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Dons e talentos
Dons são coisas que fazemos e parece que nascemos com ela, por isso foi traduzido no português como “dádiva”, enquanto talento podemos ter uma aptidão mas ela precisa ser desenvolvida e aprimorada para se tornar realmente um dom, assim recebemos de alguém, de uma estrutura ou cultura e precisamos despendê-lo.
Algumas culturas trazem dons naturais, assim diz-se que aquela cultura tem bons cozinheiros, aqueles são trabalhadores natos, porém uma cultura nociva ou pouco natural pode não desenvolver os talentos e até dependendo de estruturas autoritárias, sufocá-la, mas também de modo branco uma cultura pode deteriorá-los.
Dons artísticos, estéticos e até mesmo morais dependem de uma cultura que propicie seu desenvolvimento e os tornem talentos que possam ser “doados” a população de um modo geral, qualquer cultura que sufoque dons naturais está em retrocesso e pode até mesmo perder suas raízes originárias, assim muitos povos que foram colonizados, marginalizados ou inferiorizados sofrem este tipo de mutilação, porém há sempre uma maneira de resistir.
Também estruturas sociais, educacionais e religiosas podem sufocar dons naturais, e com isto os talentos que devem ser desenvolvidos não afloram, percebem o processo de crise que vive, mas não percebem a raiz e o ponto focal da crise, matam os talentos e sufocam os dons naturais que em geral resistirão, a obra de Picasso “Guernica” (foto) é ícone da resistência espanhola ao autoritarismo, só voltou a Espanha quando a democracia se estabeleceu.
É a principal característica de um sistema autoritário, sufocar os talentos e tentar controlar os dons, assim poucos artistas sobreviveram tanto no stalinismo soviético como no nazismo e regimes totalitários que serviram de apoio, como o franquismo espanhol e o fascismo italiano, mas também a modernidade perece deste mal.
A arte é sempre um momento de resistência, Byung Chul Han desenvolveu o conceito de Jardim Secreto, onde é possível cheirar, apalpar e as coisas, sem mediação das mídias, uma forma de recuperar o que ele chama de “beleza original”, o termo é bom, mas deveria ser conjugado com o conceito de dons originários.
Também Da Vinci afirmou que a “lei suprema da arte é a representação do belo”, já para Kandinsky: “É belo o que procede de uma necessidade interior da alma”.
Segundo Aristóteles “o belo é o esplendor da ordem”, porém por causa da associação desta palavra ao positivismo, faria uma paráfrase dizendo que o belo pode contribuir para uma harmonia originária que nos leve ao bom e belo como pretendia Platão, um diálogo que leva a alma para além do mundo físico, então ali se encontra o dom, a parte da cultura originária de cada pessoa e de cada povo.
Conjugando dom e talento, temos um dom natural que ao desenvolver-se dentro de uma cultura propícia torna-se um talento e nos eleva enquanto Ser.
Como prestar contas de nossas faltas
Todos cometemos faltas, se é verdade que não podemos enganar a vida com a morte, dizia o poeta Goethe, não podemos deixar de reconhecer a fatalidade da vida que é seu ocaso final.
Não há nenhuma contestação a fazer, ninguém ficou para semente diz um ditado popular brasileiro, e não sabemos o que há do outro, exceto para os que creem.
Durante anos da vida caminhamos desatentos com pequenas e grandes faltas, a maioria delas empurramos para debaixo do tapete, outras vezes justificamos nem sempre de maneira justa e convivente as faltas que tivemos, atribuindo a culpa ao Outro, porém o que fazer diante de um momento que devemos reconhecer aquilo que não fizemos bem e que podemos ter prejudicado muitas pessoas.
Leon Tolstói descreve em “A morte de Ivan Ilitch” um homem diante da morte, que vê os parentes mais preocupados com a herança do que com a própria vida dele, descreve no livro: “Chorou como uma criança. Chorou por causa do seu enorme enfraquecimento, e terrível abandono em que a família o deixava e pela crueldade e ausência de Deus.”
