Arquivo para agosto, 2021
As intermitências da morte
José Saramago (1922-2010), além do seu célebre livro Ensaio sobrea Cegueira, escrito em 1995 e que depois tornou-se um filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles e com roteiro de Don McKellar, escreveu muitos outros romances: O memorial do convento (adaptado numa opera), O evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a lucidez, e muitos outros, destaco aqui As intermitências da Morte (2005).
Recebeu no ano de 1998 o prêmio Nobel da Literatura, porém duas obras parecem proféticas para os dias de hoje: O ensaio sobre a cegueira, que já fizemos um post e as Intermitências da Morte.
Cético e irônico, Saramago não deixou de perceber os dramas de nosso tempo, porém a maneira inesperada que acaba O ensaio a cegueira com a volta da visão de muitas pessoas, parece um tanto inexplicável, mas não é para quem ler também o seu Ensaio sobre a Lucidez, diria usando a metáfora heideggeriana que é possível a clareira, se penetramos no drama existencial da vida.
Em As intermitências da Morte, penetra nos dramas existenciais da vida, como um cético religioso, também vai ironizar as saídas com resposta “do alto”, isto é, transferir para “outro mundo” os nossos dramas permanentemente mundanos, entre eles, o que é a própria vida.
Diz numa passagem na página 123: “É possível que só uma educação esmerada, daquelas que já se vêm tornando raras, a par, talvez, do respeito mais ou menos supersticioso que nas almas timoratas a palavra escrita costuma infundir, tenha levado os leitores, embora motivos não lhes faltassem para manifestar explícitos sinais de mal contida impaciência, a não interromperem o que tão profusamente viemos relatando e a quererem que se lhes diga o que é que, entretanto, a morte andou a fazer desde a noite fatal em que anunciou o seu regresso.” (na foto uma figura do quadro de Gustav Klimt).
Depois de indagar em todo livro sobre a vida, coisa pouco comum nos dias de hoje, pois tudo que se quer é a volta a frivolidade, a normalidade do vazio, da ausência de vida, dos consumos e das falsas alegrias, o autor dirá no final do livro que a morte é a normalidade, dito assim:
“Permaneceu no quarto durante todo o dia, almoçou e jantou no hotel. Viu televisão até tarde. Depois meteu-se na cama e apagou a luz. Não dormiu. A morte nunca dorme.” (Saramago, 2005, p. 189).
E conclui que sua ironia comum em tempos que a pandemia sequer era sonhada (sua pandemia foi O Ensaio sobre a cegueira), diz sobre a morte: “(…) Não entendo nada, falar consigo é o mesmo que ter caído num labirinto sem portas, Ora aí está uma excelente definição da vida, Você não é a vida, Sou muito menos complicada que ela, (…)” (Saramago, 2005, p. 198).
Pena, pena mesmo que Saramago jamais tivesse acreditado numa vida verdadeira, esta descrença está também em toda sua obra, em especial “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991), mas ao menos não era indiferente ao tema, algo o “incomodava”.
SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005
Cautela e cuidados com as novas variantes
No Brasil até o sábado, o Ministério de Saúde distribuiu mais de 230 milhões de das vacinas contra a covid-19, estas 187 milhões já foram aplicadas sendo 128,4 milhões em primeiras doses e 59 milhões já tendo completada o esquema o que dá 36,9% da população, e ainda não basta, pois as novas variantes afetam enquanto o esquema não é completado.
O número de mortes e infecções no Brasil tem caído lentamente, mas ainda está na faixa pouco abaixo das mil mortes diárias de média móvel e perto das 20 mil infecções diárias.
Pesquisa ampla realizada pelo FioCruz revelaram que ao completar o esquema de vacinação, as vacinas AstraZeneca-Fiocruz e CoronaVac são efetivas contra infecção, hospitalização e óbito: A AstraZeneca-Fiocruz com 90% de proteção e a CoronaVac com 75%.
Assim, com 36,9 % do esquema de vacinação a atual fase de imunização ainda é frágil, e os novos protocolos de flexibilização não tem fundamento científico, exceto pesquisas feitas com rigor e dados comprovados, toda informação divulgada, mesmo por órgãos oficiais, não são confiáveis.
O infectologista e pesquisador da Fiocruz Julio Croda, afirmou em entrevista à CNN, que é preciso acelerar a vacinação para proteger as pessoas com maior eficácia contra a variante Delta, e ainda que a eficácia cai para idosos e pessoas com comorbidades.
