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Posts Tagged ‘ontologia’

A metáfora e a especulação

03 ago

Não há no discurso filosófico (ou do pensamento bem estruturado) que seja livre de pressupostos.

Na metáfora viva, Paul Ricoeur esclarece que isto é “pela simples razão de que o trabalho do pensamento pelo qual se tematiza uma região do pensável põe em jogo conceitos operatórios que não podem, ao mesmo tempo ser tematizados” (Ricoeur, 2005, p. 391).

Estes postulados são fundamentais para compreender o discurso, a retórica e a mera especulação.

Paul Ricoeur faz este estudo em torno das questões: “Qual a filosofia está implicada no movimento que conduz a investigação da retórica à semântica e do sentido â referência? “(idem).

Será na resposta a estas questões, e “sem chegar à concepção sugerida por Wittgenstein de uma heterogeneidade radical dos jogos de linguagem” (Ricoeur, 2005, p. 392) é possível reconhecer: “em seu princípio, a descontinuidade que assegura ao discurso especulativo sua autonomia” (idem).

Não explicitado por Ricoeur, mas Edgar Morin fala sobre o discurso moderno duas raízes que levam o discurso especulativo a uma forma moderna de obscurantismo: o fechamento em áreas do saber demasiadamente especializadas, que ele chama de hiperespecialização.

Aqui a metáfora pode ser confundida com a mera especulação e a filosofia estaria “induzida pelo funcionamento metafórico, caso pudesse mostrar que ela apenas reproduz no plano especulativo o funcionamento semântico do discurso poético” (idem).

Ele esclarece que a pedra de toque deste equívoco é “a doutrina aristotélica da unidade analógica das significações múltiplas do ser, ancestral da doutrina medieval da analogia do ser” (idem) que voltaremos no próximo post para entender as limitações metafísicas da ontologia aristotélica.

O segundo esclarecimento, mais fundamental é o discurso categorial, onde “não há nenhuma transição entre a metáfora poética e a equivocidade transcendental” que é a conjunção entre teologia e filosofia “em um discurso misto” que cria confusão entre analogia e metáfora” (Ricoeur, 2005, p. 393), e isto implicaria em “uma subrepção, para retornar uma expressão kantiana?” (idem), por isto é necessário retornar a questão metafísica e nela a questão ontológica.

Cita como epígrafe a afirmação de Heidegger de que “o metafórico só existe no interior da metafísica”, é aqui o coração desta obra de Ricoeur, e ele chama de uma “segunda navegação”, alusão a “Mytologie blanche” de Jacques Derridá, passar da metáfora viva para a metáfora morta.

Ricoeur, P. Metáfora viva. trad. Dion David Macedo. BR, São Paulo: Edições Loyola, 2005.

 

Topologia da Violência

14 jul

O livro a Topology of violence (não há ainda tradução em português), pode-se considerar uma sequencia da análise da Sociedade do Cansaço, em que mostra porque a sociedade está a beira de um colapso, e mostra que ao mesmo tempo um tese geral sobre seu desaparecimento, uma tendência de guerra que agora dá lugar ao outro, mudando a sua maneira de operar.

Suas ideias sobre a violência são inovadoras e fogem do senso comum, que pensa sempre na concepção moderna da sociedade em liberdade, individualidade e sua realização pessoal, vai em busca do lado obscuro do assunto, onde ele se inicia.

Essa violência é aquela que tende a eliminar o outro, anônimo, “subjetivado” e sistêmico, que não é relevado à medida que aceita a liberdade do antagonista.

Seu conceito de violência é então aquele que define como funcionando numa individualidade livre, motivado pela atividade de perseverar e não fracassar, e com a ambiência da eficiência renuncia até mesmo faz sacrifícios ao mesmo tempo, mas que entra num redemoinho de limitação, auto-exploração e colapso.

Tudo isto tem uma relação com a sedução, que ele explicou numa entrevista ao jornal El Pais que a sedução não pode ser confundida com compra: ““Penso que não apenas a Grécia, mas também a Espanha, estão em estado de choque após a crise financeira . O mesmo aconteceu na Coréia, após a crise asiática. O regime neoliberal instrumentaliza radicalmente esse estado de choque . E aí vem o diabo, que é chamado liberalismo ou Fundo Monetário Internacional , e dá dinheiro ou crédito em troca de almas humanas.”

