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A questão da Identidade e sua atualidade
A questão é tão fundamental que percorre a filosofia desde Parmênides, onde “o mesmo, pois, tanto é aprender (pensar) como também ser” (apud Heidegger, 1973) e para ele pensar e ser são pensados como o mesmo, ou seja, a identidade faz parte do ser, porém isto tem muito a ver com o momento atual.
Quando apelando a questões de identidade separamo-nos de pessoas de diferentes raças, credos ou gêneros não estamos senão tentando fortalecer aquilo que é um falso conceito de identidade porque tanto nega o próprio Ser, como tentativas de fortalecer determinado grupo sob uma pretensa identidade e negar aqueles que pouco tem a ver com a pertença aquele grupo ou raça.
Esse olhar para “coisas diferentes” e reconhecer nelas alguma co-pertinência (a pertença é só mais uma forma de dar identidade a um grupo ou raça isolada), devemos manifestar diferentemente o que deve ser apontado como mesmidade, ou seja, co-pernitência de grupos com cultura diversa.
O sentido lógico de pensar desta identidade é forte e tem presença em diversas culturas tanto porque os grupos querem se fortalecer através desta “identidade”, quanto seguem uma lógica binária e dualista onde A não pode ser B, ou são iguais e são o mesmo, ou são diferentes e são contraditórios, já apontamos em outros textos o terceiro incluído de Nicolescu Barsarab, na lógica.
Porém na onto-lógica o Ser é e pode não-Ser, onde existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A, que até mesmo na realidade física já foi comprovado pela física quântica, o problema para a filosofia dualista é que isto envolve a complexidade.
Há um segundo modo de ver a questão dentro do pensar (noein) onde o mesmo é apresentado como Ser, como foi dito no início, nele duas coisas supostamente distintas, vêm-se uma na outra como co-pertinência, o que tornou possível algumas interpretações problemáticas na modernidade.
Heidegger aponta para ela, primeiro citando Parmênides e depois desenvolvendo “algo absoluta- mente diverso daquilo que ordinariamente conhecemos como a doutrina da metafísica, na qual a identidade faz parte do ser” (HEIDEGGER, 1973).
O que Heidegger faz é inverter a frase de Hegel: “a identidade faz parte do Ser”, para “(…) a unidade da identidade constitui um traço fundamental do ser do ente. Em toda parte, onde quer que mantenhamos relação com qualquer tipo de ente, somos interpelados pela identidade” (HEIDEGGER, 1973).
Indo ao fundo da filosofia moderna, onde Hegel é digno representante, pode-se dizer que há um deslocamento do Ser (sein) para o Ser-aí (Dasein) e talvez a complexidade encontre aí um ponto de apoio para os que desejam explicações simplistas, pode-se dizer há no ser um deslocamento
Porém é mais complexo, pois envolve aspecto existenciais como a “mundanidade”, a “facticidade” e a “linguagem”, sem eles caímos nas explicações simplista que só fortalecem a identidade como fator de diferença e exclusão do Outro, daquele que não é do meu círculo e caminhamos a intolerância.
HEIDEGGER, M. O princípio de identidade. In. Col. Os Pensadores. Trad. Ernildo Stein, Rio de Janeiro: Abril, 1973.
A proximidade em Ricoeur e no papa Francisco
A citação de Paul Ricoeur na encíclica papal Fratelli Tutti é de uma dimensão filosófica e teológica que poucos ainda compreenderam, ao separar sócios de próximos, inspirado nas categorias de Ricoeur o papa dialoga com a contemporaneidade tanto com a filosofia como com a teologia e abre um caminho novo para um fraternalismo concreto.
Embora o pendor de teor utópico que a palavra Fraternidade (o nome da encíclica é Fratelli lembremos) toma dimensão nova ao transcorrer a leitura de Socius et Prochain de Ricoeur.
