Arquivo para fevereiro, 2021
Querer curar-se para um novo normal
Começaria hoje o carnaval no Brasil, há quem lamente esta impossibilidade mesmo pensando em uma pandemia que não dá sinais de enfraquecimento, mesmo países que avançam com a vacina, caso de Portugal, Inglaterra e Estados Unidos os sinais que o vírus circula ainda está mais forte.
O livro de Morin nos alerta para lições que a pandemia deveria ter nos ensinado, porém não é o que de fato se observa, assim não só precisamos de outras “curas” como a própria fragilidade humana perante o vírus e outras patologias, incluindo as sociais, podem permanecer.
É preciso querer curar-se e descobrimos que esta cura é coletiva e codependente, precisamos que todos sejam sãos e uma sociedade que não olha os mais frágeis ou que os despreza e condena a vida da solidão e da morte não alcançou ainda uma cura duradoura que aponte para uma solidariedade duradoura.
Aprendemos a dureza do isolamento e da solidão, mesmo que em família, porém quantas são as pessoas que vivem assim na chamada normalidade, que o novo normal traga um maior agregamento humano a todos, que se trace a partir de uma nova política aquilo que Edgar Morin chama de uma nova humanidade mais humana.
Que a vacina nos imunize, mas que aprendamos a co-imunidade como defendia Peter Sloterdijk já antes da epidemia, e não se referia a imunidade da doença, mas num sentido mais amplo, aquela imunidade que nos faz uma humanidade capaz de defender-se das tiranias e das doenças sociais.
A passagem bíblica em que um leproso se aproxima de Jesus e pede de joelhos: “Se queres tens o poder de curar-se”, Jesus, cheio de compaixão estendeu a mão, tocou nele e disse: “eu quero fica curado!” (Marcos 1,40-41).
Há dois pontos essenciais o desejo ardente com fé do leproso de curar-se e a compaixão divina para que ele fique curado, a fé e a retidão humana atraem o poder divino, os que creem sabem disto. Mas só o nosso desejo de mudar de via (veja os posts anteriores) podem tocar a misericórdia de Deus.
O mundo hoje quer mudar ou viver a frivolidade da normalidade anterior.
É hora de mudarmos de via
Não é proposta minha, mas o nome do último livro de Edgar Morin (Ed. Bertrand do Brasil, 2020), o quase centenário filósofo francês mostra as lições do coronavírus que resistimos em aprender, também é muito parecido ao nome do livro de Peter Sloterdijk: Tens de mudar de vida (editora Relógio d´Água, 2018), este bem antes do coronavírus.
Antes de passar a algumas lições de Morin, quero dizer que TODOS precisamos mudar de vida, o planeta se esgotou, as palavras se esgotaram, a política polarizadora nos esgota, e infelizmente as palavras adocicadas como “fraternidade”, “solidariedade”, “compaixão” e tantas outras parecem só uma vontade de alguns que os outros mudem, sem, contudo, que cada um mude primeiro a si.
O preâmbulo é uma retrospectiva histórica desde a gripe espanhola até maio de 68 e a crise ecológica atual, as lições do coronavírus no capítulo 1 comento-as no final.
Começo pelo fim para afirmar que Morin que também compartilha de valores de fraternidade, de uma cidadania planetária, da superação de desigualdades etc., tem em seu livro ama proposta bem clara, depois de demonstrar que a crise é anterior ao coronavírus que só a agravou, na página 4 sentencia “… são duas as exigências inseparáveis para a renovação política: sair do neoliberalismo, reformar o Estado” (pag. 46), que vai dar os meios no capítulo 3.
Este é na verdade seu segundo ponto do cap. 2 Desafios pós-corona, o desafio da crise política, dos nove desafios que aponta nas crises atuais: o desafio existencial, apontado também na Encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco, os desafios das crises: da globalização, da democracia, do digital, da proteção ecológica, da crise econômica, das incertezas e o perigo de um grande retrocesso (pags. 44 a 53).
