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A linguagem e os frutos
Hermenêutica é a arte ou técnica de interpretar e explicar textos, originaria do grego, ela também se aplica hoje à ontologia e a filosofia da linguagem, e serve para interpretação não só de textos e filosofias tradicionais, como os textos sagrados e jurídicos.
O problema grave da linguagem nos dias atuais é sua perspectiva de uma análise fragmentária e distorcida dos textos, enquanto a hermenêutica serve para uma verdadeira interpretação (aspetos etimológicos, de tradução e de significação), o uso da linguagem para justificativa do poder era mais próprio dos sofistas na modernidade antiga.
Assim os frutos de uma verdadeira expressão linguística, e de uma hermenêutica filosófica foi o de construir um ramo da filosofia que estuda a teoria da interpretação, há vários autores, porém, destaco Hans-Georg Gadamer, e ela é fundamental para uma perspectiva humanística.
Gadamer reconstrói o conceito de pré-conceito, tirando a carga negativa de juízo antecipado que tinha adquirido na ilustração, dando um caráter essencial dentro da hermenêutica, uma vez que permite a fusão de horizontes, dentro do círculo hermenêutico anterior ao diálogo.
Assim rejeita a ideia de um conhecimento do passado por meio da razão pura, sem mediação da própria tradição do intérprete, uma vez que isto impede a fusão de horizontes e o diálogo.
O intérprete não realiza apenas uma atividade “reprodutiva” do texto, senão que o atualiza de acordo às circunstâncias do momento, por isso fala-se do seu labor “produtivo” (Gadamer, 1997), não há referência direta ao conceito de “labor” de Hannah Arendt, mas cabe bem no texto, uma atividade natural e não durável que se esgota ao ser realizada.
Assim é o uso produtivo da linguagem, palavras que são ações que acionam atitudes de ajuda, de socorro, de solidariedade e de diálogo, ainda que de diferentes interpretes, o importante é que uma linguagem humanitária leve a ações a favor da sociedade e de princípios frutíferos.
Não se colhem figos de espinheiros, a árvore boa não pode dar maus frutos, a linguagem que é dirigida a boas iniciativas humanitárias, não terá resultados negativos, assim facilmente ela caminha para um diálogo se realiza a “fusão de horizontes” como ponto de partida na interpretação, a base de um diálogo hermenêutico.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
Trabalho, ação e contemplação
Hannah Arendt considerava que o labor, o trabalho e a ação são as três esferas da vida humana, que compõe a “vita activa”, pensamento que temos postado em torno do ensaio de Byung-Chul Han, que Arendt também usa, de complemento a Vita Contemplativa.
Não é próprio do homem moderno pensar desta forma, e isto colocou o pensamento humano e até mesmo o científico e religioso em ocaso, as narrativas surgem como consequência e não como causa disto, é pela fragmentação das atividades humanas que a interpretação da realidade fica sujeita a uma cosmovisão limitada.
O labor assegura a sobrevivência biológica do indivíduo e da espécie (Arendt, 1995) enquanto o trabalho ainda que não individualize o homem, estabelece uma relação com os objetos e com a transformação da natureza, e permite, isto é importante, demonstrar sua habilidade e inventividade artesanal (Arendt, 1995), porém a atividade e inventividade artesanal não está separada do pensamento, porque ali o homem concebe sua relação com a natureza como um todo.
Foi o trabalho industrial que destruiu esta ideia do todo que está entre o trabalho, o labor e a ação, porém ao notar que o trabalho artesanal incluía já também uma visão contemplativa, “Perché non parli?” disse Michelangelo ao completar sua obra “Moisés”, significando “porque não falar?” (foto).
Um detalhe pouco percebido, mas certamente concebido por Michelangelo ao realizar sua obra, é o apoio de seu braço direito sobre as tábuas da lei, diríamos um primeiro códice bíblico, já que a Torá era um rolo, e se comparada a estátua do pensador grego, este está apoiando sobre sua cabeça sobre o braço direito, Auguste Rodin fez sua versão por volta de 1880.
