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Arquivo para março, 2023

Pertencimento, inclusão e inocência

31 mar

A questão levantada por Michael Sandel transcendente os limites do direito, da vida e da própria ontologia, são estes os argumentos que justificam a morte de um inocente, a violência e por fim a guerra, enquanto o argumento de um simples espectador que lembra que alguém vai morrer e pode ser doador dos órgãos livremente e por uma morte natural.

O pertencimento também podem ser argumento tanto para a morte de um inocente, quanto a recusa dela, não são poucos os casos numa guerra em que por algum motivo alguém que poderia matar um “inimigo” em alguma situação inusitada se recusa a fazê-lo.

O aspecto do contrato social onde o estado tem o “monopólio” da violência, assim é justo matar para defesa da sociedade, é justo até mesmo usar de requintes de crueldade (como a tortura por exemplo) para obter informações e combater o “mal” do grupo oposto também é questionável.

O fato que não abandonamos tais métodos e princípios é o mais grave testemunho do pequeno avanço que socialmente ainda caminhamos no processo civilizatório, o fato que retornamos aos poucos aos graves períodos da guerra fria indica que estamos ainda em compasso de espera.

Quantos inocentes e civis que pouco ou nada tem de apoio a determinadas guerras, como a menina russa que fez um inocente desenho sobre a guerra, mostra que ao lado da perversidade de lutas imperiais e processos colonizadores estão longe de terem sido banidos da civilização.

Porém o que significa a morte de um inocente, qual o significado ontológico e teológico deste símbolo, o cordeiro que Abrão imolou no lugar do filho que seria imolado, lembremos que há três grandes religiões abramicas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, o que significa

Com certeza está longe da lógica do direito, longe da lógica racional, significa que só a inocência e o pacifismo podem contribuir num verdadeiro processo civilizatório que dignifique o homem, quantos inocentes ainda precisarão morrer?

A semana Pascal que se inicia no próximo domingo embora seja festa cristã pode e deve levar a humanidade a refletir sobre a verdadeira paixão civilizatória, que apesar de todo sofrimento humano causado por guerras e injustiças podem sonhar com uma nova civilização.

 

Contratualismo e inocência

30 mar

A grande discussão dos contratualistas era sobre a não inocência da pessoa, todos eles são defensores dos poderes do estado e em última análise do in dubio pro societate (na dúvida, a favor da sociedade e não do réu), Hobbes via o homem como mau e o estado devia policia-lo, Locke via como limitava os poderes do estado e dava direito ao povo de rebelião e Rousseau via o homem como bom, a sociedade é que o corrompia.

Nenhum deles nega a necessidade e a prioridade dos poderes do estado, assim foram pilares de todas as modernas constituições dos países, e sua atualização está em John Rawls e seu sucessor Michael Sandel.

Ambos foram idealistas kantianos e utilitaristas, porém há uma pequena diferença que Sandel criticava o voluntarismo de Rawls, segundo o qual princípios políticos e morais se legitimam partir do exercício da vontade individual através da escolha ou do consentimento.

Reivindicava para isto o empirismo de Locke: “somos todos, por natureza, livres, iguais e independentes, ninguém pode ser excluído dessa situação e submetido ao poder político de outros sem que tenha dado seu consentimento” (1988, seção 95).

Para entender a posição de Sandel é necessário ler ao menos a obra que indicamos ou entender claramente seus exemplos, os quais procura tornar práticos e claros seus conceitos, em relação ao pertencimento de grupos, como garantia de interesses coletivos (ele rejeita o termo comunitarismo) cita dois casos: o de um piloto da resistência francesa que durante a Segunda Guerra Mundial se recusou a bombardear a sua cidade natal, mesmo sabendo que isso contribuiria para a libertação da França (2012, p. 279), o pertencimento a sua cidade natal.

O segundo exemplo é o de uma operação de resgate organizada pelo governo de Israel para salvar judeus etíopes de campos de refugiados no Sudão (2012, p. 280), o pertencimento ao povo judeu.

Porém em uma de suas famosas palestras na qual dá outros exemplos, e faz vários diálogos com a plateia, é pego em contradição ao dar o exemplo de 6 pacientes chegam a um pronto socorro e 1 está em estado grave enquanto os 5 pacientes que precisam de doação de diferentes órgãos para sobreviverem e o paciente em estado grave exige muito tempo de cuidados, faz a pergunta se o deixaria morrer para ajudar os outros.