As 15 lições do coronavírus: sobre a nossa existência, o isolamento mostra-nos como vivem aqueles que não “tiveram acesso ao supérfluo e ao frívolo e merecem atingir o estágio em que se tem o supérfluo” (pag. 23), sobre a condição humana lembra o relatório Meadows, que apontava para os limites do crescimento, a lição sobre a incerteza de nossa vida, a lição de nossa relação com a morte, a lição sobre a nossa civilização (a vida voltada para fora, sem vida interior, a vida dos shoppings e happy hours), o despertar da solidariedade, a desigualdade e o isolamento social, a diversidade de situações e de gestão da epidemia, a natureza de uma crise, as 9 lições iniciais.
A lição sobre a ciência e a medicina, será que entendemos “que a ciência não é um repertório de verdades absolutas (diferentemente da religião” (pag. 33), a crise da inteligência, que ele divide sabiamente em “complexidades invisíveis” o modo de conhecimento “das realidades humanas (taxa de crescimento, PIB, pesquisas de opinião, etc.” (pag. 35), o ponto 2. é a ecologia da ação, alerta que a ação pode “percorrer o sentido contrário ao esperado e voltar como um bumerangue para a cabeça de quem a decidiu” (pag. 35), quantas ações e discursos caíram nesta vala.
A decima segunda lição é a ineficiência do estado, que além da política neoliberal cede “a pressões e interesses que paralisam todas as reformas” (pag. 38), enquanto a polarização se aprofunda.
A decima terceira lição é a deslocalização e dependência nacional, e lamenta “que o problema nacional seja tão mal formulado e sempre reduzido à oposição entre soberania e globalização” (pag. 39), note-se pelos discursos que polarizam e não saem deste círculo vicioso.
A décima quarta lição é a crise da Europa, lembro do livro de Sloterdijk “Se a Europa despertasse”, e Morin abre a ferida: “sobre o choque da epidemia, a União Europeia partiu-se em fragmentos nacionais” (pag. 40).
A décima quinta lição é o planeta em crise, cita o prof. Thomas Michiels, biólogo e especialistas na transmissão de vírus: “Não há duvida de que a globalização tem efeito sobre as epidemias e favorece a propagação do vírus. Quando se observa a evolução as epidemias do passado, há exemplos notórios em que se nota que as epidemias seguem ferrovias e deslocamentos humanos. Não resta dúvida, a circulação dos indivíduos agrava a epidemia” (pag. 41).
MORIN, E. É hora de mudarmos de via: lições do coronavírus, trad. Ivone Castilho Benedetti, colaboração Sabah Abouessalam. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2020.
Urgente: mudar o pensamento, ensinar a viver
Quando propomos um modelo que não é aquela do mundo da vida, dele Husserl fez uma filosofia, o seu Lebenswelt (mundo da vida), Habermas fez dela uma sociologia, Heidegger e Gadamer a incorporam em seus pensamentos, mas afinal que é a vida senão uma aprendizagem, não aprendemos com a pandemia.
O problema central de busca de uma “clareira” é que criamos modelos demasiadamente longe da vida, de sua defesa incluindo a natureza, a dignidade e o próprio viver, estamos num Setembro Amarelo, cujo tema não é outro senão o de dizer que vale a pena viver. Teremos uma clareira, mas ela durará pouco, e poderíamos começar já uma grande mudança, depois poderá não haver tempo.
Foi Morin que fez dela uma ousadia ao escrever Ensinar a Viver, a pedagogia esquecida e o método pouco utilizado, quando Morin escrevia seu Método (na verdade em vários volumes e sentidos), li no comentário da Editora Sulina que o publicou no Brasil, que “ele o desfaz em partes que, holograficamente, repetem esse todo de maneira sintética, mas completa”.
Morin começa por uma crítica que muitos fazem na universidade, mas se curvam a ela para não fazer valer suas “carreiras”, ele critica essa “deriva das universidades”, cujo dilema central ele sempre retorna que é “refazer o pensamento”.
Agarrados a métodos e modelos já superados, logicistas e neopositivistas, não se aponta “a natureza do conhecimento, que contém em si o risco de erro e de ilusão” (MORIN, 2015, p. 16).