Claro que nem todos se lembrarão da ausência de Deus, é uma espécie de sacramento da ignorância, mas há também aqueles que mesmo tendo “praticado” uma religião terão dificuldades de perceber suas faltas e assim terão dificuldades de prestar contas delas.
Mesmo as alegrias da vida parecem distantes num momento e que todos estaremos muitos frágeis, descreve Tolstoi no seu conto: “Quanto mais se afastava da infância e se aproximava do presente, mais insignificantes, mais duvidosas eram as alegrias.”
Seria bom que por um evento sobrenatural pudéssemos ter clareza de nossas fraquezas e tempo para redimi-las, mas nem todos terão, talvez algo possa acontecer.
Seria uma grande prova da existência e Deus e a ideia que é possível a humanidade ter salvação, a crise pandêmica é maior porque existe uma crise civilizatória.
A felicidade a partir da beatitutde, da pureza e do amor
Toda a argumentação contemporânea sobre a felicidade quando não desce ao fundo do poço da barbárie, é ligá-la ao consumo, aos bens materiais e ao prazer.
Por isso beatitude se distanciou da felicidade, embora na raiz ocidental da antiguidade clássica (Eudaimonia) seja comum, na “Etica a Nicomaco” Aristóteles estabelece: “Quanto ao seu nome, a maioria está praticamente de acordo: felicidade o chamam, tanto o vulgo como as pessoas cultas, supondo que ser feliz consiste em viver bem e ter sucesso”, mas esclarece em outro ponto que não é a riqueza: “A vida (…) dedicada ao comércio é contra a natureza, e é evidente que a riqueza não é o bem que buscamos; com efeito, ela só existe em vista do lucro e é um meio para outra coisa”, mas neste ponto dirá que é o prazer.
Põe-se a questão do que é o fim desta busca, se é sucesso, honra, reconhecimento, no final o que percebemos é que “Se, de fato, o bem fosse uno e predicável em geral, e subsistisse separado, é evidente que não seria realizável nem adquirível pelo homem; mas é justamente isso que nós buscamos”, qual é este fim.
Em qualquer escatologia perecemos e se a morte é apenas um fim trágico e final, seria bom tirar o máximo desta vida e nem mesmo valores como honra e sucesso não valeriam de nada, apenas se estes resultassem tendo como fim o “prazer”, e não é então humildade, compaixão e participar da felicidade alheia são beatitudes que resultam também em nossa própria felicidade.
Assim aqueles que buscam apenas a própria felicidade em nada favorecem a própria uma vez que não tem ocasião de compartilhar e o prazer egoísta é uma felicidade apenas parcial, as bem-aventuranças no clássico Sermão da Montanha apontam para outra felicidade, aquela que os idílicos e hedonistas procuram negar, mas que aqueles que realmente a experimentam garantem que há uma felicidade equilibrada e sempre presente, um gáudio e uma paz para os que a praticam.
O Sermão da Montanha é um clássico aos que acreditam e podem muito bem servir de meditação para os que buscam uma felicidade efetiva e plena:
os pobres em espírito
os que choram
os humildes
os que têm fome e sede de justiça
os misericordiosos
os puros de coração
os pacificadores
os perseguidos por causa da justiça
Pois estes serão consolados, receberão a terra por herança, serão fartos pela justiça que finalmente será alcançada, terão misericórdia e serão chamados “filhos de Deus”, para os que creem a maior bem-aventurança, foi a verdade central e escatológica anunciada para toda a humanidade.
A história ou caminha para lá ou teremos um processo de crise muito maior que a atual pandemia, que os ciclos horrorosos de guerra, e não serem felizes.
Aflição e angústia
Os que leram atentos O Ser e o tempo, sabem que uma das respostas importantes de Heidegger é o aquilo que deve ser lido em Kierkgaard e que está ligado a raiz filosófica de seu pensamento, e isto está ligado a angústia e discorremos aqui o que a diferencia da aflição que é a angústia pessoal e ligada ao problema do mal.
