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As bolhas e o outro

25 jun

Diversos autores escreveram sobre a questão do Outro, infelizmente ainda há uma ignorância sobre o termo, ele renasceu (a meu ver sempre existiu na filosofia cristã, a patrística trata amplamente do termo como “próximo” e Paul Ricoeur lembra isto), Habermas escreveu sobre a Inclusão do Outro que seriam as fronteiras de comunidades abertas a todos, Byung-Chul Han escreveu A expulsão do Outro, ao refletir sobre a comunicação hoje, entretanto Emmanuel Lévinas e Paul Ricoeur o trataram com originalidade e riqueza.

Já postamos algo sobre Lévinas lido por Byung-Chul Han que lembra seu conceito de “il y a” no qual analisa um aspecto funcional da relação ética, fazendo-a transcender, é preciso dizer que não é a eticidade de Hegel, para ele o princípio da saída do ser para a existência, passando do ser ao seu estado bruto, é sair da solidão do “il y a”, assim dá sentido a existir.

De Paul Ricoeur postamos em alguns trechos a relação entre o “sócio” e o próximo, a primeira é utilitária e a segunda realmente “transcende”, mas sua obra seminal é o Si-mesmo como um outro (publicado em 1990, em português no Brasil em 2014 pela Martins Fontes), ele tem o cuidado de tratar que o si-mesmo não seja deixado de lado, uma vez que é comum ver o Outro eliminando o si-mesmo, ainda que na relação fenomenológica sempre é necessário um “epoché”, mas colocado entre parênteses.

Mas aqui queremos avançar para o conceito de bolhas no Esferas I de Peter Sloterdijk, expõe sua esferologia, forma de definir e problematizar o que significa “estar no mundo”, uma vez que nós viemos de uma esfera que é o ventre materno, e saímos para a esfera do nosso planeta, e ele cria um conceito de imunologia para dar sentido a sua ideia de meio social de comunicação que é a co-imunidade, é curioso que o termo veio bem antes da pandemia.

É curioso que o autor, que não vê religião como algo objetivo, não deixa de analisar em sua obra conceitos vindos na “cultura” do cristianismo ao falar, por exemplo, de uma ascese desespiritualizada que vale para muitos religiosos de hoje, e de Matrix in Gremio (no colo da mãe, uma clara alusão a Maria) e aqui destacamos a eucaristia (não é o conceito ortodoxo, é obvio).

Ao falar das bolhas, um tópico especial é “Do excesso eucarístico”, essa mútua incorporação é descrita em episódios ilustrativos constituintes da tradição europeia da cordialidade ao seu ver, que para nós latinos poderia ser um adjetivo de miseri-cordis, tem um coração que acolhe humildemente o coração do outro, e seu “excesso’ seria melhor compreendido.

Narra três episódios neste tópico, o primeiro é do período da trova cavalheiresca do século XIII pelo poeta Conrado de Würzburg, em que o impossível adultério trovadoresco de um cavaleiro e uma dama é levado à concretude somente com a consumação não ciente do coração do rapaz pela moça, claro trata-se do amor humano aqui, porém o autor também trata do testemunho de Raimundo de Cápua (1330-1399) que ganha coro, no qual Catarina de Siena (uma santa católica muito sábia) que tem seu coração trocado pelo do próprio Cristo revelado, marcando a comunhão esférica do humano com o divino, e aqui se entende a sua adjetivação de “excesso eucarístico”.

O terceiro é mais filosófico e retoma a filosofia clássica de Platão, uma adaptação feita por Marcílio Ficino do Banquete de Platão, com a influência da medicina medieval ele imagina que Fedro penetra, com adaptação clara medieval, com vapores sanguíneos que vieram do seu coração e extrapolaram pelo seu próprio olhar, os outros de Lísias, com isto insufla seu coração tornando-o enamorado de Fedro.

O discurso de Lísias, no diálogo platônico Fedro fala do encantamento provocado pela arte de usar belamente o logos, com intuito de persuadir, ele elabora um belo e “lógico” discurso para dizer que é mais vantajoso entregar-se a um não apaixonado do que um amante, ele exerce ali sobre Fedro um fenômeno chamado apathê.

A questão importante de Sloterdijk é que todos estamos sujeitos a nossas bolhas, aos nossos pré-conceitos e somente com este recurso pensado por Lísias, ver o outro não-amante e não próximo, como uma possível entrega é que podemos iniciar um processo de aproximação, na filosofia de Hans-Georg Gadamer a “fusão de horizontes”.

Que olhar temos sobre o Outro diferente e como podemos realizar um “apathê” que se torne um encontro favorável e interessante, uma comunicação possível.

SLOTERDIJK, P. Esferas I. trad. José Oscar de Almeida Marques, São Paulo: Estação Liberdade, 20 16.

 

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