O grande teórico da complexidade propõe antes de tudo um retorno a filosofia (no sentido do pensamento primário) em sua condição socrático de diálogo, aristotélicas (no sentido entre outros, da organização da informação), platônica (questionamento das aparências), e até mesmo pré-socrática (questionamento do mundo, inserção do conhecimento na cosmologia moderna), enfim não pode ensinar a vida sem saber que ela tem dilemas, erros e opções.
Morin, que poderia arrogar-se de sabedoria pela idade, pela intensa atividade intelectual, desde do pedestal daqueles cheios de certezas, sem dúvidas ou equívocos que vemos desfilar pelas academias e pelos palanques públicos da mídia devoradora e pouco questionadora.
Morin busca “conceber os instrumentos de um pensamento que fosse pertinente por ser complexo” (Morin, 2015, p. 23), e vemos a barbárie de certezas dogmas e pouco elaboradas.
Frases prontas, manuais de autoajuda, laissez-faire (principalmente econômico), grosseria e histeria ideológica, fazem um aprofundamento da crise cultural, humanitária e social de hoje.
Me assusta que leitores de manuais tenham tanta certeza com tão pouco pensamento, aliás a crítica ao pensamento cresce e o elogio da ignorância parece vencer qualquer argumento.
Morin nos encoraja e nos remete a um futuro ainda visível e possível, sua palestra na Fronteira do Pensamento (em 2016) é uma esperança e um aprofundamento que lança novas luzes.
MORIN, Edgar: Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Porto Alegre: Sulina, 2015
Existência, repetição e Ser
Na filosofia pode-se ter forma (morphé) e matéria (hilé) e todos seres tem morphé-forma e hilé-matéria, mas a in-formação depende do pensamento, depende da disponibilidade ao ato de pensar e não apenas o de repetir, aqui encontramos este segundo tópico, que o repetir não significa apenas tornar-se redundante, o problema civilizatório permanece se não avançamos.
Em palestra em 2016, no Salão de Atos da UFRGS Sloterdijk já sentenciava: “Penso que a realidade hoje se assemelha a como estávamos em 1915 – comentou ele, comparando o atual panorama com uma época no século passado em que a I Guerra recém havia começado e não haviam se sucedido…”, este quadro só se agravou, a pandemia poderia ser uma pausa, mas não foi.
A repetição pode ser vista como submissão as regras, as leis da natureza, da sociedade enfim de um conjunto de situações que te aprisiona, como pode ser uma tomada de consciência de quem você efetivamente é, aquilo que é sua verdadeira natureza, então repetir é a possibilidade de ser no presente e projetar-se no futuro, então entra-se na existência.
O acesso a existência humana num novo tipo de registro implica uma articulação de sentido para o Ser e para a vida, o caminho percorrido de Husserl a Heidegger, e depois com Gadamer é o que liga a hermenêutica a ontologia, e em Gadamer é explicitado o método do círculo hermenêutico.
Pode ser assim descrito seguindo o raciocínio de Gadamer: não deve ser degradado a um círculo vicioso, mesmo que esteja seja tolerado, nele vela uma possibilidade positiva do conhecimento originário, que, evidentemente, só será compreendido de modo adequado quando a interpretação compreender sua tarefa primeira.
Esta tarefa primeira constante e última permanece sendo a de não receber de antemão, por meio de uma “ideia feliz” ou por meio de conceitos populares, nem a posição prévia, nem a visão prévia, mas em assegurar o tema científica na elaboração desses conceitos a partir da coisa mesma. (GADAMER, 1998, p. 401).
Visto o método voltamos a questão essencial do Ser, que é o esquecimento na filosofia ocidental deste conceito, desde Platão até Nietzsche, e assim temos uma metafísica ou sua negação, ambas de forma incompleta porque um conceito tão essencial não foi abordado.
É o esquecimento do ser, que o filósofo diagnostica em toda a tradição filosófica ocidental, começando com Platão e se estendendo até Nietzsche.