A maioria das pessoas concordaram em deixá-lo morrer, mas um jovem (na foto) disse que tinha outra solução, dos 5 que estavam para morrer, o que morresse primeiro doaria os órgãos para os outros, o que deixou Sandel constrangido e chegou a admitir: “é uma boa ideia, exceto pelo fato que destruiu o ponto de vista filosófico” (vejam o vídeo abaixo).

Há relações interpessoais e ontológicas que ultrapassam a mera subjetividade é algo entre seres e não apenas dos seres e suas culturas ou pertencimentos, está numa espécie de alma coletiva, numa noosfera onde tudo é mais do que lógico, é onto-lógico.(155) Justiça com Michael Sandel O Lado Moral do Assassinato – YouTube

 

LOCKE, J. (1690). “Second Treatise of Governement”. In: Two Treatises of Government Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

SANDEL, M. “Justiça – o que é fazer a coisa certa”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

 

A justiça política e a inocência

29 mar

A moral do estado foi desenvolvida junto com a concepção contratualista histórica através de Thomas Hobbes (1588-1679) em especial no seu Leviatã, John Locke (1632-1704), fundador do empirismo e Jean Jacques Rousseau (1712-1778), para ele o homem nasce bom e a sociedade o corrompe.

No contrato social os direitos individuais são transferidos ao poder estatal por um contrato e assim pode-se afirmar que é a raiz do princípio in dubio pro societate (na dúvida defende-se a sociedade), não há presunção da inocência.

A transferência de poderes para o estado transfere também o fim da inocência que implica não permitir o desenvolvimento emocional da criança e do adolescente em ambiente familiar, e assim a discussão da idade penal passa a fazer sentido, e todo conceito de justiça torna-se político.

O desenvolvimento contemporâneo do contratualismo está no filósofo John Rawls (1921-2002) para o qual não é possível uma concepção metafísica da moral, ele desenvolve o conceito de “justiça como equidade (justice as fairness) apresentado em seu livro “Uma teoria da Justiça”.

John Rawls influenciou profundamente o pensamento de Michael Sandel que é um dos pensadores atuais mais influentes na cultura de justiça do ocidente e assim herdeiro do contratualismo, e ambos são herdeiros da concepção kantiana de moral.

Um dos raros autores a analisar esta posição foi Paul Ricoeur (1913-20050 em seu livro O Justo (Vol. I), dedicando boa parte do texto a análise de John Rawls e desenvolvendo a ideia do direito em sua posição peculiar, um meio caminho entre a moral e a política, sem a qual ela é utilitária e não por acaso sofreu profunda influência do pensamento utilitarista de John Stuart Mill (1806-1873).

Não é possível equidade sem relação humana pessoal, afirmou Ricoeur: “A virtude da justiça se estabelece com base numa relação de distância com o outro, tão originária quanto à relação de proximidade com outrem ofertado em seu rosto e em sua voz” e isto não é exato nem pragmático.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997

RICOEUR, P.  Le Juste 1. Paris : Éditions Esprit, 1995.

SANDEL, M.J. Como fazer a coisa certa. São Paulo: Civilização Brasileira, 2013.

 

Inocência e direito

28 mar

Em outra postagem já traçamos diferenças entre inocência, ingenuidade e ignorância, a primeira que é algo que desconhecemos, entretanto percebemos o mal (ou bem) que há no ato, a ingenuidade é quando desconhecemos o efeito de um ato que pode provocar e a ignorância é quando desconhecemos que existe um mal em um ato praticado.

Tratamos em um post feito a algum tempo esta situação, e no post anterior sobre a guerra atual.

A violência é o mal praticado com intencionalidade, e neste caso vai além de um dolo e em geral é vitima de algum ódio, vingança ou mero destempero, há na violência sempre algo de ignorância.

Alguns autores trataram isto filosoficamente e aí há quem veja na inocência um “perigo” no qual seria possível alguma adesão a algum mal praticado, Nietzsche via desta forma, porém para autores atuais isto é visto a partir da ideia jurídica de presunção da inocência, in dubio pro reo (na  dúvida, em favor ao réu).

O pensamento que se opõe a este é o in dubio pro societate, neste caso o promotor de algum ato ilícito deve oferecer denuncia em favor da sociedade, os argumentos contrários estão na decisão dos valores da dignidade e direito a liberdade, e aqui está a presunção da inocência.

Para idealistas como Kant, o indivíduo é dotado de razão e dignidade, assim realizar uma ação por um motivo exterior às suas causas e não por ser o certo a se fazer e isto vai a favor da liberdade.

Por isto Bauman vai discutir a mixofobia, isto é, o desejo de opor-se aos diferentes, estranhos ou as minorias, quanto mais o mundo se torna global e plural isto deve aparecer em doses maiores.