É, pois, o próprio Heidegger quem Kierkegaard separando-o em ensinamentos ditos “edificantes” que seriam mais importantes do que os “teóricos”, exceto em um caso que é o da angústia, em seu tratado O conceito de angústia, e que o filósofo da floresta faz questão de dizer que “do ponto de vista ontológico” permanece ainda “inteiramente tributário de Hegel e da filosofia antiga vista através deste”. (HEIDEGGER, 2012, p. 651, n. 6).
O que Heidegger viu neste livro de 1844, cuja autoria é atribuída a Vigilius Haufniensis, pseudônimo kierkegaardiano que se traduz como “Vigia de Copenhague”, já que Kierkegaard era dinamarquês e sua primeira intenção é retornar a sabedoria socrática, que para ele se conjugava entre o saber contemplativo (theoría) com o saber prático (phrónesis), a maneira da antiguidade grega.
Apesar dele ter chamado Sócrates de “filósofo prático, justamente queria centrar o penso da “angústia” na vivência do que era refletido pela alma e isto significou uma aproximação da psicologia, era “a doutrina do espírito subjetivo” (Kierkegaard, 2010, p. 25), era um dos ramos da Filosofia, e de uma filosofia realmente dialética no sentido grego-socrático já que a filosofia moderna se fixou no dualismo kantiano tese x antítese com uma improvável síntese
O filósofo usa a expressão “pecado hereditário”, usada pelo autor ao longo da obra, mas como aquela que correspondo o que os teólogos, por ele chamados de “dogmáticos”, denominam como de pecado original, nomenclatura a parte, é o aspecto que aproxima o seu tema da angústia daquela aflição “de alma”, que pode ter o contorno filosófico e psicológico, mas que é no fundo aquela aflição de quem se sente fora de um centro, de uma perspectiva clara de superação da angústia.
Nela não há o sentido portanto de pecado original, nem da noção de pecado, mas se confunde como tal como a sua possibilidade enquanto ideia, ou seja, uma categoria conceitual capaz de nos ajudar a pensar sobre algum mal praticado, e o que levaria a este “mal” é o conceito de liberdade para muitos pensadores.
O que conduz o existir a um modo singular, a um modo de agir de tal forma ? É aí que as noções de liberdade e de angústia emergem enquanto “conceitos” convergem para esta “angústia”, mas sem ter um locus, nem na Estética, nem na Metafísica e sequer na Psicologia, assim o autor não o diz, mas há algo de aflito e de trágico neste caminhar nesta “angústia”.
Paul Ricoeur refletindo sobre estas expressões de Kierkegaard, estabelece que o mal é “o que há de mais oposto ao sistema”, justamente porque é absurdo e escandaloso, irracional e incompreensível, situado à margem da moral e da razão, lembra Ricoeur (1996, p. 16), referindo-se às reflexões kierkegaardianas, o mal é “o que há de mais oposto ao sistema”, justamente porque é absurdo e escandaloso, irracional e incompreensível, situado à margem da moral e da razão.
Ricoeur diferencia assim o mal estrutural (já fizemos um post), ligado a angústia e o pecado e o livre-arbítrio ligado a decisões pessoais perante a angústia.
O ponto que considero essencial no pensamento de Kierkegaard sobre este aspecto existencial é que “só o que atravessou a angústia da possibilidade, só este está plenamente formado para não se angustiar, não porque se esquive dos horrores da vida, mas porque esses sempre ficam fracos em comparação com os da possibilidade” (Kierkegaard, 2010, p. 165-166), é aqui que a aflição pode encontrar o seu oposto e podemos entender que há uma fonte de consolo nela.
Assim angústia e aflição não são propriamente maldições ou estados pecaminosos ou doenças da “alma” ou dos pensamentos, são fases de ruptura ou transição para outras fases mais maduras quanto esta etapa envolve reflexão e superação.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. (Multilíngues de Filosofia Unicamp). JOLIVET, Régis. As doutrinas existencialistas: de Kierkegaard a Sartre. Porto: Tavares Martins, 1957.