Na sua obra “Que é metafísica” (escrita em 1929), o Heidegger definições assim a existência: “A palavra existência designa um modo de ser e, sem dúvida, do ser daquele ente que está aberto para a abertura do ser, na qual se situa, enquanto a sustenta” (1989b, p.59).
Sem esta categoria essencial a discussão e o pensamento fica preso ao “ente”, que Tomás de Aquino a define assim: “De onde se segue que a essência, pela qual uma coisa se denomina ‘ente’, não é apenas a forma, nem apenas a matéria, mas ambas, embora à sua maneira apenas a forma seja a causa desse ser” (Aquino, 2008, p. 10), nesta linha ontológica não há separação entre o Ser e o Ente.
Assim temos além do Ser, sua categoria agregada do ente, que lhe é inseparável.
AQUINO, T. O Ente e a Essência, Universidade da Beira Interior. LusoSofia.Press, Covilhã, PT, 2008.
HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica? In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1989.
GADAMER, H.G. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
Vacinas, antecipação e cuidados
As vacinas são sem dúvida a maior arma na luta contra a Covid-19, porém é preciso acompanhar os dados científicos mundiais, a própria OMS certifica que apenas duas vacinas tiveram os dados finalizados Pfizer e AstraZeneca, sendo as etapas de avaliação (Status of assesment) e data de decisão antecipada (data of antecipated decision), segundo o próprio site da OMS (foto ao lado).
As outras estão prometidas para o meio de fevereiro e início de março, notem que a decisão está escrita na tabela da OMS foi antecipada por isto alguns efeitos colaterais estão aparecendo após o início da vacinação, normalmente isto era verificado nos testes finais.
Não é, portanto, fake-news como muitas informações que circulam na mídia, o processo de avaliação foi acelerado é o que está claro no próprio site da OMS, que é compreensível de certa forma, porém é preciso saber que o processo de queda na curva de infecção ainda vai demorar para cair, os dados oficiais mostram que o número de infecção e de mortos vem crescendo (novas cepas e eficácia das vacinas), e há países que já estão em colapso e outros que podem entrar.
Assim os cuidados devem ser redobrados e todos precisamos estar atentos a este momento que é agora sim o pico da pandemia e as vacilações no controle da pandemia apenas pioram o estágio atual.
O caso de Portugal é icônico, mesmo tendo iniciado o processo de vacinação e que está em ritmo até bom, a contaminação da Covid-19 atingiu níveis muito altos no país e exigiu medidas duras do governo, e um certo pânico no sistema de saúde que pediu auxílio aos vizinhos europeus.
Não podemos imaginar que este é apenas o caso deles e que não chegaremos a este caos, se não forem tomadas medidas urgentes, entraremos no mesmo colapso que uma boa parte do país já parece estar caminhando, as dificuldades de tomar medidas duras deve-se ao péssimo clima que a política instala no país, impossível qualquer tipo de acordo ou bom senso neste nível.
Enquanto isto o povo sofre e torcemos pelo avanço das etapas de vacinação, mas é bom observar o estágio das vacinas que estão sendo oferecidas e também fazer esforços na compra de insumos.
Porque é necessário um “epoché”
Toda a nossa forma de ver a vida está filtrada por uma visão de mundo, um complexo de valores, educação familiar, social e religiosa num sentido lato, isto é, todos temos alguma crença, ou então teríamos toda a explicação do mundo sobre os enigmas da natureza, do homem e da vida. A pandemia poderia ter mudado a visão.
Esta visão “cosmológica” implica sempre (não é quase) em valores pré-conceituais, ou seja, como classificamos o mundo, as coisas e os modos sociais de desenvolver a vida, esta cosmovisão foi chamada por Heidegger de Weltanstchauung, a palavra é importante porque toda tradução é imprecisa.
Na vertente ontológica que Heidegger bebeu, está a fenomenologia de Husserl, seu professor, e para ele a esta era “a descrição daquilo que aparece” ou a “ciência que tem como objetivo ou projeto essa descrição”, e para ele é ela própria um conceito de método, que Hans Georg Gadamer aprofundou mais tarde em “Verdade e Método”.