Pode-se dizer que desenvolve uma verdadeira cultura da proximidade, ou seja, não são os amigos daquele grupo que estou ligado, daqueles que compartilham certa “identidade”, a encíclica também esclarece estes falsos conceitos de identidade que nos isolam dos próximos.
A menção que faz de Ricoeur merece nota: “a caridade reúne as duas dimensões – a mítica e a institucional –, pois implica um caminho eficaz de transformação da história que exige incorporar tudo: instituições, direito, técnica, experiência, contribuições profissionais, análise científica, procedimentos administrativos” (FT §164), e assim incorpora realidades humanas no mítico.
Pode-se dizer que é um realismo realista de uma utopia de um mundo melhor possível, que não se reduz a um sentimentalismo religioso pouco eficaz que ameaça certas concepções que tanto a mística como a boa filosofia contemplam, ir de encontro ao Outro, a proximidade.
Outro ponto essencial da encíclica é o mal uso da categoria identidade, dirá a Encíclica que “quando agarram a uma identidade que os separa dos outros” e está no capítulo III que fala justamente do pensar
E alerta a Encíclica: “Existem periferias que estão próximas de nós, no centro duma cidade ou na própria família”. (FT §97), e novamente em Paul Ricoeur encontramos: “o vizinho é a própria conduta de se fazer presente (…) a ciência do vizinho é imediatamente bloqueada por uma práxis do vizinho: não temos um vizinho; Sou o próximo vizinho de alguém” (Ricoeur, 1968).
É a incompreensão desta categoria que leva a má filosofia a não entender o que significa o outro e o dar-se e isto pode ser visto em toda história da filosofia nas diferenças concepções de identidade, o conceito está em Stuart Hall e também de Heidegger é que identidade é o grau de compreensão que cada um tem da própria cultura, mas o tema é polêmico e voltaremos a ele.
RICOEUR, Paul “O socius e o próximo”, in História e Verdade, trad. F. A. Ribeiro (Companhia Editora Forense: Rio de Janeiro, 1968),
PAPA FRANCISCO, Carta Encíclica Fratelli Tutti (FT), Vaticano, outubro de 2020. Disponível em:
Fratelli tutti (3 de outubro de 2020) | Francisco (vatican.va)
Notícia boa, ruim e pós-trauma pandêmico
A notícia boa é que a pandemia diminui no mundo todo, a má é que no Brasil pelo menos 7 estados com uma piora maior que os dados de 2020, é preocupante, porém o que já se começa a pensar é o que virá depois, nossa visão de mundo foi alterada e precisamos caminhar em nova via.
São eventos que acontecem individualmente quando sofremos um grave acidente, uma ruptura em relações pessoais, ou algo que cria um trauma, segundo David Trickey, psiquiatra e membro do Conselho de Trauma do Reino Unido, a ruptura do trauma é uma “construção de significado”.
Esclarece o psiquiatra: “a maneira como você se vê, a maneira como você vê o mundo e a maneira como você vê as outras pessoas” ficam abaladas pela reviravolta de um evento, surge uma lacuna em seu “sistema de orientação” e um simples estresse cotidiano transforma-se em trauma se são mediados por sentimentos fortes e prolongados de impotência e apreensão.
Será preciso olhar para a saúde mental das pessoas, estender nosso limite de tolerância e atenção, é neste momento que intolerâncias e práticas de pessimismo latente ou simplesmente de pouca
De que se trata este sistema de orientação e significado, todos possuímos uma espécie de “GPS pessoal”, ligado ao trabalho, a realização humana e suas necessidades, enfim a autoestima e a relação com os outros, tratamos demoradamente o assunto na semana passada.
A resiliência mental é uma espécie de bálsamo que movimenta nossa máquina cognitiva e nos faz seguir em frente ao estresse e se fica perto de um esgotamento cria um trauma psíquico, tão grave quando um trauma físico.