Tudo isto para aumentar o crédito e dar maior incentivo a uma suposta eficiência, e ele explica que no final: “estamos todos exaustos e deprimidos. A sociedade da fadiga na Coréia do Sul está agora em um estágio mortal”, revelando o lado pouco conhecido do país de onde veio e que fala com propriedade.

E não é uma sociedade mais feliz, explica, “o invisível não existe, então tudo é entregue nu, sem segredo, para ser devorado imediatamente, como disse Baudrillard”, explica que tudo deveria ter um véu ainda que fino, uma interioridade.

 

Arroyo, Francesc. Aviso de derrumbe. entrevista de Byung Chul Han ao diário El País, Espanha.

 

O diálogo e o essencial

09 jul

O essencial está distante da sociedade moderna porque é exigido de todo ser humano, até mesmo daqueles que tem alguma limitação física ou diferença social o máximo de desempenho, Byung-Chul Han no seu livro a Sociedade do Cansaço (Vozes, 2015), define-a também como sociedade do desempenho.

Ela nos projeta para fora do essencial, ao contrário de uma “época imunológica” ela é uma “época neuronal”, a divisão entre “dentro e fora, amigo e inimigo ou entre o próprio e estranho”, é definido como “ataque e defesa” (HAN, 2015, p. 8) por isso ela tende para o confronto e não a paz.

A paz exige diálogo, e o essencial exige escolhas interiores que nos movam ao essencial exterior.

Este esgotamento do desempenho é o que “nos incapacita de fazer qualquer coisa” (Han, 2015, p. 76) e o diálogo se torna difícil, proselitista ou mesmo mera retórica, mas só ele pode levar a paz.

Edgar Morin, que completou 100 anos (veja o post anterior), estabeleceu como operador dialógico aquele capaz de operar: a razão e a emoção, o sensível e o inteligível, o real e o imaginário, a razão e os mitos, e, a ciência e a arte.

Pode-se ver que a polarização sempre se coloca de um dos lados, não articula “o dentro e o fora” como propõe Chul Han, então dialogizar é admitir a ligação estes polos e não sua mútua exclusão.

Devido a questão identitária, fortes em nossos tempos que envolvem culturas, religiões e nacionalidades, o polo entre a razão e os mitos torna-se exacerbado onde o diálogo é difícil.

É preciso respeitar o diferente ao dialogar, permitir-lhe também a palavra e não excluí-la com argumentos apenas racionais, há razões ontológicas, históricas, culturais e sociais para seus argumentos, e se não estivermos “desarmados” o diálogo não se realiza.

Ao enviar os discípulos para levar a “boa nova”, são interessantes as instruções dadas aos apóstolos, em Mc 6,8-10 ele pede para não levarem nada, nem mesmo bolsas ou sacolas, e ao entrar numa casa desejassem a paz, e fiquem ali até a vossa partida, e diz a leitura que curavam doentes e expulsavam demônios, o essencial e o diálogo têm esta potencialidade.

O desiquilíbrio da performance, do cansaço e da frivolidade levam a sociedade a exaustão e a dificuldade de diálogo, porque também estamos cheios “dentro” de convicções e razões.

HAN, B.-C. Sociedade do cansaço. Tradução Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.

 

Ter consciência de Ser e viver com o essencial

07 jul

A frase do filósofo Sócrates “a vida que não se examina não vale a pena ser vivida” não faria grande sucesso hoje, a frivolidade fez crescer aquilo que não é essencial como falsa necessidade de felicidade e um ambiente de dor e resiliência entra em choque com esta mentalidade.

Deve-se examinar neste contexto o que é consciência, e como pede a hermenêutica não existe consciência, a não ser a consciência de algo, a consciência fenomenológica não há dualismo entre sujeito e objeto, Ser é buscar examinar a consciência de algo, seja ele concreto ou abstrato.

A vida social requer alguma forma de mutualismo, estar bem e o Ser não negar sua sociabilidade, a vida pessoal requer exame do Ser, o equilíbrio com a natureza, também com sua própria implica a saúde, o equilíbrio e isto não está separado de interioridade e capacidade de reflexão pessoal.

A pura exterioridade leva ao não essencial, a performance, a imagem pública e a autovalorização pessoal são formas de exterioridade que podem levar ao consumismo e ao individualismo exagerado.

Ter consciência do todo é complexo, porém viver com no essencial torna a vida simples.