No entanto muitos beberam da fenomenologia de Husserl, cada um a seu modo, Karl Jaspers, Emmauel Levinas, Edith Stein, Jean Paul Sartre, Gabriel Marcel, Hans Georg Gadamer, Paul Ricoeur, Martin Buber, Nicolai Hartmann, Hans Jonas, e aquele que a transformou em filosofia Hans-Georg Gadamer.
O sentido aberto do Ser em Heidegger extrapola os campos sócio-políticos, biológicos ou antropológico (por isto é ontológico, ou próprio do Ser), e o conceito de Dasein significa estar lançado no mundo enquanto o “Ente” são as coisas em sentidos diversos, ou seja, tudo o que falamos, sentimos, entendemos, nos comportamos em última análise aquilo que “somos”.
Se entramos nesta clareira o Ser é também aquele que precisa de auxílio, de cura, de escuta, de uma palavra de aceitação enquanto Ser do Ente, ou seja, nas suas funções enquanto vivência.
Ainda que a exegese bíblica considere encerrada toda a análise do envio dos discípulos de Jesus ao mundo, ide pelo mundo e proclamai a boa nova e curai os doentes, este cuidado com o próximo (no sentido amplo da palavra “curar”) também significa abertura, “epoché” e transcendência.
Ide pelo mundo com uma visão de mundo ampliada, além do seu círculo restrito.
Uma relação e um terceiro
Costuma-se dizer que aquele que está com Deus tem tudo, ou aquele que tem um amigo possui um tesouro, ou ainda que o homem que encontrou a companheiro ou a companheira que encontrou um companheiro, encontrou a felicidade, quase sempre dois a dois sem um “algo” a mais entre eles.
Sócrates dizia que a verdade não está com os homens, mas entre os homens, quer dizer existe um terceiro elemento no caso da lógica, mas no caso onto-lógico existe um terceiro Ser.
Quem é este, se duas pessoas tiverem num verdadeiro epoché, isto é, se relacionam num vazio capaz de estabelecer uma ligação que produza tal força que surge uma terceira possibilidade, o que pode ser chamado de mutualidade, reciprocidade ou de modo mais simples solidariedade.
Porém esta terceira presença precisa de uma nova categoria ontológica, o não-ser ou aquilo que Paul Ricoeur chama no seu discurso linguístico “ser-como” e que na hipótese lógica do terceiro incluído, aquele que existe além do A e o Não-A, e que a física quântica estabelece como real.
Também o discurso religioso mudaria se a terceira pessoa a que todos clamam pudesse pertencer não ao próprio ego, mas justamente a sua negação para a inclusão do Outro, por isso estes temas estão relacionados, também na Bíblia por “ama teu próximo” não significa o da sua igreja, do seu grupo e apenas aquele que passa ao seu lado, mas há algo além o “como”, assim é Ser “como”.
O Ser-Como estabelece Ricoeur em outro texto (acima era uma referência ao seu livro Metáfora Viva), o texto “Le socius et le prochain” (O próximo e o sócio, sem tradução para o português), significa ultrapassar a barreira utilitária do Sócio para chegar ao Próximo, o livro é tão importante que mereceu uma citação na Encíclica do Papa Francisco “Fratelli Tutti”.
A maioria dos líderes que não possuem o magnetismo de um carisma verdadeiro, vale para qualquer segmento social: uma empresa, um grupo religioso, um partido ou alguma forma de governança, não olham para seus liderados como “próximos” (muitos até querem mesmo a distância), mas como sócios, ou repetidores de suas palavras e de suas vontades.
Três antídotos são naturais para verificar este novo tipo de liderança: seu apreço aos mais simples que não podem trazer grande poder de “sócios”, desapego ao cargo e aos luxos que o poder pode proporcionar e principalmente uma extraordinária capacidade de escuta.