Na visão de Bauman isto estaria aumentando o medo nas cidades, se vivesse estes tempos de pandemia e polarização talvez percebesse com maior clareza que há um problema de base maior, aquele que vem de culturas e ambientes onde é incentivado o desejo de isolar-se do diferente.

Um dos maiores conferenciais neste tema, reúne grandes públicos em suas palestras é Michael Sandel, veremos depois, porém Freud de certa forma antecipou isto no Mal estar da civilização: “Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se como método mais tentador de conduzir nossas vidas, isso porem, significa colocar o gozo antes da cautela, arrecadando logo seu próprio castigo.”

Vive-se sobe riscos globais, nela tudo pode transformar-se em situações explosivas e violentas.

BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução por Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2006.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Traduzido do alemão por Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986

SANDEL, Michael. Justiça: O que é fazer a coisa certa. 17 ed. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2015.

 

 

A guerra e a inocência

27 mar

Há inúmeras razões políticas, econômicas, históricas e até religiosas para se iniciar um conflito, porém isto não está na ótica do pensamento inocente de uma criança que sonha um mundo sem conflitos de paz e de dignidade humana para todos.

O desenho de uma criança, omitimos o nome e a situação de polícia que envolveu o caso depois, é um olhar generoso e inocente sobre o mundo, e reforça a ideia que existe sentimento sincero de amizade e fraternidade ainda presente na humanidade.

A situação do conflito se agrava, com a ameaça russa de enviar armas “estratégicas” nucleares para a Belarus, país aliado da russa, no campo de batalha a Ucrânia “estabilizou” a situação em Bahkmut, o front mais violento da guerra e onde estavam as forças dos mercenários do grupo Wagner.

A possibilidade de um terceiro bloco de negociações com a Rússia, anunciado pela China cujo presidente fez uma recente visita a China e esperava a visita do governo brasileiro, entretanto o presidente apresentou um quadro de pneumonia e influenza e adiou a visita.

São mais próximos ideologicamente da Rússia, porém este terceiro bloco tem isto com um trunfo já que é visível que Putin não dá ouvidos a OTAN, nem a ONU, veja a condenação de Haia sobre a extradição de crianças ucranianas para a Rússia, que o condenou a prisão.

O quadro é delicado e exige cautela e esforço para uma possível negociação de paz, as pessoas que olham com generosidade a humanidade não podem ver o mundo diferente, não devem buscar justificativas e pressupostos para a guerra, devem ter o olhar generoso de uma criança.

 

A vida examinada no amor

24 mar

Podemos examinar que uma vida examinada seja segundo os grandes feitos, nomes que ficaram na história, as recentes revisões mostram que não é bem assim, também tiranos, colonizadores e Pessoas não tão honestas podem ter glórias terrenas, mas passageiras.

A vida examinada segundo Sócrates, e também o pressuposto de Kurosawa em seu filme Viver é sobre aquilo que se construiu por amor aos outros, e isto torna uma vida “bem vivida”, por isto Sócrates vai inspirar a criação da polis grega, uma sociedade a serviço de todos cidadãos, ainda que o conceito de cidadania fosse restrito.

Sempre se pode olhar a volta e perceber algo de bom e justo que se pode fazer, muitos homens fizeram pequenos ou grandes feitos para o bem público sem que tenham recebido qualquer reconhecimento, o velho que morre no parque que ajudou a construir no filme de Kurosawa está feliz mesmo diante da morte.

Chamo a este tipo de clareira de iluminação das consciências, não pode ser feita de aparências e nem de subterfúgios, deve ser feita diante do espelho e da própria consciência, o fenômeno que acredito ser possível, quiçá um dia para toda a humanidade (se é que não é feito na hora da morte), tornaria os homens melhores porque perderiam as máscaras de suas narrativas.

Há dois Lázaros na Bíblia que são infortúnios, o miserável que fica na porta da casa de um rico, que fica a porta a espera de esmola e das sobras, e Lazaro amigo de Jesus, que mesmo sabendo de sua morte só vai visita-lo 4 dias depois e o ressuscita, não o faz por compaixão apenas, também o faz por uma atitude pedagógica, depois do feito alguns judeus acreditaram nele por tamanho feito.

Diz a Leitura de Jo 11, 41-42: “Tiraram então a pedra. Jesus levantou os olhos para o alto e disse: ´pai, eu te dou graças porque me ouviste. Eu sei que sempre me escutas. Mas digo isto por causa do povo que me rodeia, para que creia que tu me enviaste”.