KIERKEGAARD, Sören. O conceito de angústia: uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário de Vigilius Haufniensis. Tradução e notas Álvaro Luiz Montenegro Valls. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
Bem aventurança e beatitude
Embora o termo esteja associado a santidade cristã, e é também um dos seus aspectos, o termo na antiguidade clássica tinha um significado mais genérico, um estado permanente de perfeita satisfação e plenitude que somente um sábio podia alcançar, assim pensava Aristóteles, mas hoje está condicionado somente ao sentido religioso, pretende-se aqui mostrar que podem estar mais próximos do que se pensa.
O significado religioso é também o da felicidade, mas no sentido de gáudio de prazer equilibrado da alma, que só pode alcançar quem desfruta da presença de Deus, que sua plenitude poderá ser atingida somente na vida eterna, mas não significa descartar a vida terrena, “eu vim para que todos tenham vida, e vida em abundância” (Jo 10:10), assim proclama o evangelista, mas o que há de diferentes entre as duas propostas de felicidade.
Aristóteles no livro Das Causas vai dizer que o fim da beatitude é relativo ao desejo da mesma, assim a natureza última deste fim move-se principalmente pelo desejo e este é o prazer, tanto que absorve a vontade e a razão do homem a ponto de fazer desprezar outros bens.
Tanto Boécio, que a igreja também o beatificou (isto é o proclamou feliz, beato e santo), e Aristóteles trataram do tema, e a pergunta deles é o que se o prazer é mesmo o fim último da felicidade, da beatitude e que também Tomás de Aquino vai argumentar ao contrário.
O que diz Boécio é que são tristes as consequências dos prazeres, sabem-no todos os que querem lembrar-se das suas sensualidades, pois, se estas pudesse os fazer felizes, nenhuma razão haveria para que também os brutos não fossem considerados tais, e isto lembra muito os casos atuais de abusos e violências reprováveis.
Para Boécio: “A bem-aventurança é o estado perfeito da junção de todos os bens”, e assim parece que pelo dinheiro poderão se adquirir todas as coisas, porque o Filósofo, no livro V da Ética, afirma que o dinheiro se inventou para ser a fiança de tudo aquilo que o homem quisesse possuir, o que hoje pode ser traduzido como o dinheiro compra tudo.
Além disto diz também Boécio: “Mais brilham as riquezas quando são distribuídas do que quando conservadas. Por isso, a avareza torna os homens odiosos, a generosidade os torna ilustres”, e assim não se condena a riqueza, mas a sua má distribuição.
Na representação acima o quadro “O violinista alegre com um copo de vinho” (1624) de Gerard van Honthorst (1590-1656).
O que faz o Amor ser amado
Hannah Arendt procurou em Agostinho de Hipona suas respostas para o Amor, trouxe grandes contribuições no campo filosófico para o tema, muito além da clássica divisão dos gregos: ágape, eros e filia; mas como observou a filosofa contemporânea Julia Kristeva não foi além do Agostinho filósofo, abordando também o teólogo.
Além da divisão inteligente da sua tese de doutorado: “O amor em Santo Agostinho”, a própria Arendt acentuou o caráter filosófico da obra do bispo de Hipona, ao ressaltar: “ele nunca perdeu completamente o impulso de questionamento filosófico” (Arendt, 1996), suas bases de Cícero, Platão e Plotino são perceptíveis em sua obra.
A escolha de Arendt por dividir sua dissertação em três partes se deve a uma vontade de fazer justiça a pensamentos e teorias agostinianas que correm em paralelo. Assim cada parte “servirá para mostrar três contextos conceituais nos quais o problema do amor tem papel decisivo.”
Também ela percebe a importância do Amor Caritas, mas como o vê não é teológico, mas apenas dentro das possibilidades humanas, Julia Kristeva ao falar do Amor vai além ao afirmar: “O amor é o tempo e o espaço em que ‘eu’ me dou o direito de ser extraordinário“, enquanto Arendt tem clareza que há diferença entre o Caritas e a Cupiditas, que ama o mundo, as coisas do mundo.