Quanto a possibilidade de uso do esquema misto de vahttp://Mixed Oxford/Pfizer vaccine schedules generate robust immune response against COVID-19, finds Oxford-led study | University of Oxfordcinas, chamado de intercambialidade, um estudo conduzido pela Universidade de Oxford, do Reino Unido, mostrou que as vacinas que apresentam melhor respostas imunológicas são a combinação de Pfizer e da AstraZeneca, com um intervalo e quatro semanas, sendo maiores resultados da AstraZeneca seguida da Pfizer.
A flexibilização é responsabilidade dos órgãos governamentais de saúde, porém os cuidados são medidas pessoais que todos podemos tomar, ainda evitar aglomerações, fazer o uso correto de mascaras e uso de álcool gel devem continuar seguindo os protocolos.
Um período de pandemia longa causa também um stress pessoal e psicológico, é preciso encontrar ocasiões para passeios ao ar livre, relaxamento de diversas formas e contatos virtuais com amigos e colegas do ambiente de trabalho.
Nos cuidemos, pois, a pandemia ainda não passou e não é impossível que um novo ciclo surja.
A lei e a justiça
Os sistemas humanos estão em crise porque se na retórica, há novas formas de sofismas, o populismo é um complexo de sofismas, e eles sempre apareceram nas crises da polis, a nossa justiça que vem do Império romano, com fortes cores idealistas e positivistas, não conseguem permanecer numa linha de coerência, há sempre dupla interpretação conforme o réu.
Isto se deve além do populismo na conjuntura atual, de um modo mais amplo, na falta de uma visada ética como propõe Paul Ricoeur, nem o sistema deontológico que se arroga de isento de qualquer aspecto metáfisico, nem o te
Esta visada proposta por Ricoeur, conforme já explicado não se restringe ao campo da liberdade pessoal, porque pela própria exigência de universalidade deve ter um “efeito de coerção”, isto é aplicada por uma força da lei, mas também não se limita a ética “institucional”, já que deve existir um conjunto de ações “estimadas boas”, por exemplo, cada pessoa tem uma dignidade intrínseca, a morte e a violência não são recursos justos para coerção, podendo haver casos limítrofes, etc.
Mas uma ação estimada boa, difícil em tempos de polarização é aquela que vem de uma regra de ouro, não faça ao outro aquilo que não gostaria que fosse feito com você, deve haver sempre a possibilidade de discussão do contraditório sempre, mesmo nas ações “estimadas boas” e deve haver uma prevalência do comunitário sobre o individual, sem que haja constrangimento nem excesso de “força de coerção”, culturas diferentes interpretam de modo diferente o que é bom
O ponto limitante e discriminatório inaceitável, além do sofisma que desde a antiguidade tem o recurso da retórica e a força da persuasão, porém a demagogia e a mentira pública, por exemplo, aquela que omite os casos de apropriação do patrimônio público como um caso claro de negação do bem-comum.
A governança sobre bens e recursos naturais que são patrimônios nacionais ou até mesmo planetários, não apenas a natureza, mas também museus, bibliotecas, prédios históricos sejam eles de quais culturas forem, não podem ser vistos como aceitáveis.
Este legalismo deontológico (que se justificariam pelos fins), também está presente na narrativa bíblica cristão, os fariseus e mestres da Lei indagavam Jesus sobre os costumes de lavar as mãos, de seguir a “tradição dos antigos”, como na passagem do evangelista Marcos (7,5-7):
“Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?” e o Mestre respondeu: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos’. vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”.
Pois ninguém pode amar a Deus que não vê se não ama o Outro (próximo) que vê (1 João 4:20).
O debate atual sobre a justiça
Herdeiro de John Rawls, Michael Sandel faz sucesso, vale para ele o que diz para muitos outros que fazem sucesso: “Quem faz sucesso tende a achar que é graças a si mesmo”, certamente se não fosse professor de Harvard, não daria conferências assistidas por milhares de pessoas, e não poderia falar de polarização sem uma definição mais clara de seu próprio posicionamento.