O essencial para se viver requer poucas coisas: vestimentas, alimentos e posses modestas podem levar a uma vida equilibrada e feliz, o contrário pode levar a um excesso de preocupação e stress.

No outro extremo não ter o essencial pode levar também ao desespero, aí estão as maiores e injustas situações sociais, uma sociedade que não se preocupa com isto está em desiquilíbrio e leva todos ao desiquilíbrio, também os que acumulam e tornam-se egoístas e consumistas.

A consciência do Ser na visão hegeliana estaria ligada ao Ser-em-si e para-si fica apenas na forma de percepção, fica na imaginação, a intencionalidade dos fenômenos que é negadora de outros objetos (externos) ou de si mesmo (internos) e por isto esta forma de consciência está relacionada ao nada.

A consciência não se consegue sem se identificar com nenhum ser-em-si (algo na fenomenologia) é nela que se aproxima em relação com outra consciência, isto ocorre porque uma ação ou escolha enquanto consciência percebe nesta relação a contingência e gratuidade da existência.

Assim esta consciência leva a reciprocidade, ao mutualismo e a uma existência que vale a pena, no dizer do filósofo Sócrates “porque ela se examina” e isto a vivifica e caminha para a plenitude.

A pura exterioridade é voluntarismo e a pura interioridade é falso essencialidade, e pode ser fuga.

 

O todo, a parte e o Ser

02 jul

Foi a partir desta teorização do todo que Werner Heisenberg deu início ao princípio quântico, quando formulou sua teoria não havia qualquer resposta de experiência científica, o que por si só já contesta o empirismo, e era uma “teoria” o que por si só contesta que a realidade é prática, mas foi a primeira tentativa, feliz porque depois a Física e a Ciência viriam em seu socorro, sobre partir do todo e não das partes como propunha o método cartesiano.

A verdade da física, porém vai se mudando ao longo do tempo, as novas descobertas sobre as novas descobertas de subpartículas (entre elas o bóson de Higgs), os 7 estados da matéria (junta-se aos três amplamente conhecido, o plasma (luz líquida), os estados de Bose-Einstein, gás fermiônico e superfluido de polarations, e pode haver um oitavo, assim já há uma para-física.

Porém já há, e sempre houve a meta-física (posterior a física), a modernidade quis reduzi-la a subjetividade (algo próprio do sujeito, mas preso apenas a sua mente), a ontologia atual, fruto da hermenêutica e da fenomenologia, recupera-se questionando o “velamento” do ser, e propõe uma clareira, a crise do humanismo não é outra coisa senão esta crise.

A pergunta filosófica sobre o tudo é “porque existe o tudo e não o nada” e isto supõe a ex-sistência, já a pergunta sobre o todo poderia ser, ela não é feita filosoficamente e sim apenas teologicamente, se existe “tudo” qual é a intenção que justifica a ex-sistência de tudo ?

A fenomenologia recupera a intencionalidade, uma subcategoria da consciência na filosofia medieval, com um sentido de estar dirigida a algo, ou de ser acerca de algo, assim ontológica.

Husserl a recuperou dirigindo-a a um objeto, categoria essencial no idealismo moderno, mas dirigindo-a algo que pode ser imaginário ou real, assim inclui-se a metafísica e o Ser.

Assim o fantástico da existência de tudo não é apenas sua existência, mas a intenção pelo Todo.

Qual é o todo e se existe é Ser, assim só Ele pode Ser além do todo universo que é locus, já que na física moderna o tempo é uma abstração, diz o físico italiano Carlo Rovelli, que está entre os mais respeitados.

Para os cristãos a entrada de Deus na physis acontece com Jesus, diz a passagem que Jesus pergunta quem dizem ser “o filho do homem” (Ele assim fala de uma de suas duas naturezas: divina e humana), e vai perguntar aos apóstolos o quem dizem que Ele é.

Os apóstolos respondem (Mt 16,14-16) {a questão do mestre: “Alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias; outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas”. Então Jesus lhes perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”, e Jesus diz que ele é feliz porque foi Deus que o revelou.

 

Entre o Ser, o Nada e a interioridade

01 jul

A primeira sensação ontológica, diante da racionalidade foi uma tentativa de confinar o Ser em sua subjetividade (que vem de sujeito) para tornar a relação com o Ente uma “objetividade” que existe fora do Ser (para a modernidade fora do sujeito).

