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O bem e a ontologia política
Embora o discurso filosófico sobre o bem seja amplo e variado, a modernidade perdeu parte deste fundamento quando vinculado a questão do Ser, no diálogo político não aparecem, por exemplo, o desenvolvimento de Hannah Arendt e suas obras: “A banalidade do mal” e “A condição humana”, ou o “O mal estar da civilização” de Freud ou ainda: “A simbólica do mal” de Paul Ricoeur.
Estes três últimos podem reelaborar, em dimensões trágicas, aquilo que reivindicamos como a ausência de uma ontológica política, aquilo que Hannah Arendt busca em seus textos.
Paul Ricoeur, explicando a simbólica do mal escreveu, a partir de atitudes individuais, que buscam “consolar” as vítimas do mal como um motivo causal:
“Às pessoas que sofrem e que são tão prontas a acusar-se de qualquer falta desconhecida, o verdadeiro pastor das almas dirá: Deus, certamente, não quis isto; eu não sei porquê; eu não sei porquê…” (Paul RICOEUR, “Le scandale du mal“, op. cit., p. 60), olhando a origem de um mal, que a maioria não consegue explicar, embora sinta.
O discurso filosófico tradicional sobre o bem gira em torno ou do utilitarismo (o bem é o que maximiza a felicidade, em Stuart Mill), o deontologismo (o bem é agir de acordo com o dever moral) e eudaimonismo (o bem supremo é a felicidade, alcançada através da virtude).
Kant elabora que o bem supremo é a vontade boa, ou seja, agir por dever e não por inclinação, e assim na filosofia contemporânea (de fundamento idealista) o bem vai desde a ética da virtude até a do cuidado, mas a ausência de valores fundacionais sobre o mal, acabam por incorporar o relativismo e cai no discurso política do populismo e do sofismo moderno.
Embora os gregos tenham tocado a questão ontológica, a ideia do platonismo que o bem é a forma mais elevada de realidade, a causa do que existe e objetivo final do conhecimento, a modernidade está paralisada sobre a égide de um mal, que não é só estrutural, mas que atinge o ser: a banalidade do mal de Arendt e o mal estar civilizatório de Freud.
Arendt mostra que há uma lacuna fundamentalmente política no pensamento atual que se insere na categoria da pluralidade do pensamento filosófico, antes da ascensão de Hitler, a busca de Arendt seguia para outras questões filosóficas que iam também em direção ao bem, em sua tese de doutorado, orientada por Karl Jaspers, discorria sobre “O conceito de amor em Santo Agostinho”, mas depois revê a questão ontológica e vai analisar a questão do totalitarismo.
Sobre a questão do Amor (o ágape) feito em seu doutorado, fica inconcluso, segundo seu próprio orientador, porém ainda que o mal pareça prevalecer, é o bem que devemos perseguir e só ele nos livra da condição histórica onde parece o mal triunfar.
Verdade, linguagem e método
A compreensão de qualquer fenômeno passa necessariamente por uma linguagem e um método, a linguagem como meio de comunicação do fenômeno e o método como um caminho estratégico que a verdade pode ser alcançada sobre alguma questão.
Verdade dogmáticas e ideológicas conduziram a narrativas e distorções da realidade, mesmo aquelas que passam pelo imaginário, que não é necessariamente uma inverdade, mas muitas vezes uma analógica ou metáfora para dizer a verdade.
A linguagem como “morada do ser” é para a interpretação fenomenológica e ontológica da verdade, isto é, aquela que passa pela questão do “ser” do “ente” é a base para comunicar a verdade entre fonte e destino, porém não se pode confundi-la com emissor e receptor.
Quando temos um “ente” como meio de comunicação, seja ele analógico ou digital (outra confusão é dar categoria ontológica ao analógico) significa que ele está restrito a ser apenas “um meio” de comunicação, assim ele torna a mensagem codificada em um sinal, por exemplo uma onda acústica analógica (radio fm por exemplo) ou um sinal codificado em zeros e uns, neste caso digital, ambos não podem ser interpretados como “morada do ser”, mas apenas código, isto é, algo mais propício ao ente do que ao ser.
O sinal com vista a diminuição do ruído e autenticidade da mensagem que foi codificada não deve ser confundido com a própria mensagem já que ela provém do Ser e carrega em si não uma lógica, mas uma onto-lógica, ou seja, algo originariamente do Ser.