Assim o trabalho, o labor e a ação podem estar unidos a ideia da contemplação, se a fazê-lo pensamos como concepção de um pensador anterior e incluído no objeto, assim reunimos e resignificamos o trabalho e o labor, não mais como atitude alienada, mas como Ser ôntico.
Portanto, o trabalho humano e o seu labor devem estar unidos a ideia ontológica do Ser, e ela significa também um ato de amor à humanidade, ao Outro e àquele que irá usar, conceber ou apenas contemplar a ação do labor.
ARENDT, H. A condição humana. 7a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
Serenidade: escolher o que é bom
Não há serenidade sem escolhas razoáveis sobre a vida pessoal, social e espiritual, pior ainda quem tenta eliminar uma das três, sem vida pessoal não há o ser-ai (o Dasein heideggeriano), sem a vida social vivemos uma bolha, e sem a espiritual não desenvolvemos nossa essência.
Entre as escolhas tem temos que fazer na vida, elas não podem envolver somente um dos três aspectos: a pessoal apenas nos torna egoísticas e narcisistas, sem a social nos tornamos alienados e com dificuldades de compreensão da realidade e sem o espiritual não temos uma verdadeira ascese que nos eleve como seres humanos.
Por ocasião do centenário de seu conterrâneo o grande música Conradin Kreutzer, em uma conferência de 1949 em sua cidade natal Meßkirch, na Alemanha, e escreveu o texto sobre Serenidade.
Heidegger questiona a dificuldade do pensar já naquela tempo, e pergunta se não é através da música e do canto: “não se distingue a música pelo facto de ´falar‘ através do mero ressoar das suas notas e de não necessitar da linguagem corrente, da linguagem das palavras?” e : ”já uma comemoração, que envolve o acto de pensar?” (Heidegger, 2008, p. 10).
Ao recordar a sua cidade natal, lembra que [em função da guerra]: “tiveram de abandonar as suas aldeias e cidades foam expulsos do solo natal … tornaram-se estranhos … e os que nela ficaram ? Muitas vezes estão ainda mais desenraizados (heimatloser) do que aqueles que foram expulsos. A cada hora e a cada dia estão presos à rádio e à televisão … o cinema transporta-os semanalmente para os domínios invulgares, da representação que simula um mundo que não o é.” (Heidegger, 2008, p. 16), mostrando a relação com a tecnologia.
Se vivesse em nossos dias veria o quanto é realmente visível a relação que se mantém, agora não transportando a realidades outras, mas a irrealidades que transportam as mentes ao vulgar.
Assim as escolhas que se deve fazer torna-se mais radical, mais do que nunca é preciso não só escolher o que é bom e saudável, mas lutar para que esta consciência não se perca em ilusões.
Heidegger, M. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2008.
O mal e seu sentido ontológico
Toda análise que se faz no mundo contemporâneo é permeada (quando não é o próprio) por um sentido maniqueísta: a luta do bem contra o mal, e isto depende da narrativa particular.
O maniqueísmo apresenta que o bem e o mal como uma questão básica para compreensão do universo, assim são forças contrárias como ação e reação, ou atração e repulsão, dá para enumerar um grande número de livros contemporâneos que descrevem a realidade assim.
Aqui nos interessa dois pontos essenciais: o sentido religioso e o sentido político, no mundo religioso cresce o discurso de que “somos do bem contra o mal”, porém uma boa leitura da patrística (os religiosos do início da era cristã) ajuda a compreender que não é bem assim.
Agostinho de Hipona (354-430), que por nove anos foi maniqueísta, via no maniqueísmo a luta entre a alma e o corpo e assim justificava a luta entre o bem e o mal, mas revê esta posição sob uma forte influência de Ambrósio de Milão (340-397) que vai exercer forte influência em Agostinho, uma de suas frases era: “As lágrimas não pedem perdão, mas o alcançam” e alcança o Bom.