Como ambas negam a a ex-sistência, aqui significa ex “sair de” e o verbo sistere “ser colocado”, assim existir é o que está colocado fora do ente, mais que a subjetividade é a própria essência do Ser, além do imaginário e do simbólico, do imaginário porque é o irrepresentável e o simbólico porque significa o não-sentido, mas aí estão toda essência e existência do Ser.

A concepção de negar a existência do ser, que tem que negar até mesmo a razão que a concebe, vem de Górgias (485-380 a.C.), sofista que Platão refutou em um livro, para ele não havia verdade e pode-se dizer que é o princípio longínquo para o relativismo.

A existência e realidade do Ser, embora velada, está na possibilidade de uma clareira, dela depende a abertura do Dasein, sua relação com a physis (a natureza no sentido geral dos gregos) e para a qual deve ser retirado o véu que cobre o ser, e assim a relação com o ente e a interioridade.

Se nos vemos apenas como vemos num espelho vemos a imagem do nosso ente, se vemos como somos significa que temos capacidade de ver além dele nossa interioridade, nossa complexidade e a partir delas como nos relacionamos com o todo do qual somos parte.

A projeção sobre a exterioridade e negação da interioridade é parte do esvaziamento do Ser na modernidade, somos o que fazemos e não importa muito o que somos de fato interiormente.

Deste esvaziamento nasceu o niilismo (nihil – nada), o solipsismo (o eu e minhas sensações) e de certa forma o subjetivismo (considerações só sobre o que é pessoal, uma interioridade vazia) e boa parte das teorizações prezas as dicotomias infernais (subjeito x objeto) e (natureza x Cultura).

Numa interpretação mais atual, na Sociedade do Cansaço, Byung Chul Han fala da interioridade, em outro livro A Sociedade da Transparência ele afirma: “hoje o mundo não é um teatro no qual são representadas e lidas ações e sentimentos, mas um mercado onde se expõem, vende e consomem intimidades” (HAN, 2017, p. 80).

HAN, Byung-Chul. Sociedade da Transparência Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis, Vozes, 2017.

 

A possibilidade da clareira

30 jun

Perscrutar e investigar o insondável é próprio do homem, porém há sempre a possibilidade do devaneio e de esquemas bem montados de pensamento que não levam a clareira, assim como um explorador na floresta, o risco de andar em círculos sem uma bússola, um rio de guia ou astros celestes são essenciais.

Isto ocorre desde os primórdios, alertava Heráclito em um fragmento “A φύσις gosta de se ocultar”.

A φύσις (“Physis kryptesthai philei”) foi deixada sem tradução porque ao pé da letra seria physis, mas isto era para os gregos a própria natureza e o que hoje está separado dela como Ser, a dicotomia em sujeito e objeto.

Em Heidegger, a verdade é este fundamento abissal, oculto mas possível de ser desvelado, isto está ligado neste autor pelo vínculo entre o ser e a verdade como sem-fundo, fundamento abissal, o insondável, porisso exploramos nos posts da semana passada a metáfora, ao contemplar o ser, isto se torna inefável.

O que poder-se-ia chamar de excesso ontológico nada mais é que o mistério do ser, sua escatologia sem fundamento único, ele nem é um fragmento do universo, nem é o próprio, parte dele e incógnito como ele.

A verdade é geralmente pensada como correção, concordância de enunciado com a que que enuncia, ou de uma coisa com o que já foi pensada previamente dela, uma hipótese que se procura torná-la verdade.

Pode-se pensar no relativismo, mas é exatamente o contrário, para Heidegger a verdade é sempre a verdade, a experiência de verdade, de Platão a Husserl, foi sempre uma adequação das representações, tentando escapar das metáforas, com a essência das próprias coisas.

Assim a verdade não é ser descobridor, mas é ser descoberto, o Dasein (ser aí) está aberto para si mesmo e para o mundo, e só nele pode-se alcançar a originalidade do fenômeno da verdade, o que os gregos chamaram de Alétheia, e que Heidegger vai além propondo ser instauradora do pertencer de Ser-homem.

Este é o sentido de originalidade do Ser, pensa o ser em seu sentido primordial como “presentar”, Ser é ser no presente, nele se desvela,

Assim o único sentido que poder-se-ia pensar a dialética como ontologia é aquele no qual o “traço básico do próprio presentar é determinado pelo permanecer velado e desvelado”, é o Ser em movimento.