É nesta ontologia que podemos entender o significado de diálogo, mesmo entre mensagens opostas logicamente, já que ontologicamente elas podem compartilhar uma fusão de horizontes e podem a partir daí criar um método, desenvolvido por Heidegger e formalizado por Hans-Georg Gadamer.
A explicação do círculo hermenêutico em Gadamer é expressa como:
“O círculo não deve ser degradado a círculo vicioso, mesmo que este seja tolerado. Nele vela uma possibilidade positiva do conhecimento mais originário, que, evidentemente, só será compreendido de modo adequado quando a interpretação compreender que sua tarefa primeira, constante e última permanece sendo a de não receber de antemão, por meio de uma ‘feliz ideia’ ou por meio de conceitos populares, nem a posição prévia, nem a visão prévia, mas em assegurar o tema científico na elaboração desses conceitos a partir da coisa mesma”. (GADAMER, 1998, p. 401).
Por isto os estudos de Gadamer, intitulado de Hermenêutica Filosófica, perpassam muitos aspectos peculiares de estudos e escritos, com uma contribuição além da própria Filosofia, da Linguística e, de certo modo, da hermenêutica teológica, de onde partiu os trabalhos e estudos de Schleiermacher que falava de “esferas” e “círculos” em seus estudos sobre hermenêutica.
Somente nesta ideia da fusão de horizontes, de ir além do círculo vicioso é que podemos entender um raciocínio inverso ao de um contra todos, e entender a dialogia entre opostos, “quem não está contra nós, é a nosso favor” (Mc 9,40), diz o evangelista ao explicar o mal menor, é melhor cortar a mão ou o pé que o leva a pecar, do que ser condenado com ele.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
Sofistas e o relativismo
A questão política e a polarização atual envolvem um problema milenar: o sofisma, sua origem na Grécia antiga é o que Platão iniciar uma escola de formação de filósofos para criar homens da “polis” que servissem não apenas a governo autoritários, mas as cidades-estados Gregas.
O discurso feito em Teeteto sobre a natureza do conhecimento, escrito em 369 a.C., é onde aparece, ao menos claramente pela primeira vez, explicitamente na Filosofia, o confronto entre verdade e relativismo.
Nele um personagem chamado de “o Estrangeiro de Eléa”, que seria tanto um companheiro de Parmênides quanto de Zenão”, elabora um tema acerca de três figuras importantes na escola platônica: o sofista, o político e o filósofo, porém nele somente não escreveu acerca da definição do filósofo que seria investigada em outros textos, porém o político para ele, por excelência, seria o filósofo, que entre outras coisas deveria ter “Aretê”, ou seja, virtudes.
A razão que há coincidência com o discurso político atual, e esta origem do relativismo, pode ser vista na explicação que ele dá sobre a realidade e a imagem que procuram representar, ambas não são aquilo que representam, no então, claramente, são alguma coisa, por exemplo a imagem de uma casa pode parecer e mostrar muito bem o que é uma casa, sem sê-la.
Assim como as imagens de um cão, se caracteriza por não ser realmente um cão, o conteúdo de um discurso falso caracteriza-se por não ser o que realmente de fato é, ambos dizem algo sobre a verdade, mas são em essência coisas diferentes.
Apesar disto no discurso permanece uma contradição ontológica, como anuncia emblematicamente o Estrangeiro: “tal afirmação supõe ser e não ser”, tese clássica de Parmênides, embora a raiz de seu pensamento seja lógica e não ontológica.
Assim a aparência e a imagem não coincidem com a verdade real, embora possa confundir um espectador pouco atento elas não são a mesma coisa, discerni-las é condição essencial para exercer a verdade, assim podemos não permanecer na verdade ao embarcar em “imagens”.
Há um dito popular, não se sabe quem falou isto pela primeira vez, mas na guerra a primeira coisa que morre é a verdade, e suas consequências mais que trágicas, levam a uma crise do que realmente somos como humanidade e com nossos direitos inalienáveis que são roubados.
Por uma ontologia política
Diversos autores falam do que é poder, desde os clássicos contratualistas (Hobbes, Locke e Rousseau), passando pelas leituras modernas de Marx, Weber, Tocqueville, Bobbio e Norbert Elias, até Byung-Chul Han (psicopolítica) e Foucault (biopolítica), mas Hannah Arendt foi além ao vislumbrar uma ontologia política e escapa completamente do pensamento hegeliano.