Assim Agostinho começa a dar ao mal um sentido ontológico, entendendo que corpo e alma se relacionam, digo assim: “Não tinha, no entanto, ideia clara e nítida da causa do mal. No entanto, qualquer que ela fosse, o procurá-la não poderia obrigar-me a ter por mutável um Deus imutável, se não quisesse tornar-me eu mesmo aquilo que eu procurava. Por isso, na minha busca tranquila, eu estava certo quanto à falsidade da doutrina daqueles de quem me havia afastado por convicção. Via, realmente, que estudavam o problema da origem do mal, estando eles próprios imersos na malícia, a ponto de preferirem imaginar tua substância sujeita ao mal, a se reconhecerem capazes de cometê-lo” (Agostinho, 2014, p. 172) em resumo, mal é ausência do Bem e do Bom.
Também é necessário, para uma análise aprofundada ler: “A natureza do bem”, “O Livre-arbítrio” para entender o problema da liberdade humana que pode negar-se a fazer o bem e o livre-arbítrio que é esta liberdade de escolha, porém Confissões é sua principal obra.
Agostinho desejava romper o dualismo e vai desenvolver em Confissões (pags. 174-175) a ideia que o mal não é uma substância, porque, se fosse uma substância, seria um bem. E, na verdade seria uma substância incorruptível e, por isso, sem dúvida um grande bem, e assim o que era corruptível estando sujeito a deterioração não tem existência eterna, assim que troca o seu maniqueísmo pelo cristianismo.
Visto sob a ótica das narrativas modernas que procuram negar a existência do incorruptível e assim, admitir a existência de Deus ou ao menos algo incorruptível que dá substância ao cosmos, dito por Byung-Chul Han assim para a narrativa moderna: “Vivemos hoje num tempo pós-narrativo. Não a narração [Erzählung], mas a contagem [Zählung] determina a nossa vida. A narrativa é a capacidade do espírito de superar a contingência do corpo” (Sociedade Paliativa: a dor hoje, 2021, Vozes).
Para justificar todo desamor precisamos de uma narrativa, se escapamos dela fazemos o bem.
Agostinho. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 2014.
O cosmos, a noosfera e a perdição
No capítulo sobre “A perda da salvação, a aventura desconhecida” do livro Terra-Pátria de Edgar Morin ele lança um olhar profundo sobre a nossa falta de cosmovisão e a perdição em nossas microscópicas preocupações que não olham um mundo e uma realidade maior a nossa volta.
Diz no início: “Se houvesse navegadores do espaço, sua rota no aglomerado de Virgem ignoraria a muito marginal Via Láctea e passaria longe do pequeno sol periférico que tem em sua órbita o minúsculo pla- neta Terra. Como Robinson em sua ilha, pusemo-nos a enviar sinais em direção às estrelas, até agora em vão, e talvez em vão para sempre. Estamos perdidos no cosmos” (Morin, 2003, p. 163).
Acrescenta: “Este mundo que é o nosso é muito frágil na base, quase inconsistente: nasceu de um acidente, talvez de uma desintegração do infinito, a menos que consideremos que surgiu do nada” (idem, p. 163).
Mas o homem na modernidade agigantou seu ego, quer ele próprio ser uma espécie de “Homo Deus” usando a metáfora de Yuval Harari, cujo subtítulo é “uma breve história do amanhã”, também pessimista como Morin, porém o autor de Terra-Pátria espera que o homem encontre um novo futuro mais promissor.
Morin ainda que reconheça que “A vida, a consciência, o amor, a verdade, a beleza são eféme- ros … Estamos na itinerância. Não marchamos por um caminho demarcado, não somos mais teleguiados pela lei do progresso, não temos nem messias nem salvação, caminhamos na noite e na neblina” (pgs. 164-165), acrescenta: “Estamos na aventura desconhecida. A insatisfação que faz recomeçar a itinerância jamais poderia ser saciada por esta. Devemos assumir a incerteza e a inquietude, devemos assumir o dasein, o fato de estar aí sem saber por que” (p. 166) lembrando esta categoria cara a Heidegger, que elaborou o “esquecimento do ser”.