Lembrar as lições desta crise pandêmica e construir significados novos é mais difícil que ser apenas “otimistas”, porém a penúltima grande epidemia da crise espanhola mostrou que ela foi esquecida e as lições que podíamos tirar não foram tiradas.
Martin Bayly, um cientista social da London School of Economics (LSE), citado em reportagem da BBC, foi revisitar arquivos sobre a gripe espanhola no Reino Unido onde morreram 250 mil pessoas, e não conseguiu encontrar nenhuma evidência de homenagem pública, disse na reportagem “A ausência de memoriais fez com que desaparecesse da memória pública, na escrita da história”.
Isto afeta nossa preparação para crises futuras, quando ocorreu a pandemia de 1957 (a gripe asiática matou um milhão de pessoas), vários analistas destacaram conforme relato de Bayly “falhamos completamente em aprender as lições de 1918”, mas também a lição moral porque estávamos em meio a guerra.
Criar uma significação a partir de uma narrativa social, seria um passo importante destaca a reportagem, e um dos esforços no Reino Unido será o de lembrar a NHS (National Health Service) no caso brasileiro o SUS (Sistema Único de Saúde), além disto pensar em memórias e outros modos de lembrar e historiar esta crise serão alertas e preparação para o futuro.
Nomeando elefantes (ou bois) e visão de mundo
Falecido em fevereiro do ano passado, o americano e filósofo cristão James W. Sire (1933-2018) fez uma ampla pesquisa por trás da questão da visão de mundo, disse que levou 30 anos, publicado em 2004, provavelmente começou a se debruçar sobre o tema em 1974.
Também sua visão de mundo deve ser relida, quero dizer que de 1974 a 2004 o mundo passou por transformações que ele não aprofundou, a queda do Muro de Berlim, o fim da guerra fria que parece agora renascer, a queda de ditaduras que parecem voltar em todo o planeta e mais recentemente ainda a pandemia.
Não li o livro, mas um de seus capítulos que encontrei na Web e também alguns de seus comentaristas que me ajudaram a formular uma ideia, ainda que imprecisa, do seu principal livro “Nomeando elefantes: visão de mundo como um conceito” (Naming the Elephant: Worldview as a Concept, editora IVP Academic), e o capítulo que referencio é o Definições de Cosmovisão: de Dilthey a Naugle, que já no título é sugestivo de algum idealismo o que o texto confirma logo no início, está disponível no google Books, sendo leitor de Dilthey está ao meu ver no fio da questão.
Diz no início do capítulo 2 que a origem do termo Weltanschauung teve origem com Kant (1724-1804) (pasmem! idealistas), “mas somente de passagem”, e cita textualmente Dilthey: “to denote a set of beliefs that underlie and shape all human thought and action” (Sire, 2004, p. 23), em tradução livre: denotam um conjunto de crenças que sustentam e moldam todo o pensamento e ação humanas, elas estão no cerne do que desejo analisar.
Embora apropriada a análise, talvez a mais completa sobre o termo, falta a leitura de Heidegger que atualizou e desenvolveu o tema num sentido mais amplo que o de Kant e Dilthey, e Hans Georg Gadamer irá criticar justamente a concepção de Dilthey como idealista.
Para fazer o caminho do conceito de Weltanschauung cita Nietszche, Wittgenstein, com digressões a Platão e Descartes, Foucault e até Rorthy de passagem, e ai começa a discorrer sobre autores cristãos evangélicos (reformados é o nome no exterior), James Orr, Abraham Kuyper, Herman Dooyeweerd, Ronald Nash até chegar ao que chama de nova síntese que seria David Naugle, entretanto, jamais foge do idealismo, diz passar da ontologia a hermenêutica (não seria o contrário) e diz que esta visão sintética é caracterizada por um “sistema semiótico de signos narrativos” (Sire, 2004, pag. 42) citando Naugle do qual fez tal síntese.