Em seu livro do final dos anos 1960 (e portanto, a maturidade de Arendt), ela critica a “nova esquerda” que pensava em lutar contra um mundo ameaçado pela destruição nuclear e dominado pelas grandes administrações estatais e elas seriam responsáveis pela violência e em última análise a essência de todo poder, escreve sobre as origens deste equívoco:
“Se nos voltarmos para as discussões do fenômeno do poder, rapidamente percebemos existir um consenso entre os teóricos da política, da esquerda à direita, no sentido de que a violência é tão-somente a mais flagrante manifestação do poder. ‘Toda política é uma luta pelo poder; a forma básica do poder é a violência’, disse C. Wright Mills, fazendo eco, por assim dizer, à definição de Max Weber, do Estado como o ‘domínio do homem pelo homem baseado nos meios da violência legítima, quer dizer, supostamente legítima’ “. (Arendt, 2001, p. 31)
Para a autora, seguindo a tradição greco-romana, este conceito fundamenta o poder no consentimento e não na violência, assim numa relação de mando e obediência.
A autora constata que este conceito é “um triste reflexo do atual estado da ciência política” (p. 36) e uma identificação natural da tradicional entre visão de poder e violência, já que “poder, vigor, força, autoridade e violência seriam simples palavras para indicar os meios em função dos quais o homem domina o homem; são tomados por sinônimo porque têm a mesma função” (idem) e não raro se observa esta “virilidade” desde a Grécia até hoje.
Para a autora “o poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. Quando dizemos que alguém está ‘no poder’, na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo número de pessoas para agir em seu nome” (p.36).
Para a autora é preciso rever estes conceitos: poder, vigor, força, autoridade e violência, uma vez que “violência não identificaria qualquer ato coativo, mas apenas aquele que opera, no caso das relações sociais, sobre o corpo físico do oponente, matando-o, violando-o, enfim, parece descrever apenas o uso efetivo dos implementos” (pg. 37) e assim a guerra.
Arendt fala de “isonomia” onde Chul Han fala de “simetria”, conceitos parecidos, e assim o poder é de fato aquele que “emerge onde quer que as pessoas se unam e ajam em concerto, mas sua legitimidade deriva mais do estar junto inicial do que de qualquer ação que então possa seguir-se” (p. 41, com destaque feito no meu texto).
Assim é preciso uma ação de “unidade”, de “serviço” e na melhor das hipóteses como aquele que serve à comunidade e não o que e serve dela, e para isto precisará sempre da violência.
ARENDT, H. Poder e violência Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001.
A diferença do Amor divino
É como no dia-a-dia pela secularização ou por descrença colocar o Amor em um patamar meramente humano, a leitura que Hannah Arendt faz de Santo Agostinho em sua tese de doutorado, permanece entre estas duas interpretações o Amor humano e o Divino.
Para analisar isto, Arendt qualquer interpreta a obra de Agostinho governada por três princípios que aparecem sem aparente contradição, ele aumentou sua rigidez dogmática de Agostinho na medida em que o cristianismo se insere em seu pensamento, esta consiste de sua da passagem do pensamento pré-teológico, filosófico, para o pensamento teológico, conforme a autora.
Assim a primeira parte da tese da autora, intitulada o “Amor como desejo: o futuro antecipado”, ela aborda o amor dentro de uma perspectiva filosófica de continuidade do pensamento helênico, em que o amor é visto como uma disposição sempre movida pela falta, por algo que não se possui, mas que se espera ter, como meio de alcançar a felicidade, assim o desejo é algo ainda não alcançado enquanto o Amor é o desejo obtido, e isto é filosófico.
Estes dois tipos de Amor recebem em Agostinho dois nomes: a caritas e a cupiditas, diferem no amor pelo objeto que amam, “porém, tanto o amor certo quanto o errado (caritas e cupiditas) possuem isto em comum – ânsia desejosa, quer dizer, appetitus”, escreveu a autora.
Caritas é o amor puro, verdadeiro, porque deseja a Deus, a eternidade e o futuro absoluto, enquanto a cupiditas ama o mundo, as coisas do mundo, aqui é pré-teológico, porque a caridade não é apenas um amor passageiro, ou desejo de um bem passageiro, mas do eterno.