Como recomeçar a itinerância, poderíamos perguntar, o autor dá uma “Boa-má nova” (lembrando a boa nova significado da palavra Evangelho): “Eis a má nova: estamos perdidos, irremediavelmente perdidos. Se há um evangelho, isto é, uma boa nova, esta deve partir da má: estamos perdidos, mas temos um teto, uma casa, uma pátria: o pequeno planeta onde a vida criou seu jardim, onde os humanos formaram seu lar, onde doravante a humanidade deve reconhecer sua casa comum (pg. 166), e a resposta mesmo agnóstica, não é diferente da evangélica.
E então lembra deste apelo: “O apelo da fraternidade não se encerra numa raça, numa classe, numa elite, numa nação. Procede daqueles que, onde estiverem, o ouvem dentro de si mesmos, e dirige-se a todos e a cada um. Em toda parte, em todas as classes, em todas as nações, há seres de “boa vontade” que veiculam essa mensagem” (Morin, 2003, p. 167).
E aqueles que conhecem esta mensagem, esta esperança não podemos permanecer calados, indiferentes ou o que é muito pior, aderir a desesperança, devem lembrar daquela mensagem evangélica: “A quem muito foi dado, muito será pedido” (Lucas 12, 39-48) sob a pena da omissão, da distorção ou do abandono da mensagem fundamental da salvação terrena e celeste.
MORIN, Edgar e Kern, Anne-Brigitte. Terra-Patria. Trad. francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre : Sulina, 2003.
Poder, Ira e Tempo
Em tempo de ameaças e ódios que colocam em cheque não apenas povos, nações e culturas, mas até mesmo o processo civilizatório é bom rever aquilo que pensamos de poder e Ira.
Sloterdijk (2006) tinha desenvolvido a questão de Ira em tempos atuais, num contexto de psicologia política, valores como orgulho, ambição e vaidade contribuem para aquilo que pode ser chamado em tempos de redes, a uma verticalização da vida social.
O autor esclarece que as teorias sociais da “estratificação social na base da dominação, regressão e privilégio” são trocadas pelas ideias de disciplinamento individual (ascese, virtuosidade e desempenho) apontadas como causas da diferenciação vertical.
Isto parecia óbvio tanto para Michel Foucault, patrocinador deste víeis interpretativo, já que denunciava nos anos 70 a intima relação entre discurso e disciplina, por outro lado na visão da viragem linguística, nos seus famosos jogos de linguagem, vinculou esta última com figuras comportamentais e abriu para a sociologia (e algumas meias-filosofias) a compreensão dos rituais latentes, próprios de jogos comunicativos.
Meias-filosofias porque Sloterdijk vai contestar esta leitura e também diversas vertentes da filosofia analítica anglo-americana, que veem nos jogos de linguagens um igualitarista e relativista, não o é.
A chamada tensão vertical, na obra de Sloterdijk, tem grande relevância para a ética e a pedagogia, pois estabelece uma hierarquia entre valores, sem os quais a ética é sabotada, e o educador ao perseguir algo mais alto ao qual o educando está, deve ter algo a mais na alma e no corpo, e isto é seu discurso sobre “a sociedade de exercícios”.
O que estes autores chamam a atenção é a destruição contemporânea da interioridade, tema que Byung-Chul Han vai até a raiz, mas tanto Heidegger, Hannah Arendt e agora Sloterdijk já haviam chamado a atenção para isto: o estar-no-mundo, destruiu aquilo que foi considerado durante milhares de anos como algo mais importante: distinguir-se radicalmente deste mundo.
Em Heidegger este discurso já está presente apontando que o homem como alguém que não dispõe mais de uma interioridade que pode servir de abrigo, para o fugitivo do mundo que ele, eventualmente escolheria ser, as condições modernas, se opõe a certeza de uma vida mais que verdadeira no horizonte da realidade ou num hipotético “fim de mundo”, isto foi escrito muito antes das visões apocalípticas e pseudo-proféticas atuais, sem ver a ausência de ascese.