O seu livro A tirania do mérito (Editora Civilização Brasileira, lançado setembro de 2020), chamou a atenção de setores progressistas, porém há uma crítica velada a estes próprios setores, para ele acusados “de abraçar, como resposta aos desafios da globalização, uma cultura do mérito que levou a um legítimo ressentimento das classes trabalhadoras, de desastrosas consequências que se puseram de manifesto, inclusive, na gestão desta pandemia” (Jornal El país, setembro de 2020).
Tem o mérito (fazendo um paradoxo) de dizer o que é óbvio, que sem uma política de cotas e de quebras de barreiras das desigualdades (inclusive a cultural, que ele aponta) não há possibilidade de mobilidade das camadas desfavorecidas, porém a linha de pensamento de Sandel tem raízes nas leituras de John Rawls, e sua obra “O liberalismo e os limites da Justiça” (Gulbenkian, 2005) é prova disto, e ambos foram colegas em Harvard.
No início dos anos 1980, o próprio Rawls citava a crítica comunitarista de Sandel como “a mais contundente dentre todas” e embora colocasse em xeque a “deontologia com rosto humano” (vejam no post anterior as raízes deste pensamento), era um pensamento inerente à teoria rawlsiana de um “liberalismo deontológico” combinado com um “empirismo razoável”, os termos podem ser encontrados na obra de Sandel.
A fim de obter uma “política liberal sem constrangimento metafísico”, Sandel interpelava o colega Rawls, em última instância, a abandonar a argumentação deontológica de um “eu desimpedido (unencumbered self), “incapaz de autorrespeito” e de “autoconhecimento, em qualquer sentido moralmente sério”, veja que há um objetivismo dentro daquilo que Hegel chama de eticidade.
O próprio Rawls já havia sido levado a reformular seu liberalismo político, partindo do contexto do pluralismo razoável e afastando-se de uma teoria moral abrangente de justiça.
As conferências de Sandel fazem sucesso nos EUA e agora também no exterior, e também no caso dele não é outra coisa senão o fruto da meritocracia (de Harvard neste caso), porém suas obras devem ser lidas com atenção.
SANDEL, Michael. Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. Em port.: O Liberalismo e os Limites da Justiça. Trad. C.P. Amaral. Lisboa: Gulbenkian, 2005.
A visada ética de Paul Ricoeur
Em seu texto de 1990, Paul Ricoeur já elaborou o que chamava de uma pequena ética, simplificada em três teses:
- a prioridade da ética sobre a moral, isto é, a prioridade da vida da vida boa (vem do conceito grego de bondade), com e para os outros, em instituições justas, sobre a norma moral;
- A necessidade, no entanto, que a visada ética (aqui opõe-se a eticidade Hegel/kantiana) pelo crivo da norma moral: essa passagem da ética à moral, com seus imperativos e suas interdições, é por assim dizer exigida pela própria ética, na medida em que o desejo da vida boa encontra a violência sob todas as suas formas; e,
- a legitimidade de um recurso da normal moral à visada ética, quando a norma conduz a conflitos e para os quais não há outra saída a não ser a de uma sabedoria prática, à criação de decisões novas frente a casos difíceis, como no direito, na vida cotidiana e na medicina.
Ricoeur esclarece que nem na etimologia das palavras, nem na história do uso dos termos, não há uma distinção clara entre moral e ética, porém há um nuance o termo ética “para a visada de uma vida realizada sob o signo das ações estimadas boas”, e o termo moral “para o lado obrigatório, marcado por normas, obrigações, interdições caracterizadas ao mesmo tempo por uma exigência de universalidade e por um efeito de coerção” (Ricoeur, 1991a, p. 256).
Neste sentido deve ser entendida sua “visada ética”, nem se restringe ao campo da liberdade pessoal, já que admite “exigência de universalidade e por um efeito de coerção” nem se limita a ética institucional já que ela deve estar “sob o signo das ações estimadas boas”.
Pode-se assim distinguir mais claramente na sua visada ética, a distinção entre duas heranças, a aristotélica “a ética caracterizada pela sua perspectiva teleológica (de telos, que significa fins), e a herança kantiana deontológica (“a moral é definida pelo caráter de obrigação da norma e, portanto, por um ponto de vista deontológico (deo de “dever”).
Assim sua análise ao invés de excluir uma ou outra tese da ética moderna, faz um complemento tanto da obra a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, e a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a Crítica da Razão Prática de Kant, mas sem a necessidade de ser fiel à ortodoxia a nenhuma das duas, não é uma saída evasiva, mas sim inclusiva.