Seja religioso ou não, estamos entre o desejo e a posse, depois que obtemos o objeto desejado em geral, e usufruindo do prazer desta posso a cupiditas passa e ficará algo eterno se nela houver a caritas, isto é um Amor Eterno, que dá uma posse eterna e então não passa.
Assim o homem que tem esta busca, deve se recolher em seu interior, e dentro de si, se isolando do mundo, penetra na “quaestio” agostiniana, o fio condutor que Arendt persegue: “pois quanto mais ele se retirava para dentro de si e recolhia a si mesmo na dispersão e da distração do mundo, mais ele se tornava uma ´uma questão para si mesmo´”, escreveu a autora.
Toda filosofia tem uma questão básica, e a de Agostinho se torna teológica: “O que eu amo, quando amo o meu Deus?” (Confissões X, 7, 11 apud Arendt p. 25), ainda que seja “no mundo”.
Assim a segunda parte de sua tese recebe o nome “e “Criatura e Criador: o passado rememorado”, no livro X de Confissões. “A memória, então, abre o caminho para um passado transmundano como a fonte original da própria noção de vida feliz” escreveu a autora sobre Agostinho.
Ao se propor ao relacionamento com Criador, o homem não se perde, e sim se encontra e isto é diferente de todo tipo de apego mundano, o deus do dinheiro, do consumo ou do desejo.
ARENDT, H. O conceito de amor em santo Agostinho. Tradução de Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
Assimetrias, poder e sociabilidade
O ensaísta coreano-alemão Byung-Chul Han, em seu livro No enxame, ressalta que somente o respeito é simétrico, as diversas formas de comunicação e poder são assimétricas, porém isto levado ao limite causam ódios, desprezos e guerras.
Jacques Rancière que escreveu “Ódio a democracia”, ressalta que este tema tomou contornos dramáticos atualmente, mas já existem na literatura: “ O autor ressalta que a rejeição à democracia não é novidade, no entanto apresenta novos contornos:
Seus porta-vozes habitam todos os países que se declaram não apenas Estados democráticos, mas democracia tout court. Nenhum reivindica uma democracia mais real. Ao contrário, todos dizem que ela já é real demais. Nenhum se queixa das instituições que dizem encarnar o poder do povo nem propõe medidas para restringir esse poder.
Relendo a literatura lembra autores que a defendiam: “A mecânica das instituições que encantou os contemporâneos de Montesquieu, Madison, Tocqueville não lhes interessa. É do povo e de seus costumes que eles se queixam, não das instituições do seu poder. Para eles, a democracia não é uma forma de governo corrompido, mas uma crise da civilização que afeta a sociedade e o Estado através dela”, e assim não falamos de “crise civilizatória” ao acaso.
Assim a discussão de mídias e meios influenciando a política existe a séculos, também o fato de difamar adversários através de situações nem sempre verdadeiras ou mesmo descontextualizadas é prática comum para tentar impor uma opinião de modo assimétrico.
O fato atual é que temos um meio mais potente que pode potencializar estas falsidades e as novas mídias não são apenas algoritmos de controle ou mecanismos eficientes de Inteligência Artificial agora novo enfoque tecnológico, o fato que buscar um equilíbrio, uma simetria desde a relação pessoal até o poder.
Não se pode aplicar as leis unilateralmente, ou mesmo, fazê-las ao sabor de situações políticas, elas devem valer para todos e se mudarem devem seguir um rito e as instituições apropriadas para isto, atropelar os poderes, antecipar processos ou fazer ritos sumários são abusos do poder.
Assim começamos com o respeito a opinião, ao diálogo, ao diferente e chegamos ao exercício do poder com moderação e o máximo de equidade, mesmo que forças contrárias enfrentem o discurso contraditório, é preciso fazê-lo no âmbito da legalidade e da legitimidade.
No nível pessoal superar empasses, rusgas e diferenças pessoais com parcimônia e respeito ajudam o equilíbrio das relações sociais, ainda que muitas vezes para um lado beire a ofensa.
Não é uma atitude heroica, é uma defesa do convívio, da tolerância e da paz social.
RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.