Mas a questão de Agostinho que deve ser respondida também pelos cristãos sé o que “amo quando amo o meu Deus?” (Confissões X, 7, 11 apud Arendt p. 25), a quinta essência do meu interior, é verdade como pensava Agostinho que encontro em mim o que me liga a eternidade, porém há além da quinta essência ou Outro fora, não apenas Deus, mas aquele Outro que passa ao meu lado, aquele cuja identidade está escondida no invólucro humano do Outro que tem Deus em si também.
O que amo quando amo a Deus, é assim extensível ao Amor a humanidade, concreto em cada Outro que me relaciono, e está além da quinta essência do meu “Eu”.
Caritas é assim o extraordinário em mim, tanto Arendt, Kristeva e o próprio Agostinho estão certos em parte, porém o Deus que amo está agora presente também no Outro, que é além do meu espelho e além da minha quinta-essência interior.
Talvez a maior cilada feita para Jesus pelos fariseus esteja na pergunta, depois que Jesus havia calado os saduceus, estava na pergunta (Mt 22,36) “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?”, e Jesus responderá (Mt 22,37-39): “Jesus respondeu: “‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento!’ Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’”, e conclui que esta é a síntese de toda Lei e dos profetas.
Hannah Arendt cita esta passagem, mas a sequência é clara amarás com todo coragem e toda alma, aspectos teológicos e depois com o entendimento, o filosófico.
Porém a pergunta atualizada é esta de Agostinho: “O que amo quando digo que amo a Deus?” e se na resposta é também “O próximo como a ti mesmo”, ou seja, com a sua quinta-essência interior dirigida ao Outro, significa que não posso dizer que amo de fato o Amor, que vem de Deus, se não é o Amor caritas.
ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Chicago: University of Chicago Press, 1996.
Figura: Texturas e acrílico sobre tela 100×120 cm | Janeiro, 2018. Galeria Eva-sas.
Ainda o amor em Santo Agostinho
O que fez Hannah Arendt chegar a conclusão que uma civilização do Amor não era possível, além de sua experiência pessoal como judia que não voltaria a sua “casa” em Israel, ainda tem que tivesse feito planos para isto, é a incompreensão do Caritas Agápico, o verdadeiro amor.
A filósofa Julia Kristeva divulgou um relatório reservado do orientador Karl Jaspers sobre sua orientanda Hannah Arendt, parecia-lhe que sua aluna que sua aluna na época “[…] estava apta a sublinhar o essencial, mas que ela, simplesmente, não reuniu tudo o que Agostinho disse sobre o amor. […] Alguns erros surgem nas citações. […] O método exerce alguma violência sobre o texto. […] A autora quer, através de um trabalho filosófico de ideias, justificar sua liberdade com relação às possibilidades cristãs, que, no entanto, a atraem. […] Não merece, infelizmente, a mais alta menção [cum laude]. Efetivamente, Arendt parece privilegiar, em Agostinho, o filósofo, em detrimento do teólogo.” (KRISTEVA, 2002, p. 41).
A filósofa Kristeva assinala o ponto essencial indo mais a fundo no pensamento de Agostinho, e questiona que tipo de amor o filósofo se referia e se existiria mais de um tipo de amor, além dos já conhecidos filia, ágape e Eros: “Numerosos termos declinam o conceito de amor em Agostinho: amor, desejo (com suas duas variantes, appetitus e libido), caridade, concupiscência, formando uma verdadeira ‘constelação do amor’ (…)”. (KRISTEVA, 2002, p. 42).
O que havia de revolucionário na forte mensagem cristã de Agostinho, além de sua capacidade intelectual e teológica, era a noção de libertação das leis antigas, o que alguns chamam incorretamente de legalismo (não se trata de leis “humanas”), centrando no amor a base da religião era possível superar a filiação anterior de Agostinho do dualismo maniqueísta, ao qual ainda boa parte da teologia e da filosofia estão presos, esta última porém mais ligada ao racional-idealismo atual.