RICOEUR, Paul. Éthique et morale, Lectures 1: Autour du politique. Paris, Seuil, 1991, p. 256-269.
O justo e a hermenêutica
O conceito tradicional de Justiça é aquele que vem do iluminismo e do idealismo, terá sua consagração na Introdução a filosofia do direito de Hegel, a margem deste direito sobrevive teorias cristãs, islâmicas e de outras crenças (o Haiti, por exemplo, teve uma constituição creola), mas sempre a margem.
Pode-se por razões históricas retornar a Kant e Fichte para discutir questões teóricas da justiça, porém o estado moderno e suas leis, que são bases da justiça contemporânea, ao menos no ocidente, tem sua fundamentação em Hegel, e um conceito essencial aí é o da eticidade, que vem junto com a ideia de justiça fundamentada na equidade da própria justiça e não do que é justo.
Assim Hegel teoriza a eticidade como “moralidade objetiva” ou “vida ética”, lembre-se do imperativo categórico de Kant: “age de tal modo que seja modelo para os outros”, assim uma moralidade individual, mas os dois conceitos abstratos de Hegel são o direito e a moralidade.
O âmbito da eticidade, para realizar o ideal da liberdade, está presente na família, na sociedade civil e no Estado, mas tendo o Estado como soberano sobre as demais instituições para as quais estabelece um contrato, e as regras morais e éticas são definidas por alguém que age desta forma, então esta é uma qualidade da ética, a sua eticidade, que apesar de objetiva, continua abstrata.
Ultrapassa o pensamento kantiano afirmando que há uma moralidade subjetiva e uma moralidade objetiva, clássico dualismo do idealismo ao qual Hegel é um apogeu, para Kant era o primeiro ao dizer “age de tal forma” que seja universal, para Hegel é o segundo e para isto definirá um novo conceito (abstrato) da “autoderminação da Vontade”, que é uma moralidade objetiva.
Pode parecer que o direito “individual” (questionável) fica preservado, porém em quase todas as legislações em situações “omissas” é o estado através do juiz que determina a justiça, veja no caso brasileiro o artigo 4º. da Introdução ao código civil:
“Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”, não há objeção de consciência coletiva ou individual e não há a autodeterminação da vontade, ela é decidida pelo Estado, e já nisto difere da moralidade.
A discussão atual avançou em fase aos graves problemas sociais, sobre a questão da equidade, e ainda sobre o véu do contratualismo (origem do estado de direito), o nome mais eminente hoje é John Rawls, para o qual sua discussão avança sobre o intuicionismo e o utilitarismo, sobre o qual se debruçará Paul Ricoeur para questionar seu conceito de Justiça em sua obra: “O justo ou a essência da Justiça” (1997).
Essencialmente, a discussão é sobre os direitos coletivos, difusos (da natureza por exemplo) e da equidade, Paul Ricoeur caminha para uma hermenêutica do direito, enquanto Rawls para o direito liberal e a equidade diante da justiça e não dos direitos sociais de dignidade humana.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça/John Rawls: Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves – São Paulo: Martins Fontes, 1997.
RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. Trad. Vasco Casimiro. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
A variante Delta ainda preocupa
Os casos da variante Delta e da nova variante Alfa, que veio do Reino Unido ainda preocupam, é necessário monitoramento, controle de movimentação, e no caso do Brasil o estado do Ceará que tem 43 casos dá um exemplo, tendo criado um centro de monitoramento e triagem para viajantes, o Ceará tem 43 casos da Delta e já há um caso da variante Alfa vinda do Reino Unido.
Os casos do Ceará são 24 mulheres e 19 homens, a maioria (33) são entre 20 e 39 anos, o que faz sentido pois são as idades que a segunda dose ainda está acontecendo, há casos vindo de Nova Friburgo (RJ) e São Paulo, e os outros são residentes em 20 municípios diferentes do Ceará, todos tiveram sintomas leves, moderados ou assintomáticos.
É um momento de cautela e a flexibilização de muitos governos estaduais pode ser prematuras, a curva de mortes e infecções está num patamar estável, e com a vacinação a expectativa era que fosse de queda.
Conforme informou o consórcio de veículos de imprensa, o número de pessoas que receberam a primeira dose é de 122 milhões enquanto 54 milhões tomaram as doses necessárias (uma vacina usa só uma dose), eram os dados do último sábado (21/08).