Entretanto a verdadeira síntese escondida atrás do texto, de clara visão nominalista veja-se a ideia de sistema semiótico, se revela ao citar o texto bíblico “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim, referindo-se a passagem bíblica de Jo 14:1, pois ignora em seguida o texto que diz: “na casa de meu pai há muitas moradas”.
A ideia de signos, mitos e símbolos embutidos em narrativas que representam uma visão de mundo não é desprezível, e é mesmo importante, entretanto qualquer visão que se prenda unicamente a narrativa não faz o trabalho de retirar a visão antropológica e a real visão “histórica” do acontecido, sendo a visão do historicista de Dilthey idealista e irreal.
Há outra passagem mais significativa, a chamada volta do filho pródigo (Lc 15,10:32), que alguns autores e exegetas idealistas não gostam do nome, procurando idolatrar o filho mais velho que ficou em casa com o pai, sendo este mais conservador portanto, mas também o filho pródigo teu seu defeito, foi ao mundo fazer experiências, o fato que retornou é louvável, mas que visão de mundo ele trouxe de seu desvio, na verdade o pai de ambos é que é o misericordioso com os filhos conservador e rebelde.
É preciso recuperar esta visão de verdadeira misericórdia, e as leis dizem mais ainda: “pedi e vos será dado” (Mt 7,7) e porque parece que Deus não nos atende, é simples algo a ser corrigido.
Sire, J. W.Naming the Elephant: Worldview as a Concept, editora IVP Ademic, EUA: Illinois, 2004.
Existência, repetição e Ser
Na filosofia pode-se ter forma (morphé) e matéria (hilé) e todos seres tem morphé-forma e hilé-matéria, mas a in-formação depende do pensamento, depende da disponibilidade ao ato de pensar e não apenas o de repetir, aqui encontramos este segundo tópico, que o repetir não significa apenas tornar-se redundante, o problema civilizatório permanece se não avançamos.
Em palestra em 2016, no Salão de Atos da UFRGS Sloterdijk já sentenciava: “Penso que a realidade hoje se assemelha a como estávamos em 1915 – comentou ele, comparando o atual panorama com uma época no século passado em que a I Guerra recém havia começado e não haviam se sucedido…”, este quadro só se agravou, a pandemia poderia ser uma pausa, mas não foi.
A repetição pode ser vista como submissão as regras, as leis da natureza, da sociedade enfim de um conjunto de situações que te aprisiona, como pode ser uma tomada de consciência de quem você efetivamente é, aquilo que é sua verdadeira natureza, então repetir é a possibilidade de ser no presente e projetar-se no futuro, então entra-se na existência.
O acesso a existência humana num novo tipo de registro implica uma articulação de sentido para o Ser e para a vida, o caminho percorrido de Husserl a Heidegger, e depois com Gadamer é o que liga a hermenêutica a ontologia, e em Gadamer é explicitado o método do círculo hermenêutico.
Pode ser assim descrito seguindo o raciocínio de Gadamer: não deve ser degradado a um círculo vicioso, mesmo que esteja seja tolerado, nele vela uma possibilidade positiva do conhecimento originário, que, evidentemente, só será compreendido de modo adequado quando a interpretação compreender sua tarefa primeira.
Esta tarefa primeira constante e última permanece sendo a de não receber de antemão, por meio de uma “ideia feliz” ou por meio de conceitos populares, nem a posição prévia, nem a visão prévia, mas em assegurar o tema científica na elaboração desses conceitos a partir da coisa mesma. (GADAMER, 1998, p. 401).
Visto o método voltamos a questão essencial do Ser, que é o esquecimento na filosofia ocidental deste conceito, desde Platão até Nietzsche, e assim temos uma metafísica ou sua negação, ambas de forma incompleta porque um conceito tão essencial não foi abordado.
É o esquecimento do ser, que o filósofo diagnostica em toda a tradição filosófica ocidental, começando com Platão e se estendendo até Nietzsche.