O texto diz que Jesus chorou, assim o amor evangélico não é desprovido de sentimento, como também não é puro sentimento, há uma razão para crer: acreditar que o amor dá dignidade a vida humana.

 

Viver a Vida

23 mar

O filme Ikiru (1952) do japonês Akira Kurosawa traduzido como Viver, também poderia ter a tradução Vivendo ou Viver a Vida, já que na escrita em idiogramas a conjugação de verbos é diferente, também na língua portuguesa de Portugal o gerúndio é pouco usado então ao invés de Vivendo seria Estar a viver.

Trabalhos esta semana a questão da morte, e a frase do filósofo Sócrates: “uma vida sem exame não é digna de ser vivida” pode parecer apenas apelo a erudição, porém os que assistiram o filme de Kurosawa percebem que não se trata disto, também ali o tema é o exame da vida de um “burocrata” diante do drama da morte, pelo personagem Kanji Watanabe (Takashi Shimura).

O idoso burocrata descobre que está com câncer no estomago e o primeiro impacto é o de depressão e depois de examinar a vida, a relação com o filho e o seu serviço, onde tinha o apelido de “Sutanpu” que significa carimbo, alusão ao fato que problemas eram arquivados.

Assim o filme opõe a vida burocrata, a simples rotina de vidas vazias ao drama da morte eminente do velho burocrata, que ao examinar a vida lembra de senhoras que vinham sempre reclamar em seu departamento de uma rua lamacenta e suja.

O velho resolve tomar o problema para si e até as senhoras que reclamavam ficam espantadas, resolve agir para tornar aquele lugar sujo num parque para crianças, e todos no departamento notam que ele começa a reviver, troca o chapéu, muda a feição e resolve viver a vida até o fim, como propõe também Paul Ricoeur em seu livro citado esta semana.

Os comentários em sua seção são maldosos, talvez seja uma jovem, alguma coisa deve ter acontecido na vida do velho que agora parecia outra pessoa.

As cenas finais o mostram já morto, ainda os comentários maldosos, e aparece um guarda de rua que diz que viu que estava muito frio e o velho no balanço (foto) do parque que ajudou a ser feito, mas que ele parecia tão feliz, cantava uma canção tão linda, que não quis incomodá-lo.

Quando assisti o filme em minha juventude, já fã de Kurosawa, fui ao filme com uma expectativa de que Kurosawa ia falhar ao tratar de um tema tão profundamente existencial, o filme é genial e emociona.

 

Entre a morte e a não morte

22 mar

Recuperado o conceito de uma vida bem vivida, que é aquela que pode ser examinada e deve-se vive-la até o fim, há outra questão que são os hiatos da vida ou o que chamei de intermitentes da morte, em referência ao que Saramago descreveu em “As Intermitência da morte”, veja o post.

Se lá postamos sobre os intermitentes, aqui queremos falar da não morte, para abordar a não vida, o exercício de Saramago é pensar num país ou lugar fictício onde durante alguns dias não se fosse noticiada nenhuma morte, e vai mais além pensando em uma situação na qual as pessoas pudessem saber antecipadamente da morte, depois de algumas reflexões, pensa:

“Em teoria parecia uma boa ideia, mas a prática não tardaria a demonstrar que não o era tanto. Imagine-se uma pessoa, dessas que gozam de uma esplêndida saúde, dessas que nunca tiveram uma dor de cabeça, optimistas por princípio e por claras e objectivas razões, e que, uma manhã, saindo de casa para o trabalho, encontra na rua o prestimoso carteiro da sua área, que lhe diz, Ainda bem que o vejo, senhor fulano, trago aqui uma carta para si, e imediatamente vê aparecer nas mãos dele um sobrescrito de cor violeta a que talvez ainda não desse especial atenção …” (p.123) e recebe uma notícia antecipada de sua morte.

Pensa poderá evitar pisar numa casca de banana, não receber a carta, jogá-la fora, mas alguém a trará de volta educadamente julgando tê-la esquecido, enfim no ápice do conto encontra-a fatal.

Se no post anterior não ficou claro os “intermitentes” aqui a carta é esta personificação, a morte tornada Ser não apenas aponta para um discurso alegórico, mas pode-se vê-la como ela é.

Então escreve: “Morte onde esteve a tua vitória, sabendo, no entanto, que não receberá resposta, porque a morte nunca responde. e não é porque não queira, é só porque não sabe o que há de dizer diante da maior dor humana” (pgs. 123-124).