A razão que estamos presos ao velamento do Ser (o seu esquecimento como dizia Heidegger) é a prisão a esquemas lógico-racionais que aos quais a verdade é ligada ao ente e desligada do Ser.

 

HEIDEGGER, Martin. Alétheia. Os pensadores. São Paulo : Abril Cultural, 1985, p. 126.

 

Da linguagem ao Ser

29 jun

A linguagem enquanto fala e retórica é apenas aquilo que se exterioriza, porém se pensada como ontologia é a abertura (Erschlossenheit) a partir da apropriação silenciosa do si-mesmo, como Heidegger pensou em Ser e Tempo, seja a abertura (offenheit) pensada como clareira do ser (lichtung des Seins), aquela usada por pensadores e poetas, e que se mostra na medida que sua correspondência silenciosa como ser, expressa em Carta sobre o Humanismo.

Escreve neste texto: “O destino se apropria como clareira do Ser, que é, enquanto clareira. É a clareira que outorga a proximidade do ser. Nessa proximidade, na clareira do Da lugar, mora o homem como ex-sistente, sem que ele já possa hoje experimente e assumir esse mora” (Heidegger, 1967, p. 61)

Em termos gerais linguagem é um veículo da expressão de algo interno ao homem, isto é, uma ponte que vincula o dentro e o fora do homem, tal forma de falar é pensada como uma atividade que acontece na qual o homem é o próprio meio, por isto há o silêncio antes.

Mas segundo a concepção ontológica da linguagem, não é a linguagem que pertence ao homem, mas antes o próprio homem concebido ontologicamente como ser-para-a-morte resoluto ou ser ontologicamente que responde como mortal à solicitação silenciosa do Ser.

Em termos mais simplistas trata-se aqui da diferença entre o ente que “tem” uma linguagem, no sentido de capacidade de falar, e a concepção ontológica que pensa o homem como “sendo” por meio de ser possuidor da capacidade de falar, a linguagem aqui não é apenas a transmissão de informações, mas o modo no qual manifesta o próprio existir humano.

Neste contexto comunicação começa com o silêncio, é preciso um vazio, um epoché na comunicação, que pressupõe um Outro que será destinatário, não é assim receptor, mas destino de sua fala, e este é o modo pelo qual se manifesta o próprio existir humano.

Assim para Heidegger, mas de outro modo também para Niklas Luhmann, seria preciso rever toda a teoria da Comunicação, pois receptor e transmissor são eles próprios o meio não humanos, e não “substituem” o homem, não podem existir nem ter relação como se o homem fosse algo acessório, aí está toda a alucinação da Inteligência Artificial atual, colocar receptor e transmissor no lugar de fonte e destino, seria preciso prever uma “clareira” do ente “fora” do Ser.

Por isto a clareira é interna, já postamos em outro oportunidade aquilo que Heidegger afirma em sua obra magna Ser e Tempo: “Na medida em que o ser vige a partir da alethéia, pertence a ele o emergir auto-desvelante. Nós denominamos isso a ação de auto-iluminar-se e a iluminação, a clareira” (cf. Ser e Tempo). (* aletheia do grego: a- não, lethe- esquecimento, desvelar).

HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 61.

 

O círculo hermenêutico e a metáfora

25 jun

Somos traídos quando julgamos conhecer e estamos ainda na etapa inicial da interpretação, aquela que ainda não iniciou um processo de epoché, colocar entre parênteses nossos pré-conceitos e iniciar uma verdadeira dialogia.

A metáfora nos ajuda a aproximar usando de linguagem poética uma relação de pertencimento, trazer o mundo a poesia e levar a poesia ao mundo, isto porque o poema projeta um mundo na sua dimensão ontológica, uma realidade que está entre o ver como da metáfora e o próprio ser.

Há além desta função no âmbito da inovação semântica, o desvelar de realidade mais profundas, por exemplo, explicar questões que são complexas de modo a permitir este pertencimento, esta proximidade, é a função por exemplo, das parábolas, a metonímia e a sinédoque.

Exemplos de parábolas mais conhecidas são as bíblicas, associar o Reino de Deus às sementes que crescem sem serem percebidas, ou ao grão de mostarda, uma pequenina semente que se torna uma árvore, isto para dizer que há uma força vivificadora no homem, e em todo homem.

Porém a metáfora, pelo uso de linguagem figurada corre sempre o risco de ficar na superfície.