Será impossível pensar em uma civilização que supere o ódio, a violência e a divisão dualista da sociedade sem haver caridade verdadeira, aquela que se estende a todos, aquela que admite a diversidade, e aquela que almeja a justiça, conforme pensava Agostinho: “onde não há caridade não pode haver justiça”, e assim o desejo maior de justiça deve ter como pressuposto a caridade, ainda que ela pareça altruísta demais, ou piegas, basta ver o que o ódio construiu senão guerras e violência.
O conjunto de volumes do “Gênio Feminino” de Julia Kristeva (1941- ) é analisar e prestar uma homenagem a três pensadoras do século XX, talvez a mais conhecida Hannah Arendt (1906-1975), Melanie Klein (1882-1960) e Colette (1873-1954).
Julia Kristeva é considerada uma estruturalista (ou pós), junto a Gérard Genette, Lévi Strauss, Jacques:Marie Lacan, Michel Foucault e Althusser, tem ainda um importante trabalho sobre semiótica Introdução à semanálise (2005), onde diz frases contundentes como: “todo texto se constrói como um mosaico de citações” (Kristeva, 2005, p. 68) e ainda: “O texto não denomina nem determina um exterior” (KRISTEVA, 2005, p. 12), afirmando assim que a literatura não dá conta do real.
KRISTEVA, Julia. O gênio feminino: a vida, a loucura e as palavras. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
O amor em Santo Agostinho
Esta foi a tese de doutorado de Hannah Arendt com influências diretas de Edmund Husserl, Martin Heidegger, inicialmente seu orientador, que depois passou a orientação a Karl Jaspers devido seu envolvimento pessoal com Arendt, assim é necessária alguma compreensão da fenomenologia e da ontologia existencial.
Terminamos a semana passada fazendo uma reflexão sobre a política e religião justamente a partir da compilação das Obras Póstumas da própria Arendt, e o que desejamos apontar é a possibilidade de uma civilização fundada nos princípios do Amor, no sentido da caridade (virtude teologal) e como Agostinho a via.
Longe de ser uma apologia dessa forma elevada de Amor, ela vê contradições e vai desenvolver a questão do amor a Deus, amor ao próximo e a si mesmo, e usa a fenomenologia para aprofundar este tema, mas é uma conclusão apressada dizer que a fenomenologia se opõe ou mesmo favorece estes sentimentos, que em si, são sim contraditórios, por exemplo, o amor ao próximo e a si mesmo tem nuances diferentes para a grande maioria das pessoas.
Sua conclusão é que não é possível forma uma sociedade humana fundamentada apenas no amor caritas (lembrando sempre que trata-se de uma virtude teológica e não de simples generosidade) e o ponto central é analisar Agostinho apenas do ponto de vista filosófico, já que Arendt não tinha interesse nos aspectos teológicos.
Arendt por dividir sua dissertação em três partes se deve a uma vontade de fazer justiça a pensamentos e teorias agostinianas que correm em paralelo. Assim cada parte “servirá para mostrar três contextos conceituais nos quais o problema do amor tem papel decisivo” (esta citação é tirada de uma tradução para o inglês que a própria Hannah Arendt trabalho e tem diferenças com a portuguesa).
A primeira parte Arendt vai analisar “O que eu amo, quando amo o meu Deus?” (Confissões X, 7, 11 apud Arendt p. 25), na segunda parte discute a relação entre a criatura e o criador, ela intitula o capítulo “Criatura e Criador: o passado rememorado”, e na terceira parte discute
Na primeira parte a autora descobre que Deus é a quintessência de seu eu interior, Deus é a essência de sua existência, e ao encontrar Deus em si o homem acha aquilo que lhe faltava: sua essência eterna. Aqui, o amor por Deus pode se relacionar com o amor próprio, pois o homem pode amar a si mesmo da maneira correta amando sua própria essência.