Hans Jonas escreveu: “age de maneira que os efeitos do seu agir não coloquem em perigo a permanência da vida humana autêntica na terra!” (Jonas, 2006) e Edgar Morin pede uma humanidade (re) humanizada, enfim reverter o processo do poder violento, do ódio e da guerra.
JONAS, Hans. Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer Ethik für die technologische Zivilisation. Frankfurt Suhrkamp, 2006.
SLOTERDIJK, P. Zorn und Zeit. Frankfurt: Suhrkamp, 2006.
Noética, Ontologia e a guerra
Para Platão noésis é superior à dianóia, que é discursiva e aparentemente lógica, enquanto a primeira é uma elevada atividade mental possível, habitando a esfera do Bem e da Harmonia.
É uma possibilidade de acesso ao mundo “divino” (o sumo bem de Platão que está no eidos), é transcendente, absoluto, além do raciocínio humano comum, os filósofos a perseguem sem ao menos tocar na questão da crença de um Deus superior onde a noésis “habita”, não é Ser, mas atitude mental.
Já a dianóia enquanto habita um raciocínio lógico, matemático e técnico fica preso ao que a mente consegue captar do mundo terreno, mesmo admitindo equívocos, verdades não absolutas e as vezes confusas, elas habitam o cotidiano do humano, também desligado do Ser.
Há uma linha fundacional que vai da fenomenologia à antropotécnica de Peter Sloterdijk e Byung-Chul Han, envolvendo essencialmente a questão do Ser, a ligação entre a noesis e o noema, fragilizada pelo bombardeio de narrativas que o universo digital proporcionou, mas o esquecimento do ser, a ausência de interioridade levaram àquilo que Chul-Han chama de “desauritização” e a “pura facticidade” dita assim:
“O desencantamento do mundo se expressa como desauritização. A aura é o brilho que eleva o mundo para além de sua pura facticidade, o véu misterioso que envolve as coisas” (Han, 2023, p. 80).
Não se trata de negar a facticidade, mas de não permitir sua noesis, isto é a compreensão inicial na mente em toda sua aura, ela faz uma “seleção narrativa”, no dizer de Byung-Chul (falando sobre a fotografia): “Ela estende ou encurta a distância temporal. Ela pula anos ou década. A narratividade se opõe à facticidade cronológica” (Han, 2023, p. 81).]
São estas as mentiras das guerras, são de todas as guerras porque escondem seus reais motivos, mas particularmente das guerras atuais porque usam narrativas para mudar o que é evidente se lido na facticidade cronológica, em exemplo bem atual, o bombardeio na semana passada de um hospital de idosos na Ucrânia (foto) e o bombardeio de bases da ONU no Líbano, isto tem correlação com a crueldade e a ausência de qualquer narração que as justifique.
A paz está nos corações e autoridades que mantem a aura da esperança, o espírito solidário.
HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Trad. Daniel Guilhermino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
Heidegger e a tonalidade afetiva
A intencionalidade é inerente ao Ser, é uma manifestação da interioridade.
Como um bom oriental, embora radicado na Alemanha, Byung-Chul Han parte sua análise não da perspectiva objetivista, materialista ou substancialista dos autores clássicos da filosofia ocidental, mas na perspectiva holística daquilo que vai chamar de “tonalidade afetiva” em Heidegger.
Seu livro, diferente de outros que considero ensaios, analisa “O coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger” (Ed. Vozes, 2023), com esta análise nova, humana e diria até mesmo espiritual do cerne da filosofia ocidental.
Parte de um conceito caro a civilização judaico-cristã, que é o da circuncisão, porém da circuncisão do coração e não do órgão falido (a pele presa no início do pênis), é preciso lembrar que embora órgão masculino ele é emblema do poder, da autoridade e do desejo, foi culturalmente numa cultura bélica.
A parte de sua visão religiosa, ele tem um sentido espiritual para toda a sociedade, contrário ao que Han vai desenvolver que é a circuncisão do coração, aquela que modula e rege o afeto.