A alegria em meio à crise
É possível manter a alegria em meio a crise, dificuldades econômicas e guerras que nos ameaçam ? Não se trata de ingenuidade ou mera alienação, outros preferem pensar em manter seus bens essenciais: alimentação, saúde e moradia segura.
Byung-Chul teoriza que apesar da “diferença” entre Derridá e Heidegger (vejam os posts sobre o livro do autor sobre O coração de Heidegger) há uma afinidade estrutural na visão de luto dos dois, está caracteriza pela renúncia da autonomia do sujeito em Derrida: “Por mais narcisista que nossa especulação subjetiva siga sendo, ela não pode mais se fechar a esse olhar, diante do qual nós mesmos nos mostramos no momento em que o convertemos em nosso luto ou podemos desistir dele [faire de lui notre dueil], fazendo nosso luto, fazendo de nós mesmos o luto por nós mesmos, quero dizer, luto pela perda de nossa autonomia, por tudo que nos fez a nós mesmos a medida de nós mesmos” (Han, p. 430 citando o texto de Derridá “Krafter der Trauer”, fortalecedor da dor), isto é, ambos tem em comum uma visão de renúncia a autonomia do sujeito, o “eu” do idealismo.
Aqui o importante é não deixar o luto trabalhar (lembremos o conceito já visto nos posts do “luto do trabalho”) ele é substituído em Derridá por um jogo do luto: “contudo quanto mais alegre a alegria tanto mais pura a tristeza que nela dorme. Quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria …” (Han, pg. 430-431), mas o luto de Heidegger, explica Han, não mata a morte, tentar matá-la resulta em algo ainda pior: “o querer ressuscitar, ultrapassar violenta e ativamente o limite da morte só os arrastaria (os deuses) para uma proximidade falsa e não divina e traria a morte em vez nossa vida” (Han, pg. 431-432 citando Heidegger).
Heidegger explica que é “não é um sintoma que posa ser eliminado pela contabilidade psicoeconômica. Ele não tem um traço deficitário que implique o trabalho (de luto).”.
Este “retirado” ou “poupado” para o qual bate o coração “santo e enlutado” de Heidegger não é submetido à economia, este “poupado” não se pode gastar nem capitalizar, é portanto aquele que está e caracteriza a renúncia, Han não exemplifica, mas podemos pensar em ajuda humanitária em desastres e guerras, já que vai caracterizar a identidade de renúncia e agradecimento como concebível fora da economia, usando termos heideggerianos “suportar pesarosamente a necessidade de renunciar” e promete a “impensável doação”.
Diz uma frase profunda e sábia de Heidegger, a renúncia é a “forma mais elevada de posse”, parece contrário, mas só temos de fato aquilo que podemos dar pois do contrário é mercadoria de troca, e mais ainda renúncia se torna agradecimento e “dever de agradecimento”, esta dor aumenta aprofundando se torna alegria: “quanto mais profunda a tristeza tanto mais nos chama a alegria que nela repousa”. (pg. 433), mas não se torna nem sublimação, que nos obriga “trabalhar”, pois é a “inibição de todo rendimento” e a “consciência do vazio e da pobreza do mundo”.
Elogio da miséria alguém poderia pensar, não é um elogio a alegria moderada e contínua, diferente da euforia e êxtase que é seguida de depressão, “a falta do divino acarreta o luto, remonta a um obstinado esquecimento do ser, no qual Heidegger inscreve o divino” (Han, p. 433-434), mas certamente não é ainda o divino bíblico, mas cerca-o.
A recompensa e a alegria do Divino inscrito no ser, é aquela que renuncia e doa, mas sabe que haverá recompensa de receber cem vezes mais não em bens, mas em alegria.
HAN, B.C. Coração de Heidegger: sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger. Trad. Rafael Rodrigues Garcia, Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2023.
A crise do pensamento e a guerra
O cenário do envolvimento mundial nas guerras é um cenário difícil, é preciso entender o que está por trás, antes tempos um confronto cotidiano entre mentes, almas e interesses econômicos que se digladiam diariamente.
Refletem a crise do pensamento contemporâneo que não é apenas filosófica, religiosa ou política, ela e uma perda de fundamentos do que é o humano, a natureza e a própria ciência.