No final segunda parte vai discutir a relação com o próximo, como deve amá-lo como criação de Deus: “ […] o homem ama o mundo como criação de Deus; no mundo a criatura ama o mundo tal como Deus ama. Esta é a realização de uma autonegação em que todo mundo, incluindo você mesmo, simultaneamente recupera sua importância dada por Deus. Esta realização é o amor ao próximo.”
Na terceira parte da dissertação, intitulada “Vida Social”, que Arendt dedica ao que ela chama de “caritas social”13, a relevância do vizinho, e o amor ao próximo ganham nova justificativa, vai discutir o princípio adâmico do pecado e vai dizer que este é o princípio que nos ligará a Cristo, que vem para nos redimir deste pecado.
Aqui aparece a contradição com Agostinho: “É porque todos os homens compartilham este passado que eles devem se amar: “a razão pela qual se deve amar ao seu próximo é porque seu próximo é fundamentalmente seu igual e ambos compartilham o mesmo passado pecador”, assim não é o fundamento do Amor, mas do pecado que nos torna iguais aos outros próximos.”
Por escolha o homem deve renegar o mundo e fundar uma nova sociedade em Cristo. “Essa defesa é a fundação da nova cidade, a cidade de Deus. […] Essa nova vida social, que é baseada em Cristo, é definida pelo amor mútuo (diligire invicem)”, há uma obra de Agostinho dedicada a isto: “cidade de Deus”, e a tese que é somente filosófica assim concentra-se apenas na relação mundana (ou humana, como queiram), não vê o homem como tendo uma origem divina e feito para o Amor.
Para Arent o que nos torna irmãos e eu posso amá-los em caritas, no amor verdadeiro, e isto é expresso em Agostinho, segundo Arendt, concilia o isolamento gerado pelo mandamento de amar a Deus com o mandamento que diz para amar ao próximo, encerrando a dissertação.
Segundo Kurt Blumenfeld, amigo de Arendt que teve grande importância em seu envolvimento com o judaísmo e a política, a resposta para a questão era o sionismo e um retorno à Palestina, mas a emigração para lá nunca foi parte dos planos de Arendt, buscava na vita socialis sua resposta sobre o Amor, não entendeu totalmente o caritas.
ARENDT, Hannah. O conceito de Amor em Santo Agostinho. Tese de doutorado 1929. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
Política e religião
Hannah Arendt vai argumentar contra a confusão entre política e religião, e esclarece a diferença entre um local de reunião (sendo pública) com diferenças do que chama de aparência e manifestação. Diz a autora:
“A política cristã sempre esteve diante da dupla tarefa de, por um lado, assegurar-se através da influência sobre a política secular, de que o local de reunião não político dos fiéis esteja protegido de fora, e, por outro lado, impedir que um local de reunião se torne um espaço de aparição, e com isso que a Igreja se torne um poder secular-mundano, entre outros. Daí, verificou-se que a vinculação com o mundo correspondente a tudo espacial e o faz aparecer e parecer, é muito mais difícil de se combater do que a reivindicação de poder do secular, que se apresenta de fora para dentro. Quando a Reforma conseguiu afastar da Igreja tudo aquilo que tem a ver com aparência e manifestação, transformando-a de novo em local de reunião para aqueles que, no sentido dos Evangelhos, viviam no recolhimento, desapareceu também o caráter público desses espaços da Igreja. “
A autora não viveu até nossos dias para ver as consequências disto, ou seja, que a negação do caráter público desses espaços da igreja, transformou-a no oposto, isto é, num oportunismo político para ganhar os fiéis que vão ali buscar uma mensagem divina, um conforto para a alma, e muitas vezes a mudança de vida (conversão).
O que aconteceu foram duas apostasias, a religiosa que é negar o poder divino de Deus, “meu reino não é deste mundo” e a segunda muito pior, que é afirmá-la como poder humano ao qual a política pública deve se submeter e assim tornar os fiéis religiosos vinculados a alguma corrente política, ideológica ou cultural.