Exemplificamos na semana passada a passagem bíblica em que Jesus ia para a obra margem do mar da galileia e uma tempestade ameaça a barca e Jesus acalma a tempestade (Marcos 4:35-41), porém a sutileza desta passagem é os significados metafóricos de ir a outra margem e da própria tempestade.

Precisava explicar coisas mais profundas e questionou os discípulos o medo das tempestades, e segue para a outra margem, significando lá um momento mais direto com os apóstolos, boa parte da exegese analítica (ver o post anterior) se fixa numa compreensão imediata que ir para a outra margem significa mudar a rota, quando na verdade além descansar (Jesus dormia na tempestade), as realidades mais profundas eram explicadas diretamente aos apóstolos.

Isto se comprova se verificarmos que depois Jesus retorna “a outra margem” onde volta a encontrar a multidão (Mc 5,21-43), e nesta multidão está além de uma mulher desconhecida que toca o manto do mestre e é curada de uma hemorragia de 12 anos, há um chefe de Sinagoga chamado Jairo.

Jairo tinha a filha nas últimas, e enquanto se encontrava com Jesus pedindo que impusesse as mãos na filha, chegam amigos de Jairo, que dizem que ela faleceu e Jesus diz que ela “apenas dorme”, vai a casa de Jairo e realiza o milagre pronunciando as palavras “Talitá cum” (na foto quadro pintado por Benito Sáez Garcia), menina levanta-se.

Esta sutileza, uma pessoa comum e um chefe da sinagoga, mostra bem claro que na “multidão” se encontram também autoridade religiosas que querem sinais (os judeus querem sinais e os gregos sabedoria) e assim a metáfora é complementada com “sinais” e uma “sabedoria” inerente a Jesus.

 

O que é compreender

24 jun

Compreender se tornou na estrutura analítica ocidental um círculo vicioso que tende apenas a repetir aquilo que considera verdade partindo de algum aforisma histórico, o que Gadamer chama de historicismo romântico em sua crítica a Dilthey.

O esquecimento do ser ignora que o círculo hermenêutico que vai da interpretação até uma nova compreensão é a própria estrutura de um novo sentido, um sentido existência, que está no Ser.

Assim a circularidade da compreensão não é primeiramente uma exigência lógica, a partir de um método A ou B, mas o próprio desdobramento ontológico: “a reflexão hermenêutica de Heidegger tem o seu ponto alto não no fato de demonstrar que aqui prejaz um círculo, mas um círculo este tem um sentido ontológico positivo” (GADAMER, 2013, p. 355).

Heidegger (2014) em sua obra magna Ser e Tempo elaborou uma hermenêutica da facticidade a partir da analítica temporal da existência humana (Dasein), aqui facticidade é o modo de ser em seu Dasein que encontra, na existência temporal, a possibilidade de revelação, de clareira:

“A estrutura da temporalidade aparece assim como a determinação ontológica da subjetividade. Mas ela era mais que isso. A tese de Heidegger era o próprio ser é tempo” (Gadamer, 203, p. 345), eis a essência mais profunda da obra de Heidegger, que aponta para o círculo hermenêutico:

“O decisivo não é sair do círculo, mas nele penetrar de modo correto. Esse círculo do entender não é um círculo comum, em que se move um modo de conhecimento qualquer, mas é a expressão da existenciária estrutura-do-prévio do Dasein ele mesmo. O círculo não deve ser degradado em vitiosum nem ser também tolerado. Nele se abriga uma possibilidade positiva de conhecimento o mais originário, possibilidade que só pode ser verdadeiramente efetivada de modo autêntico, se a interpretação entende que sua primeira, constante e última tarefa consiste em não deixar que o ter- prévio, o ver-prévio e o conceber-prévio lhe sejam dados por ocorrências e conceitos populares” (Heidegger, 2014, p.433), mas dirigir-se as coisas mesmas.

O compreender visto assim pode parecer filosófico demais ou uma teorização sobre o pensar, não o é, pois, mesmo no esquecimento do Ser, estrutura atual de fragilidade do pensamento, este é o processo de aprendizagem que envolve desde o aprendizado da linguagem por uma criança até os mais elaborados métodos de descoberta e inovação, ou são apenas repetição de algo já feito, e assim sem a facticidade, pois é mera repetição.

 

GADAMER, H-G. Verdade e método Trad. Flávio Paulo Meurer, revisão da tradução de Enio Paulo Giachini. 13. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2013.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo Tradução, organização, nota prévia, anexos e notas de Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014.