O discurso pode parecer estranho, mas só quem o acompanha consegue entender que a sua pura personificação traz a compreensão de que existe algo além da vida e não apenas a finitude, isto é o que incomoda Saramago, porém não cede até chegar ao seu oposto que é aceita-la como fatal.

A carta personificação da morte e a narrativa se fundem, este é um elemento essencial para entender o conto de Saramago, embora não se refira a ela ao dizer no apartamento do violoncelista: “Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-Se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos se escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorai não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua.” (p. 152).

Ainda que seja, ao meu modo de ver pelo avesso da vida, Saramago refaz o sensível e o finito.

 

SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

 

A filosofia e a questão da morte

21 mar

Falar da morte é um tema tanto instigador quanto apavorante, ao menos para aqueles que acreditam que tudo se conclui no nosso ciclo de vida terreno, a filosofia sempre o abordou.

Desde Sócrates e Platão (428-347 a.C.) até Heidegger (1889-1976) passando por Arthur Schopenhauer (1788-1860), a filosofia não se furtou a abordar o tema, Schopenhauer chegou a afirmar que “a morte é musa da filosofia” e Sócrates já havia dito que a filosofia é como uma “preparação para a morte”.

No Fedón de Platão ele descreve a vida filosófica como um ”treinamento para a morte”, há nela um “ethos” da vida humana, para o qual se pode afirmar sem exagero que é um “treinamento” e isto nos faz refletir sobre os delírios contemporâneos de um “entretenimento até a morte chegar”.

Pode-se objetar que Platão considerava a alma imortal, porém Schopenhauer e Heidegger não, é verdade que este último teve uma breve incursão pelo cristianismo, mas depois abandonou, o amago de seu pensamento ontológico é o que é este Ser-aí, este Dasein, ex-sistencial e humano.

Contrariando a vida fugaz contemporânea, Sócrates dizia que não “há vida bem vivida que não possa ser examinada” enquanto Heidegger vai afirmar que a vida frente a morte (não podemos esquecer que existe a impossibilidade da existência) é que nos faz pensar fora do mundo do “eu”, da voz alienante da sociedade, dos meios massivos de comunicação, e de conceber o mundo de uma maneira utilitária e transitória.

Heidegger vai usar o termo “stimmung” que pode ser traduzido como “entoar”, para comparar uma instrumento de afinação, com o qual se refere a angústia ou a outros estados anímicos (das disposições afetivas), usando sua metáfora como instrumentos desafinados perante a vida.

Outros filósofos como Paul Ricoeur lembrarão da “finitude” humana, para lembra-lo que é falível, se Heidegger fala do Ser-para-a-morte como finitude, Ricoeur a caracteriza como um impulso à vida (ser contra a morte).

Seja quais forem as abordagens, a finitude humana, a vida “bem vivida é examinada” é vida plena.

 

RICOEUR, P. Vivo até a morte. Seguido de fragmentos. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

 

A próxima estratégia pode ser decisiva

20 mar

Enquanto as batalhas de Bakhmut seguem sangrentas, aparentemente nem Rússia nem Ucrânia a consideram mais vitais, para a Ucrânia é um empasse a espera de armas do Ocidente: tanques, jatos e mais munições, para a Rússia um despiste que custou muitas vidas, em especial de mercenários do chamado “comando Wagner”, que critica a Rússia por isto.

Para reforçar isto Putin visitou Mariupol e a Criméia, posições de retaguarda russa, em pontos já conquistados em outras batalhas, com uma segurança extrema, mas para garantir a moral da tropa e a própria, uma vez que foi condenado junto a sua comissária Maria Alekseyevna Lvova-Belov por terem levado 6 mil crianças ucranianas para “reeducação” na Rússia.

Com a condenação ambos poderiam ser presos, porém é improvável que venham ao Ocidente.

A nova estratégia esperada pelos ucranianos é uma invasão ao norte pela Belarus, porém seu exército é pequeno e só teria efeito se apoiado por forças russas, os russos por sua vez gostariam de consolidar as posições em Donetsk e Mariupol, ganhando uma faixa do território da Ucrânia.

China e Belarus continua a afirmar “extremo interesse” na paz e fim das hostilidades, uma vez que perdem muito comercialmente com a guerra, mas certamente apoiarão as conquistas russas.

O evento de intercepção de um drone americano no Mar Negro por um caça russo também causou forte tensão, a escalada da “primavera” na Ucrânia está prevista pelo envio de mais armas.

Sempre há algum alento para a paz, porém desde o início da guerra o cenário apenas evoluiu no caminho oposto, há uma suspensão de folego sobre as novas estratégias de guerra.