Mesmo Jesus sabendo que os judeus viviam sobre um império romano opressor e injusto, isto pode ser observado quando diz, entre muitas passagens: “os publicanos e as prostitutas vos precederão no reino dos céus” (Mt 21,31), que os aproxima como pecadores, e os publicanos eram os responsáveis pela província perante o Império Romano, inclusive a renda e os impostos.
Isto é necessário para compreender o sentido da política e da religião no trecho em que Jesus é questionado sobre a justiça de pagar o tributo ao imperador, ao que ele responde: «Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.» (Mt 22,21) portanto logo após o trecho anterior, onde é questionado o direito (e o poder) de perdoar os pecados, qual era de fato sua autoridade e depois irá compará-la ao poder temporal (e espacial conforme Arendt) do que é “fora” da reunião.
Em termos específicos do religioso a apostasia de apostar em partidos e ideologias, quase sempre com duplicidade de propósitos e fundamentos, ora favorecem a vida, ora a desfavorecem (o aborto e a eutanásia, por exemplo), ora defendem os pobres, ora justificam a corrupção, e assim por diante, não deve ser comparado ao infinito poder divino, claro para aqueles que acreditam, e para os que não creem a busca de uma diretriz para a sociedade e para o mundo implicam em valores.
Assim os últimos serão os primeiros
Não importa que você demonstre que faz bem as coisas, que mantenha as aparências, que esteja sempre num lugar de destaque, mesmo na política e nos cultos e festas religiosas, a verdadeira consciência é que liga-se a intenção, e a intencionalidade é a consciência dirigida a “algo”, diz a fenomenologia.
Assim é que a nova normalidade, não a da pós-pandemia, mas a da pós crise civilizatória e tudo indica que ela está a caminho, poderá inverter a lógica da perversidade dos poderosos, dos opressores e dos fariseus, somente a verdadeira solidariedade contará, somente ela poderá dar sustento ao novo rumo, que poderá advir não de uma nova normalidade, porque ela já era distante antes da pandemia, basta ler a literatura séria, que não é a dos midiáticos.
Os frágeis e os indefesos ficaram ainda mais frágeis na pandemia, mas a lógica do poder se inverterá por uma fenomenologia aórgica, aquela que vem do inorgânico sobre o orgânico, vem da natureza para o humano, e do cosmos para o planeta, assim como afirma Morin em sua “introdução a complexidade” o todo está na parte, o cosmos e a natureza em cada indivíduo, como a parte está no todo, somos responsáveis por tudo que acontece na Natureza.
Está na cosmologia e não na visão sistêmica, está no holismo aórgico e não no holismo cartesiano, está na mística e não no farisaísmo ou na ideologia atrelada a religião, que é outro tipo de religião sem ascese, a mudança vem de uma longa noite da humanidade, mas poderá concentrar numa noite visível.
O poeta Hörderling afirmava “onde há medo há salvação”, e o momento de apreensão da humanidade a espera de uma vacina deve pensar numa vacina que tire a venda dos olhos da cegueira do pensamento, Edgar Morin preconizou esta noite, e Peter Sloterdijk afirmou que não é um tempo propício ao exercício do pensamento, estamos petrificados em lógica sistêmica e doutrinais que não nos permite perceber um novo ao largo do horizonte.
É por isto que os últimos serão os primeiros, as pessoas simples tem a intuição desta possível mudança, os verdadeiros sábios a desejam, não como o querem os poderosos, mas como sonham os flagelados da pandemia social, do doutrinismo irracional e fechado em suas bolhas.
Os que blasfemam contra as religiões afirmam como dizia o profeta Ezequiel no antigo testamento (Ez. 18,25): “Vós andais dizendo: a conduta do Senhor não é correta. Ouvi, vós da casa de Israel. É a minha conduta que não é correta, ou antes é a vossa conduta que não é correta?“, os humildes entendem.
É assim que os últimos serão os primeiros, e que serão os operários da última hora, como diz a parábola bíblica aqueles que chamados ao fim do dia foram ao trabalho e receberam o mesmo pagamento dos que chegaram no início do dia, e não haviam ido apenas porque não haviam sido chamados (Mt 21,28-32).