a crescente polarização cria um clima de guerra onde até mesmo atitudes humanitárias, e isto inclui a Pandemia, não podem ser negligenciadas sob pena de prolongarmos seus efeitos.
Todo pensamento humanitário deseja uma volta a normalidade, que deve ser outra que não mais nos leve a correria do dia a dia despreocupado com injustiças e calamidades, incluindo a síndrome de Burnout que Byung Chul Han já apontava em seu livro, anterior a “parada” epidêmica.
Não se trata também de levar as pessoas e a sociedade a procrastinação, uma vez que existem problemas sociais e econômicos que exigem uma atitude de trabalho e esforço comunitário.
O raciocínio equivocado: “aqui se faz e aqui se paga”, esconde a crueldade por trás de atitudes que não respeitam os valores humanitários e sanitários necessários a uma volta segura ao que é de fato um humanismo regenerado como tentamos desenvolver nos posts desta semana (na foto o Teatro de Mariupol bombardeado onde haviam civis).
Este raciocínio é comum também no meio religioso, alguém é premiado porque “é bom” e “punido” porque é mal, que mal fizeram as crianças e os civis na Ucrânia, que mal fizeram pessoas idosas, médicos e enfermeiros que morreram na Pandemia e por fim os que agora ainda morrem.
Para os que fazem este raciocínio que não é religioso, pode-se pensar que Deus favoreceu ou puniu alguém, lembro a passagem em que os galileus vão até Jesus dizendo que Pilatos havia matado pessoas e misturado seu sangue com os sacrifícios que eram oferecidos a falsos deuses.
Vendo o raciocínio do tipo “Deus os puniu”, Jesus lhes responde (Lc 13,2): “Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa? 3Eu vos digo que não. Mas se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo”, para dizer que a crueldade e o pecado podem espalhar a crueldade pelo mundo.
Cita a tragédia conhecida na época, da morte dos operários que trabalhavam na Torre de Siloé que caiu e explica que eles foram vitimas na tragédia e eram apenas trabalhadores.
Condenar a crueldade, prevenir com ações atitudes sanitárias e humanitárias é evitar estes males.
Haverá humanismo depois da barbárie ?
Guerras, peste (pandemia) e fome (crise na economia e no abastecimento) tudo parece indicar um caos eminente, e no cansaço as pessoas querem voltar a rotina (o antigo normal) e retomar a vida.
É preciso, entretanto, cuidado, rever o modo de viver, na verdade a verdadeira “Sociedade do cansaço” que vivíamos antes da Pandemia, tratar os problemas que emergem e não ceder ao ódio.
É o ódio, as guerras e a pouca preocupação com a vida que alimenta aqueles que perderam uma verdadeira perspectiva humanista, o poder autoritário, a força e o desrespeito a vida não é humano, nem significa de fato uma “normalidade”.
Atenas sobreviveu a guerra narrada na Ilíada e Odisseia de Homero, provavelmente parte é mítica, e esta era uma importante linguagem da época, mas o poderio dos persas não prevaleceu, a pequena Atenas unida aos guerreiros de Esparta venceram e foram eles que deram origem a civilização ocidental (figura), não por acaso chamado de período helenístico, já Páris, príncipe troiano desejava a Helena, filha de Zeus e rainha de Esparta, e este seria o motivo da guerra.
Sobrevivemos a peste negra e a gripe espanhola, é verdade não sem muita morte e em meio a guerras, porém a humanidade encontrou seu caminho, aliás justamente foi o humanismo da renascença que deu origem a modernidade, hoje em crise junto com a civilização ocidental.
Há o perigo nuclear e sem dúvida ameaça todo planeta, não é apenas a Ucrânia e sim toda uma civilização em cheque, e as únicas alternativas parecem ser a guerra total, mas sobreviveremos.