Na sua obra “Que é metafísica” (escrita em 1929), o Heidegger definições assim a existência: “A palavra existência designa um modo de ser e, sem dúvida, do ser daquele ente que está aberto para a abertura do ser, na qual se situa, enquanto a sustenta” (1989b, p.59).
Sem esta categoria essencial a discussão e o pensamento fica preso ao “ente”, que Tomás de Aquino a define assim: “De onde se segue que a essência, pela qual uma coisa se denomina ‘ente’, não é apenas a forma, nem apenas a matéria, mas ambas, embora à sua maneira apenas a forma seja a causa desse ser” (Aquino, 2008, p. 10), nesta linha ontológica não há separação entre o Ser e o Ente.
Assim temos além do Ser, sua categoria agregada do ente, que lhe é inseparável.
AQUINO, T. O Ente e a Essência, Universidade da Beira Interior. LusoSofia.Press, Covilhã, PT, 2008.
HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica? In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1989.
GADAMER, H.G. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
Ideia e metáfora viva
A hermenêutica desenvolvida em “Metáfora viva” é um polo avançado da fenomenologia visto como um método de interpretação necessário à vida do pensamento, que tem seu próprio nível de discurso, refundando o eidos que veio dos gregos, dando a ele o que foi chamado de “ideologia do inefável”, não do inatingível no pensamento e sim o que está posto a consciência e não dito.
A metáfora viva começa onde termina a linguística, é assim uma fusão entre ambas e quase um complemento, não o é apenas porque não há corrente linguística que o admita, se entendemos que o significado é um problema central para a linguística esta ultrapassagem da metáfora viva é melhor compreendida como a possibilidade de múltiplas interpretações pelo interprete.
A definição dos gregos de metáfora, nos estudos de poética e de retórica de Aristóteles, a metáfora é vista a partir da interpretação semântica, onde a palavra ou o nome são unidades básicas entre a poética e a retórica, enquanto a segunda é voltada a mimese ou arte de imitar as ações humanas (é um reducionismo ver a metáfora apenas como isto), a segunda é a arte de persuadir, onde é possível perceber que um belo discurso é mais convincente que um discurso lógico e claro.
A grande contribuição de Ricoeur será a partir da semântica da palavra isolada, ligada à teoria da substituição e à noção linguística do que é “código”, uma semântica do discurso entendido como totalidade, ele considera que o ato da fala no sentido filosófico-especulativo é diferente de outros atos discursivos, como o poético, o religioso e mesmo o científico, onde a origem grega é aquela que predispõe a noção de “ser” à sua vocação filosófica, pode ir assim desde uma ontoteologia até uma nova ontologia a partir da dinâmica do significado de “dizer-como” que é uma ontologia implícita no enunciado metafórico, nele o “ser-como” significa “ser e não ser”, a nova ontologia.
A metáfora viva não é tão complexa quanto sua explicação, significa que é possível a partir da metáfora dar significação ao “inefável” mesmo como metáfora, pela “vida” nele inserida.
As parábolas se aproximam das metáforas, porque ambas querem explicar verdades complexas.
O recurso de parábolas na Bíblia em lições que Jesus procurava explicar a pessoas mais simples as coisas mais complexas, o eidos Deus é algo complexo, é similar ao uso da metáfora viva, por exemplo, ao explicar o que é a palavra semeada entre as pessoas que desejavam conhecer o divino, é usada a parábola do semeador, a semente semeada em solo bom, no meio de espinhos, em terreno pedregoso e solo pouco fértil (Mc 4,26-34). (na imagem O semeador de Van Gogh)
Não há determinismos bíblicos, como ser todos os solos são possíveis, o que acontece de um solo ser melhor ou pior para uma semente depende de como ela cai no entendimento de cada pessoa, assim sujeita a interpretação.
Bíblia. Evangelho de Marcos.