Começa por aquilo que é raiz da cultura eurocêntrica, começando pela hipocondria de Kant que confessa em seu texto “Conflito das faculdades”: “por causa de meio peito chato e estreito, que deixa pouco espaço para o movimento do coração e dos pulmões, eu tenho uma predisposição natural para a hipocondria, que em anos anterior beira o tédio da vida” (Han, 2023, pg. 8), e daí desenvolve o “anseio expande o coração, o faz definir e esgota as forças” (pg. 9).
Este anseio dirá não é também indolor para Heidegger, mas de acordo com este autor (foi tese de doutorado de Han), o anseio é a “dor da proximidade da distância”, o feitiço do “sempre-igual”, porém num movimento de sair do em-si existe uma “Dor da costura” com o Outro.
Assim, dirá Han, a “costureira” (Näherin] de Heidegger, “trabalha na proximidade”, é também uma circuncidadora do coração (pg. 10), desenvolve-se convertendo-o “em tímpano hétero- auditivo” (pg. 10), “o coração do ser-aí” palpita no horizonte transcendental, assim segundo Han no Heidegger tardio, “a constrição penetra mais profundamente” e o ser-aí separa-se do ser do aí: Da-Sein (Han, pg. 11).
Assim, “esta circuncisão liberta o coração da interioridade subjetiva” (Han, Idem), e há uma conclusão preliminar surpreendente em Heidegger: “O coração de Heidegger, por outro lado [confronta com Derridá], escuta uma só voz, segue a tonalidade e gravidade do “uno, o único que unifica”, para ele é um “ouvido do seu coração” porém há algo forte de espiritual nisto.
Espiritualmente há uma voz interior que fala aos nossos corações se estão circuncidados.
Han, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
Verdade, noética e o Mal
Nos prolegômenos do primeiro volume de Investigações lógicas, Husserl que havia recebido forte influência de Franz Brentano, pai da psicologia social, vê como problema o relativismo e suas bases na visão de mundo turbada, assim à relatividade da existência de um mundo não é objetiva nem subjetiva, mas “a unidade objetiva completa que corresponde ao sistema ideal de todas as verdades de fato, e dele é inseparável” (HUSSERL, 2005, p. 136).
Isto porque cada tipo de objeto tem desdobramentos próprios possíveis, por assim dizer, tem um método próprio prescritos a priori por leis de essência determinadas pelo eidos da objetividade em questão (Husserl, 2006, 309), isto quer dizer que é a essência da objetividade que pré-determina o tipo de desenvolvimento concordante que se tem da experiência dele.
Pode haver a vivência da evidência nesta experiência do objeto, e isto colabora com seu status de ente enquanto um “ser verdadeiro” (Husserl, 2006, p. 309), aquilo que Husserl chamava de “Lebenswelt”, uma lógica da vida, neste caso da vivência experimentada com o objeto.
Assim um objeto que é o “puro X” se mantém estável em meio à multiplicidade de caracteres noemáticos, que se perfilam no decorrer de uma experiência, o objeto visado no pensamento pela consciência humana, ele precede a primeira ideia intuitiva que é a noesis (pensar X).
Essa visão noética é uma síntese de identidade, conceito central para o estabelecimento do objeto “efetivo”, “verdadeiro”, a objetividade apreendida em doação evidente, numa síntese de identidade concordante, é efetivamente, escreveu Husserl:
A todo objeto “verdadeiramente existente” correspondente por princípio (no a priori da generalidade eidética incondicionada) a ideia de uma consciência possível, na qual o próprio objeto é apreensível originariamente e, além disso, em perfeita adequação. Inversamente, se essa possibilidade e garantida, objeto é o ipso verdadeiramente existente” (HUSSERL, 2006, p. 316).
As sínteses envolvidas no pensamento fenomenológica, para o estabelecimento do “ser” ou do “não-ser” dos objetos correlatos noemáticos são “intencionalidades de ordem superior”, é aquilo que Husserl retirou do pensamento neotomista de Franz Brentano, livra-se do psicologismo, do eidos que temos do bem e do mal ainda escolástica do pai da psicologia social.