Mais do que as resoluções tomadas em meio a conflitos que deram origem a duas guerras, agora é preciso apresentar uma nova civilização, um novo humanismo capaz de agregar a família humana e ultrapassar o antropocentrismo e respeitar a diversidade, como diz Morin em buscado do “O Paradigma perdido: a natureza humana”.
Mahatma Ghandi, líder hindu que levou pacificamente a liberdade na Índia do império britânico, disse sobre os 7 pecados causas da injustiça social: “Os sete pecados são: riqueza sem trabalho; prazeres sem escrúpulos; conhecimento sem sabedoria; comércio sem moral; política sem idealismo; religião sem sacrifício e ciência sem humanismo”.
A humanidade sempre encontrou veredas em meio a eminente barbárie, encontrará agora também, nem todos cederam ao ódio, à indiferença e ao poder sem escrúpulos.
Regenerar o humanismo
Em suas comemorações de seus 100 anos, que Edgar Morin fez no ano passado, e está em seus livros de memórias “Leçons d´un siêcle de vie” (lições de um século de vida), muito antes da guerra atual ele dizia sobre resistir a dominação, à crueldade e à barbárie, e pedia novo humanismo, o qual esteve sempre presente em sua literatura.
Retomar a consciência da complexidade humana, e incluí-la num novo patamar que superasse o antropocentrismo, este era o humanismo retomado no renascimento, e sobretudo criar um mundo onde fosse possível uma cidadania mundial com respeito as diversidades culturais.
Ele que lutou na resistência ao nazi-facismo, não deixou de mostrar seu arrependimento ao período do stalinismo, sabia que estávamos num empasse entre estes dois pensamentos que poderiam nos levar a barbárie, profético em relação a escalada atual da guerra.
Não é um desenvolvimento isolado, já em outras obras suas como O Praíso Perdio e o Método, suas noções chaves de conceitos como autonomia, uberdade, amor, indivíduo e sujeito foram se desenvolvendo salvando valores que são inerentes a eles, assim como manter uma dignidade humana potencialmente ameaçada, diria agora, o processo civilizatório como um todo.
Em o Método II não hesita em denunciar as ilusões do humanismo tradicional (a direita ou à esquerda) e procura revitalizar o seu sentido ético e antropológico: “Não se trata de recusar o humanismo. É necessário, como veremos, hominizar o humanismo, e portanto enriquecê-lo, baseando-se na realidade do Homo complex” (Morin, Método II, p. 398).
A eleição do homem como centro do mundo, e a rejeição tanto à Deus (ou a alguma dividinda superior a qual nos submetemos) e ao respeito a natureza a qual a ciência julgou dominar é um passo fundamental para regenerar o humanismo ou caminhamos na lógica da dominação.
Tudo se passa como se a história começasse no auge do capitalismo do século XVIII ou do comunismo do início do século XX, as escassas referências a verdadeira cultura tanto grega como judaico-cristã, direta ou indiretamente condenadas, é o corte desta raiz humanismo.
Não basta dizer que é superada, sem qualquer referência histórica, por exemplo, à Socrates e a Heráclito onde há um aprofundamento sobre a educação e interioridade da consciência.
A questão da emergência do Ser prende-se a outra indissoluvelmente ligada a da liberdade, o homem anulando sua autonomia (dizem em prol de certo “humanismo” antropocêntrico) é vitima do fatalismo, da ausência de horizontes que não sejam o da dominação do Outro, aquela cultura ou ordem que é diferente da outra e que também deve ser respeitada.
Nicolau de Cusa, Ficino, Pico della Mirandola, exploraram esta perspectiva, em Ficino, por exemplo: a providência (que governa uma ordem espiritual), o destino (que dirige aos seres animados) e a natureza (que permite ao Ser permanecer no mundo como corpo vivo ao qual os seres se submetem), ainda que precise ser atualizada em termos de linguagem, não é antropocêntrica.
Morin, E. O Método vol. II, Europa-América, Lisboa, Ed. Francesas: Paris, 1997