RICOEUR, P. Metáfora Viva. São Paulo. Ed. Loyola. 2000.
Por uma ascese espiritualizada
O que assistimos além da crise e noite cultural, além de uma profunda crise social sem um pensamento que catalise as forças reais da sociedade que apontam para o futuro, é um também uma noite de Deus, o educador Martin Buber a descreve como Eclipse de Deus.
Escreveu Buber em seu livro: “Mais tarde construí para mim mesmo o sentido da palavra ”desencontro”, através da qual estava descrito, aproximadamente, o fracasso de um verdadeiro encontro entre seres humanos. Quando, após outros 20 anos, revi minha mãe, que viera de longe visitar a mim, minha mulher e meus filhos, eu não conseguia olhar nos seus olhos, ainda espantosamente bonitos, sem ouvir de algum lugar a palavra ”desencontro” como se fosse dita a mim. Suponho que tudo o que experimentei, no decorrer da minha vida, sobre o autêntico encontro, tenha a sua primeira origem naquela hora na galeria.” (BUBER, 1991, p. 8).
Revela assim a verdadeira face do “silêncio de Deus” do judaísmo no qual tem raízes, será em outro livro o “Eu-Tu” onde ele revelará um aspecto de sua ascese que é “o encontro com o Outro”, que para Buber mais do que uma pessoa, seu Tu tem uma essência divina, Deus habita o outro.
Nos dias atuais o que se observa são duas tendências fortes e em ambas as asceses não há de fato uma espiritualidade além da transcendência, ou o ativismo que Byung Chul condena como a “vita activa” que leva ao cansaço, ou o subjetivismo idealista que pode parecer religião mas não o é, o que ele desperta não é outra coisa senão o sentimentalismo, podendo levar “fieis” as lágrimas, não necessariamente a Deus, se O descobrem de fato devem buscar outra ascese verdadeira.
Assim é possível que por um caminho ou outro também encontrem a Deus, porém não há outro modo de permanecer na fé, não dos cegos mas dos que encontraram uma clareira, se de fato quiserem permanecer a meditação e a oração são imprescindíveis.
Aos que não tem fé, uma boa leitura, separar trechos e pensamentos, vivendo o momento como escrevemos no post anterior, é fundamental, ou seja, também para a leitura pode-se seguir a regra de fazê-la sem “gula”, tentar colocar a alma em silêncio, fazendo um verdadeiro “epoché”.
Aos que creem reflito sempre que Jesus rezava, e pedia aos seus discípulos que rezassem com ele, e que não perdessem esta prática, Jesus vai contar a parábola do mau juiz que não quer atender a viúva, mas por sua insistência e para que ela não o xingasse, ele a atende, diz o trecho inicial: “Jesus contou aos discípulos uma parábola, para mostrar-lhes a necessidade de rezar sempre, e nunca desistir…”, que está em em Lc 18,1.
BUBER, Martin. Eclipse de Dios. México: Fondo de Cultura Económica, 1995.
Angústia, existência e vaidade
Conforme já tratamos, a angústia de nosso tempo é a tensão ao Ser, manter a “autenticidade consigo mesmo”, não se deixar levar pela corrente das expectativas e imposições dos poderes temporais, e assim lidar com as frustrações de manter firmes valores perenes e lidar com os transitórios.
Dela decorre a busca de uma existência onde há Fortuna (nossa felicidade), mas os gregos que usavam em referência a deusa Fortuna (foto), sabiam bem que ela não era relacionada a posse dos bens, conforme afirmou Heráclito de Éfeso: “se a felicidade estivesse nos prazeres do corpo, diríamos felizes os bois, quando encontram ervilhas para comer”, há quem prefira ervilhas.