Assim quando se quer caminhar a dois é necessário pensar se existe a possibilidade da terceira Pessoa estar “incluída”, numa lógica do terceiro incluído e da abertura de ambos capaz de fazer o vazio, o “epoché” para ouvir o Outro.
O futuro e diálogos pouco abertos
A ideia que estamos próximos a uma grande mudança está na boca de muitos apocalípticos e de alguns teóricos e até filósofos idealistas, embora a maioria reivindique abertura e diálogo, o que pensam sobre ele não é elaborado, fazem longos discursos e tecem narrativas irreais, porém querem ouvir a própria voz.
O verdadeiro diálogo entre tradição e mudança, felizmente há neste campo muita gente fazendo isto de modo apropriado, deve propiciar ao mesmo tempo uma releitura do passado, um respeito e a compreensão do porque dos fatos aconteceram desta ou daquela forma.
Esta é a leitura desde os pré-socráticos, passando pela alta e baixa idade média, o renascimento e o iluminismo, embora cada período se possa fazer a crítica, e até ela deve ser bem feita, é fácil fazer a releitura crítica porque este tempo passou e difícil deste tempo, porque ele chegou.
Difícil principalmente do iluminismo e da modernidade, a pós-modernidade ou ainda a tardia, ou sua continuidade, ainda tem difícil leitura porque a transição não se realizou e o problema que se coloca é a dificuldade de ultrapassá-la, quase todos concordarão que a modernidade já é mais tradição do que qualquer possibilidade de uma nova “revolução” dentro do seu pensamento, embora as tentativas sejam muitas.
Nietzsche chamava este dilema de “eterno retorno”, ele já percebia em seu tempo e há quem ache que isto é novo, e em parte tinha razão pelo horizonte que via no seu tempo, mas quando o novo não nasce o pensamento tradicional padece de envelhecimento e de mesmice.
Tenta-se dar-se um ar “novo”, ou “criativo”, mas não há nada que realmente mude a realidade.
Grandes problemas socioculturais de nosso tempo, morais e até religiosos não se mudarão sem uma perspectiva nova, embora redundante dir-se-ia um “novo” novíssimo, e para que de fato não seja pura imaginação, deve-se encontrar elementos já vivos que apontam o futuro.
Três elementos novos são visíveis: um planeta mundializado, é já possível ver-se como mundo embora ainda não se respeitem culturais diferentes, um esgotamento das forças da natureza, o domínio da natureza pelo homem foi o grande modo da modernidade, e o fim da fome e da miséria no planeta, embora com recursos disponíveis para tal, não se realizou.
Claro que há muitos outros fatores, mas eles são decorrentes da falta de diálogo com o futuro, a centralização de grupos autocráticos, a ausência de uma política e cultura em rede, embora os mecanismos para isto existam, são combatidas como “alienação” e até como responsáveis por problema que existem muito antes de qualquer pensamento sobre as novas tecnologias.
As novas gerações sabem o que é novo, alguns “velhos” tentam retomar o “protagonismo”.
Mudança e cosmologia limítrofe
As mudanças de nosso tempo trazem preocupações e alguns contratempos, entretanto é perigoso e limítrofe o que pode acontecer no pensamento, se pensamos tudo ser muito simples, pois não o é, o que é a fé.
Olhar aquilo que não entendemos com desconfiança, significa como a mudança é complexa, o risco de uma análise inadequada e ver as mudanças mais essenciais como obstáculos, enquanto são elas as grandes impulsionadoras da mudança, a reação pura e simples a ela é o que promove em nossos dias a ignorância, a manipulação dela é a má política e o dissenso, cresce a ignorância.
Ninguém tem bola de cristal, mas os argumentos da fé e da esperança podem ser usados, se bem usados, para olhar para o futuro com generosidade e convicção de que ele será possível.
Já citado no post anterior, a mundialidade é um deles, e é o melhor exemplo, porque é ao mesmo tempo simples, termos a Terra como Pátria, como reivindica Edgar Morin, e muito complexo porque envolve culturas, interesses econômicos e complexidade social.