Como a segurança para a variável delta é necessária a imunização completa, o número exato de 54.890.099 pessoas (24,92%), o que dá um quarto da população é muito baixo para as novas variantes Delta e Alfa (que já começam avançar no país), a possibilidade de chegar a 60% de imunes é ainda distante, setembro será um mês fatal, e o patamar de infecções e mortes é ainda alto e estável.
Alguns estados estão um pouco acima Mato Grosso do Sul (40,59%), São Paulo (32,40%), Rio Grande do Sul (31.62%) e Espírito Santo (28,33%), os demais estão próximos ou abaixo da média de 25% de imunização completa, segundo o consórcio dos órgãos de imprensa.
Os dados recentes indicam que o Sudeste puxa a curva de infecção para cima em 7%.
Devemos aprender com os países do sudeste asiático vem as infecções crescerem devido a baixa taxa de vacinação, mesmo países como China, Japão e Coreia do Sul estão vendo surtos crescentes, conforme informa o site da CNN, dados de O Globo indicam os dados de alguns países da região, em azul as infecções e em preto o número de mortes (figura).
A policrise e palavras duras
Já falamos da crise do pensamento, o excesso de especialíssimos que perdem a visão do todo, a prisão idealista, que nasceu num idealismo pré-socrático apontou Popper, e um vazio da capacidade de renovar o pensamento.
A proposta de Morin reformar o pensamento, é abrir as gavetas do pensamento e articulá-las num modelo complexo (do latim complexus, o que é tecido junto) fora da “especialidade” e do conceitualismo.
O que antes parecia um alerta agora já se faz presente em diversos discursos além dos ecologistas: o planeta dá sinais de esgotamento, temperaturas extremas, mesmo em locais onde pareciam impossível: frio no hemisfério sul e calor intenso no hemisfério norte, também a vida animal vai perecendo, a notícia atual é a quase extinção do pinguim imperador, que eram grandes colônias.
O núcleo planetário também se manifesta, o número de vulcões e terremotos cresce, o Haiti pede socorro após um novo terremoto e um furacão que enfraqueceu ainda mais aquele país pobre.
A volta do Taliban ao poder no Afeganistão, os militares em Myanmar e outros neototalitarismos, tudo isto parecem palavras duras e pessimistas, claro sempre temos esperança, não é a primeira crise da humanidade, mas talvez esta seja a mais global e a mais geral de todas e poderá se tornar uma crise civilizatória, em meio a uma pandemia que persiste, e é neonegacionismo dizer que passou, as novas variantes são ameaçadoras, e a própria OMS e muitos cientistas fazem o alerta.
Talvez um plano pouco perceptível é o da religiosidade, além do desrespeito a diversas crenças, há internamente uma crise que podemos chamar de uma “ascese desespiritualizada”, usando uma palavra de Peter Sloterdijk, que aqui traduzimos por sua raiz, ascese “sem” admitir o espírito.
Diz uma passagem bíblica em que Jesus está questionando seus discípulos que achavam que sua palavra era dura demais (Jo 6,61-63):
“Sabendo que seus discípulos estavam murmurando por causa disso mesmo, Jesus perguntou: “Isto vos escandaliza? E quando virdes o Filho do Homem subindo para onde estava antes? O Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada. As palavras que vos falei são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não creem”.
Está falando para seus discípulos e para os que creem, e se não tem espiritualidade não tem fé.
O sofisma moderno e a crise da democracia
Desenvolvemos através das postagens a crise do pensamento e os sofismas modernos, não mais fundados em justificativas do poder, mas para promover novos modelos neoautoritários de poder, é a psicopolítica como desenvolveu-Byung-Chul Han, que está além da biopolítica de Foucault.
Sobre a reforma do pensamento Edgar Morin desenvolveu uma extensão obra que está sintetizada em seu livro “A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento”, com duas vertentes importantes, além do próprio pensamento reformado: o pensamento ecologizante e a superação do modelo mecanicista.
Um século depois do triunfo da física quântica, o modelo do nosso pensamento ainda é newtoniano, mecanicista e dualista, o modelo quântico admite um terceiro excluído, no quanta a matéria pulsa e há um terceiro estado entre um ponto da matéria e outro, chamado na física de efeito de tunelamento, ele consagra a visão inicial de Werner Heisenberg do princípio da incerteza e redescobre a natureza ondulatória da matéria e não apenas da luz, que é também matéria sem massa.