A visão de Sloterdijk expressa em sua esferologia no volume I Bolhas, ele mostra que o tanto o fenómeno onto como antropológico são mais essenciais que a a relação entre sujeito e objeto, pois precedem a ela a experiência espacial do Ser-em (ainda que não seja exatamente o que Heideger chamou de In-Sein), esta é a principal crítica ao idealismo contemporâneo.
No campo religioso (e pode-se estender ao pensamento), o ensaísta Byung-Chul Han, reflete que o “pathos da ação, bloqueia o acesso à religião. A ação não faz parte da experiência religiosa.” (Vita Contemplativa de Byung Chul Han, pg. 154), assim a religião também está em “guerra” cotidiana que leva no extremo a guerra militar.
O ódio que chegou ao Irã e seus grupos aliados e a Israel estão vinculados a esta ideia, e também o fundamentalismo que é diferente da ortodoxia, levam aos extremos da guerra.
Enquanto a ortodoxia proclama o amor e o vínculo ao próximo, a ação leva a guerra e a destruição do diferente, nada é tolerado que não seja semelhante ao “modelo” do ideal ou da ideologia que dele derivou, as ditaduras e opressores proliferam pelo planeta.
A preparação do Irã e de Israel para uma guerra total sem intermediários, e da Otan com a Rússia estão cada vez mais próximas, claro sempre é possível um bom senso e saber que todos perderão, mas a lógica da guerra é sempre alguém perderá mais, e isto constitui a vitória.
A aproximação da Rússia de Kharkiv e a entrada da Ucrânia em território russo demonstra que a guerra é de conquista e assim reduzem a possibilidade de um acordo de paz.
Sempre é possível a esperança e nela consiste a resistência do espírito e o desejo de paz.
O universo foi criado
Seja válida ou não a hipótese da criação do universo pelo Big Bang (existe a hipótese do multiverso) em algum momento ele a-pareceu, é muito cara a categoria do dasein estar aí de Heidegger, mas isto é essencialmente o humano do Ser.
Sloterdijk vai entrar neste mérito escrevendo: “Trezentos anos após a morte do homem que foi venerado por seus seguidores como o Messias que chegara, o Concílio de Niceia estabeleceu o dogma de que o Senhor Jesus Cristo seria Deus de Deus e luz de luz, verdadeiro Deus do verdadeiro Deus, gerado e não criado — o que quer que isso signifique.” (pg. 31), se o nome de Deus incomoda (e faz sentido), a criação não o ser-aí foi criado.
As fotos recentes do telescópio James Webb intrigam cientistas porque aparentemente não houve uma criação lenta, galáxias inteiras complexas parecem estar já no início do Big-Bang, e a força que as movimento parece ser algo realmente extraordinário, impensada pela ciência.
Como dissemos no post anterior, além de Jesus, para Sloterdijk também Sócrates e Sêneca devem ser examinados, e são próximos historicamente, escreveu: “O que na linguagem comum se chama “vir a ser humano” designa, descontadas as extrapolações, um estado de coisas que o filósofo romano Sêneca (1-65 a.C), em parte contemporâneo de Jesus (4 a.C-30 d.C), durante algum tempo mentor do jovem Nero [vejam] e, mais tarde, forçado por ele ao suicídio, patenteou na seguinte sentença: sine missione nascimur — com o sentido de: nascemos com a perspectiva segura de morrer” (pgs. 31-32).
Assim, poderia se separar o mortal do importante, mas Sloterdijk pensa diferente e escreve: “A leviandade cotidiana é uma máscara do fantasma atemporal da indestrutibilidade; o pregador na Palestina e o filósofo em Roma tiram essa máscara para testemunhar que existe algo indestrutível que não é de natureza leviana e fantasmática.” (pg. 33), por isso sua descrença com algo “indestrutível”, e a diferença do pregador messiânico da Palestina é “ressuscitou”.
Para ele Jesus se distinguiu no falar: “mas talvez também apenas uma façon de parler [modo de falar] para “eu” —, veio ao mundo, como ele próprio foi levado a dizer, para assinar seu ensinamento com sua vida.” (pg. 33), mas sua vida era de outro modo como alguém que veio de outra realidade e a conhece.
Assim está preso a ver as realidades humanas como “ex machina”: “O homem que chamara a si mesmo de “Filho do homem” falou elementos essenciais de sua mensagem do alto da cruz, na qual ele terminou como deus fixus ad machinam [deus preso à máquina]” (pg. 33), mas não é, vai examinar os escritos de Inácio de Loyola (fundador dos jesuítas) e de Hegel, mas fica preso a noção de absoluto de Hegel, porque este não chega a admitir o universo complexo que agora vemos através do James Webb.