Uma esperança simples é que o homem sempre superou na história os obstáculos que surgiram, na antiguidade clássica as guerras Greco-Persas (449-499 a.C.), a decadência do império romano, o tratado de paz da Vestfália (24 de outubro de 1648) que pôs fim as guerras religiosas entre estados, e foi marco de direito internacional, e finalmente, as duas guerras mundiais, que fizeram emergir a ONU ainda que seu papel deva ser ainda maior neste tempo.
Não se pode dizer que caminhamos para uma guerra, talvez seja este o momento em que possamos tratar a possibilidade de conflito mundial de modo preventivo, existem muitos locais, e por eles deve se começar a tratar os aspectos fundamentais de nosso tempo: o bom uso dos recursos naturais, a cooperação entre nações, e maior mutualismo, a pandemia deveria ter despertado isto.
O perigo de uma noite nuclear existe, também o que chamamos aqui de mutação aórgica, o próprio planeta, a natureza ou o misterioso universo nos atingir com algo impensável.
O aspecto da fé é importante, porque ela mobiliza bilhões de pessoas, é preciso dar a ela um caráter cosmológico e unificador, diferentes povos têm diferentes crenças, e mesmo que seja a mesma é preciso permitir a expressão cultural de modo adequado a cada povo.
Em toda cosmologia há a consciência de uma essência cósmica maior, um Deus expresso como Ser ou como alguma forma física, mas sempre superior aos impulsos mundanos e imediatos, ele pode ser usado não como limítrofe de nossos pré-conceitos e interpretações, mas como aquele “Algo” maior que reúne nossas distinções e encurta as diferenças.
O apelo entretanto deve ser aos que tem fé, que ela seja ao menos do tamanho de um grão de mostarda, com afirma a referência cristã, e que todos sirvam a Deus, o trecho do apóstolo Lucas que fala da fé minúscula que os crentes deveriam ter, diz (Lc 17,6): “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria.”
Mas o texto bíblico didaticamente logo em seguida explica que isto SÓ PODE SER feito pela força superior e não por habilidade, apelo humano ou manipulação da fé para uso impróprio, diz o trecho seguinte (Lc, 17, 8): “Prepara-me o jantar, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois disso tu poderás comer e beber?”, para dizer que a fé serve ao Senhor, e não aqueles que se servem dela, serve para que o Planeta e todo o Cosmos possa ter harmonia.
É preciso ter fé e esperança verdadeiros no futuro humano e do planeta, ela não pode servir a manipulação religiosa, política ou social, deve servir a todos, em especial, aqueles que tem outro tipo de crença ou de cultura, é preciso respeito a diversidade.
Mianmar urgente !
Mianmar, antiga Birmânia, foi governada por forças militares até 2011, quando após um longo período de protestos, em que a Suu Kyi voltou ao país para resistir junto com a população ao autoritarismo do governo militar, acabou cedendo e fazendo reformas democráticas.
O filme feito sobre ela foi feito justamente no momento em que as forças democráticas retiravam do poder os militares, The Lady (em português traduzido como Além da Liberdade), conta a história de Aung Suu, Kyi filha de Bogyocke Aung San, grande estadista considerado pai da nação birmanesa, teve sua história recente contada no filme dirigido por Luc Besson, o final foi adaptado porque o país entrava em um processo de redemocratização, após inúmeros protestos e a prisão de Sun Kyi.
Após 9 anos de redemocratização, que se consolidaria com a esmagadora vitória em novembro, de seu partido a Liga Nacional pela Democracia (NLD em inglês) e que os militares alegam terem sido “fraudadas” sem apresentar qualquer prova disto e agora retomaram o poder.
Em carta escrita antes de ser detida, Suu Kyi denuncia que as ações militares voltam a colocar o país sob a ditadura, e pediu ao povo “protestem contra o golpe”, “não aceitem isso”.
O mundo que vive sobre novas ameaças de facismo deve protestar contra mais um golpe na democracia e na convivência pacífica dos povos.
Presa muitas vezes, é dela a frase: “A única prisão real é o medo, há só uma liberdade real libertar-se do medo”.