Quando não vivemos a repetição conforme exposta pelo professor Giacóia no sentido de buscar a essência, entramos na repetição da mesmice aquela que vive do medo, que nos leva a viver na impropriedade, não atribuímos sentido (ou significado se preferir), deixamos que os outros e as circunstâncias o atriburm, vivemos a pior alienação, a alienação de nós mesmos, correndo para todo lado com agendas cheias e vazias ao mesmo tempo frivolidades diz Sloterdijk.
Vivemos por uma finalidade que não tem um fim, no sentido de meta, mas sentidos “emprestados” do cotidiano, das conjunturas e dos contextos, a angústia produz o efeito contrário abre a possibilidade de encontrar o que sou dentro de um sentido próprio da vida.
É o reencontro com o Ser, aberto ao mundo e ao Outro, sem que isto implique nem o fechamento individual nem a despersonalização do meio, hoje com a forte pressão do psicopoder, como define o pensador Byung Chul Han a pressão essencial deste tempo.
O que buscamos, o que é nossa meta, em última instancia deveriam ser vistos como fim, nunca como temporais: dinheiro, poder, riqueza ou simplesmente alguma vaidade.
A paz possível
Difícil, mas possível é a paz interior, de consciência e de amor ao Outro.
Não é a paz social, politica ou ética, que estão sempre em conflito, embora hajam movimentos integradores e uma tendência mundial a cidadania global, viver na aldeia (com as comunicações é global) e sentir cidadão do mundo.
A geração que vem ai poderá realizar isto, a geração que é “madura” agora teve retrocessos na leitura do presente, e isto provocou medo e desconfiança quebrando sentimentos de respeito e alteridade.
As medidas de força são desalentos e tentativas de reprocessar o processo social, porém caminham quase sempre para autocracias e arbitrariedades, nunca são democráticas.
A pax romana era a submissão ao poder central de Roma, a paz da Vestefália foi um tratado de tolerância religiosa entre cristãos e a paz eterna o sonho idealista na força do estado moderno.
A paz possível é a tolerância com os diferentes e aceitação d0s limites humanos em tempos de crises, depende de alguma dose do espiritual.
Desertos e oráculos
Caminhamos como sonâmbulos no escura, aponta Edgar Morin, este não é um tempo propício ao pensamento afirma Peter Sloterdijk, Byung Chul Han diz que nosso tempo é o “deserto ou inferno do igual”, mas diria que o deserto ainda pode ser fértil, e ter um Oasis porem o igual estéril, é massificação, despersonali-zador e mais que autoritário nos identifica ao nada.
São algumas das vozes que identifico como uma busca desesperada para um retorno não ao antigo normal, mas a um realmente novo normal, não deverá ser este no fim da pandemia, e sim o inferno que nos nivelou todos por baixo, pelo desumano, pelo irracional e pelo consumo.
Edgar Morin aponta para a educação como um caminho para esta renovação, mas quem serão os professores com novo pensamento e nova mentalidade, Byung Chul Han aponta para o cuidado da terra, seu novo livro “Louvor da Terra” que aponta para um jardim comunitário, onde os ritmos e características de cada flor são registrados e acolhidos com sua atenção oriental, centrada nos elementos simples de cada flor.
Peter Sloterdijk já havia escrito Se a Europa despertar, poderíamos dizer agora se o mundo despertasse no pós-pandemia, se realmente olhássemos para o Bem Moral que propõe Morin, para uma fraternidade concreta e realmente universal como propõe o papa Francisco em sua encíclica Fratelli Tutti, mas penso eu são vozes que clamam no deserto como João Batista que morreu degolado pelo pedido de uma dançarina sensual que encantara Herodes.
Quando os fariseus foram a João Batista, que vivia no deserto, vestindo peles de camelos e comendo mel de abelha e cereais, ele respondeu (João 1,23): “Eu sou a voz do que clama no deserto: ´Fazei um caminho reto para o Senhor”, como disse o profeta Isaías”.
Quando há oráculos, pensadores e sábios que falam no deserto uma mudança está próxima.