Edgar Morin utiliza este conceito da incerteza para reformar a reforma, aquela mudança que todos queremos, mas que ainda fica focalizada em dois polos, e induz grande parte do pensamento moderno para fundamentalismos que não admitir reformas nem um terceiro excluído, nem uma terceira via.
Estas vertentes fazem o planeta caminhar para uma crise política da democracia sem precedentes, governos neoautoritários, como Myanmar e agora no Afeganistão e as ditaduras planetas já quase consolidadas em todo ocidente com ameaça de surgimento de novas e ainda mais radicais.
Afirma Edgar Morin em seu livro: “Uma inteligência incapaz de perceber o contexto e o complexo planetário fica cega, inconsciente e irresponsável” (Morin, 2014) e dirá mais a frente: ““[…] um modo de pensar, capaz de unir e solidarizar conhecimentos separados, é capaz de se desdobrar em uma ética da união e da solidariedade entre humanos. Um pensamento capaz de não se fechar no local e no particular, mas de conceber os conjuntos … estaria apto a favorecer um senso da responsabilidade e o da cidadania” (Morin, 2014).
Sem uma inversão da tendência atual teremos uma grande crise civilizatória a vista, veja o estaria na frase de Morin.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.
As raízes do iluminismo e do dualismo
Karl Popper em “O mundo de Parmênides: ensaios sobre o iluminismo pré-socrático” esclarece dois pontos fundamentais da essência do pensamento contemporâneo em suas raízes gregas: o problema de Parmênides com relação a verdade, onde já há certa dose de relativismo e a negação da ontologia, onde o ser não é visto como tendo relação com o ente, separação originária entre sujeito e objeto.
Popper descreve a origem da doxa, através do poema (fragmentos) de Parmênides, através da revelação da deusa Diké:
“A revelação divide-se em duas partes como deixa claro a deusa. Na primeira parte a deusa revela a verdade – toda a verdade, acerca do que realmente existe: acerca do mundo e das coisas em si mesmas. Na segunda parte, a deusa fala sobre o mundo das aparências, acerca do mundo ilusório do homem mortal” (Popper, 2014, p. 134).
Esclarece Popper esta divisão da revelação: “… habitualmente diferenciadas como a “via da Verdade” e a “Via da Opinião”, cria o primeiro e maior problema não resolvido acerca da obra de Parmênides” (idem), e faz a indagação do porquê a deusa “… contivesse não só uma explicação verdadeira do universo, mas também uma explicação inverídica, como ela diz explicitamente” (idem), é fácil explicar mesmo hoje com o avanço enorme da ciência iluminista, pouco sabemos.
Porém o idealismo inicial de Parmênides, cujo fundamento o ser é e o não ser não é, que não é uma ontologia, é Popper também que defende isto ao contrário de muitos filósofos: “não creio que exista algo como uma ontologia ou teoria do ser ou que se possa atribuir seriamente uma ontologia a Parmênides” (Popper, 2014, p. 137).
A sua tentativa de “provar” um enunciado ontológico é tautológica, dita assim “só que é (existe) é (existe)”, mas não há como a partir de uma teoria tautológica para criar ou derivar uma não-tautológica, assim a teoria do ser aí é vazia, como explica Popper, e eu diria uma visão dualista.
Porém é este tipo de eidos transformado em ideia do ser é ou não é, que chegou ao idealismo, Popper chega a dizer até mesmo que uma verdadeira epistemologia nasceu de Parmênides, e a visão iluminista desenvolvida no livro de Popper como “o iluminismo pré-socrático”.
Isto significa que herdamos de Parmênides, através do iluminismo, o dualismo da “via da verdade” e a ‘via da opinião”, e estas duas vias sempre assombrou os filósofos diz Popper.
Assim convivemos até hoje com os sofismas, em lógicas cada vez mais trabalhadas, afinal o poder dos sofistas sempre estive em sofisticar suas argumentações, porém não saímos desta herança e o iluminismo de fato tem raízes parmenidianas, e o esquecimento do ser ainda é presente hoje.
POPPER, K. O Mundo de Parmênides: Ensaios sobre o iluminismo pré-socrático. trad. Roberto Leal Ferreira. 1ª. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2014.