SLOTERDIJK, P. Fazendo o céu falar: sobre teopoesia. Tradução Nélio Schneider. – 1. ed. – São Paulo : Estação Liberdade, 2024.
A análise histórica da teopoesia
Ninguém se converterá lendo Sloterdijk, ele chama o termo religião de “nefasto”, mas o termo não a cultura a qual procura aprofundar, sobre o termo afirma: “… sobretudo desde que Tertuliano inverteu, em seu Apologeticum (197), as expressões “superstição (superstitio)” e “religião (religio)” contra o uso linguístico romano: ele chamou de superstição a religio tradicional dos romanos, ao passo que o cristianismo deveria se chamar “a verdadeira religião do verdadeiro deus”. Desse modo, ele produziu o modelo para o tratado agostiniano De vera religione [Da religião verdadeira] (390), que marcou época, mediante o qual o cristianismo se apropriou definitivamente do conceito romano” (pg. 20) e seu raciocínio e visão histórica é bem mais precisa que aquela que quer parecer que Constantino criou uma “religião”.
Histórico porque a influência sobre Agostinho dos neoplatônicos, em especial de Plotino, é não apenas razoável, mas forte o suficientemente para aquilo que vai escrever, não na Vera religione, mas em suas Confissões que é praticamente seu testamento e modelo de sua conversão, Agostinho deixa o maniqueísmo (dois polos opostos em disputa) para descobrir o Uno (categoria de Plotino), a religião do Amor, que valeu uma tese de doutorado de Hannah Arendt.
Entretanto não se nega a ação política da religião, Sloterdijk escreve citando Eneida de Vírgilio: “Nenhum imperialismo ascende sem que tenham sido interpretadas as posições atuais das constelações no céu temporal, tanto no caso de detentores do poder quanto de aspirantes a ele. Somam-se a elas conselhos do submundo: “Tu regere imperio populos, Romane, memento.” (pg. 26 citando Virgílio).
Ele está falando de comunidades culturais e cita Constantino: “a integração simbólica ou “religiosa” e emocional de unidades maiores: de etnias, cidades, impérios e comunidades cultuais supraétnicas — sendo que estas últimas também podiam assumir um caráter metapolítico, ou melhor, antipolítico, como ficou claro no caso de comunidades cristãs dos séculos pré-constantiniano” (pg. 25-26), quando cristãos eram perseguidos e isto é história.
A igreja já se estrutura nesta época: “Os bispos (episcopoi: supervisores) eram, em essência, algo como praefecti (comandantes, procuradores) em trajes religiosos; suas dioceses (em grego: dioikesis, administração) se assemelhavam aos anteriores distritos imperiais após a nova subdivisão feita por Dioclécio em torno do ano 300; sobretudo através delas, o princípio da hierarquia chegou à organização eclesial em formação …” (pg. 26), assim Constantino ano 313 quando coloca a religião católica como religião “oficial” [por influencia da mãe Helena] pouco ou quase nada influenciou sua estrutura.
De fato na herança judaica, já havia consagrado muitos rituais: “O princípio mediológico apò mechanès theós, aliás, deus ex machina, próprio da técnica cênica ou então da dramaturgia religiosa, de fato já estava em uso em vários rituais do Oriente Próximo muito antes de surgir no teatro ateniense” (pg. 28), assim este “deus ex machina” já estava presente no judaísmo. (Na figura acima a representação de Medeia de Euripedes do deus ex machina).
O autor reconhece a virada religiosa de Jesus: “O homem-deus, que se chamou de “Filho do homem” inspirado em fontes persas e judaicas — possivelmente um título messiânico, mas talvez também apenas uma façon de parler [modo de falar] para “eu” —, veio ao mundo, como ele próprio foi levado a dizer, para assinar seu ensinamento com sua vida” (pg. 32), embora o compare com Sócrates e Sêneca que tinham “convicções irrenunciáveis”.
SLOTERDIJK, P. Fazendo o céu falar : sobre teopoesia. tradução Nélio Schneider. – 1a. ed. São Paulo : Estação Liberdade, 2024.