A intencionalidade de doação evidente dos aspectos ainda não presentes do objeto formam um horizonte intencional, na visão de Husserl, traz por sua vez, suas potencialidades já pré-determinadas, assim são falsas as visões fáticas de guerra e paz, de demônio e do mal.
São as intencionalidades mal-formadas (no sentido que não tem uma verdade noética), a verdade enquanto “ser”, enquanto “o verdadeiro” nas leituras fáticas e idealistas, são para Husserl uma “efetividade” (Wirklichkeit) já que guarda coerência em seu núcleo.
Assim o pensamento tradicional pensa ser ortodoxo ao se referir ao outro como “mal” ou como “demônio”, quanto na verdade esconde a intencionalidade noética de seu interior.
Husserl, E. Investigações lógicas. Primeiro volume: Prolegômenos à lógica pura. Tradução de D. Ferrer. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2005.
Husserl, E Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Tradução de M. Suzuki. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006
Interioridade, verdade e conflitos
O abandono de concepções que levam a humanidade elaborar-se interiormente elevando os pensamentos e espiritualidades é apontado em inúmeras leituras contemporâneas, temos aqui postado aqui Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Peter Sloterdijk, Edgan Morin e Byung-Chul Han, entre outros, é claro.
Porém queremos aqui partir da questão do método e retornar a fenomenologia de Husserl, um dos primeiros a questionar “A crise das ciências Europeias e a fenomenologia transcendental – uma Introdução a Filosofia Fenomenológica” (edição brasileira da Forense Universitária, de 2012) que aponta esta questão e que na terceira parte esclarece a questão transcendental e os equívocos da ciência contemporânea.
Assim aponta seus questionamentos dos conceitos de “experiência exterior” e “interior”: “O absurdo principial de querer considerar seriamente homens e animais como realidades duplas, como vínculo entre duas realidades de espécie diversas, equiparáveis quanto ao sentido de realidade, e querer, assim, pesquisar também as mentes pelo método científico-corpóreo, ou seja, de modo natural-causal existindo espaço-temporalmente como corpos – resultou na pretensa obviedade de um método a configurar de modo análogo ao da ciência da natureza” (Husserl, 2012, pgs. 177-178).
Neste sentido vai questionar tanto o dualismo cartesiano como o fundamento de uma ciência que cria um “paralelismo” onde: “a natureza físico-matemática é a natureza objetivamente verdadeira; essa natureza deve ser a que se anuncia nas aparições meramente subjetiva” (pg. 179), e sua questão levantada é porque “não é a natureza do mundo da vida, este mero elemento subjetivo da experiência exterior, mas esta é contraposta à experiência exterior ?
A interioridade na filosofia é um aspecto fundante desde que observemos a questão ontológica do Ser, já presentes em Platão e Aristóteles, e que em Santo Agostinho vai ter um papel central na sua visão de mundo, onde busca um sentido profundo de “beatitude” da alma.
Esta interioridade reduzida a interior e visões imediatas de mundo, separam o homem do mundo, dos outros e passa a se projetar excessivamente sobre os objetos, “as coisas” até o ápice do mundo digital, chamado por Byung-Chul Han de “não coisas”, para falar de algo em alta atualmente, diz o autor: “inteligência artificial não pensa”.
Assim nos movemos mecanicamente para interesses para conflitos externo e que nos levam a posicionamentos cada vez mais litigiosos sobre valores e não-valores que justificam a violência.
O problema que aponta Husserl, é que tudo isto parte de um “método” ou seja o modo particular como olhamos o exterior e exercemos nossa interioridade, contrapostos nas origens por Brentano e Dilthey: “como em geral no século XIX, no tempo dos esforços apaixonados para produzir uma psicologia rigorosamente científica, apresentável ao lado da ciência da natureza” (pg. 180), mas este psicologismo é superado pela crítica de Husserl a Brentano e depois por Hans-Georg Gadamer a Dilthey, como o vê como um historicismo romântico.
O que é o homem interiormente, porque esvaziou-se na modernidade, qual o retorno a vida ?
HUSSERL, E. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Trad. Diogo Falcão Ferrer. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2012.